FILAMENTOS-third edition-terceira edição--Bruma Publications-PBBI, Fresno State

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ARTES E LETRAS NA

DIÁSPORA AÇORIANA

ARTS AND LETTERS IN THE AZOREAN DIASPORA

TERCEIRA EDIÇÃO

MAIO 2023

Director: Diniz Borges

Editorial Board: Linda carvalho-Cooley; Eugénia Fernandes, Emiliana Silva and Micahel DeMattos

Advisory Board: Onésimo Almeida, Duarte Silva, Teresa Martins Marques, Renato Alvim, Debbie Ávla, Manuel Costa Fontes, Vamberto Freitas, Irene M. F. Balyer and Lélia Pereira Nunes

Designer: Humberto Ventura - www.illustratetheweb.com

Contents 3 em poucas palavras 4 1º congresso dos jornalistas nos açores 8 em defesa do jornal local 11 desafios da comunicação social privada 15 poems by sam pereira 17 memória e mundividência 19 memory and worldview 21 cais do abraço 25 pelo mar adrentro ou a nossa poesia pelas duas margens 2 FICHA técnica

EM poucas palavras...

Diniz Borges

Eis a nossa terceira edição! Com textos de ambos os lados do Atlântico, nas nossas duas línguas, destacamos o I Congresso de Jornalistas dos Açores, com três das múltiplas apresentações feitas ao longo de três dias na cidade de Ponta Delgada. A comunicação social tem uma longa história nos Açores. O mais antigo jornal português, Açoriano Oriental acaba de comemorar 188 anos de vida. A rádio e a televisão também têm a sua história, com uma forte ligação à nossa diáspora. Os desafios existem, mas também existe uma enorme criatividade e sentido de serviço pela parte de uma multitude de jovens jornalistas presentes neste certame. Bemhaja à organização. Parabéns.

Da poesia, à critica literária, esta edição continua com a nossa missão de enriquecer o diálogo cultural entre os Açores e a sua Diáspora.

in Portugal is the Açoriano Oriental, commemorating its 188th birthday. Radio and television also are influential in the islands and have a strong bond with the Azorean Diaspora. Times are tough for media worldwide, and the Azores aren’t an exception, but the enthusiasm to serve and the creativity of young journalists will certainly surpass these difficulties. Congrats to the organization, and thanks for inviting the Azores-Diaspora Media Alliance.

From poetry to literary criticism, this third edition fosters the cultural dialogue between the Azores and its Diaspora.

Here is our third edition. With writings from both sides of the Atlantic and in our two languages, we put forth three presentations from the First Conference of Azorean Journalists, held in Ponta Delgada. Media has a strong tradition in the Azores. The oldest newspaper

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Foto de diniz borges

1º Congresso dos Jornalistas dos Açores

(Re) Pensar o Jornalismo Açoriano

Quarenta anos depois do “1º Encontro de Jornalistas Açorianos” a Comissão Organizadora deste congresso merece uma palavra de apreço e gratidão, por todo o esforço, empenho, dedicação, pelo conceito e estratégia desenvolvidos, e pelos resultados palpáveis que, decerto, advirão.

Não, não estamos no tempo em que as cartas chegavam de quinze em quinze dias, na mala do correio, trazida em “Dia de São Vapor”, pelo Lima ou pelo Carvalho Araújo; sem ligações aéreas diárias com o exterior; sem televisão, internet, telemóveis, fax, redes sociais; sem Universidade, sem comunicações e acessibilidades; muito longe dos desafios da globalização, dos corredores da sociedade da informação; longe da revolução tecnológica, da comunicação

interactiva, da instantaneidade da comunicação; da informação digital.

Este é o mundo das telecomunicações e da sociedade da informação, das notícias falsas; da pulverização e manipulação nas redes sociais, da pressão do mercado, da instabilidade social e da tecnologia, da formação contínua, da precaridade profissional. Os desafios são constantes. Complexas e divergentes as decisões.

Há quarenta anos atrás pugnávamos pela afirmação; profissionalização e reconhecimento da classe, pela liberdade de expressão, pela capacidade mobilizadora e interventiva, bebendo da História da imprensa açoriana, todo o prestígio incentivador, pelas causas que o advento da autonomia políticoadministrativo nos trouxera no raiar de Abril. Mais local e mais universal. Mais mobilidade e interactividade.

Foi o próprio Presidente da República, Gen. Ramalho Eanes, quem assumiu em mensagem enviada ao Encontro: “Os jornalistas açorianos assumem posição central na informação sobre a Autonomia da sua Região.

Tivemos o cuidado de juntar alguns daqueles, que ao longo de uma vida, enriqueceram as páginas dos imensos títulos da imprensa açoriana na boa tradição de seduzir reclamando, como foi o desafio concretizado em 1924 por José Bruno Carreiro, biógrafo de Antero de Quental e Director do Correio dos Açores, ao trazer ao arquipélago a “Missão de Intelectuais” “homens, preciosos agentes de propaganda das nossas ilhas“, dando assim seguimento às quatro grandes “ Questões Açorianas” levantadas entre 1891 e 1894, por Montalverne de Sequeira.

1. O Monopólio do Álcool, Ponta Delgada, 1891

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2. A Emigração dos Açores, Ponta Delgada, 1891

3.De como temos sido burlados, Ponta Delgada,1892

4.Autonomia, Administrativa dos Açores, Ponta Delgada,1894

Um pouco mais tarde e de modo próprio, Raúl Brandão, o Pai das “ Ilhas Desconhecidas”. Visitar e promover os Açores como nunca até então.

Personalidades do universo local, tais como, Armando Amaral, Silva Júnior, Ruy Guilherme de Morais, Luciano Mota Vieira, Jorge Nascimento Cabral, Ermelindo Ávila e Gustavo Moura, entre tantos outros, que já não estão entre nós, e que se cruzaram a ”nossa” “Missão de Intelectuais” que, entretanto, no jornalismo português, criava raízes e reconhecimento junto dos “Poderes de Lisboa”: Horácio César, Fernando Lima, António Valdemar, Lopes de Araújo, Padre António Rego, Mário Bettencourt Resendes, e Mário Mesquita, que hoje e, em boa hora, recordamos e homenageamos.

Permitam-me nesse contexto, um testemunho pessoal. Um dia, ao cair da noite, chego a casa com uma chamada de Mário Mesquita, coisa rara e única. Sob a sua orientação gostaria muito que ajudasse a coordenar um livro de estudos e testemunhos sobre o escritor e jornalista, Manuel Ferreira. Pediu-me que também escrevesse sobre Ele.

“Dez anos decorridos após o desaparecimento de Manuel Ferreira, é ocasião de lembrar e a sua personalidade singular e o seu papel na literatura e na imprensa açorina”.

Mário Mesquita, queria muito deixar este livro sobre Manuel Ferreira, e chegou a alvitrar títulos como meras hipóteses de trabalho: “ Um Escritor Camiliano na Imprensa Açoriana” ou “O Regionalista Temível na Imprensa Açoriana”. Apenas, sugestões, para ajudar a pensar num título condizente.

Cumpri com o prometido mas já não cheguei a tempo. Estranhei que não tivesse acusado a recepção do meu artigo: “Manuel Ferreira – o Açoriano Eterno”.

Uns dias depois, a seco, no telemóvel das notícias: “Morreu Mário Mesquita”.

A morte abrupta, repentina, inesperada, de Mário Mesquita, deixou-me, deixounos, num vazio imenso. Revejo o que lhe tinha escrito uns dias antes:

“ Caro Amigo, Mário Mesquita. Tarde é o que nunca chega e eu chego em cima data limite do prazo. As minhas desculpas… Aqui lhe deixo o meu olhar impressionista sobre Manuel Ferreira com a gratidão de tão honroso convite”.

No fim - de-semana seguinte enviou-me um esboço/guião da estrutura do livro e um prazo relativamente curto para enviar material:

Foi a última vez que conversei ao telefone com Mário Mesquita. Ele por causa de Manuel Ferreira e, eu, para falar do meu reconhecimento pela sua obra notável, exemplar, superior. Para lembrar o pai, Higino Mesquita, com quem passei grandes momentos à conversa junto à Palmeira do Largo de Camões, junto à tal Farmácia Moderna…sempre na busca de um mexerico de bastidor quando o seu filho Mário era o brilhante e interventivo director do Diário de Noticias de Lisboao editorialista de Portugal – e, também, para falar destas coisas corriqueiras do do Ser-se Avô nos nossos dias.

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Dias antes da apresentação no Teatro Micaelense, o correio trazia-me enviado pela editora, o livro mais recente sobre a sua obra ”A Liberdade por Princípio, Estudos Testemunhos em homenagem a Mário Mesquita” com uma tocante dedicatória:” Para o Sidónio Bettencourt com a amizade e o apreço profissional do Mário Mesquita”.

Em 1989, brindou-me no Diário de Lisboa, que então dirigia, com um texto de reconhecimento e incentivo, sobre o meu modesto contributo ao jornalismo radiofónico, com a reportagem “ Vestígios Açorianos no Desterro Brasileiro”. Não tendo sido académico e muito menos seu aluno, bebi tudo que escrevia, quer nos jornais, nos livros, nas revistas da especialidade como a “ Comunicação e Linguagens” da Universidade Nova de Lisboa; quer sobre os Açores e toda a temática sobre a História e em particular nas relações com os E.U.A.

Tenho à cabeceira o “Mini-Dicionário da Autonomia dos Açores” que passa por conceitos tão detalhados como “Açorianidade, Autonomia, Nacionalismo, Continente, Iberismo, a Base das Lajes, Franklin Roosevelt e os Açores, os Estrangeiros, Separatismo, os Intelectuais, a Opinião Pública, a Consciência Regional” e tantos outros de plena actualidade…

A sua dimensão é imensa, inovadora e multidisciplinar, de grande qualidade académica, jornalística, literária. Um pensamento de luta e de lucidez. Um grande intelectual que prestigia a sua terra, os Açores; a sua Ilha, São Miguel, e Portugal. Mário Mesquita é um Ilhéu, muito à frente, do seu País.

tamanho do seu Exemplo, e da sua Obra.

Naquele dia ao telefone uma última frase em jeito de despedida: “ Olhe Mário, a sua neta, é toda, o seu avô. Nunca me engano nas feições”. Ele sorriu… Sorriu Para Sempre!

Relembro, em Manuel Ferreira, que Mário Mesquita, tanto queria justamente homenagear a sua grande capacidade de observação e a pesquisa factual / documental, coabitando de mãos dadas à luz da história e do desenvolvimento; jornalismo interventivo e cidadania proactiva.

Como que a apelar a uma consciência de classe e colectiva, Manuel Ferreira, relembra em preciosa Separata, o 25 de Abril de 1964, - há quase 60 anosem jantar de aniversário, “esquecidos” como Manuel António de Vasconcelos, natural do Pilar da Bretanha, 1º jornalista açoriano e fundador em 18 de Abril de 1835, do Açoriano Oriental, mais antigo e prestigiado, jornal português.

Diz ele: “Foi o memorável o encontro da Imprensa nesse dia” e… “resultou num verdadeiro apelo à confraternização entre todos os que escrevem e sem os problemas do Espírito, reconhecendose as vantagens de encontros mais frequentes, com um regulamento familiar - sopa e um prato de dois dedos de conversa…”

Mário Mesquita Foi para Ficar, cada vez, mais Presente. O Tempo vai dizer-nos do

Este congresso que gora se inicia, também com jantar, sopa e dois dedos de conversa, trás ainda os mesmos e outros, novos, desafios, que a sociedade está em permanente mutação: do ensino ao mercado laboral, da comunicação social privada e pública, ao poder do jornalismo de investigação; da desinformação na era dos novos Media, até à interrogação

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inquietante de “ Como será jornalismo do futuro?”

Grandes temas para um debate que precisa de ter sempre em conta que não há jornalismo, sem jornalistas, sem respeito e investimento nos grandes géneros como a Grande Reportagem; sem público, sem leitores, sem ouvintes, sem telespectadores; sem causas, sem paixão, sem ética e sem missão.

Mais e melhores meios, mais tecnologia, só obrigam o jornalista, a ser mais rigoroso, mais exigente, mais humilde, mais próximo e mais digno.

Que assim seja ou, como escreveu, há muitos anos atrás Mário Mesquita, então, ”o mais jovem colaborador do jornal mais velho do país “,no Açoriano Oriental, em forma de poema:

ANSEIO…

“Fugir, Correr, Voar… Cantar…

E, longe do mundo, Respirando fundo, Mesmo, atormentado

Pela saudade, Ao menos, gritar: - LIBERDADE!

Sidónio Bettencourt

Ribeira Grande, Arquipélago, Centro de Artes Contemporâneas, 28 de Abril de 2023

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em cima : foto de sidónio bettencourt

preferirem. E a investigação é uma carga de trabalhos, porque não há meios e a proximidade um busílis.

EM DEFESA DO JORNAL LOCAL

Tomás Costa

É importante haver jornais locais, regionais e nacionais, apesar da proliferação de tantas outras formas e plataformas de comunicação que não param de nascer e, sobretudo, de crescer.

O jornal local continua a ter o seu lugar próprio, mas precisa, de forma vital e fundamental, de ter mais leitores. O jornal local vai à porta do leitor, vai através de assinatura, dando-lhe, este facto, uma marca especial de proximidade e de entreajuda de grande preciosidade. É um companheiro esperado e, mesmo que haja discordância com algum conteúdo, é uma companhia amiga e com os amigos também podemos discordar, ou, sobretudo, é com os amigos que podemos discordar, mas continuar sempre ao lado, porque é lá que queremos ficar a lutar.

Esperar pelo jornal local, para ver se saiu aquela notícia que queremos ver mais desenvolvida, ou para criticar a desatenção do jornal em relação a um assunto que nos parece essencial, tudo isso alimenta o leitor do jornal que, por ser local, exige um maior cuidado na abordagem dos temas, sobretudo quando se trata de noticiário, onde a objectividade é mais exigente ou mais delicada, se

A opinião, com a qual concordamos, discordamos ou queríamos ainda mais incisiva ou então que fosse mais inteligível e atingível, tudo constitui a marca decisiva da qualidade do jornal local, que deve ser equilibrado entre a opinião, a reportagem, a notícia e a entrevista que, normalmente, é muito apreciada pelos leitores.

Outro aspecto da importância do jornal local é o insubstituível papel histórico que o mesmo transporta. Os jornalistas, os directores, os colaboradores vão passar, mas o jornal vai ficar e a ele muitos recorrerão quando quiserem lembrar ou fazer a história da terra, num determinado momento.

Até a publicidade, a forma como é feita, quem anuncia, até isso servirá para se fazer um balanço histórico, social e económico da vida da gente ao longo dos tempos. O jornal tem sido uma casa de memórias.

Há decisões de um governo que deviam ser aproveitadas por outros governos.

Uma boa decisão tomada por um antigo governo regional, presidido por Mota Amaral, foi, sob o lema de “ler jornais é saber mais”, levar os jornais açorianos a todas as escolas, através da assinatura dos mesmos. O governo pagava uma assinatura e os jornais enviavam três exemplares, salvo erro, e dessa maneira os alunos, os professores e os funcionários de cada escola tinham acesso aos diferentes diários, semanários, quinzenários e mensários que se publicavam nas diferentes ilhas do arquipélago, podendo acompanhar a vida regional de uma maneira acertada e crítica.

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Manuel

A medida do governo de Mota Amaral nem sequer resistiu ao tempo dos seus próprios criadores, e lembro-me de departamentos governamentais cortarem as assinaturas para pouparem, mas agora era mesmo uma medida inteligente e de grande alcance, na ajuda à sobrevivência dos jornais, e no conhecimento da realidade insular pela juventude açoriana, sob a boa orientação docente. Claro que tudo isto pode circular digitalmente, mas até aqui, o papel pode ser pedagógico e sanitário, para ajudar a equilibrar o abuso do telemóvel.

A qualidade já o Ilha Maior a tem, embora com parcos recursos, mas sem recorrer ao expediente do ordenado mínimo. Não é uma fatalidade ter de haver baixos salários nos jornais e na sociedade açoriana.

Não queremos subsídios garantidos, queremos o pagamento de serviços prestados pelo jornal e lamentamos que algumas câmaras municipais ainda os concedam, derrotando, irremediavelmente, a livre concorrência, com expressão até nos preços da publicidade.

Não quero falar muito de outras concorrências, menos próprias, talvez duvidosas, talvez sinais destes tempos, que são os proliferados gabinetes municipais de comunicação, alguns com muitos profissionais da área da informação, que vão substituindo, com dinheiros públicos, algum papel dos jornais privados, que moram mesmo ao lado.

O jornal local é uma espécie em vias de extinção.

E provar que existe realidade além da internet.

O governo prometeu dar uma grande ajuda para a independência e robustez dos jornais regionais, dizendo reconhecer o seu papel fundamental para a livre opinião no debate de ideias para uma sociedade mais esclarecida, porque quanto mais esclarecida, mais capaz para o desenvolvimento. Espero para ver, mas já vai demorando o novo PROMÉDIA ou o seu sucedâneo. Agora, a independência seduz-me, porque sem ela a sociedade açoriana ficará a perder. E a democracia, que aprendi a aprender todos os dias, ganhará se houver o escrutínio de um jornalismo independente e robusto nos Açores.

Precisamos de mais assinantes, mas a gente mais nova não se mostra interessada nestes modos de estar na vida e prefere a rapidez da informação sem escrutínio, muitas vezes, porque a pressa também é sinal de esquecimento. Só a lentidão, neste caso a do jornal em papel, sobretudo, e até em digital responsável, será capaz de favorecer a memória.(Milan Kundera)

Também não queremos que haja discriminação no que diz respeito a publicidade institucional, como sentimos em tempos próximos. Há dias, tivemos uma certa publicidade governamental paginada e, quando estava quase a ser enviado o jornal para a gráfica, no Faial, ordenaram-nos que a retirássemos. Curiosamente, ou não, dias depois, apareceu o mesmo edital no facebook da

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foto de manuel tomás costa

câmara municipal, “a pedido da secretaria regional”. De outra vez, uma página inteira, a cores, saiu em todos os jornais, todos, locais e regionais, excepto no Ilha Maior. Coincidências, mas sempre penosas para o mesmo lado...

Por outro lado, apreciamos e festejamos o empenho de algumas empresas privadas que nos escolhem para fazer publicidade, algumas até empenhadas quase só em nos ajudar, pura e simplesmente, mas compreendemos que a baixa demografia picarota não permita mais, infelizmente. De quando em vez, sai-nos a rifa, e a câmara faz um anúncio que muito apreciamos, pela indispensabilidade do mesmo.

É quase trágico. Atingimos o reconhecimento da nossa situação precária, e não foi de repente. O destino é inexorável na sua caminhada para a catástrofe e não haverá catarse que nos salve, servindo para nossa descarga emocional e purificação, o querer, esforçadamente, continuar até poder.

O jornal local em papel é uma espécie em vias de extinção.

Até lá, e o lá está mesmo ao virar da esquina, vamos aguentando, mas temendo que o unanimismo acelere ainda mais. Esta é a normalidade e o normal é só uma estatística daquilo que é mais frequente. (Rosa

Os jornais, todos eles, os grandes, os nacionais, os regionais, os pequenos, os locais, todos eles navegam em mares de turbulência, com a diminuição de leitores, de publicidade e a tendência é para fechar, para desaparecer e então há-de haver gente a lamentar tal facto e a dizer, “que pena, até dava tanto jeito ler aquele jornalinho, à sexta-feira, ao fim de semana, sempre

trazia alguma coisa de interesse, nem que fosse a publicidade, para a gente ver quem comprava novas terras, quem legalizava outras, quem oferecia novos empregos, embora poucos, mas enfim... ou até para forrar o caixote do lixo”.

E com este fim, do fim à vista, me despeço, e, em Abril, razões mil para pensar que a democracia devia estar melhor.

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Ponta Delgada, 29 de Abril de 2023 Manuel Tomás Foto da montanha da ilha do pico, açores

DESAFIOS DA COMUNICAÇÃO SOCIAL PRIVADA

[ Peço ao moderador que me conceda um minuto extra para um aparte: o Congresso mal começou e eu já dou por bem empregue ter vindo. Ontem, no jantar, tive a sorte de ficar numa mesa com oito camaradas jornalistas. Ao longo do repasto falou-se muito, trocouse ideias, contou-se histórias, disse-se piadas, partilhou-se experiências… sentime como se estivesse numa Redação, senti-me verdadeiramente jornalista. Acreditem que, para quem trabalhou 15 anos na rádio local do Faial, na área da informação, sozinho, aquela foi uma sensação muito gratificante. Para a organização o maior elogio: foi muito feliz a hora da decisão de realizar este Congresso. Espero ouvir, no domingo, na sessão de encerramento, o anúncio da data do próximo. ]

Espero conseguir demonstrá-lo nos próximos 10 minutos.

A identificação dos «Desafios da Comunicação Social privada» está feita

Quem leu e ouviu o que já se disse, nos últimos dias, na antecâmara desta reunião, fica ciente da situação.

O único detalhe a modificar, para não ser eufemístico, seria substituir desafios por problemas, pois a realidade está mais próxima destes do que daqueles..

É justo realçar – e gostava de dizê-lo com ênfase – a hora feliz em que foi decidida a realização do 1.º Congresso dos Jornalistas dos Açores. Tarde é o que nunca chega! Está de parabéns a organização. Vou focar-me na realidade local e, de forma particular, no que classifico de imprensa “localíssima”.

O tema da liberdade de imprensa talvez não corresponda ao que esperariam ver tratado neste painel.

Achei, no entanto, que não seria despropositado trazer o assunto à colação.

Em concreto, refiro-me à imprensa suportada por microempresas, em meios tão pequenos como o Faial, de onde venho.

A palavra não está nos dicionários, mas é eloquente, no propósito com que a emprego.

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Foto de josé manjuel souto gonçalves

Há 30 anos, 20 por cento da população do Faial assinava o centenário O Telégrafo, da Horta.

Hoje, na mesma Horta, as assinaturas, em conjunto, do diário Incentivo e do semanário Tribuna das Ilhas – os dois títulos que resistem – não ultrapassam cinco por cento.

E não se pode mexer no preço da assinatura, disse-me o administrador de um destes jornais.

Antes de vir para cá, tive a preocupação de fazer uma ronda pelos jornalistas e administradores da imprensa e rádio locais, pois não quis trazer apenas a minha opinião

Um deles, resumiu a conversa do seguinte modo:

Ainda existimos porque persiste um sentimento de orgulho, que nos salva do anátema de ficarmos na História como a geração que deixou a sua terra sem jornais.

Esta fragilidade da imprensa “localíssima”, a que poderíamos chamar drama, tem um fundamento subjacente às dificuldades económico-financeiras, a que se referia o meu interlocutor.

Tal fundamento foi bem identificado pelo diretor do Tribuna das Ilhas, há um ano, numa conferência, na Horta.

Costa Pereira contou que fez um inquérito, como professor de Humanidades da Escola Secundária Manuel de Arriaga, a 40 alunos das suas turmas.

Concluiu que, em três meses, apenas uma dezena lera um livro, sem que desses dez todos tenham completado a leitura. Nenhum tinha lido jornais!

«É com pena e alguma angústia – disse ele–, que reconheço que já perdemos a geração atual e talvez a tenhamos perdido, porque já não havíamos conseguido atrair, a geração dos seus pais.»

Usando a frieza das estatísticas, embora sem base científica, encontrei um exemplo flagrante, demonstrativo de que a imprensa “localíssima” não é atrativa para os jovens.

Pela rádio local do Faial, nas últimas três décadas, passaram jornalistas, radialistas e colaboradores que, depois, entraram para os quadros das estações públicas de rádio e televisão.

Pelas minhas contas, a Antena Nove deixou-os partir a uma média de um elemento em cada três anos. Qualquer corpo ficaria exangue com tamanha sangria, com a agravante de não ter havido mãos que a pudessem estancar. Sem leitores, nem redatores, com administradores que encontram no orgulho a razão para sobreviver, não sobram motivos para manter a porta aberta.

Ao longo do tempo, soam-nos aos ouvidos, em momentos de algum empolgamento, elogios à imprensa regional e local, pelo seu papel, dizem, insubstituível.

Dificilmente encontro nesses arrebatamentos um compromisso sincero e, já agora, sério, com o que, em última análise, é a promoção das garantias de uma imprensa livre. Agora, vejamos se é possível desempenhar essa missão – informar com liberdade –tantas vezes exaltada.

Mas, Costa Pereira foi mais longe nesta análise e, infelizmente, não nos isentou de responsabilidades num cenário tão desolador:

Em jeito de desabafo, digo-vos que tenho sérias dúvidas, para não dizer certezas, sobre se um jornal bem feito será capaz de prevalecer num ambiente onde o

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antijornalismo e pseudojornalistas nascem debaixo dos pés.

[ Não se escandalizem, porque estou a falar das redes sociais! ]

Pior do que um mau jornalista, é um mau leitor. Se não temos estes, aqueles grassam e pululam. É isto que ocorre nas redes.

Vou contar-vos algumas estórias que mostram que, provavelmente, há mais uma razão do que o orgulho para manter viva a imprensa “localíssima”.

Essa razão será a teimosia…

Começo pela situação em que, depois de se fazer um título, ao fim da tarde, na Redação, se dar de caras, na manhã seguinte, ao comprar o pão, com o primo, a irmã, o pai, a comadre, o vizinho, a amiga ou o colega do visado.

Se se elogiou, sai-se da padaria com um sorriso de orelha a orelha; se se criticou, deixamos de ver o sorriso nos lábios dos outros, ou perdemos três ou quatro assinantes!

Trabalhei na RDP-Açores, no Faial. Já nessa altura as reivindicações em torno das melhorias do Aeroporto da Horta estavam na ordem do dia.

Os jornais locais encetaram uma campanha incessante pela escala da TAP. A propósito de um relatório de uma entidade cujo nome já não me lembro, noticiei que o Aeroporto estava incluído na lista dos mais perigosos do país.

Horta e o Incentivo, que surgira de novo.

O centenário Telégrafo e o semanário Incentivo fundiram-se, prevalecendo o título mais antigo.

Eu próprio e meu irmão decidimos mexer no velho diário, que passara a pertencernos.

Entre outras medidas, erradicámos os pseudónimos, que eram como um enxame naquelas páginas.

Apareceu-me um dia na Redação, bracejando desabridamente, um leitor que me acusou de estar a dar cabo do jornal, argumentando que o Telégrafo não era meu, mas dos faialenses.

A propósito da ligação fortíssima dos assinantes ao jornal, lembro-me de meu avô, que escrevia mal e lia ainda pior, assinar O Telégrafo por causa dos títulos, que, a custo, conseguia decifrar.

A proximidade da imprensa “localíssima” é a sua índole. Contudo, esta característica tem-se perdido.

Dependentes dos despachos das centrais de comunicação – salvas exceções notáveis –, os jornalistas perderam grande parte da sua faceta de historiadores do quotidiano

[ Um parêntesis: até há quem publique estes despachos com os erros que vêm da origem.].

Quando fui almoçar, cruzei-me com diretor d’O Telégrafo, o Professor Ruben Rodrigues, que me zurziu, forte e feio, sobre a inconveniência da notícia. Para ele, acima de tudo, estava o «interesse da terra».

Em determinada altura, o mercado não suportava O Telégrafo, o Correio da

Raramente se lê, nas cada vez mais raras reportagens da imprensa “localíssima”, a descrição do ambiente, as notas pitorescas, os nomes dos presentes, enfim, um texto que explore, com veia inspiradora, o acontecimento banal, mas interessante do ponto de vista da roda de leitores envolvidos nesta proximidade. Era isto que tornava o assinante indefetível, quase adepto do jornal, como aquele que me acusou de dar cabo do Telégrafo.

Hoje é mais GACS’s, gabinetes de comunicação, assessores de imprensa e, até, jornais que servem de tirocínio

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para candidatos a funções políticas. A verdade, porém, é que sem ovos não se faz omeletes!

Tornou-se impossível, hoje, no Faial, realizar a cobertura de eventos com este tipo de abordagem perante a simultaneidade de ocorrências que se verifica.

O período áureo da vida intelectual e cultural faialense, que muitos fixam a meados do século XX, parece estar de regresso. Todavia, a imprensa não lhe corresponde.

Com uma Redação composta por dois ou três elementos, como é que se pode atender telefones, responder a mensagens, fazer publicidade e faturá-la, escrever e paginar, dobrar o jornal, entregá-lo se o distribuidor falhar?

Neste campo de vicissitudes, difícil de palmilhar, o golpe de misericórdia virá de quem menos se espera e de uma maneira que nem ao Diabo lembraria.

O gabinete de comunicação do Município da Horta montou o seguinte estratagema: Um jornalista liga a pedir determinada informação e, enquanto aguarda a resposta, que demora, vê surgir nas redes sociais uma nota com os dados solicitados. Mais: o exclusivo, por exemplo, do anúncio dos artistas da Semana do Mar, que capta muitos “gostos” no Facebook, pertence à página da Câmara nesta rede social.

Depois, os órgãos de Comunicação Social recebem convite para uma conferência de imprensa onde lhe são apresentadas banalidades!

Tão mau, ou pior, do que isto, é, no entanto, ouvir, dentro da própria imprensa, que é preciso ter cuidado com o que se escreve, porque as entidades oficiais «podem não achar piada».

Camaradas jornalistas e demais congressistas:

Se o Raul Solnado soubesse destas manobras, diria, como na rábula da Guerra de 1908: não matam, mas desmoralizam muito!

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José Manuel Souto Gonçalves Foto da cidade da horta, ilha do faial açores

There is no glaze left on the donuts

Being passed out by the faceless staff

And the tremors are the rimshots of God

5 poems from sam pereira

Sam Pereira is an American poet with roots in the Azores, the island of Terceira. Sam has been writing and publishing poetry for over 40 years.

Here are five unpublished poems by Sam Pereira.

Boarding Pass

I have become one of the old timers Who sit on benches sometimes

Accompanied by dogs and wishing Proper coordinates for the remainder Of my day but in spite of that And just as quickly I’m off To the Counterculture Café For a grilled cheese and shake Hoping to die on a full stomach and Only a small amount of zest

The oldest oak in the park has fallen over While the traffic light on Kern

Changed from yellow to red

That’s how all walls begin their upstart ways

A little acumen to the heart and a smile

Some fog on its wagon train of grief

That’s also how it ends when whatever is left

Includes this sacrosanct business

Where you suddenly cough and are sitting On a train for Beirut or Heaven

Give Me a Carton of Edna Millays

Maybe it’s the constant rain

That makes me crave Millay today

During the walks in the field

As a boy just wanting to get out

The rain soothed the rain brought hope

And then the rain was on a bus

Headed to Chicago’s desperate trains

These cravings for the 20th Century

Give me a false sense of security

As they say and as I prepare to go

Into the attic of old religions

I understand the nuns not showing

Edna having drinks and on the town

With godless men and godless gods

I understand the stern looks

Hiding in the shift of black starched clothes

Designed to take the outlaw out And ream his eyes for good

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Foto de SAm pereira

The Carnage of Soup and Goodbyes

I feel sopped Like the bread At the early festas

You wear me out too She whispered And she said it like a prayer

This kind of thing Became the only testament To those foreboding hours

Breathing each other in It was the 20th Century again The heartbreak hovered nearby

Darkness covered the spread Of smudge and sweat brought out When dancing on the head of sin

In the Air in a jar left behind By those partying roaches next door

All of this must seem mad now The rain boiling in the gutters

The two of us calling it Spring A calmness at the grace in our surprise

Moving Day

His heart gave out

On the day the movers came To dismantle the bookcases

The pages of the books began Boarding their planes for Paris

No one was left to hold them Here on the plain of destiny

Recognizing Power in the Sanctified Wind

for Susan

We’ll talk later About the notorious winters

How we survived them Wrapped up by a fireplace

Also the wolves who’d come down From Canada and were now outside

On the porch looking for handouts But willing to take just a hand

In place of the missing kindnesses

We find ourselves reflecting on

The first time I held you I sang I poured you a bit of Mont Something

All of their prologues remained The same as before

The story of a life gone bad And fixed again and again

In the shadows holding their wrists And taking their pulse

In this moonlight’s last dance What a journey he thought

Secrets on a truck for God knows where Sam Pereira

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Chrys Chrystello Memória e Mundividência

Cavaleiro andante por amor à literatura, J. Chrys Chrystello, ex-jornalista e exprofessor, investigador, cronista, poeta, tradutor, editor e promotor dos Colóquios da Lusofonia, continua a escrever com os olhos da memória.

Acabo de ler dois livros deste autor: um de crónicas, Liames e Epifanias Autobiográficas, ChrónicAçores V (19492005), uma Circum-Navegação (Letras Lavadas edições, 2022); o outro de memórias, Alumbramento: Crónicas do Éden, ChrónicAçores VI (2005-2021), uma Circum-Navegação (2005-2021) (Letras Lavadas edições, 2022).

Falar de Chrys Chrystello é falar de um cidadão participativo, de um pensador livre e frontal, de um espírito inquieto e irrequieto, de uma voz incómoda e incomodada e, acima de tudo, de um homem da mundividência e do multiculturalismo, exemplo de bom gosto, saber científico e paciência. O bom gosto nasce do amor que ele de há muito vem dedicando aos Açores e à sua literatura. O saber científico é fruto de uma vida inteira dedicada à investigação. A paciência, tendo como tem muito de treino e

vontade, só floresce quando é posta ao serviço de uma causa em que se acredita. É o caso dessa monumental Bibliografia Geral da Açorianidade (Letras Lavadas edições, 2017), em dois volumes, fruto de um amplo, criterioso e extensíssimo levantamento bibliográfico (19.500 entradas) levado a cabo, durante 7 anos, por este luso-australiano, e que só pode ser a prova provada e comprovada de uma pujança editorial e de uma indiscutível identidade cultural açoriana.

De resto, Chrys Chrystello já havia dado boa conta de si com a publicação, entre outras, das seguintes obras: ChrónicAçores: Uma Circum-Navegação de Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores (Calendário de Letras, 2011) e Crónica do Quotidiano Inútil (Calendário de Letras, 2012), com uma segunda edição revista e aumentada com aquele mesmo título, mas agora com o subtítulo de 50 Anos de Vida Literária (Letras Lavadas, edições, 2022), que reúne os seus textos poéticos – uma poesia do real, militante e de combate, que denuncia as verdades ilusórias e renuncia às máscaras de um quotidiano alienante.

Mas é sobre os dois livros, assinalados no segundo parágrafo deste escrito, que aqui me proponho tecer alguns breves olhares. Num e noutro, Chrystello, observador infatigável do que se passa à sua volta, pega em momentos do real para os transformar em matéria narrativa. Sentindo a usura do tempo e acionando os retroativos da memória, o autor convoca, invoca e evoca pessoas, lugares, coisas e acontecimentos marcantes que povoam o seu imaginário, isto é, tudo aquilo que lhe ficou suspenso na memória telúrica. Recorda geografias afetivas: Porto, Trás-os-Montes, Bragança, Timor, Bali, Austrália, Macau, Médio Oriente, Brasil, Açores. Lembra viagens inesquecíveis.

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Atenta e argutamente observa e ironiza o real. Faz crítica social e política. Navega sonhos e utopias. Desdenha (d)as novas mitologias do “quotidiano inútil”. Pugna pela liberdade e pela justiça social. Defende a língua portuguesa, ele que é poliglota. Dialoga com poetas e escritores. Lança olhares sobre livros e obras de arte. Celebra a vida e a amizade. Questiona o destino do homem no palco do mundo. Preocupa-se com os infortúnios dos outros. Acima de tudo, reflete sobre a condição humana.

Estamos perante dois livros de grande espessura evocativa porque registos de uma escrita da memória. Sobretudo em Liames e Epifanias Autobiográficas, o autor analisa minuciosamente algumas das suas experiências vividas, sentidas, sonhadas e evocadas. E, prosador vernáculo que se esmera no cultivo da língua de Camões, escreve com ritmo discursivo e fluência narrativa. Da Lomba da Maia (hoje, seu microcosmo de referência) para o Mundo.

NOTA DA TRADUTORA: O próximo livro de Chrys Chrystello será 9 Poemas, 9 Línguas (Letras Lavadas edições) – uma antologia de obras de nove contemporâneos poetas lusofónicos (inclusive Eduíno de Jesus e Álamo Oliveira), mais versões de oito tradutores para francês, alemão, castelhano, neerlandês, romeno, esloveno, polaco e inglês.

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Chrys Chrystello Memory and Worldview

Victor Rui Dores

A knight errant for love of literature, J. Chrys Chrystello – former journalist and educator, researcher, chronicler, poet, translator, editor and promoter of the Colóquios da Lusofonia – continues to write from the eyes of memory.

His patience, with the extensive training and willpower he possesses, simply flourishes when put in service to a cause in which he believes. Such is the case with his monumental two-volume Bibliografia Geral da Açorianidade (Letras Lavadas, 2017), the result of a broad, thoughtful and extensive bibliographic survey (19,500 entries) this Luso-Australian conducted over seven years that affords conclusive proof of no less than editorial strength and an indisputable Azorean cultural identity.

I have just read two of this author’s books: one of crónicas, Liames e Epifanias Autobiográficas [Autobiographical Bonds and Epiphanies], ChrónicAçores V (19492005), a Circum-Navegação; the other of memoirs, Alumbramento: Crónicas do Éden [Illumination: Chronicles from Eden], ChrónicAçores VI (2005-2021), uma Circum-Navegação (2005-2021) (both from Letras Lavadas, 2022).

To speak of Chrys Chrystello is to speak of a participatory citizen, a liberated and forthright thinker, a restless and restive spirit, a discomforted and discomforting voice – and above all, a man of worldview and multiculturalism, an avatar of good taste, scientific knowledge and patience. His good taste is born of the love he has long dedicated to the Azores and its literature. His scientific knowledge is the fruit of a lifetime dedicated to research.

Moreover, Chrys Chrystello had already given a good account of himself with the publication of other works: ChronicAçores: Uma Circum-Navegação de Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores (Calendário de Letras, 2011); and, Crónica do Quotidiano Inútil [Chronicle of Useless Daily Life] (Calendário de Letras, 2012), in a revised and enlarged second edition of the same title but now with the added subtitle Fifty Years of Literary Life (Letras Lavadas, 2022), which gathers his poetic texts –poesy of the real, militant and combative that denounces illusory truths and renounces the masks of an alienating daily life.

But it is about the two books cited in the second paragraph of this piece that I propose to weave a few brief threads here.

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In both volumes Chrystello, an indefatigable observer of what goes on around him, transforms moments of reality into narrative material.

Feeling the weariness of time and triggering the retroactive effects of memory the author summons, invokes and evokes people, places, things and remarkable events that populate his imagination – that is to say, everything hanging around in his telluric memory. He recollects geographic locations that stir his emotions: Porto, Trás-os-Montes, Bragança, Timor, Bali, Australia, Macau, the Middle East, Brazil and the Azores. Recalls unforgettable trips. Attentively and shrewdly observes and ironizes reality. Produces social and political criticism. Navigates dreams and utopias. Disdains the new mythologies of “useless daily life.” Fights for freedom and social justice. Defends the Portuguese language, polyglot though he is. Engages in dialogues with poets and writers. Casts glances on books and art works. Celebrates life and friendship. Questions humanity’s destiny on the world stage. Worries about the misfortunes of others. And above all, reflects on the human condition.

We are in the presence of two books of evocative depth and breadth, because they are records written from memory. Especially in Liames e Epifanias Autobiográficas, the author analyzes in detail some of the experiences he has lived, felt, dreamed and evoked. And, as a vernacular prose writer who strives to cultivate the language of Camões, he writes with discursive rhythm and narrative fluency. From Lomba da Maia, São Miguel – today the locus of his microcosm – out into the wide world.

TRANSLATOR’S NOTE: Chrys Chrystello’s next book will be 9 Poemas, TRANSLATOR’S NOTE: Chrys Chrystello’s next book will be 9 Poemas, 9 Línguas [Nine Poems, Nine Languages], published by Letras Lavadas – an anthology of works by nine contemporary Portuguese-language poets (including Eduíno de Jesus and Álamo Oliveira), plus renderings by eight translators into French, German, Spanish, Dutch, Romanian, Slovenian, Polish and English.

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dos dias e das andanças por lugares que lhe ficaram a constituir marcos nas suas experiências de viagem e nas reflexões delas decorrentes.

Cais do Abraço de Virgílio Vieira

Ainda antes de uma leitura precisa deste conjunto de poemas de Virgílio Vieira, o leitor é atraído pelo título e pela sugestão que semanticamente é, desde o início, apresentada. Não sabendo ainda exatamente de que se trata, ocorre desde logo a ideia de viagem, de partida, de despedida, de relações afetivas. É também já como metáfora que o entendemos, na medida em que nos recorda outras viagens e outros lugares de partida que a palavra «cais», na sua polissemia, abrange. Para os açorianos, ainda habituados a viagens marítimas entre algumas ilhas do Grupo Central (continuam a ser vitais para as chamadas «Ilhas do Triângulo», S. Jorge, Pico e Faial), ou os que, com uma experiência mais recuada no tempo, nos recordam, nos anos 60 ou 70 do século passado, as idas para o continente, associamos naturalmente o cais à viagem por mar, para a qual a bela ilustração da capa igualmente reenvia.

Cais do Abraço não é um roteiro de viagem, mas um trabalho artístico que vive de espaços geográficos e da memória deles (processo recorrente noutros livros do autor), mesmo que o poeta nos mostre frequentemente uma escrita ao sabor

Virgílio Vieira não é ilhéu por nascimento, mas é-o de coração, tendo plenamente assumida a linguagem do campo semântico ligado ao mar, que é português, mas especificamente açoriano, no léxico escolhido para o referir. E sempre com a energia da escrita, logo sinalizada pelo título do primeiro poema, «Antes que a ilha me doa», e concluída com «Barco», poema curto, de três dísticos», que resume em beleza todo o percurso desta aventura poética: «Traz nos olhos a beleza dos golfinhos / Traz nos ouvidos o canto das baleias // Traz na concha do corpo a maresia / Traz no rosto a alegria da liberdade // No cais do abraço sonha um novo dia / Nova aventura no mar da saudade». Aqui reside toda uma simbologia da realidade açoriana, existencial e culturalmente assumida, ainda que não bebida na infância. Uma prova de que a vida vivida na poesia tem o dom de corrigir ou ampliar o que a outra, a do quotidiano, não alcança.

Avançando na leitura, continuamos com Virgílio neste percurso de viajante-poeta, uma tendência que já lhe conhecíamos, com a pena na mão, a viajar de avião e a refletir a partir daí sobre o perto e o longe; a observar a paisagem, apresentada em todo o seu esplendor; a descrever novos espaços, apresentados de modo aleatório – ao sabor das emoções, ou de algum motivo pessoal que desconhecemos. Transita, por exemplo, de Santa Bárbara da Ribeira Grande para Cork, que dá o título a um poema, «Manhã em Cork» («Cork, 23.12.2018), tendo «Da solidão» a indicação da mesma data e local

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ao lado: imagem da peça de virgilio ferreira Em baixo: image da capa to livro “cais do abraço do mesmo autor

No conjunto da obra de um escritor há duas atitudes possíveis, à medida que o seu trabalho avança e sempre que é lançado um novo livro. Havendo outros que o precedem, já está criado o «horizonte de expetativa» do leitor, como escreveu Hans Robert Jauss. Isso acontece quando, inserido numa determinada corrente ou movimento literário, ele derroga a prática que vinha sendo cultivada para se lançar em novas formas que normalmente provocam estranheza, às vezes mesmo escândalo, na receção, como se vê em certas estéticas de vanguarda. Acontece também quando, em atitude autocrítica, o escritor se afasta de práticas literárias anteriores e se reconhece distanciado delas, esclarecendo muitas vezes em prefácio de novas edições a posição justificadamente assumida no presente.

Não é, porém, esse o caso do poeta Virgílio Vieira, que se mantém fiel às linhas anteriormente traçadas, num percurso artístico que é de continuidade. Notamos, assim, o seguimento (ampliado) de uma forma de poetar consolidada nas coletâneas já publicadas. Sobressai, de forma muito nítida, aquilo que o autor referiu a propósito da respetiva poesia, em que declara a atração pela «beleza da natureza», na sua dupla faceta: a física e a emocional. Uma forma, assim, afirma, de «fugir um pouco destas guerras». Não poderia ser mais adequado, no tempo presente, este desabafo.

mas é-lhe acrescentado um conhecimento que vem da experiência quotidiana. É assim com a descrição da conteira, na dupla vertente botânica e utilitária. Em «Manifestação popular» e «O Tango» é a história da Argentina e as suas manifestações artísticas e populares. Não poderiam ser então esquecidos Eva Perón, o tango, a voz de Gardel «sonhando outro cais para o trilo da flauta o timbre do violino/ a harmonia do bandonéon».

Da natureza o poeta fica-se sobretudo pela visão idealizada do locus amœnus e de um olhar extasiado sobre a beleza do mundo, como em «Campo de estrelas», relativo a uma noite estrelada nas Furnas. Uma ou outra vez o livro é enriquecido com notas, seja de teor histórico seja científico, sobre o assunto do poema. Biologia e Botânica, pela formação do autor, têm aqui, justificadamente, lugar,

Este conceito de poesia como sublimação do experienciado no mundo empírico, como desejo de paz e como inebriamento ante a beleza do mundo e a beleza da arte que nele se cria está implícito no trabalho poético de Virgílio Vieira. Acrescentese a isto a memória dos lugares, uma tendência recorrente no autor e mediante dois processos que no-lo recordam: seja incluindo-os nos títulos («Manhã em Cork», «Por dentro de Málaga», «Porto», «Um olhar de Veneza») ou assinalando-os nas datas que sinalizam (de forma mais ou menos fiel) a composição de cada um deles. Muitos reportam-se ao estrangeiro, para onde terá viajado e que, com o olhar de viajante curioso e muitas vezes extasiado, regista, com a sua criatividade de poeta, o que viu, o que sentiu, o que a memória fixou, o que a imaginação reconfigurou, outros a espaços geográficos portugueses que chamam por ele. Como a Montanha do Pico, vista do Alto da Bonança, em Santa Luzia, num dia de verão, centro de um poema que remete, de forma muito impressiva, para o «cais do abraço» que ilumina todo o conjunto. Cada novo livro de Virgílio constitui, portanto, menos um novo rumo do que o aprofundamento de quem já escolheu o seu caminho e nele deseja permanecer.

Não ousaria classificar estes poemas de ecfrásticos, tal é a tendência descritiva, às vezes descritivo-narrativa, que os estrutura, a menos que se tome a écfrase

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no sentido mais lato que às vezes lhe é aplicado, como sinónimo de descrição. Atrevo-me a assinalar, no entanto, uma tendência ecfrástica, sobretudo quando é olhada a paisagem já como obra de arte metaforicamente representada em tela. É assim Veneza, poema muito significativo deste ponto de vista, como se a paisagem natural já fosse obra de arte que se oferece à representação, que é recriação, em diversos suportes artísticos: desenho, pintura, escultura, literatura. É «uma tela em branco, vazia, /os pincéis de tamanhos vários, / as tintas variando nas tonalidades de luz» assim começa o poema , esperando «para renascer na tela com a grandeza / que cada olhar lhes destina».

Confiante no conhecimento do leitor para descodificar informação não explícita, mas relevante, Virgílio confia-lhe então a tarefa de ativar com a sua experiência e/ou a sua cultura a memória de datas, acontecimentos históricos, figuras, e assim completar os sentidos prometidos pelos versos. A realidade que eles evocam, sendo a mesma na origem e na presentificação que o poema traz, chega com a transfiguração que a poesia lírica, em particular, e a arte, em geral, permitem. Por este expediente converte, por exemplo, em serenidade, sem mais considerações, o que no passado trazia a marca da disforia, porque essa é uma forma de atenuar, apesar de não as apagar, as antigas feridas. «Quietude», escrito na Bósnia, é talvez o melhor exemplo, porquanto omite a violência da guerra e deixa visível apenas o que, decorridas duas décadas, avista de Mostar: «A velha ponte reerguida a testemunhar / que já não ecoam os gritos do canhão».

janela com vista para a vida» (título de um poema deste livro). Como poeta e como pessoa que vive a poesia, pode resumir-se o seu labor poético nestes dois versos extraídos de «Montanha do Pico»: «Experimento o mistério da humanidade / que tem raízes na emoção, na ciência e na arte».

O espaço poético de Virgílio Vieira é, na sua qualidade de bom observador, «uma

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Rosa Maria Goulart -virgilio vieira e pedro almerida maia

A

Pelo Mar Dentro, Ou A Nossa Poesia Nas Duas Margens

Vamberto Freitas

This literary world consists of many worlds, various languages, and many experiences / Este mundo literário é constituído por muitos mundos, várias línguas, e muitas experiências.

Diniz Borges, na introdução a Into the Azorean Sea

Comecemos necessariamente por Diniz Borges, o tradutor e organizador desta grandiosa antologia de poesia açoriana e luso-americana, cada poeta aqui traduzido para o que podemos chamar sem hesitação a sua segunda língua – uns para o inglês, outros para o português. Se para alguns destes poetas açorianos a língua de Shakespeare é-lhe ainda um tanto distante, não será o mesmo com o povo que deste há séculos ruma a oeste, continuamente transmitindo a sua experiência aos que ficaram em linguagens por vezes recortadas nessas duas línguas, enquanto os filhos destes,

agora chamados lusodescendentes, utilizam naturalmente todas as palavras da sua formação familiar e formal, respingando-as com o que ouviram dos seus pais e avós, ou estudaram em escolas e academias de vários níveis. Por outras palavras, estamos perante uma obra que reúne 103 poetas, e na qual todos se reencontram sobretudo na temática comum que é ser-se açoriano nestas ilhas, e filhos e filhas que perpetuam a nossa existência ao longe. Estão muitos deles a dar conta de si numa escrita poética que ora recorda, ora ultrapassa em linguagens diretas, metafóricas e simbolistas a condição existencial das primeiras gerações imigradas, principalmente nos Estados Unidos da América e no Canadá a partir do século passado. Tem sido durante estas últimas décadas um ato contínuo lembrar as suas raízes e reafirmar com todas as palavras e versos que no seu ser mais profundo aceitam a sua sorte presente, mas nunca esquecendo a história que os colocou sem conflitos interiores ou de outra natureza nos seus mundos múltiplos. Esbatem todas as fronteiras externas e interiores como que num gesto artístico de completude e redenção dos que sofridamente deixaram o solo pátrio para lhes dar através do mais árduo e generoso trabalho todos os espaços do mundo.

Diniz Borges é esse filho ilhéu e pai na Diáspora que desde sempre ligou os dois mundos, quer como professor do ensino oficial da Califórnia, quer como intelectual e escritor presente semanalmente na nossa imprensa nos dois lados do Atlântico e nos seus livros. Fundador do Portuguese Beyond Borders Institute, da Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno, e da Bruma Publications como a sua voz criativa para todos, relembro ainda que mais nenhum de nós foi tão longe no Pacífico norte-americano

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q uanto à dinamização e divulgação da nossa cultura e literatura – o despertar dessas vozes que nos faltavam num diálogo literário e multicultural que ao rego da terra frutífera americana acrescenta e completa a um tempo a originalidade da nossa sobrevivência e a universalidade dos antigos navegadores à descoberta e na construção de dinâmicas comunidades em terras que já há muito deixaram de nos ser estranhas. O que venho dizendo sobre esta outra comunidade que se estende do Atlântico ao Pacífico está desde logo insinuado no próprio título desta extensa coletânea: Into the Azorean Sea: Bilingual Anthology of Azorean Poetry, assim sem mais distinções linguísticas, culturais ou temáticas.

O livro está organizado por ordem alfabética do nome dos poetas, abre com Adelaide Freitas e encerra com Vitorino Nemésio. Pelo meio mistura as traduções de inglês para português, e vive-versa. Está na moda perguntar-se “para que serve a poesia”, o que acho a mais vazia e insignificante de todas as perguntas literárias. Serve “para comer”, como diria um dia Natália Correia, não me diz nada. Outros perguntam se tem uma função social qualquer, o que também pouco ou nada significa. No entanto, é talvez a mais antiga forma escritural na cultura Ocidental, por alguma razão, suponhamos.

O reflexo da arte literária é sempre múltiplo, surpreendente porque o poeta se desvenda em toda a sua singularidade. A poesia de nada serve se não conter nos seus versos o estado interior dos seus autores ante a sociedade que os rodeia, direta ou por inferência vista por esse olhar artístico que nos leva ao outro lado do espelho, a uma nova visão íntima que desperta no seu leitor a consciência de si próprio ou do outro que está ao lado, ou,

uma vez mais, o eu por entre a multidão que o rodeia. O poeta fechado numa redoma e desligado da sua comunidade, o poeta no seu fátuo academismo, por outro lado, será porventura a metáfora de uma luz extemporânea que inevitavelmente se apagará para sempre, enquanto o mundo à sua volta a esquece e continuará na sua luta inglória ou triunfal. Há na literatura açoriana como que uma obsessão com a geografia e o que ela nos provoca no modo de ser e estar, assim como um desejo constante e irrequieto de ficar e partir seguido pelo regresso aos ritos sagrados e profanos da nossa sociedade, aqui como no além-mar. Roberto de Mesquita está presente nestas páginas, é um outro exemplo perfeito de como a nuvem negra ou chuvisco da ilha agrava real e simbolicamente a solidão do nosso cerco, tudo na natureza tornandose uma metáfora do nosso estado de alma. Os poetas luso-americanos, por sua vez, trazem-nos um modernismo que muitos tinham por inesperado de como o passado desconhecido da terra ancestral não deixa nunca de interpelar a sua condição nas duas mais vivas sociedades a oeste, os EUA e o Canadá, o mundo literalmente inteiro em si, um quotidiano feito de praticamente de todas as línguas e costumes das mais distantes proveniências, todos em busca do seu lugar e do equilíbrio humano caminhando sobre o fio ténue que atravessa a casa comum em reconstrução perpétua. É esta a originalidade da nossa literatura: não deixar que a língua nos separe, fazer do passado o presente, fazer do presente a continuidade da sua história para além de todas as fronteiras, perpetuar o imaginário sem horizontes que tem sido o nosso.

Gregory Rabassa, o maior tradutor norte-americano das línguas portuguesa e hispânica, não acreditava muito no

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conceito falsamente teorizado do que habitualmente passa por “tradução”, tal como o confessa em If This Be Treason, as suas memórias publicadas pouco antes do seu falecimento em Nova Iorque. O que existe é a interpretação livre de um texto, que começa por uma simples pergunta: como se transmite este passo para outra língua, como expressamos esta ideia ou conceito, como nomeamos o tempo e descrevemos uma personalidade. Diniz Borges faz o mesmo nessa profunda interiorização de cada texto. A palavra é inevitavelmente renascida de outra epistomologia e significação de todos estes poemas, mantendo-se fiel, necessária e eticamente, a cada original. Quando lemos um texto traduzido, e logo esquecemos que foi originalmente escrito noutra língua, eis o primeiro e talvez único teste de que precisamos, procedendo com segurança e prazer da leitura. O que sobressai do longuíssimo conjunto de poemas neste livro é precisamente a unidade temática saída das formas e gramáticas diversas que o verso livre permite. A poesia sem ideias, a que se limita ao jogo de palavras e a metáforas e símbolos desconexos, de pouco vale.

Só que o interiorismo dos nossos poetas presentes nestas páginas nunca acontece num vácuo, ou na fatuidade da palavra. É sempre a memória vinda de uma longa história da terra e família ancestrais que enquadra a vivência de cada um destes poetas. Tanto numa língua como na outra, reconhecemos de imediato que algo de novo está a ser dito ou cantado, a força da açorianidade (azoreanity) nunca desfalece, nem sequer no caso dos que nunca nos visitaram pessoalmente.

Recordo que quando traduzi há uns bons anos um poema de Michael Garcia Spring (também aqui presente) que descrevia a travessia do canal entre o Faial e o Pico, a sua precisão era de tal modo aguda, que lhe escrevi a perguntar quando é que

ele tinha visitado os Açores. Respondeume que nunca tinha estado cá, que o que ali estava escrito era parte das histórias que ouvira da mãe e da avó. Em pouco veio visitar-nos por uns dias, e era como se tudo, dizia-nos, conhecesse desde sempre. Outros poetas que Diniz Borges junta neste livro tiveram experiências semelhantes, quando a sua vinda cá acontece é só uma confirmação da pertença ao mundo dos seus antepassados próximos e longínquos. Se uns revivem a terra onde nasceram, ou simplesmente dão-lhe continuidade íntima mesmo à distância, outros mantêm a memória viva de palavras e gestos nas suas casas norte-americanas, o cheiro da cozinha a sopa de couve e o folar da primavera.

Into the Azorean Sea: Bilingual Anthology of Azorean Poetry é um tesouro que por vezes nos brilha enquanto reaviva a imaginação de quem os lê, mesmo abrindo o livro aleatoriamente. O corredor aberto entre os Açores e a América e Canadá revisitado pela beleza de um verso, revivido em andanças imparáveis. O nosso imaginário comum reinventado por alguma da melhor literatura açoriana escrita em duas línguas. “O imaginário da imaginação”, como escreve Salman Rushdie num recente livro de ensaios sobre outras literaturas.

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