Carla Ferreira Médica Psicóloga na Clínica de Olhalvas e Policlínica da Benedita
Serenar após o Covid Vivemos por estes anos uma provação intensa. Naturalmente e dada a natureza humana, necessitamos de a compreender, de a explicar, de encontrar origens e direcções, e mais do que tudo, descobrir soluções que nos devolvam a normalidade do quotidiano, do nosso quotidiano. Têm surgido inúmeras justificações e análises, mais cientificas, mais banais, mais dogmáticas. Os mais crentes, por exemplo, podem encontrar a segurança da salvação no paralelo com as pragas bíblicas, os mais cépticos, concluem a circunstância casual de um golpe de azar, os mais especulativos, encontrarão por certo uma teoria da conspiração, erguida a rigor num laboratório clandestino, subordinado ao poder do mal. Seja qual for a vertente em que se encontra, o certo é que a senda se afigura longa, persistente, como que a querer confrontar a humanidade com a sua própria pequenez, perante o poder da natureza e a ausência de respostas. O nosso mote, como em qualquer adversidade sentida pela espécie humana, é a luta e a vontade de vencer, porém a
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mecânica não é a nossa melhor faculdade, pelo contrário. Somos seres vagamente metódicos, pouco programáveis, somos mutantes, voláteis, sobrevivemos indexados ao ambiente num estilo inesperado, quase impossível de prever. E perante adversidades maiores, formatamos o método imperfeito e procuramos o ajuste mais perfeito para nós próprios, na consciência de que os caminhos se subjugam ao imprevisível. Paradoxalmente, é contra esta imprevisibilidade que lutamos desde que nascemos. Mesmo os mais corajosos, mesmo os que voam mais alto e arriscam quedas soltas, esperam ao final do dia a recompensa da zona de confronto, da voz que lhes embala o berço, do cheiro que permite repousar em sossego: ninguém existe em segurança sem rotina. Esta era, acabou por desafiar os nossos passos. Àqueles que são caminhantes vencedores, aos que no dia-a-dia procuram o encontro, aos frágeis, aos fortes, aos hesitantes e aos certeiros. Desafiou as escolhas, os planos, as festas de família e as
reuniões de amigos, os momentos de partilha e, importantíssimo, desafiou a capacidade de nos encontrarmos com o nosso eu. O nosso eu mais puro, mais verdadeiro, aquele que tantas vezes escondemos na correria das horas e que usualmente desconsideramos porque nos afronta, nos confronta com a nossa realidade mais inconsciente, nos transporta para o que não queremos olhar, não queremos sentir, não gostamos de encontrar. Mas é exactamente aqui, que poderemos dar início à recuperação mais desafiante da história global presente. O tempo com que a generalidade das pessoas passou consigo própria, é superior ao anteriormente conhecido. Por certo neste caminho de ausências, limitações e provações, todos encontraram impaciências, medos, ansiedades, zangas e tristezas, desesperos e desmotivações, os opostos à busca da felicidade. Mas também todos descobrimos recursos que nos salvaram do estado mais negativo, que provavelmente se encontravam escondidos nas malhas despercebidas do nosso interior.











