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Cais do Abraço de Virgílio Vieira
Rosa Maria Goulart
Ainda antes de uma leitura precisa deste conjunto de poemas de Virgílio Vieira, o leitor é atraído pelo título e pela sugestão que semanticamente é, desde o início, apresentada. Não sabendo ainda exatamente de que se trata, ocorre desde logo a ideia de viagem, de partida, de despedida, de relações afetivas. É também já como metáfora que o entendemos, na medida em que nos recorda outras viagens e outros lugares de partida que a palavra «cais», na sua polissemia, abrange. Para os açorianos, ainda habituados a viagens marítimas entre algumas ilhas do Grupo Central (continuam a ser vitais para as chamadas «Ilhas do Triângulo», S. Jorge, Pico e Faial), ou os que, com uma experiência mais recuada no tempo, nos recordam, nos anos 60 ou 70 do século passado, as idas para o continente, associamos naturalmente o cais à viagem por mar, para a qual a bela ilustração da capa igualmente reenvia.
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Cais do Abraço não é um roteiro de viagem, mas um trabalho artístico que vive de espaços geográficos e da memória deles (processo recorrente noutros livros do autor), mesmo que o poeta nos mostre frequentemente uma escrita ao sabor
Virgílio Vieira não é ilhéu por nascimento, mas é-o de coração, tendo plenamente assumida a linguagem do campo semântico ligado ao mar, que é português, mas especificamente açoriano, no léxico escolhido para o referir. E sempre com a energia da escrita, logo sinalizada pelo título do primeiro poema, «Antes que a ilha me doa», e concluída com «Barco», poema curto, de três dísticos», que resume em beleza todo o percurso desta aventura poética: «Traz nos olhos a beleza dos golfinhos / Traz nos ouvidos o canto das baleias // Traz na concha do corpo a maresia / Traz no rosto a alegria da liberdade // No cais do abraço sonha um novo dia / Nova aventura no mar da saudade». Aqui reside toda uma simbologia da realidade açoriana, existencial e culturalmente assumida, ainda que não bebida na infância. Uma prova de que a vida vivida na poesia tem o dom de corrigir ou ampliar o que a outra, a do quotidiano, não alcança.
Avançando na leitura, continuamos com Virgílio neste percurso de viajante-poeta, uma tendência que já lhe conhecíamos, com a pena na mão, a viajar de avião e a refletir a partir daí sobre o perto e o longe; a observar a paisagem, apresentada em todo o seu esplendor; a descrever novos espaços, apresentados de modo aleatório – ao sabor das emoções, ou de algum motivo pessoal que desconhecemos. Transita, por exemplo, de Santa Bárbara da Ribeira Grande para Cork, que dá o título a um poema, «Manhã em Cork» («Cork, 23.12.2018), tendo «Da solidão» a indicação da mesma data e local mas é-lhe acrescentado um conhecimento que vem da experiência quotidiana. É assim com a descrição da conteira, na dupla vertente botânica e utilitária. Em «Manifestação popular» e «O Tango» é a história da Argentina e as suas manifestações artísticas e populares. Não poderiam ser então esquecidos Eva Perón, o tango, a voz de Gardel «sonhando outro cais para o trilo da flauta o timbre do violino/ a harmonia do bandonéon».

No conjunto da obra de um escritor há duas atitudes possíveis, à medida que o seu trabalho avança e sempre que é lançado um novo livro. Havendo outros que o precedem, já está criado o «horizonte de expetativa» do leitor, como escreveu Hans Robert Jauss. Isso acontece quando, inserido numa determinada corrente ou movimento literário, ele derroga a prática que vinha sendo cultivada para se lançar em novas formas que normalmente provocam estranheza, às vezes mesmo escândalo, na receção, como se vê em certas estéticas de vanguarda. Acontece também quando, em atitude autocrítica, o escritor se afasta de práticas literárias anteriores e se reconhece distanciado delas, esclarecendo muitas vezes em prefácio de novas edições a posição justificadamente assumida no presente.
Não é, porém, esse o caso do poeta Virgílio Vieira, que se mantém fiel às linhas anteriormente traçadas, num percurso artístico que é de continuidade. Notamos, assim, o seguimento (ampliado) de uma forma de poetar consolidada nas coletâneas já publicadas. Sobressai, de forma muito nítida, aquilo que o autor referiu a propósito da respetiva poesia, em que declara a atração pela «beleza da natureza», na sua dupla faceta: a física e a emocional. Uma forma, assim, afirma, de «fugir um pouco destas guerras». Não poderia ser mais adequado, no tempo presente, este desabafo.
Da natureza o poeta fica-se sobretudo pela visão idealizada do locus amœnus e de um olhar extasiado sobre a beleza do mundo, como em «Campo de estrelas», relativo a uma noite estrelada nas Furnas. Uma ou outra vez o livro é enriquecido com notas, seja de teor histórico seja científico, sobre o assunto do poema. Biologia e Botânica, pela formação do autor, têm aqui, justificadamente, lugar,
Este conceito de poesia como sublimação do experienciado no mundo empírico, como desejo de paz e como inebriamento ante a beleza do mundo e a beleza da arte que nele se cria está implícito no trabalho poético de Virgílio Vieira. Acrescentese a isto a memória dos lugares, uma tendência recorrente no autor e mediante dois processos que no-lo recordam: seja incluindo-os nos títulos («Manhã em Cork», «Por dentro de Málaga», «Porto», «Um olhar de Veneza») ou assinalando-os nas datas que sinalizam (de forma mais ou menos fiel) a composição de cada um deles. Muitos reportam-se ao estrangeiro, para onde terá viajado e que, com o olhar de viajante curioso e muitas vezes extasiado, regista, com a sua criatividade de poeta, o que viu, o que sentiu, o que a memória fixou, o que a imaginação reconfigurou, outros a espaços geográficos portugueses que chamam por ele. Como a Montanha do Pico, vista do Alto da Bonança, em Santa Luzia, num dia de verão, centro de um poema que remete, de forma muito impressiva, para o «cais do abraço» que ilumina todo o conjunto. Cada novo livro de Virgílio constitui, portanto, menos um novo rumo do que o aprofundamento de quem já escolheu o seu caminho e nele deseja permanecer.
Não ousaria classificar estes poemas de ecfrásticos, tal é a tendência descritiva, às vezes descritivo-narrativa, que os estrutura, a menos que se tome a écfrase no sentido mais lato que às vezes lhe é aplicado, como sinónimo de descrição. Atrevo-me a assinalar, no entanto, uma tendência ecfrástica, sobretudo quando é olhada a paisagem já como obra de arte metaforicamente representada em tela. É assim Veneza, poema muito significativo deste ponto de vista, como se a paisagem natural já fosse obra de arte que se oferece à representação, que é recriação, em diversos suportes artísticos: desenho, pintura, escultura, literatura. É «uma tela em branco, vazia, /os pincéis de tamanhos vários, / as tintas variando nas tonalidades de luz» assim começa o poema , esperando «para renascer na tela com a grandeza / que cada olhar lhes destina». janela com vista para a vida» (título de um poema deste livro). Como poeta e como pessoa que vive a poesia, pode resumir-se o seu labor poético nestes dois versos extraídos de «Montanha do Pico»: «Experimento o mistério da humanidade / que tem raízes na emoção, na ciência e na arte».
Confiante no conhecimento do leitor para descodificar informação não explícita, mas relevante, Virgílio confia-lhe então a tarefa de ativar com a sua experiência e/ou a sua cultura a memória de datas, acontecimentos históricos, figuras, e assim completar os sentidos prometidos pelos versos. A realidade que eles evocam, sendo a mesma na origem e na presentificação que o poema traz, chega com a transfiguração que a poesia lírica, em particular, e a arte, em geral, permitem. Por este expediente converte, por exemplo, em serenidade, sem mais considerações, o que no passado trazia a marca da disforia, porque essa é uma forma de atenuar, apesar de não as apagar, as antigas feridas. «Quietude», escrito na Bósnia, é talvez o melhor exemplo, porquanto omite a violência da guerra e deixa visível apenas o que, decorridas duas décadas, avista de Mostar: «A velha ponte reerguida a testemunhar / que já não ecoam os gritos do canhão».
O espaço poético de Virgílio Vieira é, na sua qualidade de bom observador, «uma
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