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Zé Gaivota - Orlando Leal (1.º Prémio

N Ú M E R O E S P E C I A L

Z É G A I V O TA

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Estava eu aqui a pensar, enquanto debicava com força num saco. E foi então que me lembrei que, para que me entendam, terei de usar a forma estranha que eles têm para se comunicar. Usam sopros e gargarejos muito embrulhados em entoações imensas a que chamam palavras. Nós e todas as outras espécies viventes, comunicamo-nos desde sempre, sem uso da forma esquisita deles. Na minha última tentativa para que me entendam, vou usá-las e a sua semântica. Eu sei que vai ser um esforço vão. Estou cada vez mais convencido que é seu prazer e gosto tropeçar nos próprios passos. Os outros seres e o universo não precisam das minhas explicações e do meu alarme pois sabem que a vida não é uma suposta alteração do que é.

Chamam saco a um estranho invólucro, que tem dentro algo a que dão o nome de lixo. Não sabem que muito do que deitam fora é para mim, e para todos os da minha espécie, um luxo. Foram milhões de anos que amanharam e construíram o que eles lançam fora com leviandade. Vivem em confusão, metem as asas pelas patas (desculpem: os pés pelas mãos). Lixo, para nós, é o que eles fabricam, adulteram e depois, atiram pela janela por ser inútil. Inclusive o saco que eles inventaram. Eu estou a pensar como um ser normal, desses que vivem a vida simplesmente. Eu penso e irradio para o universo onde tudo me entende. Esqueço-me é que, muitas vezes, eles não me compreendem.

Tenho dado umas voltas por aí, deixo-me levar pelos ventos que me atiram para mais alto e de lá vejo tudo muito mais claro e amplo. Desço, poiso suave junto de um desses invólucros, sacudo as penas e encolho os ombros (desculpem, as asas) e concluo: são uns idiotas sem cura. Estão sempre, obsessivamente, a descumprir as leis. Sabem que a Natureza não faz trapaça, mas fingem que não sabem. Não sabem ou fingem desconhecer que as regras são antes do seu início e serão depois do seu fim. Violentam-nas com inconsciência e arrogância sistemáticas. Atribuem-se a maior inteligência universal, mas desprezam o que já sabem: que o planeta onde estão seja a sua única possibilidade de sobrevivência.

Perdoem-me não os ter apresentado. Eles são uma variedade de vida que por aqui anda e a quem, há uns milhares de anos, um espécime de entre eles, lhe atribuiu o genérico nome de “homo”. E que, passados uns tempos, acresceu-lhe o espampanante e soberbo “sapiens”. E para não ficarem diminuídos ante meu primo que tem três nomes, pespegou- lhe outro “sapiens”. E ficou assim: “Homo Sapiens Sapiens” (eles escrevem sempre os nomes próprios com maiúsculas).

Perdoem-me também não me ter apresentado. Eu sou parente, suponho que primo, dum famoso congénere que nas Américas denominaram Jonathan Livingston Seagull. Pomposo, não é? Bastante, pensam eles, porque é o tipo de atavio que os “sapiens” veneram muito. Neste caso, com um apelido paterno perfeitamente dispensável. No Brasil, e porque tal nome era impronunciável, chamaram-lhe, por óbvio reflexo, Femão Capelo Gaivota. Como veem, também ele sofre do trauma atávico. Deve ter sido herdado dos gibões de cetim e dos chapelões emplumados que 1 . º P R É M I O

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chegaram jesuiticamente balançados pelas caravelas.

A mim chamam-me zé. Também sou gaivota. Mas dispenso o nome de família: quem tiver olhos que veja. Não tenho os problemas existenciais do meu primo americano. Chamem-me o que quiserem. Não procuro afinar o meu voo pelos nomes ou sobrenomes que me atribuírem. Pode ser tosco e quebrado: não me importa. Bastam-me asas cruas, que o instinto logo me leva a pousar perto de qualquer saco. Eu devia andar empurrado pelas correntes aéreas, mergulhar nos oceanos, lutar pela sobrevivência simples, mas o “homo” desvioume da Natureza. Por causa dele, não me faltam sacos. Imensos, de tamanhos diversos, imundos, de várias cores e alimentos. Entopem com eles todos os recantos que lhes pareçam adequados.

Mas há muito mais a dizer dessa estranha espécie. Ignora e pisoteia de tal modo a ordem natural de tudo, que me leva a pensar que será a única variedade de vida aberrante neste planeta. E não creio que haja alguma outra semelhante em qualquer ponto do Universo. Ela chama inteligência a essa obsessão descontrolada e progressivamente desenfreada que a faz destruir o lugar onde vive e os alimentos que lhe dão vida: a água, o ar e os frutos da terra. Diz que inverte as coisas para garantir alimento a todos os humanos. A acreditar no que diz, não haveria milhões deles a morrer de fome todos os anos... Milhões deles, mal acabados de nascer, secos por inanição, como gravetos.

Deixei de pairar sobre os mares e viajar de uns para outros. Atravancou-o de enormes monstros flutuantes, inchados de inutilidades acumuladas e infectas que, de quando em vez, lançam pela borda. Que tomaram as águas opacas e sólidas. Já não mergulho: a minha visão confunde-se no turbilhão de imagens das algas, dos corais, dos peixes, dos anfíbios e dos objetos estranhos que para lá vomitam todos os dias. Já não distingo uma garrafa de plástico ou um saco translúcido duma sardinha. Não tardará que seja mais fácil caminhar sobre as águas do que engolfar-me nelas, como sempre fiz. Eu vejo a angústia e o pânico nos olhos dos tubarões, das tartarugas e das baleias: não conseguem competir com a ocupação descabida do espaço que é deles e que lhes está a ser roubado a cada momento. Veem a sua extinção vir a galope ao seu encontro. Os humanos declararam guerra à harmonia e equilíbrio dos oceanos.

Tenho até a minha possibilidade de voar posta em causa. Os céus, que são meus há milhões de anos, estão agora entupidos de mostrengos metálicos, que passeiam as vaidades humanas e outras arrogâncias. Que barram os ventos e os impedem de limpar os ares. E ainda deixam flutuantes rastos venenosos que empeçonham os espaços que são nossos e os pulmões que nos permitem existir. Dizem que, visto de muito acima da minha possibilidade de observar, é azul o manto que protege e dá alma à casa de todos os seres que aqui moram. Mas não tarda que seja vermelho de peçonha irrespirável e mortífera como são os fluidos de outros planetas que há por aí.

O “Homo Sapiens Sapiens” declarou guerra à harmonia e equilíbrio dos ares.

Avança com volúpia e frenesi contra o verde e todas as cores da terra firme. Transforma o seu arco-íris na terrífica monotonia do preto e branco. Passa trucidando árvores, esmagando ervas e suprimindo vidas que existem para lá dos tempos e dos mitos. E deixa para trás, por todos os continentes, incontáveis legiões de seres vivos desfolhados, que esticam para os deuses os braços secos, torrados e mortos num pedido imenso de socorro que não é ouvido. Os seus membros retorcidos e impotentes recolhem das nuvens lágrimas ácidas e negras, que escorrem pelos troncos e que se depositam sobre a Terra num imenso véu de dor e luto.

O homem declarou guerra à harmonia e equilíbrio dos campos e das montanhas.

À minha volta polvilhou tudo de casarões onde se escondem imensas caldeiras donde irrompem grossos tubos por onde fumegam venenos líquidos e gasosos. É onde se ocupa a engendrar o suicídio e a extinção do que possa restar. Chama a isso evolução, progresso, civilização. Porque se arroga ser deus e os deuses sabem o que fazem.

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Os homens desenvolveram, entre todos os seres viventes, a capacidade exclusiva de se odiarem. Nada nem nenhum ser se odeia neste planeta, além deles. Escondem-se cada vez mais atrás de si próprios. O medo é a sua emoção dominante. E por isso, gestam e parem, continuamente, objetos incontáveis, bizarros e absurdos. Com a loucura que os caracteriza, deram a essas coisas aspetos e tamanhos inumeráveis. Podem caber num bolso ou ter a medida dum quarteirão; percorrer milhares de quilómetros, ocupar campos, florestas e desertos; deslizar céleres nas profundezas dos oceanos e sibilar fulgurantes pelos espaços, invadindo os caminhos das estrelas. De onde estiverem podem pulverizar milhões de humanos e, por reflexo da estupidez, a vida de todas as espécies no meu planeta. Chamam-lhes armas.

Ao longo da sua existência, lá ia a Natureza apontando o dedo à sua insanidade. Raramente lhe prestaram atenção. E agora, mais uma vez, o olhar de aviso acusador pousou sobre eles. Vindo da fronteira do infinitamente pequeno uma partícula invisível aos seus olhos irrompeu por todos os lados. Veio tentar provar-lhes que é muito mais poderosa que todas as suas armas e convicções e quebrou-lhes os pés de barro! Os enormes monstros flutuantes vaguearam sem norte pelos oceanos: não encostavam aos cais porque ninguém os queria receber; os metálicos mostrengos voadores, que lhes passeavam as futilidades, viram-se humilhados e pousados sobre o negro do asfalto dos aeroportos, onde ficaram arrumados, hirtos e inúteis; nuvens de tóxicos automóveis desapareceram em buracos abertos no solo, ou encostados às casas onde os seus donos se esconderam aterrados.

E, de repente, os ares começaram a ficar mais lavados, as terras e as águas com mais cores que as do arcoíris e os outros seres a respirar. A vida do silêncio que é o som da natureza tornou a circular: as cascatas voltaram a falar, as aves a cantar, o sol a dar vida e a lua a dar repouso.

Mas receio que não tenham aprendido nada. Nem com a sua própria história. Receio que a surdez aos gritos à sua volta seja incurável. Que substituam os pés de barro por próteses metálicas. Procuram obcecados calcular a dimensão do Universo e não sabem calcular a sua. Receio muito que nos extingam. Mas vem-me à memória o que nos contava a nossa avó Rosa Gaivota. Contava ela, que uma velhinha, que se alimentava e à sua família junto à lota, lhe dizia muitas vezes: “a esperança é a última a morrer, minha Rosinha. Não te canses de dizer aos teus meninos que viver é amar. Foi o Amor que nos trouxe e não nos vai deixar.”

Pseudónimo: Cláudio Joaquim Autor: Orlando Leal*

*Orlando Leal, nasceu em Angola a 27 de julho de 1947. Curso liceal (antigo 7.º ano) no Liceu Almirante Lopes Alves (Lobito) em 1967. Agrimensor pela Escola de Topografia e Agrimensura dos Serviços Geográficos e Cadastrais de Angola (Luanda) em 1971. Na sua primeira juventude, obteve menção honrosa em concurso literário promovido pelo jornal "O Lobito" com um estudo etnográfico. Viu publicadas algumas crónicas nesse jornal, no mesmo período de sua vida. Exerceu a sua atividade profissional, quase toda a vida, em Angola e no Brasil. Aposentado, reside em Vila Nova de Gaia desde 1991. Frequenta a Academia Sénior desta cidade. Pratica andebol sénior.

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A B O N E C A

Andava triste por esses dias o senhor Manuel. Antes de entrar no portão clamava sempre pelo da casa e se lhe não respondessem, dava meia volta e ia embora. Era porque não estava ninguém. Mas se ao dar de vaia escutasse, Entre, entre, senhor Manel, na verdade todos lhe chamavam Manel, embora o seu nome fosse Manuel, transpunha o portão devagar, apoiado no seu cajado, dava a salvação aos presentes, quase sempre amigos que se reuniam no alpendre lá de casa e ao convite de Puxe de uma cadeira senhor Manel, lá puxava, mas as mais das vezes sentavase no bordo do poço que, por precaução com as crianças, era tapado e ali ficava com o traseiro meio sentado, meio encostado, uma mão sobre a outra, e ambas sobre o bordo arredondado do cajado, que era assim a posição de descanso dos pastores. Quase sempre encostava também o queixo às mãos, numa posição de repouso para a cabeça. E ali ficava vendo os demais a jogarem às cartas, sendo que muitas vezes, sem sequer abrir a boca, dava meia volta e ia-se embora. Já se vai embora, senhor Manel quase sempre era eu que perguntava, O qu’ é estou práqui fazendo se vossemecês estão jogando à carta?, respondia perguntando e umas vezes ia, outras vezes ficava, à espera que houvesse alguém disponível para uma troca de palavras, quase sempre escassas, que o senhor Manel não era de falar muito, as frases não lhe saiam com fluência, por vezes ficava por meias frases, parando como se o epílogo da sentença fosse obvio. Noutras, aos poucos, lá lhe iam saindo as histórias, quase sempre começadas por Quer ouvir esta senhor Anastácio? Indo depois desfiando, com alguns sorrisos pelo meio, por vezes nostálgicos, outros por graça e até outros de tristeza, porque a tristeza, por vezes também nos traz um sorriso ao rosto e cujo sentimento se não consegue disfarçar.

Naquele dia o senhor Manel estava triste. Vai um copinho senhor Manel? perguntei-lhe, como habitualmente fazia. Só se for uma pinguinha poucochinha que ando mal dos diabetes, utilizando os dois diminutivos seguidos para reforçar e lá aceitava um copinho, tanto se lhe dava que fosse tinto ou branco desde que estivesse fresco, pois que os verões são sempre abrasadores na aldeia. E do que vossemecês estiverem bebendo, mas não se incomode senhor Anastácio e lá aceitava o copinho. Do que é que é essa cara senhor Manel? Parece que o meu amigo não está lá muito bem, perguntou-lhe o Fragoso, que jogava connosco à sueca, morava no Cabeço e só aparecia quando lhe cheirava a cartas, enquanto baralhava as cartas para nova rodada. Ah, não é nada, é a minha cara... não tenho outra... e rematava Coisas cá minhas, coisas sem importância...parecendo a uns que a frase acabaria assim e a outros que era apenas a sua costumeira pausa no discurso. Naaah!, respondia-lhe o Fragoso que meio de costas, meio de viés, também já tinha notado que a cara do senhor Manel naquele dia, era diferente da dos outros dias, se bem que a pele crestada e tisnada pelo Sol, era a de todos os dias e, à medida que estes passavam, na inexorável corrida do tempo se ia notando que os olhos tinham cada vez menos brilho. Ajeitou o boné e disse, como se alguém o estivesse ouvindo, para os que na mesa tinham começado nova partida e se concentravam no trunfo, que era ouros, se a manilha ou o ás já tinham saído e se os dois tentos

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da dama de paus ainda iriam dar para ganhar o jogo ou não, Assim o Narciso puxasse paus. Não tens um pauzinho para mim, Narciso? perguntava o Fragoso com a dama de paus em riste e já com cinquenta e nove em mãos, se fizesse, faria sessenta e um, era limpinho, mas para azar dos Távora, o Narciso tinha guardado o temo de trunfo para o fim, foi ele quem fez os sessenta e um foi ele também que no meio de uma gargalhada de satisfação deixou o Fragoso a falar sozinho e a dizer repetidamente, Como é que eu me fui esquecer do terno de ouros, como é que me esqueci, esta cabeça, esta cabeça..., já o Monteiro baralhava de novo. O Monteiro fazia par com o Narciso, eu com o Fragoso, estávamos empatados sete a sete, quem ganhasse o próximo vencia a bola, que era assim que chamávamos aos oito riscos, sendo cada risco um jogo. Eu sentenciei que não jogaria mais, para poder dar um bocadinho de atenção ao senhor Manel que de facto, não me parecia estar bem.

Mas diga-me cá senhor Manel, que cara é essa homem? O senhor está doente? Não estava doente de facto mas andava doente, que é uma maneira de a gente dizer, porque anda preocupado com uma situação, que não lhe seria nada favorável e que, pelo sim, pelo não, haveria de querer precaver, pois tinha até algumas noites que já só dormia à custa dos comprimidos. Diga-me cá amigo Anastácio, vossemecê não tem “ouvisto” as notícias, que era assim que ele falava, cometendo muitos erros de expressão, dada a sua condição de quem nunca foi à escola e outras vezes usando os termos mais comuns lá por aquelas bandas, onde se chama calitro ao eucalipto e se referia o Champalimaud, pelo Champalimão. Eu tenho visto as notícias, sim senhor, senhor Manel, mas o que foi que ouviu que o apoquentou?, perguntei-lhe pois não só estava interessado em conversar um bocadinho com o homem, mas também, agora, curioso com aquele estado de espírito, chamemos-lhe assim. Está-se a ver amigo Anastácio que vossemecê não se preocupa com certas coisas. Vivesse o amigo por aqui, em vez de cá praticamente só passar as férias... e interrompeu a sequência para dizer que era um dó de alma ver o Monte assim, quase que já não tinha ninguém, chegava o inverno aquilo parecia um deserto, que só cá vinham no verão, Ao menos valhanos isso, rematava. Mas no relambório ainda constavam os motivos e os destinos das gentes da terra. Uns abalaram para Alemanha, desde que as minas fecharam, têm já para lá filhos e netos, outros para França e para Bélgica, já não querem voltar. E, embora o senhor Manel nem fosse de tanta conversa, referiu o fim das searas, não tendo muito bem dado a entender se era contra ou a favor do Salazar, pois tanto elogiava o pão que a terra dava, que no dizer dele e no jeito de falar da região queria dizer trigo, que tinha sido o Salazar que tinha mandado cultivar, Vossemecê é novo, senhor Anastácio, se calhar não sabe disso, como lhe chamava bandido que em menos de nada tinha cansado as terras. Esse homem era do piorio. Sofreu-se muito cá no Alentejo por conta dele, rematava. Depois falava, com alegria, do magote de ceifeiras e de ceifeiros, cavadores e mondadeiras, que invadiam, desde madrugada ao sol-pôr, esses campos por aí fora, nas cantigas que os homens cantavam às raparigas e que elas respondiam a preceito, na infusa e no cantil de água fresca, nas sombras dos chaparros onde tinha de descansar nas horas de mais calmaria, sempre com um olho no capataz ou no manajeiro, não fosse algum deles topar e o mais certo era ser despedido, contando não ser raro um ou outro desmaiar com o calor. Pois não está a ver, senhor Anastácio? Quando acabaram as searas e a mais o fecho da mina, abalaram todos desses montes por aí. Foi tudo pró estrangeiro. Ia começar a contar-me a história de um tal Joaquim de Brinches, mas ao lembrar-se do que o tinha levado até ali, emudeceu de novo e ficou para ali a cismar. Embora com a referida pouca fluência, já tinha sido ele que me contara a história do curandeiro espanhol e a história de quando foi visitar a sobrinha nos arredores de Lisboa, palmilhando toda a cidade a pé, com uma posta de bacalhau embrulhada num jornal, numa trouxa improvisada com um trapo de cozinha, posta de bacalhau essa, que seria para o seu almoço já que ele não queria ser estorvo para a moça. Mais tarde contarei também estas histórias. Mas então senhor Manel que raio de notícia é essa que o traz tão apoquentado, homem? Ao que ripostou, Que raio de notícia, que raio de notícia, estou mas é vendo que o senhor Anastácio não sabe de nada, não ouviu nada, ou então não quis saber, é o mais certo, já que vossemecê não é burro nenhum, tem os seus estudos, eu é que sou um analfabeto que por aqui anda, até que Deus queira. Ao amigo estas coisas não afetam, quer dizer, é bom de ver que afetam a todos, se é como eles para aí dizem. E novo silêncio, as mãos ainda sobre o queijado, o queixo encostado às costas da mão que ficava por cima, os olhos postos no chão, como que pensado as palavras que haveria de dizer a seguir ou então definitivamente calado, daria a salvação e abalaria sem mais água vai, nem água vem.

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Mas não desta vez não, o senhor Manel levantou a cabeça e sentenciou. Vou vender a Boneca! Primeiro pareceu-me não ter entendido. Aliás, não era raro eu não entender as frases do senhor Manel, mas neste caso nada tinha a ver com dicção, sotaque, plebeísmo ou expressão idiomática. Não, nada disso. O que não entendi foi o que é que o senhor Manel quis dizer com “Vou vender a Boneca”. Mas qual boneca, senhor Manel. Algum brinquedo que a sua neta deixou por aí? E ele, quase me fulminando com o olhar, ainda que de baixo para cima pois continuava recostado no queijado, provavelmente pensando que eu estaria a mofar dele, providencialmente interrompidos por Vai uma mini?, na voz do Monteiro, que tinha ido lá dentro buscar ao frigorifico umas fresquinhas, Não, agora não vai nada que ainda estou na digestão, respondi e depois, virando-me de novo para o senhor Manel, Então, homem, não se quer explicar? E ele, explicou. A Boneca, senhor Anastácio, a minha bezerra e disse a última palavra já com a voz embargada que parecia até que o homem queria chorar. Primeiro, tive a sensação de que eu iria soltar uma gargalhada quando ele especificou que a Boneca era a bezerra, mas ao vê-lo tão triste, tão desolado e comovido, consegui suster a vontade de rir e assim com um sorriso velado, meio de quem estava também nervoso por não estar a perceber, Mas vai vender a Boneca, porquê senhor Manel. Não é aquela bezerrita que comprou para a sua neta? Que sim, que era essa mesma, mas as notícias não eram animadoras. Então não ouviu dizer, no noticiário, que há aí partidos políticos que pedem o fim das vacas por causa dos puns que elas dão? Dizem que é o pior que há para o Universo e que por causa das vacas é que há o buraco do outono... - interrompi, Do ozono, corrigi, mas sem qualquer esperança de que ele também emendasse, só me respondeu, Ou isso... E depois falam nas estufas que eu não faço a mínima ideia de quais estufas é que estão falando e dizem que é por causa das vacas que temos estes verões escaldantes e que o gelo está a derreter lá para o polo norte, que até os pinguins já não têm onde morar.

Nesta altura não pude evitar de rir e disse para o senhor Manel ficar descansado que não precisaria de vender a Boneca, coisa nenhuma. Estive a explicar-lhe tim-tim-por-tim-tim o que era o efeito de estufa, as tais estufas de que ele falava, que os gases emitidos, pelas manadas eram efetivamente problemáticos para o ambiente, mas o pior ainda era a grande desmatação que se fazia nas grandes florestas tropicais, principalmente na Amazónia, onde se arrasava a floresta para dar origem a grandes plantações de soja, cujo objetivo principal é o da fabricação de rações para animais e, depois de o sossegar e de lhe garantir que ele não teria que vender a bezerra e que a redução da pecuária seria uma coisa de longo prazo, ainda lhe expliquei que no polo norte não há pinguins. Parecendo ter ficado mais aliviado, embora não totalmente convencido, esticou o braço com o copo na mão e Vá lá mais uma pinguinha pró caminho. Poucachinho, ouviu, amigo Anastácio? Desencostou-se do poço, virou o meio copo de branco, que lhe servi, deve ter dito qualquer coisa sobre a diabetes que, mais uma vez, não percebi muito bem e abalou.

Pseudónimo: Anastácio do Rosário Autor: Vítor Fernandes*

*Vítor Manuel Alves Fernandes (Lisboa, 1955) licenciou-se em Engenharia Eletrotécnica no IST, Lisboa e a sua atividade profissional andou à volta dos computadores. Em 2003 cria o seu primeiro blog e (re)toma o gosto pela escrita. Publicou os romances Sete facadas e carapaus de escabeche e Há fogo na doca e o livro de contos “Pero que los hay, los hay” e outros sabores. Em coautoria publicou também o romance “O diabo dos políticos” e participou em várias coletâneas e antologias de poesia e de conto. Tem sido premiado em vários Jogos Florais no País, nas modalidades de poesia, conto e textos para teatro. Dedica-se à fotografia como hobby, dá aulas desta disciplina na USALMA, na Unisseixal e no Centro Social Paroquial Padre Ricardo Gameiro em regime de voluntariado cultural e toca cavaquinho na Tuna do CSPPRG.

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