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Cercas de confiança

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Em Poucas Palavras

Em Poucas Palavras

Rabino Sérgio R. Margulies

Salomão Ibn Gabirol, poeta judeu que viveu na Espanha no século 11, conta: Perguntaram a Sócrates: “´Por que nós não vemos em você até mesmo a menor das apreensões?” Ele respondeu: “Porque eu nunca reivindiquei a propriedade de qualquer coisa que me entristecesse se eu perdesse”. E completou: “Tudo requer uma cerca”. E ele foi indagado: “O que é uma cerca?” E Sócrates respondeu: “Confiança”. Bem, o questionamento continuou: “O que é uma cerca de confiança?” “Uma cerca de confiança”, explicou, “é não temer nada”. ... O que significa aceitar as experiências tal como vêm e vão.

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Confiança: essencial para a construção de uma vida saudável constituída por vínculos de convívio e para que sejamos genuinamente humanos sem devorar uns aos outros. Confiança é um valor crucial para que o amor floresça e o trabalho frutifique. A confiança é gradativa e constantemente construída. Pode ser comparada a um ato de tecelagem. Fio após fio sendo costurado para que o tecido da vida seja criado. Por outro lado, é facilmente minada pela hipocrisia que camufla os interesses das agendas ocultas. Assim, tal como um tecido desfia a confiança, também pode desmantelar desintegrando o caráter humano. Neste caso, a ética – sustentáculo da confiança – torna-se apenas um discurso que apazigua a consciência dos incautos sendo utilizado para encobrir a prática maliciosa dos que enganam sem pudor.

Reconhecer as cercas relevantes da vida é um ato de apreciação de quem olha e admira o que está à sua disposição, como os recursos materiais, o conhecimento e a espiritualidade.

E no início era a cerca... Confiança é o convívio mos a imagem e semelhança divina. Uma fundamentado por imagem não estética, não de forma, e sim Um neném é colocado em seu berço, que tem cerca. É um ato de proteção. Ouvalores éticos comuns de constituição do que somos. Este potencial de confiança própria é tras cercas – não necessariamente visíveis que permitem o abalado pela autodesqualificação que nos – são erguidas para que sejam reconhe- enriquecimento através apequena diante de nós mesmos. A autocidos os limites do que se pode e do que da preservação das desqualificação instiga a insegurança innão se deve. São erguidas através das regras de convivência, dos valores que balizam a realização dos projetos, da ética e múltiplas singularidades. Isto é comunidade. terna que indaga como nos contos de fadas diante do espelho: ‘Há alguém mais belo do que eu?’ O medo da inferioridadecência moral. Neste sentido, as cercas de alavanca a perversidade que cria as maque limitam são simultaneamente ampliadoras da capaci- çãs envenenadas para aniquilar as ameaças que julgamos dade de estar com o outro, de constituir família, ter ami- serem externas, mas que na verdade residem dentro de gos e de se engajar em produtivos processos de criação. A nós. O veneno está dissimulado nas abordagens e narraticerca limita a ganância e potencializa a ambição de reali- vas que prometem confiança e entregam o ódio potencialzar, protege a reputação e contém a voracidade destruido- mente assassino. ra. A cerca é como um caminho: abre estradas que são pa- Ensina a mensagem do filósofo que a cerca da confianvimentadas pelo respeito e pela dignidade colocando gra- ça é uma cerca de ‘não temor’. Este ‘não temor’ evita que des protetoras para evitar as quedas no penhasco do des- o possível medo interno seja transferido ao outro a fim de respeito e da indignidade. que não seja destilado o ódio através do veneno disfarça-

Reconhecer as cercas relevantes da vida é um ato de damente entregue pela maçã. apreciação de quem olha e admira o que está à sua disposição, como os recursos materiais, o conhecimento e a es- O complemento do lembrete piritualidade. A apreciação é completada pelo reconhecimento de quem está à disposição, estendendo a mão, pro- A mensagem de alerta ‘do pó vieste e ao pó retornavendo apoio, incentivando, escutando e aconselhando, ca- rás’ expressa a consciência da vulnerabilidade e intenciominhando junto, e mesmo quando estiver longe se fará na frear a pretensão de sermos proprietários do mundo. A presente. Então, se é tão saudável, por que a cerca da con- pretensa soberania anula a confiança e transforma os oufiança é quebrada? Por que – como Martin Buber (1878- tros em vassalos por meio de conturbados interesses de 1965) nos permite questionar – as conversas genuínas fun- subserviência. damentadas na confiança dão lugar a diálogos que ocul- Lembrar que ‘do pó vieste e ao pó retornarás’ ajuda, tam mensagens, escondem intenções e mascaram propó- como se conclui do ensinamento do filósofo, a aceitar o sitos ocultos? Por que as vigas da confiança – bases do de- que a vida traz e leva. Isto reforça o senso de realidade, senvolvimento e do crescimento – são substituídas pela crucial na condução da vida e na capacidade de fazer face corrosiva suspeita? Estas perguntas convidam a lembrar os às inesperadas circunstâncias. Isto impede o processo de propósitos da vida. autovitimização para então, com confiança, afinar os insO lembrete quando tudo mais parece desafinar.

Um ensinamento da tradição judaica sugere que o ser humano deve carregar num bolso um papel escrito ‘o mundo foi criado para mim’ e, no outro bolso, um papel escrito ‘vim do pó e ao pó retornarei’. Afirmar que ‘o mundo foi criado para mim’ exprime confiança para com o que somos. Este é o conceito bíblico de betselem Elohim, sertrumentos a fim de que encontrem uma nova harmonia

Comunidades e tribalismo

Confiança é uma parceria. Ninguém detém o todo. Não almeje, menciona o filósofo, a parte que não te pertence a fim de que não haja lástima se perdida for. Confiança é o convívio fundamentado por valores éticos co-

muns que permitem o enriquecimento através da preservação das múltiplas singularidades. Isto é comunidade.

Num mundo marcado pela polarização, comunidades são espaços amplos de acolhimento e integração. São espaços que valorizam a diversidade que germina o crescimento e fermenta o aprendizado por meio da troca com o diferente, convidando a criatividade na busca de soluções. São espaços que permitem o encontro consigo próprio através do encontro sem temor com outro.

Em contrapartida, as estruturas de convivência que adotam o tribalismo, tolhem. Nelas, a pertinência é determinada pela submissão à ideia imposta. A insubmissão leva à condição de pária ou a exclusão. Sejam grandes ou pequenos grupos, sofisticados ou simples sistemas, a mensagem manipulativa é direta: ‘O mundo foi criado para mim e no meu mundo você se enquadra. Se não se enquadrar, dele sai’. Uma vez que, neste processo de tribalismo polarizado, não há o reconhecimento de outro mundo, pois todos os demais são ditos como ilegítimos, não submeter-se pode ser fatal. Daí a urgência de prevenir a proliferação de grupos de exclusão, como as seitas.

Seitas

A seita manipula e anula o indivíduo, amoldando-o à sua estrutura. Para atingir este intento se aproveita da vulnerabilidade (‘do pó vieste e ao pó retornarás’) e promete a salvação através da proteção que a seita diz prover.

A promessa de salvação e de proteção – mesmo que ilusórias e manipuladas – faz com que a seita exerça atração. A sedução inicial é acompanhada da destruição das estruturas psíquicas dos indivíduos para então serem reconstruídas por novos modelos incutidos. A seita não é o espaço da expressão da identidade. Ao contrário, anula a identidade e a substitui pela dependência. Enquanto a identidade pavimenta um caminho de escolhas responsáveis, a dependência esmaga a capacidade de decisão e impõe a obediência.

Enquanto uma comunidade é construída através da pertinência, o membro da seita é um adepto. A comunidade fomenta o aprendizado e a seita, a aceitação. Na comunidade o amor – sem temor, como diz o filósofo – é a veia vital, na seita, o terror é o motor. Na comunidade o líder ensina e propõe questionamentos para que a au-

tonomia de cada pessoa seja fortalecida. A seita manipula e anula o No medo exasperante ficamos tão Na seita, o guru professa a liberdade, mas indivíduo, amoldando-o à preocupados com nossa própria ansieaprisiona a mente (quando não o próprio corpo é ameaçadoramente destituído da sua estrutura. Para atingir dade e ambição que não percebemos o quanto o valor da confiança, sustentáculiberdade de ir e vir). A comunidade pro- este intento se aproveita lo da vida, está solapando. Cada um – navê raiz, a seita desenraiza. A comunidade da vulnerabilidade (‘do pó ção, grupo ou indivíduo – tomado pela cria vínculos, a seita os rompe. O líder da vieste e ao pó retornarás’) ansiedade de perder o que não lhe pertencomunidade intenciona criar elos, o guru os rompe. Daí a diferença – utilizando a rima dos termos em inglês – entre felloe promete a salvação através da proteção ce é dominado pelo temor e olha somente para o seu umbigo como se o mundo tivesse sido criado somente para si (e não wship e followship. que a seita diz prover. também para todos os demais).

Fellowship é companheirismo, apoio Após o corte do cordão umbilical o e incentivo. Followship é ato de seguir. Quem questiona nutriente virá de outra fonte. Sucessivas novas fontes sepode seguir com confiança, já quem é direcionado a seguir guirão para nutrir a vida em todos os sentidos como, por sem a chance de perguntar talvez sequer saiba que não con- exemplo, alimento, afeto, segurança e realização. Estas fia e sequer perceba que (novamente com termos que ri- fontes têm como origem a confiança. Qualquer sistema mam, mas de significados distintos) deixa de ser uma pes- que nutra a vida – seja lá quem e quantos forem envolvisoa autônoma para se transformar em autômato. dos – somente tem sua sustentabilidade assegurada se housiedades e ambições que não percebem que a própria funRabino Mordechai Kaplan (1881-1983). ver confiança. As palavras contemporâneas do Dr. Daniel O umbigo Orenstein, do Instituto Technion, em Israel, ecoam o filó“As nações do mundo estão tão preocupadas com suas an- de toda sustentabilidade e resiliência”. dação da vida civilizada está sendo minada.” Sérgio R Margulies é rabino e serve na ARI – Rio de Janeiro. sofo antigo: “Confiança é um componente fundamental

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