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Mordechai Geldman: o poeta israelense do desassossego
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André Sena
Conheci a poesia de Mordechai Geldman há muitos anos na então Mediateca da Maison de France, no Rio de Janeiro. Além do seu acervo possuir um excelente documentário sobre o escritor vanguardista David Shahar, autor de Le Palais des vases Brisés (O Palácio dos Vasos Quebrados), uma das sagas mais geniais da literatura prosaica israelense, eu havia acabado de ler um artigo sobre literatura israelense no site do Ministério das Relações Exteriores de Israel, onde a promessa de uma poesia sabra absolutamente ativa e pujante aparecia de forma evidente para mim. Poucos dias depois recebia de um amigo um exemplar em francês de uma obra genial do poeta Israel Eliraz, com poemas seus comentando a obra do gênio do romantismo alemão Friedrich Hölderlin.
Os versos de Eliraz abriram minha caixa de Pandora no que se refere à poesia contemporânea em Israel, da qual então eu conhecia apenas Yehuda Amichai, recentemente traduzida por Moacir Amâncio. À época, encontrava-me igualmente envolvido com a poesia contemporânea árabe, sobre a qual falei em uma biblioteca do Rio de Janeiro, especialmente abordando autores como Abdel Latif Laabi, Mahmoud Hmoundane, e poetas palestinos como Fadwa Tulqan (de quem o general Moshe Dayan era um ávido leitor) e Nathalie Handal, que atualmente vive nos Estados Unidos.
Mordechai Geldman, um dos mais celebrados poetas israelenses, dentro e fora de Israel, apareceu pela primeira vez diante dos meus olhos no pequeno fragmento de um grande poema intitulado “Bomba”, que abordava, no iní-
cio da década de 1990, a questão dos atentados em Israel. A concretude do poema me impressionou pela combinação delicada entre versos que descreviam aridamente a explosão de um terrorista suicida próximo a um prédio residencial em uma cidade israelense qualquer e o humanismo dos versos que evocavam o verão israelense e a singeleza de uma criança, vítima do terror.
Ao ler “Bomba”, minha busca por Geldman se tornou diária e meu envolvimento com a poesia árabe e com outros poetas israelenses foi aos poucos dando lugar a uma obsessão, qual seja, a de conhecer cada vez mais os escritos e a biografia deste vulto poético que se revelava crescentemente mais íntimo e intrigante, na medida em que sua obra é absolutamente marcada por três forças de investigação e de criação, que imprimem nos seus versos imagens de um colorido e de uma força peculiar: o Teatro, a Literatura e a Psicanálise.
Difícil mensurar em que medida ter nascido dentro de um campo de sobreviventes do Holocausto, instalado na cidade de Munique em 1946, pode ter algum significado mais potente no futuro autor de poemas como Linha e A Tua Beleza, ou de obras como O Shakespeare Psicanalítico, coletânea de poemas mais recentes, dentre os quais o formidável poema Livro, todos textos que carecem ainda de boas traduções para o português brasileiro. Arrisco que não se pode criar uma linha direta entre esse dado biográfico de Geldman e a sua caleidoscópica trajetória como autor, que crescerá e se educará em Israel (para onde se muda com a família com apenas três anos de idade), especialmente no sofisticado ambiente intelectual de Tel Aviv.
Como explicar por exemplo sua paixão declarada pelo gênio português Fernando Pessoa? Mordechai Geldman é um dos grandes hermeneutas de nosso tempo da opera pessoana, especialmente do desafiador Livro do Desassossego, criado por Pessoa na figura de um de seus heterônimos, Bernardo Soares. O poeta israelense do qual estamos falando talvez tenha captado como poucos os elementos centrais desta obra de Pessoa, que provoca no leitor a vontade de captar as angústias da realidade a partir dos afetos da consciência, apreendendo o real de forma sensível, mas sem recorrer à tentação de qualquer tipo de idealização do cotidiano.
Geldman projetará suas percepções acerca da obra de Pessoa em um interessante trabalho que irá desenvolver
com uma companhia de teatro árabe-is- Nossa trajetória nesse uma mensagem poética dotada de uma raelense, que promove suas atividades nos mundo assemelha-se à força dialética evidente: nossa trajetória arredores de Tel Aviv, chamada Yaffo21. Com o título provocador Autobiografia de composição de um poema, nesse mundo assemelha-se à composição de um poema, como dirá Geldman nos um homem que jamais existiu, Geldman como dirá Geldman nos versos seguintes, onde afirma que poemas introduz a obra de Fernando Pessoa em versos seguintes, onde são “pontos iniciais em busca de pontos fiIsrael com um recorte estético em torno afirma que poemas são nais”, em um jogo de espelhos apontanda música e da performance dramática. Essa não será a única obra teatral da qual será curador ou criador. As publicações da “pontos iniciais em busca de pontos finais”, do para a vida como uma conversa entre origem e finitude. Linha é um poema relativamente curpoesia de Geldman em Portugal e o inte- em um jogo de espelhos to, mas que pode ser ilustrado pela ideia resse do público português por sua poesia apontando para a vida banalizada de que os melhores perfumes se devem a essa leitura crítica e tradução como uma conversa se encontram em frascos pequenos. Seria para o público israelense da reflexão literária pessoana. entre origem e finitude. a vida humana uma linha tremulante entre dois pontos?, interroga Geldman? Ou, tração, na busca das fronteiras geométricas do exercício fim da linha? / o que há na própria linha?” pergunta Geldmais ao final do poema, um simples moLinha: entre os extremos e a chuva das palavras vimento ascendente de letras?, apelando aqui para a nossa
Em uma interessante coletânea de poemas de Geldman lar mensagens, estabelecer laços de comunicação e produchamada Years I walked at your side (Anos em que cami- zir com isso famílias, grupos mais complexos, povos e cinhei ao teu lado) podemos encontrar um de seus mais no- vilizações? tórios escritos: o poema Linha, criado em 1993, no qual o Não há dúvidas de que em Linha nosso poeta está intepoeta nos propõe uma espécie de ontologia da escrita, es- ressado em investigar as fronteiras do discurso como uma peculando sobre a natureza do poema/poesia, suas dimen- das mais belas e poderosas atividades humanas: a linha desões e limites tanto de criação como de alcance, além de senhada é, como a linguagem e os discursos, uma criação uma transposição entre o poema e a própria vida. humana, mas sua condição geometricamente infinita esca-
Em seus versos iniciais, Geldman nos propõe analisar pa das mãos do próprio homem. Como a vida, segundo os e refletir sobre os diversos aspectos em torno do traçado místicos e os poetas. Multifacetado, Mordechai Geldman de uma simples linha reta. Em Linha, o autor nos recruta se revela inteiramente diverso em outro poema seu sobre (mais do que simplesmente convida) ao exercício da abs- o qual refletiremos mais adiante. gráfico, mas também da produção de sentidos: “qual é o Bomba: entre o descritivo, a superação e a redenção extraordinária capacidade de produzir linguagem e emuman, provocando o leitor em uma espécie de indagação A obra Poets on the Edge: An Anthology of Contemporary orientada ao absurdo. Hebrew Poetry, organizada por Tsipi Keller em 2008, nos apresenta um Mordechai Geldman inteiramente diferente
E o que há na própria linha? do que vimos em Linha. O poeta nos apresenta um texto
Uma estrada montanhosa, um túnel escuro mordaz, marcadamente político e atualizado no duro chão
A artéria de um polvo ou uma amostra de tinta? do cotidiano israelense. Como sugeriu o intelectual Ilan Greilsammer em Repensando Israel, nenhum Estado nacio-
A metaforização da experiência existencial humana na nal teve sua existência mais questionada em todo o século expressão geométrica de uma linha reta implica na percep- XX do que Israel, e o poema Bomba, de meados da décação dos limites desta mesma experiência (ou de sua con- da de 1990, confirma esse argumento. dição ilimitada), na medida em que linhas vão ao infini- Bomba expressa um texto dramático, porque a conto e são desprovidas de uma origem localizada. Há aqui cretude israelense é dramática; compreendendo-se aqui a

2 poemas de Mordechai Geldman
Bomba
De súbito, sem qualquer aviso ou toque de sirenes ouviu-se um longo e perfurante assobio e ao término do assobio, uma bomba que caiu sobre o meu prédio num estrondo ensurdecedor criando um vazio geral no lugar onde só tinham apartamentos. Quando o silêncio desceu e a poeira baixou dei por mim que eu já não tinha nem família nem posses, um relógio Seiko descansava no meu pulso, na minha carteira: um cartão de crédito e as roupas leves que eu vestia combinavam com o verão que então começava no país. Comecei a procurar um pouco pelas ruínas encontrei algumas fotografias do filho do vizinho, jogador de basquete, uma calcinha estampada de morangos de alguma menina, um álbum de música lírica, pratos empoeirados e um cachorrinho esmagado que mais parecia uma meia, e pelas lágrimas que enchiam meus olhos eu pude ver que toda a cidade era um amontoado de pedras. triste embora ágil, me afastei em busca de um terreno baldio e disse: chegou a hora da terra. melhor sentar em algum campo, escutar o vento, o vento que sopra dos quatro cantos sem muros que o bloqueiem. o campo que conversa com o sussurro do vento, dando de presente ao andarilho um coração, um lugar. e nas noites azuis e estreladas você dormirá deitado em bosques murmurantes. e nas profundezas dos teus sonhos você se perguntará se foi lógico ou eticamente justificável aquele artefato que você acionou e que detonou uma explosão tão destrutiva.

(An anthology of Contemporary Hebrew Poetry. Suny Press, 2012. Traduzido “artesanalmente” pelo autor do artigo.)
Linha
Desenhei uma linha Qual é o fim da linha? Uma casa, um inseto ou uma mão negra? E o que há na própria linha? Uma estrada montanhosa, um túnel escuro A artéria de um polvo ou uma amostra de tinta? E talvez o poema seja O ponto inicial em busca do ponto final? Uma linha tremulante entre dois pontos? Ou letras que sobem e ao subir contornam a profunda descida do poema?
(Years I walked at your side: selected poems. Excelcior Editions, 2018. Traduzido “artesanalmente” pelo autor do artigo.)
ideia de drama como algo que engendra necessariamente caminhos de superação, diferentemente do gênero trágico; na tragédia há necessariamente a presença do insolúvel, do imutável, o que não ocupa lugar na poesia de Geldman. Embora Bomba seja uma espécie de poema-denúncia, composto em meio a uma série de atentados suicidas dos quais importantes metrópoles israelenses foram alvo no período posterior à primeira Intifada, há um componente de redenção inexorável em Geldman que aponta para a necessidade de encararmos a mais cruel das realidades com certo lirismo, contudo um lirismo desprovido de qualquer vestígio fatalista diante da vida.
Crueldade e redenção (resolução) encontram-se dialogicamente presentes no poema Bomba, que, como o título sugere, descreve de forma bem realista (nos seus primeiros blocos de versos) um atentado terrorista dentro de um conjunto residencial de uma cidade qualquer em Israel. O tema da exposição da população civil israelense à violência e ao terror, resultados do radicalismo político, são o fio condutor deste poema em seus versos iniciais, justamente os que me cativaram anos atrás e me levaram à leitura da obra deste gigante da poyesis hebraica de nossos tempos.
De súbito, sem qualquer aviso ou toque de sirenes ouviu-se um longo e perfurante assobio e ao término do assobio uma bomba que explodiu em meu prédio num estrondo ensurdecedor criando um vazio geral no lugar onde só tinham apartamentos
A oposição entre o vazio geral e a situação anterior, onde o espaço era preenchido por pessoas em suas tarefas domésticas e cotidianas, é gritante. Apesar da concretude dos versos há aí uma certa busca por uma imagem narrativa quase surreal. Basta recorrer a qualquer vídeo na internet que retrate um atentado suicida que saberemos de imediato que o que se sucede a uma explosão não é o vazio: há sangue, pedaços de corpos, destroços; nada mais distante da ideia de um vazio geral, como sugere o poema. A imagem da vacuidade integral utilizada por Geldman em Bomba poderá aqui apontar para a ideia de ani-

quilação absoluta do ser, a pior das mortes, como sugeriria Melanie Klein: a morte simbólica, mais truculenta do que o desaparecimento meramente físico.
Imagens como estas surgirão em poemas posteriores de Mordechai Geldman, como os publicados na obra Teoria do Um, editada em Portugal há alguns anos. Entretanto, o poema Bomba merece ainda mais um comentário. Poema-denúncia, como dito anteriormente, mas também poema-surpresa. Geldman nos revela na segunda metade do poema um personagem oculto, do sexo masculino, que, diante do vazio geral causado pela explosão, busca refúgio do outro lado da rua, à sombra de uma árvore em meio ao calor do verão israelense. O personagem se confunde a princípio com o próprio narrador do poema, mas de súbito aparece descolando-se na cena poética, em justaposição ao primeiro, estabelecendo um intrigante diálogo entre os dois.
Triste embora ágil Me afastei em busca de um terreno baldio (...) você se perguntará se foi lógico ou eticamente justificável aquele artefato que você acionou e que detonou uma explosão tão destrutiva.
Os versos acima não são contínuos, mas estão relativamente próximos na estrutura de Bomba. Curiosamente o primeiro dístico nos sugere que é o próprio narrador do poema quem fala sobre si mesmo, descrevendo uma reação sua diante do ocorrido. Contudo, sem qualquer aviso prévio, Geldman nos confronta logo em seguida com a própria figura do terrorista; já não é mais de si mesmo que se tratam os versos, mas de um outro a quem o narrador admoesta e exorta à admissão da culpa e a um exame de consciência. Bomba se encerra nos revelando o próprio perpetrador do atentado, ao mesmo tempo em que aposta na lógica e na ética como mecanismos redentores, ainda que o pior já tenha acontecido: mais característico do sein israelense, impossível.
As imagens que atravessam o poema buscam dar o ritmo necessário que nos conduz ao assassino, desde o início, mesmo que pareçam banais demais em uma cena de explosão e morte tão violenta. Algumas merecem especial atenção, e demonstram o apreço que Geldman alimenta por elementos cênicos (o que confirma sua paixão pelo Teatro e pela dramaturgia): um relógio Seiko, uma calcinha com moranguinhos estampados, um álbum de fotografias de família e uma carteira com cartões de crédito são alguns desses elementos cênicos presentes no poema que compõem o vazio geral pós-atentado. A indignação que o poema provoca aumenta quando constatamos a presença de objetos que nos lembram o que até então era vivo/vida. E é precisamente essa descrição árida que nos guia até o final do poema, quando a figura do terrorista nos é revelada com a mesma concretude sensível. Bomba não é apenas um soco no nosso estômago enquanto leitores; é uma apresentação que nos localiza entre a perplexidade e uma pletora de perguntas.
A Biblioteca Nacional durante muitos anos produziu e disponibilizou ao público brasileiro uma das mais importantes revistas sobre poesia do país: Poesia Sempre. Criada em 1993, a revista nos brindava com ensaios, dossiês, entrevistas, artigos sobre artes plásticas e naturalmente amplo e farto material poético. Um de seus fascículos, publicado em 1997, dedica-se exclusivamente a poetas israelenses contemporâneos, com belíssimas traduções de uma das mais dedicadas tradutoras hebraístas brasileiras, a professora Nancy Rozenchan, da Universidade de São Paulo.
Infelizmente Mordechai Geldman não figura entre os poetas contemplados naquele volume de Poesia Sempre, o que nos coloca a desafiadora tarefa de apresentá-lo o quanto antes ao público brasileiro. Recentemente dei um curso sobre Geldman, a convite de uma instituição cultural judaica no Rio de Janeiro, com uma resposta efetivamente positiva por parte do público. O que pode significar que a universalidade poética deste autor, que o fez navegar pelos mares de Fernando Pessoa, que se confirma pela sua interdisciplinaridade lírica entre o Teatro, a Música, a Psicanálise e a Literatura, poderá ser na verdade uma sofisticada contribuição para a cena cultural em nosso país.
André Sena é Doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro desde 2009 e Professor de Relações Internacionais.
Referências
Geldman, Mordechai. Years I walked at your side: selected poems. Excelcior Editions, 2018. Keller, Tsipi (org.) Poets on the Edge: An Anthology of Contemporary Hebrew Poetry. SUNY Press, 2012. Greilsammer, Ilan. Repenser Israël. Ed. Autrement, 1993. Klein, Melanie. Inveja e Gratidão. Um estudo das fontes do inconsciente. Imago, 1974. Poesia Sempre. Ano 5. n. 8. Rio de Janeiro, 1997.