DIÁSPORA AÇORIANA
ARTS AND LETTERS IN THE AZOREAN DIASPORA
DÉCIMA TERCEIRA EDIÇÃO
MAIO 2025
Vamberto Freitas: O Cartógrafo da Diáspora e da Memória Atlântica
Diniz Borges
director
Vamberto Freitas: O Cartógrafo da Diáspora e da Memória AtlânticaDurante quatro décadas, Vamberto Freitas foi e continua a ser mais do que um crítico literário: foi e é a voz que soube e sabe ouvir as vozes esquecidas, o cartógrafo atento de um território feito de mar, vento, memória e sonho. Desde cedo compreendeu que a açorianidade não era apenas um lugar no mapa, mas uma maneira de estar no mundo, uma consciência aberta aos múltiplos horizontes da diáspora. Com a sua escrita clara, generosa e exigente, o meu amigo
Vamberto Freitas aproximou os Açores de Portugal e da sua diáspora, tecendo uma rede de reconhecimento mútuo que continuará a sustentar pontes entre margens distantes
Esta edição especial da Filamentos celebra o que já fez e o que ainda fará, oferecendonos oito ensaios que são oito rotas diferentes para entender o que somos — aqui e além.
Em Quando Dizemos Adeus aos Nossos, Vamberto mergulha no romance Terra Nova de Anthony De Sá, revelando a epopeia silenciosa dos luso-canadianos que partem sem nunca deixarem de carregar o seu lugar de origem.Em Antero em Nova
Iorque, recupera a visão crítica e moderna de Antero de Quental, viajante da alma e do pensamento, capaz de ver para além do seu tempo.No ensaio Jorge de Sena (também) sobre os Açores e as Comunidades,
reconhece no exílio de Sena a dor, mas também a fertilidade criadora que a diáspora pode gerar.
Outras Narrativas Americanas devolvenos Alfredo de Mesquita e a sua escrita desiludida mas luminosa sobre a América do Norte do início do século XX.As Letras da Nossa Diáspora celebra o surgimento de uma nova literatura luso-americana e lusocanadiana, dando voz àqueles que escrevem entre mundos, entre línguas, entre pertenças. Em Quando se Despenteia a Arrogância e Outras Imposturas, o Vamberto defende a simplicidade e a clareza do pensamento literário, contra os artifícios académicos que tantas vezes obscurecem em vez de iluminar

Em Memória, ou a Nossa Diáspora a Norte, reconhece na antologia Memória o amadurecimento de uma consciência literária transatlântica.E em Through a Portagee Gate: Vidas Contadas e Reinventadas, revisita a obra de Charles Reis Felix, espelho da infância difícil, da dignidade e da esperança dos primeiros emigrantes açorianos na América.Cada ensaio de Vamberto é uma carta enviada através do Atlântico — umas vezes nostálgica, outras vezes crítica, mas sempre fiel a uma ideia fundamental: a diáspora não é ausência, é presença. É Portugal estendido pelo mundo, Soube dizer a Portugal que tinha filho se filhas para além dos seus rios e praças; soube dizer à diáspora que era, também ela, construtora de futuro, de cultura, de sentido.
E é justo, neste momento de homenagem, reafirmar com palavras que também são sementes:Vamberto Freitas foi — e é — o crítico literário que deu e continua a dar voz à diáspora. Ele viu as sementes onde outros viam distância, viu promessas onde outros viam perdas. Hoje, quatro décadas depois, florescem muitos os que escrevem sobre temas que ele já há muito desvendara com lucidez e ternura. Ainda bem. Mas nunca esqueçamos: foi ele o primeiro a atravessar os mares e os muros do esquecimento. E nós, que seguimos as suas pegadas marcadas pelo mar cavado (título de um dos seus livros), agradecemos-lhe em cada leitura, em cada reencontro, em cada palavra resgatada ao silêncio.
Diniz Borges
Portuguese Beyond Borders Institute
Califórnia State University, Fresno

Quando Dizemos Adeus
Os escritores canadianos criaram, como grande tema tradicional, o herói comunitário.
Robin Mathews, Canadian Literature
Terra Nova é a tradução de Barnacle Love (Doubleday Canada, 2008), o primeiro romance do luso-canadiano Anthony De Sá, lançado em Portugal há alguns meses. Certamente por um erro (acontece) da D.Quixote (Lisboa), o título original não consta da ficha técnica. De qualquer modo, estamos perante uma competentíssima tradução de Maria Eduarda Colares, que quase nos faz esquecer no decorrer da leitura que se trata de uma obra originalmente escrita em inglês. Bem omerece, este romance, que divide em duas partes o seu fundo referencial entre os Açores (Lomba da Maia, São Miguel) e a pátria primeira do autor. Eis aqui o herói, aquele que sai a princípio dos anos 50 de uma pequena ilha para a imensidão da América do Norte contra a vontade da família, a bordo de um barco chamado Argus da extinta Frota Branca que pescava bacalhau nas águas geladas dos Grandes Bancos, e o anti-herói, anos depois do seu salto clandestino em St. Johns, mais ou menos integrado na sua nova comunidade em Toronto, mas cujos sonhos maiores se desvanecem na corrosão lenta de espírito que a realidade inevitavelmente a todos vai impondo. A linguagem vigorosa e despojada de Anthony De Sá (a linguagem que os minimalistas americanos, como Raymond Carver, desde há muito “impuseram” a muitos escritores das gerações seguintes), esconde nos seus melhores momentos toda a ternura e
compaixão com que o narrador de Terra Nova, já nascido no Canadá e a braços com todos os conflitos clássicos da sua geração ante a persistente “marginalidade” dos pais na nova sociedade, vai dissecando os seus próprios sentimentos por entre a perplexidade e tristeza de ver como um homem outrora forte não consegue, no exílio, não poderia conseguir, sobreporse à crueldade do pragmatismo vivencial que exige dos seus cidadãos disciplina absoluta na contínua caminhada de um suposto “progresso” material, cada um tendo de aceitar, sem reclamar, o seu lugar ou a sua condição de mera peça mecânica utilitária.Um dos momentos mais melancólicos em Terra Nova é quando o protagonista-imigrante, de nome Manuel António Rebelo, totalmente alcoolizado com vinho caseiro e já sem “sonhos”, insiste em cantar ou ouvir de um velho e gasto gira-discos a alto som o hino canadiano durante um dia inteiro nos anos 70. Na América do Norte é sempre assim, os derrotados aceitam tudo sem qualquer questionamento: os falhanços são sempre nossos, a sociedade de nada tem culpa, nunca. Varre o nosso chão e cala-te, pois vieste de um país que nada te pôde dar. É verdade na maior parte dos casos, mas o coração e a inteligência humana são muito mais complexos e intimamente misteriosos do que essa suposição elementar, quando não de todo ignorante.
As palavras do velho nacionalista canadiano Robin Mathews citadas em epígrafe aqui numa tradução minha, tiradas de um dos seus livros publicados também nos idos de 70, de nada têm de irónico neste contexto ficcional de Terra Nova.
Sobreviver no Novo Mundo foi de facto para a grande maioria dos imigrantes um acto de coragem, visionário, heróico, quer ocomportamento de cada um obedecesse ou não aos ditames beatos, quase social e culturalmente totalitários (como no filme americano Pleasantville), daquelas sociedades. Texto e contexto, literatura e sociedade. Terra Nova aparenta a “inocência” narrativa de um adolescente ante a sua tragédia familiar, enquanto vai pedalando a sua bicicleta pelas ruas da grande cidade, mas em que quase tudo e todos à sua volta lhe lembram as suas origens. Quando nos conta a sua estória, recua pormenorizadamente aos seus dias desde os seis anos de idade, altura em que vem à Lomba da Maia com a família toda enterrar a sua avó materna, matriarca açoriana cujos próprios sonhos e raivas maiores irão com ela para a cova. Ninguém escapa aqui às tragédias de uma geração em limbo na terra de origem, e depois lá fora. A única universalidade das nossas vivências terá sido tão-só a sangria perpétua, real e metafórica, dos que procuraram uma saída do Nada ilhéu, e depois pouco mais encontraram para além da luta quotidiana em busca de uma “vida melhor” num choro sem fim. Esqueçam a literatura norte-americana cujo tema primitivo era ingenuamente a caminhada da “pobreza à riqueza”, pois foi toda ela escrita num tempo em que o mundo ainda não se conhecia mutuamente, e as novas sociedades ansiavam pela sua própria justificação e bondade, só imaginada, apesar do sangue e suor desgastantes dos que as construíam em regimes económicos praticamente escravizantes. A ficção de Anthony De Sá insinua de leve algo disto tudo, creio, mas vai à procura sobretudo do desgaste de alma de uma família bipartida entre os sonhos do passado e a dureza do presente enterrada em caves que proporcionam a momentânea fuga ao mundo, e a dissipação no reles vinho caseiro. Há quase uma metaficção no interior de Terra Nova: um pai auto-destroi-se
vagarosamente, uma mãe refugia-se na invenção artística a partir de velhos objectos metálicos encontrados ao acaso, um filho pedala em fuga incessante, uma irmã tenta esconder a sua infelicidade no embelezamento do seu corpo e na sua ironia que eventualmente explode em crueldade e auto-defesa, uma estátua de um Cristo metido numa velha banheira empinada no jardim da casa vigia indiferente, sem emoção, e as cataratas de Niágara servem de fundo à última cena do romance numa noite de Natal, a metáfora perfeita da beleza e da ameaça aos que se aventuram a mundos fortes e desconhecidos.
Pensei n’O Sonho — o que os tinha trazido até ali. Eu sempre acreditara que fora pela mesma razão. A minha mãe tinha o seu sótão, o seu metal e tinha-nos a nós. Mas o meu pai não parecia ter coisa alguma; não parecia querer o que quer que fosse, como se não valesse a pena persistir n’O Sonho. Ele vivia no ‘nada’. E no entanto, ela – conclui onarrador acerca desta outra matriarca, sua mãe, agora aguentando o desgaste do Novo Mundo — protegia-o como se precisasse de o fazer, como se tivesse de o fazer.
Do Canadá emergiram nestes últimos anos dois grandes romancistas de descendência lusa — Erika de Vasconcelos (My Darling Dead Ones/Meus Queridos Mortos), e agora Anthony De Sá com Barnacle Love/Terra Nova. Menos conhecido, mas de igual poder narrativo, está Paulo da Costa (The Scent of a Lie), este um imigrante de primeira geração, nascido em Angola e criado em Portugal, escrevendo em português e em inglês, a sua temática oscilando sempre entre o memorialismo da terra natal e a sua existência perto das místicas e avassaladoras Montanhas Rochosas. Para uma e/imigração que tem oseu início maciço só a meados do século passado, o nosso imaginário na outra pátria americana a norte vem sendo construído com a maior profundeza e beleza artística.
São efectivamente eles, com pouquíssimas excepções entre as primeiras gerações que escrevem em língua portuguesa a partir da Diáspora, que melhor têm comunicado a nossa odisseia em terras longínquas aos portugueses que por cá ficaram. Publicam em editoras de grande prestígio no seu país, e Portugal tem sabido tomar nota, de vez em quando. Que se traduza outros — e veremos como a portugalidade além-fronteiras é mais forte do que a nossa presente e medíocre angústia existencial cá dentro
Anthony De Sá, Terra Nova, D. Quixote, Alfragide, 2009.


Antero em Nova Iorque
Se se realizarem os teus planos californianos, talvez um dia vá lá juntarme contigo, buscando mais largos horizontes…
Antero de Quental em carta (1886) a João Machado de Faria e Maia
As palavras em epígrafe são retiradas do recente livro de Ana Maria Almeida Martins, Antero de Quental e a Viagem à América: Remando Contra a Maré “Mas cinco anos mais tarde, — escreve a autora a dado momento neste seu outro olhar sobre um episódio muito conhecido mas totalmente deturpado desde o início na vida do autor de Odes Modernas — os ‘largos horizontes’ tiveram outro nome: Ilha de São Miguel, Ponta Delgada”. O acto final num banco do Campo de São Francisco em Ponta Delgada, sabemolo todos. O que não sabemos ainda e provavelmente nunca saberemos é o que de facto Antero de Quental fez ou não fez durante a sua estadia de um mês na então já grande metrópole em construção dos EUA, por onde andou, com quem falou, ou, mais importante do que tudo, oque pensou dessa sua experiência, singular e única então para um escritor e intelectual do seu tempo e do seu país, que só seria igualada nos anos mais ou menos imediatos por Eça de Queirós e, algumas três décadas depois, António Ferro. O que o livro de Ana Maria Martins, a mais reconhecida especialista nacional na obra anteriana, vem esclarecer é tão importante como se nos relatasse finalmente os passos do poeta em Nova orque: Antero de Quental e a Viagem à América desmente numa desconstrução
implacável praticamente tudo o que foi dito e escrito sobre a aventura marítimoamericana do seu autor a partir do livrinho de António Arroio, A Viagem de Antero de Quental à América do Norte (1916), todo ele dependente da informação fantasiada ou descaradamente inventada pelo proprietário e capitão do barco em que o poeta viajou a partir do Porto a 7 de Julho de 1869, Joaquim de Almeida Negrão. É claro que só a leitura atenta do presente volume poderá esclarecer os leitores dos nossos dias sobre o que aconteceu, ou melhor, poderá ter acontecido.
Lembro-me de, ainda como jovem universitário na Califórnia, ter lido o relato inicial da aventura americana de Antero de Quental, e me quedar perplexo com a “informação” de que o poeta quase não tinha saído para terra. Depois de tanta e longa tormenta nas agitadas águas do Atlântico, não teria Antero de Quental se passeado em Nova Iorque para olhar o vaivém frenético de etnias de muita Europa em convivência numa outra pequena ilha comprada a nativoamericanos, um poeta e pensador da sua estatura sem a mínima curiosidade da invenção do capitalismo moderno, e mais ainda da própria modernidade que ele em breve defenderia nas célebres e decisivas Conferências do Casino, a cidade infernal — Nova Iorque é um tour de force da brutalidade, escreveria Eça do Queirós, para mais adiante no mesmo texto dizer que, é necessário amá-la — declamada e amada por Walt Whitman, que Ana Maria Martins diz agora fazer parte de um trio de poetas e escritores americanos (Edgar Allan Poe e Henry W. Longfellow)
na biblioteca pessoal de Antero de Quental? Antero de Quental e a Viagem à América: Remando Contra a Maré não vem nem poderia vir, repita-se, pormenorizar nada do que fez e pensou opoeta em Nova Iorque, mas vem pelo menos, insistentemente, desmascarar todas as incongruências do relato dessa viagem, desde o dia em que Antero de Quental decidiu entrar no patacho Carolina que o levaria ao Novo Mundo até às probabilidades das suas andanças em Nova Iorque: das suas visitas a uma exposição de novas tecnologias no Central Park aos seus passeios pelas ruas da cidade tomando nota da balbúrdia selvática à sua volta, tal como havia feito quando por uns meses visitou e trabalhou como tipógrafo em Paris. Com efeito, Ana Maria Martins convence-nos com todo o seu saber da vida e obra do autor que nada menos poderíamos esperar de uma inteligência e sensibilidade como a do açoriano que, para além da sua obra poética, teorizaria e fundaria o socialismo humanista em Portugal. A América era então para ele (juntamente com a Suíça) oexemplo perfeito das virtualidades de uma república federativa, por ele arreigadamente defendida para Portugal no contexto ibérico.
A leitura de Antero de Quental e a Viagem à América é um outro curioso acto de ironia: continuamos a não saber nada da experiência da sua aventura no continente a oeste, mas revisitamos o seu pensamento político e postura ideológica, as suas relações com algumas figuras literárias do nosso cânone, quedando-nos para sempre em conjecturas mais do que prováveis sobre o que na realidade teria sido a atitude de Antero de Quental face ao ser-se açoriano e ao nosso destino de navegadores seus contemporâneos, para quem precisamente a América havia despertado irremediavelmente como
vertente do seu pensamento, do apelo que a América sempre representou para nós. Relembra-nos que as origens não são nem impedimento nem determinam qualquer apartamento na convivência com outros e vastos mundos; só que moldam decisivamente a cosmovisão de qualquer homem ou mulher que daí parta para o mundo.
Mais do que as incertezas sobre o que ele experimentou na sua viagem a Nova Iorque, a citação da sua carta a Faria e Maia sobre a Califórnia demonstra a abertura a todas as possibilidades que Antero enfrentava, e o seu conhecimento da nossa necessidade de buscar a sorte noutras partes, ou pelo menos procurar além-mar uma vida que a terra natal nos negava.A Viagem de Antero de Quental à América: Remando Contra a Maré aborda outra vertente no que concerne a obra anteriana e o que nos tem distanciado de um entendimento global mais realista, particularmente desde a publicação do famoso In Memoriam. Toda a sua vida, escreve Ana Maria Martins, permanece numa “névoa” de suposta “santidade”, que lhe nega a “normalidade” no seu tempo, agora mitificado, e no nosso. No fundo, Antero foi mais um grande poeta e pensador, que, como muitíssimos outros escritores em toda a parte, sofreu de “nevroses” e de humores radicais, tendo vivido para a arte e as ideias, mas profundamente radicado no seu meio e entre os seus. Nem foi filho de terratenentes micaelenses, nem gozou de privilégios fora do comum dos meioabastados na sociedade da época. Foi o filho de uma elite mais educada do que rica ou poderosa. Quando na passagem aqui citada refere que a Califórnia poderia ser uma saída para o seu futuro de vistas alargadas, ou para o bem-estar das crianças adoptadas por quem era responsável, fica claro que Antero de
Quental pouco difere historicamente dos seus conterrâneos ilhéus. Portugal foi-lhe o país que continua sendo para nós: um amor sofrido, um casamento instável e cruel, a casa pobre e caída que nunca deixa de sonhar ou fantasiar a sua gloriosa salvação. A tragédia maior foi um dos grandes poetas europeus ter um dia resolvido regressar à sua ilha natal para se sentar num banco e partir deste mundo.O único erro foi não ter navegado para a Califórnia.
Ana Maria Almeida Martins, Antero de Quental e a Viagem à América: Remando Contra a Maré, Lisboa, Tinta-da-China, 2011.





Jorge de Sena (também) sobre os Açores e as Comunidades
Silêncio, pois, discretíssimo silêncio quanto aos emigrantes e ao seu dinheiro.
Jorge de Sena, Rever Portugal.
Não poderia vir num momento mais apropriado na situação actual do nosso país, este grosso volume de ensaios e outra escrita de Jorge de Sena, falecido em Junho de 1978 na Califórnia. Rever Portugal: Textos Políticos e Afins, faz parte do grande projecto da viúva Mécia de Sena e do estudioso Jorge Fazenda Lourenço de finalmente editar a sua obra completa. Rever Portugal é o primeiro volume em que vemos e acompanhamos um percurso dramático do poeta, ensaísta, crítico e “político” que efectivamente foi Jorge de Sena desde o seu exílio no Brasil a partir de 1959 até aos seus últimos dias da e na Diáspora desses dois países americanos, pátrias-outras do nosso destino e sorte. A imagem que Jorge de Sena deixou entre alguns em Portugal está radicalmente no oposto do homem real, do cidadão e do artista. Entende-se essa imagem deixada entre os menos informados (ou entre os corroídos pela inveja) pelos seus últimos textos, especialmente em forma de cartas abertas aos maiores jornais e revistas lisboetas da época. Jorge de Sena, socialista democrata sem transigências de qualquer espécie durante toda uma vida repartida, dialogante com todas as forças e pensadores à sua volta, tinha, anos mais tarde, caminhado da euforia do redentor 25 de Abril à desilusão que depressa viria pouco tempo depois O presente volume inclui textos dos seus dias de docente catedrático na Universidade de São
Paulo, em Araraquara, e do seu envolvimento político imediato à sua chegada ao Brasil com a oposição democrática portuguesa no exílio, que incluía Adolfo Casais Monteiro entre outros nomes conhecidos entre nós, aos textos sobre a comunidade açoriana na Califórnia e à questão política então vivida no e pelo nosso arquipélago. Trata-se de um volume testemunhal sem igual entre nós, ointelectual do século XX em combate nas várias frentes da luta pela nossa dignidade e libertação.Aqueles que conhecem somente a obra criativa e ensaística de Jorge de Sena por certo que vão ser surpreendidos por este volume, no qual Jorge de Sena nunca deixa de reflectir e intervir sobre a sorte do seu povo quer esteja dentro de Portugal quer viva Portugal na Diáspora, principalmente nas Américas. Nem por um dia na sua vida vacila na defesa da liberdade contra a ditadura de Salazar, que ele publicamente e a partir de São Paulo chamou de “rato”. Para o leitor açoriano de Sena será a sua dedicação e apego, mesmo que distante, à sorte e ao lugar das nossas comunidades da Califórnia que mais atenção chamará. É precisamente essa sua faceta de intelectual comprometido até aos seus últimos dias que quero destacar aqui, pois receio que será pouco conhecida entre nós.
Jorge de Sena chega aos Estados Unidos em 1965, após o golpe militar em Brasília, e ingressa como professor de literatura portuguesa na Universidade de Wisconsin, já como poeta e ensaísta de renome internacional. Em 1970 transfere-se para a Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, onde depressa assume a direcção do Departamento de Espanhol e Português, adicionando assim às suas pesadas responsabilidades de docente e escritor com uma produção torrencial preocupações e desgaste burocrático. Geograficamente a alguma distância das nossas comunidades, maioritariamente oriundas das ilhas centrais, pensar-se-ia que o eminente poeta não teria nem tempo nem mesmo predisposição para
qualquer participação ou reflexão sobre a história e sorte novo-mundista dos seus conterrâneos. Era da sua natureza e consciência de português no exílio, no entanto, prestar toda a solidariedade e comunhão cultural e nacional com a sua gente, mesmo que entre os ilhéus nunca tivesse vivido de perto. A hegada de Jorge de Sena à Califórnia coincide com o movimento bilingue e multiculturalista das comunidades étnicas minoritárias, e os portugueses do oeste americano reivindicaram de imediato os seus novos direitos a uma educação primária e secundária harmoniosa com o passado e tradições dos seus filhos e filhas. Onde houvesse uma comunidade açoriana de números substanciais, as escolas teriam de responder a essa nova exigência cultural e linguística dos que haviam desde sempre permanecido nas margens daquela sociedade. Jorge de Sena nunca rejeitou um convite para se pronunciar sobre tudo isto em vários congressos sobre a educação e outros encontros intelectuais com base nas nossas comunidades e realizados em grande parte tanto pelos que se dedicavam ao ensino da nossa língua a nível superior um pouco por toda a parte como por um emergente grupo de professores recémformados e convocados, por assim dizer, para dirigir e constituir os novos corpos docentes do ensino bilingue oficial. Foram tempos de grandes mudanças na nossa Diáspora norte-americana, e Jorge de Sena acompanhava de Santa Barbara com visível satisfação toda esta ebulição educacional e intelectual sem precedentes entre os nossos imigrantes, e que na Costa Leste outros intensificavam e aprofundavam ainda mais todo o projecto, com a vantagem da Brown University, com todo o seu prestígio e influência, a fundar o primeiro grande centro de estudos açorianos e luso-americanos. Como diz Jorge Fazenda Lourenço na introdução a Rever Portugal, após a euforia inicial do
25 de Abril, a desilusão do poeta manifestase com a crise de 1975, mas as suas intervenções públicas entre os imigrantes vinculavam sempre a esperança num Portugal novo e livre.“As palestras, as conferências, as mensagens que Jorge de Sena dirige aos luso-americanos e aos imigrantes portugueses nos Estados Unidos — escreve Fazenda Lourenço — veiculam uma confiança inabalável na afirmação e no desenvolvimento da democracia portuguesa” Efectivamente, em todas as suas intervenções nesses referidos eventos comunitários assim como nos seus textos em forma de ensaios ou cartas, particulares e abertas, dos seus últimos anos, Jorge de Sena incute sempre nos seus ouvintes e leitores luso-americanos o orgulho pátrio e a necessidade de revermos sempre a nossa ligação a tudo que diz respeito ao país ancestral. Se os políticos em Lisboa o deixavam exasperado pelo que faziam acontecer ou não acontecer, a Diáspora deveria sempre manter a sua lealdade e esperança na regeneração global da lusitanidade. Alguns dos seus textos dirigem-se descomplexadamente à questão separatista nos Açores, ante o qual ele se opunha na totalidade. Só que num texto incluído noutro volume da obra completa (América, América), um dos últimos que ele teria escrito antes da sua morte e publicado postumamente no número inaugural da revista GáveaBrown (1980), Jorge de Sena regressa à questão dos nossos imigrantes na costa oeste americana, e afirma com alguma ironia ante certos factos que se passavam em Lisboa que se os Açores declarassem a independência, ele seria o primeiro continental a pedir a nova cidadania. A sua costela açoriana (micaelense) pelo lado paterno permanecia lembrada e respeitada como em nenhum outro grande intelectual continental do seu ou agora do nosso tempo. É de pura justiça
intelectual que os outros dois grandes especialistas da obra de Jorge de Sena são dois açorianos, Francisco Cota Fagundes e José Francisco Costa.
Ler este Rever Portugal: Textos Políticos e Afins é penetrar na tragédia lusa de todo o século passado, e prevendo, até, os nossos tristes dias actuais.
Jorge de Sena, Rever Portugal: Textos Políticos e Afins (edição coordenada por Mécia de Sena e Jorge Fazenda Lourenço), Lisboa, Guimarães/BABEL, 2011.


Outras Narrativas Americanas
A vaidade do dólar é um sentimento tão intenso como o pode ser a vaidade do génio. Conquistar o dólar para poder desperdiçar o dólar e criar nome, arranjar fama, afirmar individualidade.
Alfredo de Mesquita, A América do Norte
Comecemos aqui pela afirmação essencial: a narrativa simplesmente intitulada A América do Norte do jornalista e diplomata terceirense Alfredo de Mesquita (18711931) será um dos melhores livros — se não mesmo o melhor — sobre os EUA em língua portuguesa e escrito por um nãoimigrante ou residente. É claro que gostos e sensibilidades não se discutem, mas a minha opinião vem fundamentada após anos de leitura de muitos volumes que os nossos escritores têm produzido sobre o grande país ao longo de décadas, desde o Mundo Novo, Novo Mundo do distinto modernista e colaborador de Salazar, António Ferro, a Cavalgada Cinzenta de Fernando Namora, com alguns outros de permeio, como Descobri Que Era Europeia de Natália Correia, América em Carne Viva de João Alves da Costa e Ida e Volta: À Procura de Babbitt de Ilse Losa. Acrescente-se aqui que de outros autores açorianos têm saído narrativas notáveis sobre a nossa outra pátria de eleição a oeste, incluindo Das Velas de Lona às Asas de Alumínio de Dias de Melo, este particularmente no que à Califórnia diz respeito. Creio ser necessário colocar uma obra em perspectiva ante as que tematicamente a antecederam ou
lhe seguiram. A América, agora mais do que nunca, continua a exercer o eu fascínio sobre alguns dos nossos intelectuais, que parecem só vislumbrar Nova Iorque — porque lhes parece chique, porque Wall Street os comove e enche de amor ou raiva. No entanto, não será através da domesticada CNN ou de uma breve visita ou outra, ou ainda da leitura de um jornal ou de uma revista que poderemos ter sequer a mínima ideia ou retrato da pluralidade e complexidade daquela sociedade imensa. Por outro lado, ler as páginas de visitantes sem ler as que, também em português ou em inglês, foram e são escritas pelos nossos autores imigrantes e luso-descendentes é ter uma visão por demais limitada de um mundo que nos é de todo significante. “Paris — escreveu já então no seu tempo Alfredo de Mesquita — é a França. Portugal é Lisboa; mas Nova Iorque, só por si, muito pouco nos diz do que toda a América é”.
Alfredo de Mesquita nasceu em Angra do Heroísmo onde completou o ensino secundário e iniciou a sua carreira de jornalista. Depois da sua chegada a Lisboa tornou-se um colaborador de grandes jornais como o Diário de Notícias, e de periódicos como a revista Ocidente. A sua bibliografia inclui vários títulos, desde Portugal Moribundo a Memórias de um Fura-Vidas. Seria a sua última obra, A América do Norte, publicada originalmente em 1928 (dois antes do já referido livro em forma de diário de António Ferro), a que mais o prestigiou e que, segundo toda a informação chegada até ao nosso tempo, foi muito bem recebida pelo público leitor em geral. As datas, neste caso específico, têm grande
importância. Diplomata que serviu o país nalguns consulados europeus, seria nomeado cônsul em Nova Iorque nos anos 1918-1919, tendo aproveitado praticamente todo o seu tempo para viajar por grande parte do país, não só devido à sua curiosidade inata e profissional como porque num encontro com magnatas dos caminhos de ferro estes ofereceram-lhe viagens, percursos e estadias nas rotas e cidades várias, que o levariam até São Francisco, no outro extremo do continente.
Alfredo de Mesquita apanhou por inteiro um dos grandes momentos históricos de mudanças sócio-económicas radicais, quando a América saiu da sua ruralidade quase absoluta para uma civilização industrial como resultado imediato do seu triunfo na Primeira Grande Guerra, e consequentemente no contexto de uma Europa destroçada. O autor não fala desse factor no desenvolvimento norte-americano, mas sim vira toda a sua atenção para o que ele entende ser a raiz primeira na construção da nova sociedade: uma cultura política aberta e a determinação das elites — e por osmose e exemplo, de toda a população para além da sua condição hierárquica no país — em dominar sem restrições a sua parte do continente, do Atlântico ao Pacífico. O negócio da America era, tal como mais tarde diria um dos grandes directores da indústria automóvel, o negócio, e ponto final. Desde o pioneirismo da arquitectura gigantesca dos arranha-céus à arte da publicidade de todo e qualquer produto novo ao fulgor das contínuas invenções que tornariam o dia-a-dia dos americanos cada vez mais mecanizado até ao enriquecimento e ostentação sem apologias, estavam todos a definir uma cultura nacional sem par no mundo ou na história. Ao contrário de muitos outros visitantes que mais tarde “filosofariam” sobre tudo o que “avistavam” ao longe
e a grande velocidade, como Jean Baudrillard no seu América, esse que “viu” e “percebeu” logo toda aquela imensidão a partir de uma auto-estrada, nada lhe escapando aos habituais preconceitos, Mesquita limita-se a observar e a relatar um quotidiano quase sem memória das origens de cada grupo nacional, mas que se dedicava com todo o fulgor à domesticação do seu vasto espaço — o único modo de ser e estar na vida dos pioneiros e seus descendentes. Como qualquer narrativa, esta é parcial, deixando de lado muita da oposição intelectual e trabalhista que sempre batalharam a classe dominante e toda a sua ideologia em nome de outros equilíbrios societais. É possível que Mesquita tenha compreendido de imediato o estatuto demasiado minoritário dessas forças, não prevendo por isso qualquer conjuntura politica que mudasse seja o que fosse naquela América já consolidada e determinada quanto ao seu futuro. Na verdade, e em retrospectiva, o autor acertou em cheio — e creio que nada o surpreenderia se regressasse hoje à sua Europa ainda sempre Europa ou à sua América ainda sempre América. De resto, A América do Norte descrevenos minuciosamente um pouco de tudo: natureza, cidades, casas privadas e públicas, feitos de engenharia e motores, rios e montanhas, homens, mulheres e bichos. O relacionamento dos brancos com os afro-americanos não ficou de fora, e Mesquita praticamente só enumera alguns grupos de imigrantes europeus, estranhamente, mesmo depois de chegar à Califórnia, deixando de fora os açorianos aí fixados. É certo que na cultura fica-se quase só pelo que diverte as massas, descrevendo pormenorizadamente os teatros novaiorquinos e as suas incríveis acrobacias de palco e extensão de cenários, mas trata-se de um europeu habituado ao enjoo elitista
do seu continente e agora fascinado por uma igualdade criativa nunca vista dantes. Estava, uma vez mais, correctíssimo, foi exactamente esse e outro entretenimento que os EUA exportariam avassaladoramente para o resto do mundo. Sem outra explicação ou pretensiosismo literário e analítico de muitas outras narrativas nossas, Mesquita aviva a sua prosa descritiva e opinativa na mais escorreita e clara linguagem, sempre comparando o que vê com o que herdou e vivia no Velho Mundo.“A nevrose da pressa — escreve num passo que exprime toda a sua visão da América e dos americanos– e a preocupação de encontrar e utilizar a forma prática definitiva de todas as coisas — ideias, movimento e actos — caracterizam o génio americano, e em tudo quanto o americano faz se juntam. Cada gesto que ele emprega, cada utensílio de que se serve, resumem quanto é possível resumir o dispêndio da expressão e da actividade. Ao contrário de nós, que somos uns perdulários da energia, o americano economiza-a ainda quando ela se apresenta sob a forma de parcelas mais infinitamente pequenas”.´
A América do Norte foi republicado há alguns anos numa edição de luxo contendo em quase todas as páginas ilustrações desenhadas a preto e branco das gentes e das coisas conforme o andamento da narrativa. Para quem se interessa pelos EUA na generalidade e pela nossa presença multissecular nos pontos mais nevrálgicos de uma sociedade então em construção, o livro de Alfredo de Mesquita é um tesouro — mesmo que ideologicamente o possamos e devemos interrogar a cada passo. A grande escrita esconde sempre em si o seu próprio contraditório. A fome e a obsessão do dólar, afinal, destinam-se a repor a desmemória das origens, e sobretudo
a manter perpetuamente a saudade de um futuro sempre em construção.
Alfredo de Mesquita, A América do Norte, Lisboa, Parceria A. M. Pereira (com o apoio da FLAD), 2001


As letras da nossa
Diáspora
Que há um lugar nas tradições literárias do Novo Mundo para as letras dos imigrantes de língua portuguesa e dos seus descendentes luso-americanos e canadianos torna-se a mensagem mais importante que antologias como esta enviam para o mundo.
George Monteiro, Writers Of The Portuguese Diaspora In The United States And Canada.
É certo que me é já difícil escrever sobre estas questões da nossa literatura diaspórica sem repetições de vários géneros. Que seja assim. A repetição de palavras e frases faz parte da própria poesia, ou da insistência poética numa imagem, metáfora, ideia ou sentimento decisivos. Afinal, esta repetição textual de que falo poderá ser notada só entre um pequeno grupo de leitores aqui e um pouco por toda a parte onde se lê e se aprecia a escrita de uma nação lusa peregrina. Mais do que isso, também sabem esses mesmos leitores, para além do prazer estético de um texto literário, será aí que se encontra o registo permanente de como um povo que viveu e vive consciente da sua própria história, e a nossa sempre se confundiu com a de outros nas mais dispersas geografias e tradições. Escrevo precisamente no Dia Internacional do Obrigado 2016. Primeiro ri-me com esta ideia, depois aceitei-a de bom espírito. Obrigado, pois, ao professor e escritor Luís Gonçalves, da Princenton University, e ao poeta Carlo Matos, da City Colleges
of Chicago, por mais esta antologia da literatura luso-americana e canadiana, Writers Of The Portuguese Diaspora In The United States And Canada. Portugal poderá esquecer, com alguma frequência – menos quando precisa de remessas emigrantes, ainda necessárias ao equilíbrio das nossas finanças – que fora do continente europeu e das ilhas atlânticas a Nação está presente e cada vez mais actuante nos quatro cantos do mundo, e que grandes cantos são eles no outro lado do Atlântico, quando incluem os Estados Unidos, o Canada e o Brasil. Levamos séculos de preconceitos irónicos quando pensamos na nossa própria peregrinação –falamos de um povo aventureiro que deu mundos ao mundo, depois tratamo-lo como um movimento de desgraçados incapazes sobreviver na terra-pátria, os de língua despedaçada tornados outros aquém e além mar perante uma elite provinciana, quase sempre muito mal informada sobre tudo oque acontece no outro lado da sua casa e rua. Notícia infinitamente repetida: os portugueses no mundo primeiro morreram a trabalhar no duro, para agora nos darem uma das mais dinâmicas diásporas de lusodescendentes, provando que a sua grandeza em nada é menor à de outros povos. Desde meados do século passado, quando estas gerações seguintes começaram a penetrar nas instituições do ensino superior, o outro lado da moeda ficou bem à vista de todos –indivíduos em todas as áreas da actividade humana evidenciaram a sua capacidade de integração, na indústria, na política, nas artes, com as suas obras literárias no centro dessas manifestações. Todos eles herdaram de nós uma grande tradição literária, mas foi a custo próprio. Das cozinhas dos seus avós, quer na urbanidade da costa leste americana ou nos campos da Califórnia, receberam o amor e a
miticidade das origens ancestrais. Portugal, todo ele no continente e nas ilhas, viraria um lugar distante, desconhecido, mas desejado.
Creio que os escritores e poetas na presente antologia (alguns são da primeira geração de imigrantes) conhecem o nosso país de perto, outros já participaram em grandes eventos culturais e literários entre nós. Se nada disto pode ser contabilizado nos valores e bolsas que hoje dominam as nossas sociedades, a verdade é que a sua escrita constituirá a essa imensurável riqueza – a identidade de todo um povo, a essencial auto- estima dos que perpetuarão não só o nosso nome como afirmarão sem equívocos a dignidade das suas pátrias de nascença e da ancestralidade.
George Monteiro, que ainda há bem pouco tempo antologiou, com Alice R. Clemente, a poesia luso-americana, definindo assim parte substancial do cânone em desenvolvimento da mesma literatura, afirma no prefácio a este volume que se trata de uma colectânea que vem em seguimento de outras –quanto a prosa e poesia nas duas línguas –e cujas contribuições foram solicitadas aos escritores e poetas nestas páginas. Monteiro juntamente com a falecida Professora Nancy T. Baden e Onésimo Teotónio Almeida foram os pioneiros neste acto de levar as literaturas imigrante e luso-descendente na América do Norte à legitimação institucional através dos seus próprios estudos e publicações sob chancelas universitárias, principalmente a já histórica Gávea-Brown/A Bilingual Journal of Portuguese-American Letters and Studies. Os dois organizadores de Writers Of The Portuguese Diaspora In The United States And Canada pertencem a essa nova geração de estudiosos e autores, desfrutando dessa vantagem fundamental à continuidade desta escrita,
conhecem melhor do que ninguém os seus próprios colegas espalhados pelos dois países naquele continente, muitos dos quais ainda desconhecidos do público leitor, e até de quem, como eu, dedica boa parte da sua vida ao seu estudo. Entre nomes com o seu lugar assegurado em qualquer lista de leitura, tanto em português como em inglês: Katherine Vaz, George Monteiro, Anthony Barcellos, Lara Gularte, Millicent Borges Accardi, Nancy Vieira Couto, Rose Silva King, Sam Pereira, Darrell Kastin, Diniz Borges e Frank X. Gaspar; encontramos outros que começam agora a divulgar por vários meios os seus escritos entre nós, em géneros que incluem a poesia, ficção, biografia e autobiografia, desta vez dos dois lados da fronteira: Amy Sayre Baptista, Alyse Knorr, Richard Simas, Diana Ramos Firestone, Brian Sousa, Ian E. Watts, Jennifer Jean, Joe Amaral, Linette Escobar, Marina Carreira, Sarah Chaves, Emanuel Melo, Paula Neves, Jozhe e Catarina Costa Laranjeira; deixo aqui outros nomes que, também nas duas línguas, já são conhecidos nos dois lados do Atlântico, em maior ou menor grau, como António Ladeira, Eduardo Bettencourt Pinto, Esmeralda Cabral, João S. Martins, Augusto Mark Vaz, Paulo da Costa, Miguel Moniz e Manuel Carvalho. Não se faça uma ideia aqui de qualquer hierarquização de nomes ou obras, trata-se tão-só da minha própria reacção e leituras destes últimos anos. Suponho que alguns destes autores ainda não foram publicados em forma de livro, os seus trabalhos estando, como já disse, dispersos pelas mais variadas publicações. Foi-me gratificante encontrar alguns deles pela primeira vez, e de quem espero, esperamos, muito mais no futuro –esqueçam qualquer noção judicativa por enquanto, o que li, li com agrado e surpresa.Acontece que a publicação deste volume coincidiu com a saída nos
Açores de O Conto Literário de Temática
Açoriana, seleccionado e acompanhado de um longo estudo por Mónica Serpa Cabral. É uma outra colectânea da nossa ficção desse género desde o século XIX até aos nossos dias, e que vem do mesmo modo confirmar alguns autores canónicos e apresentar ainda outros. Desde há anos a esta parte que reclamo um lugar no nosso corpus literário para os escritores e poetas da Diáspora, indiferentemente da língua em que escrevam, desde que o seu referencial temático e certas linguagens pertençam à nossa Tradição, recriando imagens e metáforas representativas do nosso passado ancestral e histórico. Acontece isso pela primeira vez no trabalho de Mónica Serpa, com a inclusão de um conto de Katherine Vaz (“A Minha Busca De El-Rei D. Sebastião/My Hunt For King Sebastião”, do seu livro Fado & Other Stories). Nem todos os leitores em ambos os lados do mar concordarão com esta nova proposta, mas também ninguém poderá negar que na era da globalização as comunidades redefinem a sua identidade, ou identidades, as geografias dos seus afectos misturam-se irremediavelmente, as línguas em que se expressam parte de um mesmo património cultural e literário. As literaturas imigrantes, em toda a parte, assemelham-se muito, ou poderão mesmo ser consideradas no que também passou a designar-se por literaturas “pós-coloniais”. Se a História de uns e outros não coincide em traços específicos, encontra-se em temáticas coincidentes – a voz do outro a surgir ou a renascer das margens societais, a resposta ao poder e às linguagens das classes dominantes nesses mesmos espaços nacionais, a resposta à própria literatura canónica outrora definida e imposta por um sistema literário institucionalizado e legitimado sem nunca levar em conta essas vozes esquecidas e marginalizadas, como há anos foi reafirmado em
The Empire Writes Back, de Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin. À antiga palavra difamatória de portugee, nalgumas páginas de autores famosos e obras referenciais nessas culturas, contrapõe-se agora e decididamente a palavra portuguese. Se algum escritor luso-descendente se apropriar de tal terminologia será em tom de ironia, retirando toda a sua carga racista ou chauvinista. É também isto que a literatura luso-descendente emergente fará – criar um novo arquivo criativo da nossa gente em toda a parte, proporcionar um sofisticado espelho artístico de quem fomos e somos nas terras que eram só dos outros. A osmose natural entre estas literaturas permite, para além de todo o prazer e sinal civilizacional que é a arte em qualquer parte, um mais completo entendimento da nossa História, vem cimentar a identidade de um povo, que é sempre mais complexa e diversificada do que antigos estudos e discursos tentavam fazer passar.

Writers Of The Portuguese Diaspora In The United States And Canada, Seleccionado e Organizado por Luís Gonçalves & Carlo Matos, Charleston, SC, Boavista Press, 2015. A tradução da epígrafe é da minha responsabilidade. Publicado no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 29 de Janeiro 2016
Quando se despenteia a arrogância e outras imposturas
Se de alguma coisa necessita o discurso intelectual português (não o filosófico, que ele é quase inexistente) é de um bom purgante, ou um detergente poderoso, com banho geral. E um dentífrico para as palavras.Onésimo
Teotónio Almeida, Despenteando Parágrafos.
Onésimo Teotónio Almeida menciona na introdução a este seu Despenteando Parágrafos que alguns destes textos precedem o famoso ensaio-paródia de Alan Sokal quando este professor de física da MIT fez tremer a academia norte-americana de vergonha ao enviar para publicação à muito respeitada revista Social Text um longo artigo sobre questões do pós-modernismo, eventualmente publicado em 1996 como outra peça teórica e ideológica nos debates então em curso, muito influenciados pelos intelectuais e outros filósofos franceses que, a partir da década de 70, influenciaram todo o debate nas ciências sociais e na literatura. Era uma imitação deliberadamente fraudulenta, mas evidentemente levada a sério, de como nas humanidades outros se apropriavam de terminologia científica para teorizar, na prosa mais triturada e ofuscada, sobre quase todas as respectivas áreas, particularmente na literatura. Sokal falava na necessidade de se libertar a Teoria da Gravidade de amarras ideológicas. Alguns
pós-modernistas diziam que tudo debaixo do sol era uma “construção” linguística, ou necessariamente um discurso, um texto, uma vez mais, ideológico, segundo quem oproferia e com que intenção. Um pouco mais tarde, Sokal juntava-se ao seu colega belga Jean Bricmont para publicarem o já famoso Imposturas Intelectuais, no qual nomeavam e citavam outros nomes também conhecidos e reconhecidos na academia, mesmo por ou especialmente por quem não os entendia, não poderia entender a sua prosa pseudo-científica “abordando” várias áreas de investigação e teorização. Uma das novidades desta obra, já referencial pela negativa, é que quando traduzida para uma outra língua os autores faziam questão de pedir aos seus colegas exemplos deste tipo de prosa por figuras académicas desses países.
Imposturas Intelectuais foi publicado em Portugal em 1999 pela editora Gradiva, e, sim, traz alguns dos nomes universitários habitualmente citados entre nós. A verdade é que este projecto de Onésimo Teotónio Almeida vem de longe, muito antes de Sokal publicar o referido ensaio, são intervenções em congressos e de outros encontros públicos, alguns deles publicados nas mais diversas revistas da especialidade ou em suplementos literários, e naturalmente debruçam-se sobre muita desta prosa em português, obscura e enviesada na sua lógica ou argumentação por falta de rigor científico ou, simplesmente, de lógica. No entanto, não se lê – pelo menos este leitor não o leu assim – pelo que desmascara em outros, mas sim pelo que nos traz de novidade precisamente no processo de lermos ou pensarmos alguns dos nossos mais conhecidos autores ou pensadores portugueses, desde Eça de Queirós e Miguel Torga a Eduardo Lourenço. Nunca em página alguma deste livro
se trivializa ou menospreza seja quem for, mas o autor de Quando os Bobos Uivam continua a insistir num debate sobre todas estas questões, que descambam sempre camilianamente para o insulto pessoal, para a esperteza, pois claro, linguística, que tão caracteristicamente é usada como arma quando não se tem argumentos intelectuais ou científicos, quando se é apanhado nu nas fantasias académicas ou literário-culturais.Entre texto e abundantes notas de rodapé, Despenteando Parágrafos, para além de questões e escrita de natureza académica, é uma riquíssima fonte de nomes e obras da nossa literatura clássica e contemporânea, em que o foco está todo dirigido para análises literárias e para o ensaísmo – Jacinto do Prado Coelho, Eduardo Lourenço, Jorge de Sena, ou ainda Natália Correia a falar das suas redescobertas pessoais durante uma viajem à América. Aliás, algumas das páginas mais interessantes para um leitor açoriano serão as que revisitam a prosa diarística de Miguel Torga, quando ele escreve constantemente sobre o determinismo geográfico no pensamento e no modo de estar de nós todos, para tempos depois, e creio que após a sua visita aos Açores, falar também do cerco psíquico a Vitorino Nemésio na sua escrita.
Para Torga o território acidentado de Trás-os-Montes levava ao universalismo de um ibérico ao imaginar sempre o que estava para lá da montanha, enquanto o nosso mar era visto como um cerco prisional, e não de igual modo a passadeira da liberdade que vemos em nossa frente todos os dias. Onésimo Teotónio Almeida tanto desconstrói a prosa da ofuscação e confusão de saberes, como desmantela a falta de rigor lógico nas pontificações de nomes e obras tidas como canónicas na nossa academia e entre a classe culta em geral.
Uma das queixas mais frequentes do autor é que, anos após as mais afincadas tentativas, em Portugal não há diálogo intelectual ou cientifico algum, só afirmações sempre e supostamente incontestáveis, seguidas de insultos e amuos após qualquer contraponto público. Para quem se formou e pertence ao corpo docente, como Professor Catedrático, de uma das melhores universidades do mundo, a Brown University, umas das instituições mais antigas e simultaneamente mais abertas à inovação de pensamento e investigação, suponho que tem sido preciso muita paciência e tolerância perante o pedantismo e insolência portuguesas. A verdade é que o autor deste Despenteando Parágrafos não desiste nunca, ora em pessoa nos variadíssimos encontros em que participa constantemente em Portugal e no estrangeiro, ora por escritos na nossa imprensa ou periódicos da especialidade. Reafirma aqui, sem que isso seja necessário, que, ao contrário de muitos outros, nunca chega de fora carregado de livros e nomes para debitar publicamente, numa demonstração comum entre nós de como conhecemos, mesmo só por alto, o que se escreve e diz noutras línguas e noutras geografias científicas e criativas.
A prosa neste livro faz-me lembrar de imediato outro grande ensaísta que viveu, leccionou e escreveu nos EUA – Jorge de Sena. Num dos ensaios mais afirmativos deste livro, Onésimo Teotónio Almeida revisita em “O ensaio teórico à Jorge de Sena”, a prosa torrencial, erudita, que tudo contextualizava, revia e propunha, a prosa que tanta ira causava em Portugal, e que ainda hoje, não fora alguns nomes como o autor da obra presente, Eugénio Lisboa, Francisco Cota Fagundes, Frederick G. Williams, Harvey Sharrer, e Jorge Fazenda Lourenço, que vem organizando a obra completa de Jorge de Sena em colaboração com a sua viúva,
Mécia de Sena, e praticamente mais ninguém o citaria na república lusa das letras. Pensando na sorte de outros grandes nomes da nossa literatura e pensamento, afinal e num segundo olhar, a obra de Jorge de Sena está muitíssimo bem servida, a sua contínua, mesmo que restrita presença, um memorial ao melhor que a Modernidade no nosso país nos legou.Outros tópicos aqui incluem certa confusão sobre o que é ou não é a “lusofonia” e a consequente problemática do nosso relacionamento com o mundo de língua portuguesa em toda a parte, assim como o estado dos estudos humanísticos presentemente em Portugal após as mudanças institucionais requeridas por Bolonha. De nome em nome e ainda mais de obra em obra, o autor vai interrelaccionando os vários capítulos deste volume, resultando numa abordagem unificada no que concerne as gritantes desatenções ou as ditas “imposturas intelectuais” – a citação classificativa aqui é minha, não do autor – que afundam, ou no mínimo deturpam, os estudos literários e culturais um pouco por toda a parte e a vários níveis institucionais ou públicos. Não será preciso relembrar, em pormenor, que uma das mais graves consequências do que aconteceu com a teorização da literatura, particularmente a partir dos anos 60-70, foi a quase total descredibilização do estudo e da leitura a nível universitário. Só que noutros países, como nos EUA, o reequilíbrio já aconteceu, e os departamentos de línguas e literaturas voltaram à sua missão de transmitir a tradição literária e cultural nacional e ocidental, concomitantemente com a influente tradição crítica dirigida ao grande público leitor, que felizmente ainda existe em todas as sociedades. Por outro lado, enquanto uns falam, e com toda razão, da essencialidade das línguas estrangeiras num mundo globalizado, Onésimo pede o regresso
do ensino do Português a nível superior, por todas as razões acima mencionadas
“Não se trata de procurar resolver oproblema da falta de alunos nas Faculdades e Departamentos de Letras, mas sim de resolver a deficiência grave de formação humanística num país que sempre se autodefiniu como filiado na tradição humanista. Um país que, no afã de se modernizar, está a atirar fora obebé com a água do banho. Mesmo em termos pragmáticos, a inovação faz sentido porque, se estamos a tentar imitar as sociedades mais desenvolvidas, deveríamos observar atentamente as suas melhores universidades, e notar como as Humanidades são parte integrante, fundamental e irremovível de uma educação universitária moderna, havendo que integrá-las transversalmente em todos os currículos”.
Eis aí Despenteando Parágrafos.
Falta só dizer que Onésimo Teotónio Almeida pratica, sempre praticou, o que prega – a prosa clara, leve, cheia de informação e fundamentada num arsenal intelectual pouco comum entre nós – e, sim, o humor ante a estupidez, orespeito ante os seus interlocutores.
Onésimo Teotónio Almeida, Despenteando Parágrafos, Lisboa, Quetzal Editores, 2015. Publicado hoje no “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 05 de Fevereiro de 2016, e originalmente destinado à RUAL/ Revista da Universidade de Aveiro -Letra.


Memória, ou a nossa diáspora a norte
Esta antologia é dedicada aos canadianos de etnicidade portuguesa, uma comunidade que me orgulho de dizer que é minha.
Fernanda Viveiros, Memória: An Anthology of Portuguese Canadian Writers
Memória: An Anthology of Portuguese Canadian Writers foi organizado por Fernanda Viveiros, ela própria uma canadiana de descendência açoriana, tendo sido os 15 escritores, poetas, dramaturgos e ensaístas aqui presentes seleccionados naturalmente por ela em conjunto com uma comissão editorial. Trata-se de uma antologia bilingue, pois alguns destes textos foram originalmente escritos em português pelos autores da primeira geração de imigrantes, e outros escritos em inglês pelos que já nasceram no Canadá, a segunda e demais gerações hifenizadas. Trata-se da primeira grande obra deste género, e vem num tempo muito próprio. Como se sabe, a nossa emigração para aquele país só começa em massa a meados dos anos 50 do século passado, pelo que o registo artístico da nossa experiência de vida canadiana é muito posterior à dos Estados Unidos, onde já existe um substancial cânone literário luso-americano, com alguns dos seus escritores desfrutando de um reconhecido estatuto no sistema literário do seu país enquanto permanecem fiéis em muitas das suas obras à sua ancestralidade lusa. No Canadá, neste
momento, gozam dessa projecção nacional dois nomes, estranhamente aqui ausentes, como outros recenseadores já apontaram: Erika de Vasconcelos (My Darling Dead Ones/Meus Queridos Mortos) e Anthony De Sa (Barnacle Love/Terra Nova, e mais recentemente Kicking the Sky). Também sei da problemática de nomes mais destacados em aceitar a sua presença numa primeira antologia deste género. Seja como for, comecemos pelo o que nos é aqui essencial: esta iniciativa de Fernanda Viveiros, que também detém uma nova editora, a Fidalgo Books, que agora se propõe publicar toda uma série de livros de outros autores lusodescendentes pertencentes aos dois lados da fronteira norte-americana, constitui uma magnífica e vivíssima colectânea de textos que passam doravante a fazer parte integrante dos nossos arquivos artísticos, da nossa memória colectiva, da nossa histórica vivência entre dois mundos bem diferentes, entre duas línguas e duas bem distintas tradições literárias, num vaivém sem fim entre a antiguidade do Velho e a modernidade do Novo Mundo.
Primeiro do que tudo, uma breve contextualização da obra aqui em foco na cultura literária do Canadá. Não queria apontar alguns nomes presentes nestas páginas, e deixar outros de fora. O que quero deixar bem vincado é que qualquer deles honra a nossa tradição literária diaspórica, nada menos do que os seus colegas no outro lado da fronteira – de primeiros embates com uma identidade plural à aceitação, e ascensão, sem dúvida, do seu lugar numa sociedade
como a canadiana enquanto nos fala da comédia ou tragédia humana em qualquer sociedade. A minha descoberta da literatura luso-canadiana deu-se num hotel em Toronto, há uns bons anos. Quando numa certa manhã abri o The Globe and Mail, o grande diário nacional, topei logo na primeira página um extenso artigo sobre o primeiro romance de Erika de Vasconcelos, My Darling Dead Ones, que acabava de ser publicado. Foi-me uma descoberta com vários significados. Disse para mim, isto nos Estados Unidos nunca aconteceria, muito menos com uma escritora até então desconhecida, e muito menos ainda com um romance que tinha como temática recorrente a visão de uma protagonista canadiana sobre o passado da sua família em Portugal, e depois a experiência imigrante dessa primeira geração no país de acolhimento. Não sei se este destaque pouco habitual entre nós em qualquer parte acontecia devido a um momento de busca identitária no país e cultura canadiana, ou se era a surpresa de um nome português aparecer na capa de romance publicado por uma grande editora. Eu tinha lido que até aos anos 60 falar de “literatura canadiana” era mais ou menos como nós aqui nas ilhas a falar sobre “literatura açoriana”, ambos levantando suspeitas de separatismo ou chauvinismo cultural, por assim dizer, ou então estávamos a falar de algo que “não existia”. Li, já aqui nos Açores, e para apoio teórico, o crítico Robin Mathews, no seu incontornável, quanto a estas questões, Canadian Literature: Surrender or Revolution (1978). Entretanto, eu também já tinha lido O Canada: An American’s Notes On Canadian Culture (1964), de Edmund Wilson, o primeiro grande crítico norte-americano a querer investigar e a conhecer o que se passava no país tão próximo e ainda tão “distante” do seu. O que sobressaía no livro de Wilson
era de facto um rol de grandes escritores e obras, conhecidas apenas em pequenos círculos intelectuais no próprio Canadá e por uns tantos outros no estrangeiro. Hoje, Memória: An Anthology of Portuguese Canadian Writers passa a pertencer a uma tradição em construção que inclui nomes tão conhecidos no mundo como o grande teórico da literatura Northrop Frye, e os ficcionistas Robertson Davies, Margaret Atwood, e a recente vencedora do Nobel, Alice Munro.
Por certo que nenhuma literatura “nacional” é feita só de escritores famosos ou vencedores de grandes prémios. Esta antologia de escritores lusocanadianos é bem sintomática de como na escrita de qualquer língua ou país o estar nas margens em nada significa ausência de beleza e força linguística em qualquer uma das duas línguas que nestas páginas servem de signos carregados de “sentido”, “verdade”, e muito mais ainda de “estética” muito própria quando se memoriza, se retira do esquecimento, um passado vivido ou imaginado, quando se retrata uma mundividência simultaneamente no centro e, uma vez mais, nas margens da grande sociedade em que também se inserem as nossas comunidades naquele país. Na América do Norte, parece, toda a grande literatura parte de uma essencialidade identitária numacivilização continuamente a ser reinventada na diversidade humana que a compõe, o mosaico novo-mundista que junta literalmente as nações do mundo em convivência mais ou menos pacífica. São nos detalhes, já se sabe, que sobressai um vizinho ao lado em tudo igual a nós e, ao mesmo tempo, em tudo diferente de nós. Creio que a preocupação primeira de Fernanda Viveiros, que de literatura muito sabe, foi de facto dar-nos essa
visão de comunidades só recentemente transfiguradas e reinventadas pelos seus artistas da palavra, e o leitor sai desta viagem com outra compreensão do percurso comunitário da nossa gente num país de calor e de gelo, em tudo radicalmente diferente do das nossas origens. Se este conjunto de escritores seleccionados é uma mostra desta outra escrita “lusa” em peregrinação só posso concluir que estamos de parabéns pela sensibilidade estética e pela agilidade linguística com eles nos brindam em cada texto.
“O meu pai – escreve Tony Correia num ensaio deliciosamente intitulado ‘One Man’s Island’, numa tradução minha, que admito retirar algum poder do inglês em que está escrito – era um homem para quem o trabalho era divertimento. O único momento em que ele se sentava era para fumar um cigarro, beber uma cerveja, ou adormecer no seu cadeirão a ver televisão. Ele governava a casa como se fosse uma fazenda, e de facto em todas as aparências era isso mesmo. O meu pai não criava porcos, mas todos os anos havia uma matança. Ele plantava a sua própria fruta e vegetais, fazia o seu vinho, enchia e defumava o chouriço. Até mesmo a meio do inverno, ele plantava flores numa estufa que tinha construído para assim antecipar a chegada da primavera”.
Eis aí a nossa ruralidade numa das cidades mais metropolitanas e modernas do mundo, a nossa capacidade de desafiar otempo e o modo, passe aqui a alusão à famosa e defunta revista lisboeta. Nenhum destes escritores esquece nunca de onde lhe veio a sua postura no mundo –família, igreja, trabalho, história e o quotidiano, cada tema embrulhado na vivência canadiana de todos eles com a persistente memória dos seus numa pequena ilha atlântica ou nas ruas de uma
cidade ou aldeia continental. Estes não são olhares de fora para dentro, mas o contrário, são os olhares de quem já pertence inteiramente ao Novo Mundo mas não esquece, não pode esquecer, os laços que para sempre os trazem a nós aqui na outra margem atlântica.
Como diz Onésimo Teotónio Almeida na sua nota introdutória a Memória: An Anthology of Portuguese Canadian Writers, em muito estes escritores se parecem com os seus pares lusodescendentes nos EUA, mas transparece sempre, mesmo assim, a originalidade da sua história própria, da sua vivência nessa outra geografia
Memória: An Anthology of Portuguese Canadian Writers (org. de Fernanda Viveiros), Fidalgo Books, 2013.


“THROUGH A PORTAGEE GATE”: Vidas Contadas e Reinventadas
He is gone now. His shop is gone. Weld Square is gone. His life has been wiped clean off the board. But I wake in the night and I see his face and I hear his voice.
“Prologue” de Through a Portagee Gate
Na capa de Through a Portagee Gate,1 a mais recente “autobiografia” de um lusoamericano, Charles Reis Felix, vemos um retrato de uma cara inegavelmente sul europeísta, neste caso para um leitor português, de imediato reconhecida como a de alguém que nos é muito próximo: podia ser pai ou avô de qualquer um de nós. De boné tradicional, camisa de flanela, de sorriso natural e sincero, enfrentando a objectiva, sem qualquer pose, com um castanho cor de terra como moldura, podia ter sido tirado em Portugal, mas não foi. Trata-se do pai do autor, que tinha emigrado de Setúbal para New Bedford a princípio do século passado, tendo lá permanecido o resto da sua longa e pacífica vida, exercendo solitariamente a profissão de sapateiro em oficina própria e só, ou como ele próprio gostava de lembrar ao filho, “um fazedor de sapatos (shoe maker), dignificando-se assim perante muita da sua “concorrência” imediata nos bairros da sua cidade. Se coloco a palavra “autobiografia” entre aspas é porque esta longa narrativa
será isso e algo mais: é uma “biografia”, também, do seu pai, assim como uma história social de toda uma comunidade lusa nos Estados Unidos, particularmente a partir dos anos 20 até quase aos nossos dias. Não é a primeira deste género sobre alguém ou uma das nossas comunidades na costa leste americana, mas é a primeira que nos dá um retrato da vida mais ou menos ainda em “colónia” ou mesmo “gueto”, mas um “gueto” à nossa maneira, que depressa se transformaria em“comunidade” pacífica, ordeira, isolada (“rodeada de América por todos os lados”, como certamente também diria aqui Onésimo T. Almeida), tentando viver o sonho americano a partir dos escalões sociais de base durante todo o século aqui prefigurado. New Bedford já tinha então feito a transição de cidade baleeira para a industrialização téxtil, que viria a providenciar o modo de vida de grande parte dos nossos imigrantes lá residentes, recém chegados ou de “longa” data. De certo modo também pioneiros da “modernidade” societal que nascia na época, estamos aqui nas margens da sociedade que simultaneamente luta pela sua ascensão como constitui a força servil às classes dominantes e a uma política de desenvolvimento que olhava as pessoas como peças menores mas fundamentais na engrenagem dura de uma economia totalmente aberta e em expansão desenfreada. As migalhas, por assim dizer, que cairiam da mesa faustosa dos poderes económicos e políticos já eram suficientemente atraentes para os imigrantes que tinham deixado uma situação de vida periclitante na sua terra de origem. Entre a consciência desse seu lugar na sociedade americana e das possibilidades, reais ou sonhadas, que os levariam além da mera
sobrevivência, nasceram as nossas comunidades com características que tanto são específicas ao nosso modo de ser como se assemelham em tudo a outros grupos étnicos que chegariam ou já tinham chegado de outros países e culturas: franceses, irlandeses, polacos e judeus europeus. É neste caldeirão humano que Through a Portagee Gate se movimenta em quase 500 páginas de prosa concentrada num só lugar e vidas, mas entrecruzada entre o presente e o passado. Recuamos a um tempo em que se avista a “América” muito pouco e só através de estreitas brechas no muro cultural e sócio-político que separa essas vidas portuguesas em New Bedford de todos os outros, até à chegada (vindos das mais variadas proveniências geográficas e nacionais) dos que aqui são denominados de “bárbaros”, já quase nos nossos dias, esses que supostamente tornariam uma obscura mas estável cidade piscatória e industrial num terreno de instabilidade, crime, e “modernização” turbulenta.2 Through a Portagee Gate é tanto uma celebração de uma vida simples, satisfeita com o seu próprio destino, como um lamento de perdas várias.
Charles Reis Felix, filho do protagonista destas memórias e de mãe também portuguesa, nasceu em New Bedford, mas sairia de lá para sempre em 1941, quando foi estudar para a Universidade de Michigan, tendo combatido na Europa na II Guerra Mundial, experiência narrada nas suas outras memórias, publicadas em 2002, Crossing the Sauer: A Memoir of World War II, tendo recebido elevados elogios da crítica especializada, e de outros,quer pela sua força e honestidade narrativa quer ela sua qualidade literária.3 Reis Felix foi professor do ensino primário, mas escreve desde sempre,esperando boa parte da sua vida antes de ver essas obras publicadas. Segundo informação editorial, tem já
pronto para publicação a sua primeira ficção de fôlego, intitulada Da Gama, Gary Grant and the Election of 1934, romance que será editado pelo Center for Portuguese Studies and Culture, da Universidade de Massachusetts Dartmouth.4 Reis Felix, hoje aposentado, reside no norte da Califórnia há muitos anos, tudo indicando que, apesar da idade, continua a escrever.
Through a Portagee Gate segue cronologicamente a vida de Reis Felix desde a infância, desde os anos em que tomou consciência de si próprio e dopequeno mundo circundante de bairro em New Bedford, até ao falecimento de seu pai já na década de 80, exactamente no mesmo sítio e casa onde toda a história destas paginas decorre. Entretanto, a primeira parte da narrativa começa no presente, em que o autor se justifica perante os seus eventuais leitores, explicando as suas motivações para a tarefa, que será reconstituir a vida de seu pai, a sua e a de todos aqueles que com ele partilharam a sua experiência num determinado lugar e tempo. A palavra “Portagee”, aqui, não perde a sua semântica depreciativa, mas carrega boa dose de ironia redentiva. Curiosamente, é um artigo anti-imigrante publicado na Yale Review de 1893, da autoria de Francis A. Walker, à altura presidente do Massachusetts Institute of Tecnology, que desperta toda a “ira” civilizada de Reis Felix, e que o leva a desmontar todo um paradigma de pensamento racista anglo-saxónico, que viria a acentuar-se generalizada e violentamente nos anos 20. O artigo nem menciona os portugueses directamente, mas Reis Felix sabe muito bem que estávamos nele incluído. Não vale a pena entrarmos aqui no seu teor, bastando dizer que apelava aos poderes norteamericanos para se precaverem contra o influxo emigratório
de milhões de europeus que ameaçariam a “superioridade”, em todas as suas vertentes, dos que já eram “americanos” nascidos e educados no Novo Mundo. Reis Felix utiliza um passo epsis verbis desse documento como primeiro capítulo de Through a Portagee Gate, para logo depois passar a falar das suas experiências pessoais na Califórnia, onde confirmou todos os preconceitos contra a sua gente lusa, onde testemunhou pessoalmente todas as atitudes estereotipadas daqueles que pouco ou nada de nós conheciam (ou conhecem ainda hoje).5 A história está bem documentada em alguns escritos lusoamericanos para que entremos aqui também nos seus pormenores e labirínticos argumentos. De prosa leve mas extremamente fluente e bem estruturada, concisa e claríssima, o autor consegue que depressa esqueçamos que estamos a ler uma autobiografia, colocando-nos ante uma narrativa de força, como que algures entre a ficção e a realidade,6 a sua memória servindo sempre como emolduramento a uma vida que adivinhamos logo nas primeiras páginas ser longa e plena de sentido.
Curiosamente, nunca encontramos seu pai perante tais situações socialmente adversas que seria a discriminação aberta ou subtil por outros na sua cidade de residência, pois o seu isolamento era também quase absoluto: viveu entre a sua oficina e a sua casa, não permitindo a ninguém nunca que o maltratassem por qualquer via. Julgava os outros simplesmente através dos “negócios” que com eles fazia, e mais nada. Para ele, os Estados Unidos tinham sido a sua salvação da miséria em Portugal , o sistema nada teria a ver com alguma infelicidade eventual, mas sim os indivíduos que se lhe atravessavam no caminho. Não é um resgate de injustiças contra o pai que leva Reis Felix a esta narrativa, mas
sim o resgate da sua própria memória ante o racismo daqueles que nunca o conheceram e nunca entenderiam a profunda dignidade com que viveu e trabalhou entre eles todos. O subtexto de Through a Portagee Gate, torna-se, assim, a defesa de todos os outros que com o seu pai partilharam e partilham esta história tão comum da imigração nos EUA, principalmente os portugueses. Reis Felix não conhece nada da vida dos seus em Portugal (sobre isso, o silêncio do pai era total), mas foi criado até aos 14 anos de idade num Pequeno Portugalamericano, com todos os seus estilos de vida muito próprios (a obsessão pelo segurança financeira, por exemplo, implicando uma vida exclusivamente de trabalho e poupança), crenças e sonhos futuros garantidos. Nada do que ouviria no seu embate com outros confirmava o que ele conhecia da sua gente. Assim mesmo, Reis Felix nunca se libertou, ele próprio, de alguns desses preconceitos, mas atenuava-os com o resto da história. Os portugueses, para ele, podiam não ser uma nacionalidade muito “inteligente”, ou vocacionada sequer para a vida da mente, tal como os conhecia no seu meio ambiente americano, mas do mesmo modo atribuía outros “defeitos” ou “virtudes” a outros que “equilibravam” , digamos assim, a dignidade de cada um desses grupos. Aliás, George Monteiro, no prefácio a Through a Portagee Gate, insinua este aspecto “problemático” da narrativa. 7 Torna-se irónico para o leitor que Reis Felix escreva tão bem e com tanta força amena uma narrativa destas sem aparentemente perceber que nada desse seu passado étnico ou cultural o impediu de perseguir uma outra vida na literatura, um pai sem formação escolar que imediatamente, chegado o tempo, financiaria com orgulho a sua própria educação universitária. Eis aqui um desses passos ambíguos (particularmente para
um escritor que se propõe aqui responder a racistas anglo-saxónicos), mas muito sincero por parte do autor no contexto total de Through a Portagee Gate:
Maybe he really wasn’t Portuguese. Maybe he was Jewish. He had the nose for it. The Jews had been all over the Iberian peninsula at one time. Maybe one of his ancestors had embraced Christianity with a sharp sword at his throat, a favorite means of conversion. Maybe he was Moorish. The Moors had been there for hundreds years. Well, I would prefer Jewish to Moorish.
8 Through a Portagee Gate lê como um romance em fragmentos, mantendo a presença constante dos seus personagens centrais, nomeadamente o narrador Reis Felix e seu pai. Praticamente toda a “acção” decorre entre a oficina e a casa de família a pouca distância. Todos os outros são vistos entrando ou saindo desse posto de trabalho, ou passeando-se no Weld Square, sujeitos aos pronunciamentos e sentenças do velho sapateiro. Como já aqui foi referido, pertencem aos mais variados grupos étnicos, a maior parte das pessoas ainda com o sotaque e modo de ser da terra de origem. A sua vida interior, a de reis Felix e dos seus, vai-se-nos tornando familiar de página a página, sentimos que o conhecemos intimamente. É isto, supõe-se, que justifica a literatura: entrar em mundos mais ou menos “alheios”, mas confirmando sempre a nossa humanidade comum, o sentido de vidas, afinal, partilhadas, se não na experiência concreta de cada um, pelo menos na “atitude” existencial que um dia definiu a nossa pertença ou a um grupo ou outro. Como terceira “personagem” em Through a Portagee Gate, temos a mãe de Reis Felix, que permanece inconspicuamente em todo o cenário aqui montado, mas tornando-se inesquecível. Está aqui como
que uma consciência interrogadora de tudo o que se faz e diz, um coro a uma só voz, questionando cada palavra, cada pensamento, cada sentença do seu marido. Através do seu leve sarcasmo perante tudo quanto diz ou conta o marido do seu diaa-dia na oficina, ela contradiz, defende os não-presentes, leva a família a saber que existem outros pontos de vista e filosofias de vida em seu redor. Fala-lhe à mesa do seu misebarelismo, do seu mau humor para com os seus, quase sempre, pobres clientes, e, num caso de comédia sem par na literatura luso-americana, de como o governo lhe “apanharia” eventualmente por ele nunca ter pago impostos, mesmo enquanto investindo constantemente em moradias para arrendamento. Aliás, quando Reis Felix nos coloca à mesa de jantar da sua infância e adolescência, tanto esperamos as histórias do pai ou os seus aforismos “filosóficos”, como o contraponto constante e sarcástico da mãe. De tudo isto, fica-nos a ideia clara de como toda uma comunidade, nos seus primórdios, se foi defendendo e construindo, se relacionava entre si e com os outros, se bem que o isolamento de cada grupo seria só quebrado em ocasionais lides comerciais, encontros de rua, mas nunca, como ainda hoje, numa convivência culturalmente íntima. Cada qual ficava entre si, num espaço democraticamente delineado, perseguindo vagamente o sonho americano, a única ideia que “unifica”, como um dia escreveu outro autor norteamericano,9 tão numerosa e diversificada população a princípio e meados do século passado. Creio que não haverá “retrato” social mais completo e esclarecedor da sobrevivência de uma das nossas mais antigas e importantes comunidades na América do Norte. É precisamente a partir dessa sua duplicidade étnica e cultural que Reis
leitor com perspetivas universais sobre a Felix organiza Through a Portagee Gate:
I was brought up in the North End of New Bedford among Jickies, Frogs, Polocks, and Portagees, with a sprinkling of Jews for flavor. We were all foreigners or the children of foreigners, so we were all equals. There were strange smells coming from every kitchen. Nobody could lord it over anybody else. 10 Portugal tinha já sido ofuscado quase por completo na memória destes “personagens” de Through a Portagee Gate. Mesmo que o seu autor não demonstre muita preocupação com esses chamamentos às suas origens ancestrais (ao contrário do que acontece nalgumas outras narrativas lusoamericanas do género) a partir do momento que o seu pai abandonaria para sempre o nosso país em 1915, a verdade é que esta narrativa, ela própria, constitui uma inegável homenagem literária e memorialista aos nossos únicos e corajosos “navegantes” do século passado, de que seu pai foi apenas um entre milhões. Simbolicamente, no entanto, uma das últimas frases proferidas pelo pai de Charles Reis Felix, numa conversa com uma das suas cunhadas pouco antes da sua morte, foi: “Do you still remember Setúbal, Mary?”11 Pode muito bem toda uma cultura nacional de longa história como a nossa não reconhecer devidamente nos seus imaginários literários a maior parte dos que se foram, mas testemunhos destes farão eventualmente parte do nosso legado histórico-cultural e literário, tal como algumas das narrativas canónicas da nossa peregrinação aventureira, ou simplesmente as de sobrevivência pura. Para um país que hoje tanto pareceinteressar-se por tudo que é norte-americano, especialmente pela literatura e pela cultura popular em geral, que livros como Through a Portagee Gatep ermanecem ignorados
entre nós (raramente se traduzem em Portugal livros de luso-descendentes) , só evidencia uma vez mais os complexos e preconceitos intelectuais desse mesmo país. Enquanto grandes escritores como John Steinbeck utilizariam precisamente termos como “Portagee” para nos rebaixar a todos, estes autores luso-descendentes utilizam-nos do mesmo modo, mas num acto de resgate da dignidade de todo um povo, mesmo por vezes tão ambiguamente, como o faz o autor desta outra “saga” nossa nuns Estados Unidos de outros tempos.
1 Charles Reis Felix, Through a Portagee Gate, North Dartmouth, Massachusetts, Center for Portuguese Studies and Culture, University of Massachusetts, Dartmouth, 2004
2 O autor utiliza mesmo o termo “barbarians” para descrever a nova onda de residentes que chegariam a New Bedford logo após as mudanças sócioeconómicas radicais no país que resultaram da II Guerra Mundial, e que introduziriam grande instabilidade na comunidade com comportamentos pouco convencionais para os que lá estavam desde há muito, desde roubos a violência mortífera. A sua linguagem aqui, hoje politicamente pouco correcta, aplicase ainda a outras observações suas em relação a outros e adentro do tradicional espírito de rivalidades entre os mais variados grupos étnicos, e, até, aos próprios portugueses, por quem o autor sempre nutriu o mais profundo respeito. Reis Felix apresenta-nos a alguns destes “bárbaros” num capítulo intitulado precisamente “The Americans”: “Once of Americans – escreve – moved into our neighborhood. Their stay was brief but for that time we saw Americans close up”, p. 281.
3 Charles Reis Felix, Crossing the Sauer: A Memoir of World War II, Springfield, NJ, Burford Books, 2002. Um desses recenseadores especializados, Paul Fussel, escreveu que se tratava de “one of the most honest, unforgettable memoirs of the war I’ve read”. George Monteiro, por sua vez, escreveu numa breve recensão intitulada “A Portuguese-American Memoir by a Member of the Greatest Generation” que: “Felix’s writing is clear and crisp, even bordering, at times, on the aphoristic”. Noutra parte do mesmo texto, Monteiro compara ainda estas memórias de Reis Felix a outras grandes obras americanas de Guerra. “(…) Crossing the Sauer nevertheless calls to mind occasionally Stephen Crane’s Red Badge of Courage or his great story ‘The Open Boat’”.
4 Segundo informação publicitária do editor, trata-se também de ficção que tem como tema a experiência imigrante e étnica dos portugueses e lusoamericanos na América do Norte.
5 Eis aqui parte desse texto de Francis A. Walker, transcrito por Charles Reis Felix no primeiro capítulo intitulado “Every Foul and Stagnant Pool”, frase tirada do próprio texto em causa. Diz Francis A.Walker, depois de mencionar alguns desses grupos de europeus “from Ireland to the Ural Mountains”: “The stream has fairly begun flowing and it will continue to flow so long as any difference of level, economically speaking, remains, so long as the least reason appears for the broken, the corrupt, the abject, to think that they be better off here than there”, p. 19.
for his neighborhood, and that is to write as well as he can. That is, to turn the re-collections of experience into imaginative art. This act of imagination is a form of philanthropy that is seldom if ever recognized for what it is”, pp. xiixiii.
7 Afirmaainda George Monteiro: “(…) What is one to make of the author’s perhaps too-sharp eye for the embarrassing detail, his predilection for casting incidents and character ironically, his sometimes ham-fisted satire at the expense of the ethnics (including the Portuguese) who appear in his narrative?”, p. xiii.
8 Through a Portagee Gate, p. 262. Generalizações como está são muito frequentes em toda a narrativa. No mesmo capítulo do passo aqui citado, Reis Felix ainda acerca do pai: “Just as there those among us who are unAmerican, so my father was unPortuguese.Henevertookacentoffhis children (…)”; ou ainda. “He was unPortuguese in another way. Envy is the common flaw in the Portuguese character. The Portuguese is very much concerned with what others have (…), p. 261.
9 O (falecido) jornalista e historiador
Theodore H. White desenvolveu esta ideia em quase todos os seus livros de análise política e histórias de algumascampanhaspresidenciaisnorteamericanas, inclusive no seu Breach of Faith: The Fall of Richard Nixon (1975).
10 Through a Portagee Gate, p. 317.
6 George Monteiro, que prefacia Through a Portagee Gate, escreve sobre o aspecto artístico desta obra: “There is, finally, only one thing Felix can do for himself, for his father, for his family,
11 Through a Portagee Gate, p. 461
Ensaio escrito em 2006, e depois incluído no meu livro Imaginários LusoAmericanos e Açorianos: do outro lado do espelho, Ponta Delgada, Edições Macaronésia, 2010.
Páginas Entre Nós: A amizade em cada capítulo
Amizade em Cada Capítulo


The virtuoso Vamberto Freitas
by Manuel Leal
Vamberto Freitas is recognized today as one of the best literary critics of the Portuguese language world. Some experts have even pointed at him as uniquely holding the highest altitude in this context. This singularity expresses style, knowledge, and logical communication, as one would find a painter incorporating form, stroke, and color.
It is a field in which literature intercepts implicit psychology much as a conversant attempt to read through the style and phrases that project the thinking of an interlocutor while assimilating it with his own in the analysis or silent inquiry that all of usconduct in social interaction.
No man is truly an island. No one really truly represents the unlikely theory of the Great Man in the making of big bangs spawned out of a vacuum. Socrates and Freud, or even Einstein, were privileged creatures in a process in which human behavior retraces group phenomena in our cosmological order that physicists are finding and psychologists ought to think about. Lightening is produced only when specific conditions exist, both as a meteorological event and in a metaphoric construction at the synapses of one’s neurological association stations. Those icons of our capacity to generate consciousness arrived at a confluence of concepts in the academic environment at the rightmoment with the preferred intellectual
zand motivational makeup. In quantic entanglement, which was experimentally achieved last December in a lab at Harvard University, specific particles of matter trapped in a two-cage compartment, each resembling a four- chamber partially connected as half doors open to rooms, lose their properties to become a new whole, much like the individual in a group.
Apart from being separate and distinct in our Universe, particles of the same species always became twin copies of each other with the same identity and atomic weight. The change following the interaction of atoms mystified the investigators whowitnessed the metamorphosis. In this context, differences between the parts, when the full entities are indistinguishable, only happens “if there is entanglement within each system”.
No matter where in the universe one finds a particle, it has the same properties everywhere because they mimic in isolation each other across the cosmological expense where elements are the same. This quantum “miracle” of symmetry in the chaos recognized by Einstein is what tells astrophysicists that other worlds like ours populate the galaxies throughout the trail left by the initial explosion of Creation. The categorization of behavioral phenomena in psychology may be seen in the same context of eliminating the ubiquitous noise through which the novelist and historian weave a plot that simulates our
existential bedlam projected in the Babel of our tongues.
Writers and thinkers may sometimes seem to be feral children in the development of their skills, but in reality, they are chains in the continuous linkage of mind and humanity. All human activity, in the pursuit of the arts, as it has been with science and the very existence of our species, needs to be viewed in the context of the experiential zeitgeist. However, in a Gestalt sense, ideas, and ah-ahs are products much more than the sum of their parts.
As Vamberto ponders through his own membership in an emotional fringe of the ongoing melting pot of intellectual evolution, he combines with solid authoritative and inspiring mastery of the subject matter and, in the associations of his worldview, the saga of those who ventured anxiety and assimilation in the transmutation of adaptation which predisposes both the writer and the reader to be a collective entity in the memory as well as in the formation of one’s discovery of being human.
The subjective ability to dissect a writer’s projection of feeling and intent is at the core of understanding fiction and communicating in the narrative or even poetry. Rather than the “hysterical realism” that seems to have engulfed the business of the novel as a publishing modality, as James Wood once complained, Vamberto’s essays and short exploratory reviews often stay linked to the experience common to many in our diaspora. He is always back and forth, crossing the borders of his insight into belonging to the two margins of the Atlantic. As a prolific thinker, he has been able to entangle the experience of two different and much dissimilar intellectual
realities and traditions of thought to become not one or the other but a singular unifying bridge for others. Presumably, his students follow and expand. An agent of cultural diffusion, his work in the realm of the different worlds or dimensions of the reality in question is much akin, within the framework of my pendant vision of a continuum of processes from physics to psychology, to the behavior of energy in entropy, which he works with sensibility and an extraordinary sense of connection.
Vamberto graduated from California State University, Fullerton, and taught in the United States before recrossing his emigrant’s route to teach at the recently organized University of the Azores. Equally at ease with English and Portuguese, his first language, he writes a weekly column on literature for Açoriano Oriental, a leading Ponta Delgada newspaper. It is to the credit of this publication’s editorial leadership that a subject matter perhaps beyond the average reader’s interest is brought to the attention of an academic minority in a popular forum. Furthermore, the reasonable length of his essays reveals the newspaper’s knack for quality over quantity. Thus, Vamberto does not seem to be arrested or restricted by the writing requirement, with his mind tied to volume or line count metric limitations. The creative freedom of his talent finds the space and reinforcement to take off in flights of creativity.
In this week’s column, writing about James Wood’s The Nearest Thing to Life (Brandeis, 2015), Vamberto confronts his own presence in two worlds geographically and culturally apart where his children have grown and developed in a linguistic and cultural dimension differentiated from his own.
It is the drama of those of us who write and think with roots in both the United States and the Azores, or any other intellectual tradition as in the experience of James Wood, eternally unable to pull from one or the other effectively charged poles of this dichotomy that became inherent to one, our singular complex and intellectually hybrid identity.
I wish his column had been written in English as well, for I would have made it available to my adult, American-educated children. While still in graduate school, I once wrote a paper about the same theme, in which I cried with words about their inability to read the involved prose of my Portuguese writings.
It was a paper on the psychology of individual identity in an acculturative situation, which conditions the vocabulary and the affective tone and content of the cognition of people who, for all the implications about the hemispheric specialization of our brains, not only express themselves in words with dissimilar grammatical and metaphorical characteristics but also think bicamerally. Eachcerebral subsystem of function and mediation of processes in the other has almost segregated patterns of arranging the elements and the meaning of reality across the corpus callosum. My professor, whom I later became a colleague, wrote this at the top of the first page: “I weep with you.”
It is how I feel after reading Vamberto’s excellent text.


Written and published by Manuel Leal in 2016
