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Ao serão - Edite Prada (1.º Prémio

N Ú M E R O E S P E C I A L

A O S E R Ã O

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As recordações da infância, esbatidas aqui e ali, trazem vislumbres das noites ao serão. Sem luz elétrica, na aldeia do interior profundo, os serões não eram longos, mas, na casa de Ana, eram concorridos. Várias razões contribuíam para a presença dos vizinhos à roda da lareira: o aparelho de rádio que permitia ouvir vários programas e peças musicais; a lareira em si não era razão despicienda num tempo em que a lenha não abundava e menos ainda o dinheiro para a adquirir; para Ana, as recordações mais gratas estão associadas às histórias contadas pelos participantes no serão. Não importava se eram reais ou imaginadas. O narrador esforçava-se por dar vida às palavras e quando ia dormir, Ana recordava cada palavra, cada entoação e assim, embalada, entrava no sono...

As noites de leitura constituem, também, recordações gratas. Jovenzinha ainda, ouvia a mãe ler para uma assistência não muito numerosa mas atenta, ouvindo num silêncio absoluto e quase reverente. Quando começou a dominar a leitura, esse encargo passou a ser seu. E ainda recorda, grata, o silêncio que aquele grupo de adultos à sua volta fazia para ouvir a sua vozinha ler muitas vezes livros já ouvidos, pois o número de obras disponíveis era reduzido.

Ana conhecia os livros que havia na sua casa e sabia que todos eles podiam ser emprestados e percorriam várias casas onde outros leitores replicavam o seu papel em outros serões, à volta de outras lareiras. Aos poucos, foi tendo conhecimento dos livros disponíveis na aldeia, cujos proprietários os emprestavam para poderem ser lidos por outros interessados... Não seriam mais de vinte, naquela aldeia transmontana, onde a relação com o mundo exterior se estabelecia através da carreira diária que fazia o percurso até à sede do distrito e regressava à noite - trazendo uma vez por semana o correio que era distribuído ao domingo, depois da missa - e através do som saído do aparelho de rádio que havia na sua casa e em poucas mais... A pouco e pouco, foi sabendo que as tabernas, uma a uma, lá foram comprando o seu aparelho de rádio, como forma de fixar clientes à volta das mesas e do baralho de cartas...

A forma como as notícias eram divulgadas passava pelo padre da aldeia que, no final da missa, fazia os avisos necessários, ou pelo regedor, no adro da Igreja depois da missa. Ana recorda com carinho aquele domingo da década de sessenta, em que o pároco avisou que, num dado dia dessa semana, passaria pela aldeia um carro da Gulbenkian que trazia livros para emprestar aos interessados.

Ana ficou sem saber muito bem como reagir, nem o que pensar... Ao longo dos dias até quinta à tarde, dia aprazado para a vinda do carro dos livros, ia imaginando como seria. 1 . º P R É M I O

–H I S T Ó R I A D E V I D A

I n F o r m a r

No dia estipulado, um som que, na altura, era único e que poucos anos depois se tomou comum com outros objetivos - venda de peixe congelado, em primeiro lugar... venda de fruta... venda de..., percorreu a aldeia: o som da buzina de um carro chamando os leitores. Ouvido o sinal combinado, os interessados dirigiram-se à praça da aldeia, onde a carrinha permaneceria durante três horas.

Era um momento solene. Ao dirigir-se à pessoa que, na portinhola lateral, preenchia a ficha de cada leitor, viu a porta traseira aberta e anteviu uma quantidade inimaginável de livros. Ansiosa, lá foi respondendo às perguntas: nome, idade. Idade! E se me não deixam levar os livros que me interessam! Treze anos! Não posso dizer treze anos! Quinze anos... Não, não tenho bilhete de identidade...

A décadas de distância, recordar esta reação ainda lhe arranca um sorriso... treze, quinze... que diferença faria, Deus meu! Mas naquela altura, na ânsia de ser mais velha, os dois anos acrescidos à idade preencheramlhe o ego. Tendo desenvolvido precocemente, a aparência física não desmentia o que dissera...

Ficha preenchida, foi a sua vez de entrar na biblioteca.

Tem alguma ideia do que quer levar? - Perguntou a funcionária de apoio...

Não posso ver?

Claro, esteja à vontade. Se quiser romances é aqui ...

E aqui?

Aí são livros de Ciências.

Ana olhou em volta, encantada... Pressentia em cada lombada uma aventura, em cada livro um caminho novo... Foi tirando das prateleiras, um, dois... cinco livros...

Não pode levar mais...

Feliz com a preciosa carga, o caminho até casa pareceu-lhe mais extenso do que habitualmente... Aí chegada, não eram horas de ler e sim de ajudar a mãe a preparar o jantar... As tarefas demoravam mais do que de costume. Até o fogão - já havia fogão a gás lá em casa! - aquecia as panelas com uma lentidão desusada...

A noite - não era dia de serão comunitário - pôde ler em silêncio um dos livros que trouxera... Não era um romance. Era um livro de medicina: O sangue, de Jean Bernard... Não imaginava que coubesse em livro tanta informação... Leu, como se de um romance se tratasse, com avidez... Algumas décadas depois, Ana ainda recorda o prazer que sentiu com a leitura daquele livro... Foi de longe o mais marcante dos primeiros cinco... E dos mais marcantes dos cinco anos em que frequentou a Biblioteca Itinerante...

Infalivelmente, recorria todos os meses ao carro dos livros e levava sempre o máximo que lhe permitiam. Muitos continuaram a servir de leitura durante o serão coletivo que, aos poucos, se foi desfazendo...

Ana olha para as prateleiras da Biblioteca, alinhadas, cheias de livros organizados e, inadvertidamente, vê-se de novo a mexer nas prateleiras da Biblioteca Itinerante, sentindo um prazer enorme no manuseio daquele manancial de conhecimento encaixado, à espera de ser redescoberto. E sorri…

Pseudónimo: Flora da Raposa Autora: Edite Prada*

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