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Marajó - Você sabia?
Íria Ferreira Chocron
Introdução
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Os processos migratórios que foram relatados em diversos estudos históricos sempre foram acompanhados de muitas questões impulsionadoras para que o deslocamento dos povos acontecesse. Os judeus carregam em sua longa e sinuosa trajetória muitos períodos marcados por perseguições e repressões, sendo movidos por questões sociais, econômicas e, principalmente, religiosas. As grandes dispersões dos judeus fizeram com que eles fossem se espalhando ao redor do mundo, disseminando a sua rica cultura e fortalecendo os seus costumes.
Dentre os lugares em que eles se instalaram, a região Amazônica e, mais especificamente, a Ilha de Marajó, teve a honra de ter recebido muitas famílias judias, que ajudaram, fortemente, no desenvolvimento econômico e cultural da região. Para entender um pouco mais sobre a chegada dos judeus na Ilha de Marajó será necessário voltar um pouco na história e compreender as passagens vividas pelos judeus, mapeando todos os trajetos que eles fizeram até a chegada ao Brasil e na região Amazônica.
A base histórica que será utilizada para criar uma sequência cronológica até alcançar o ponto desejado, a chegada e instalação das famílias judias na Ilha de Marajó, será iniciada a partir da expulsão no primeiro século da era comum dos judeus da região dos antigos reinados de Judá e Israel pelos romanos (que, na tentativa de apagar a ligação judaica com a região, a renomearam como “Syria Palaestina”), também chamada de “Segunda Diáspora judaica”. Eles foram se espalhando ao redor do mundo, formando bases entre os países da Ásia, Europa e África. Durante muito tempo, as famílias judias, que estavam se instalando nas regiões citadas, acreditavam que estariam vivendo em locais onde pudessem seguir a sua cultura e religião de forma livre, porém, em alguns locais, não era isso que acontecia.
A presença judaica na região amazônica, especificamente na Ilha de Marajó, aconteceu um pouco antes do início do ciclo da borracha. Época na qual as riquezas do local estavam sendo amplamente exploradas.
Na Espanha, por exemplo, os judeus viveram de uma forma mais “tranquila” durante 300 anos, até que a “Santa Inquisição” trouxe comportamentos repressores e intolerantes. O Rei, que tinha um grande apoio do Papa, iniciou uma jornada de perseguições aos praticantes de religiões diferentes do catolicismo, como era o caso dos judeus. Foi um longo e tortuoso período, no qual as famílias judias estavam, mais uma vez, sendo impedidas de viverem livremente a sua cultura e religião. Diante disso, muitos judeus, que não cederam às pressões e a ideologia que a “Santa Inquisição” propunha, entenderam que a única forma de serem livres era saindo dessas áreas onde a intolerância religiosa estava sendo praticada. O local escolhido por uma parcela dos judeus foi a região do Marrocos, onde viveram por um tempo e ficaram conhecidos pelo nome de “Sefaradis”, que provém do nome hebraico para Espanha, ou seja, “Sefarad”.
Marrocos, assim como outras regiões correspondentes, tinha o islamismo como religião predominante, o que foi um dos gatilhos para que os judeus, mais uma vez, sofressem perseguições e outras injustiças por estarem seguindo as suas tradições religiosas. Essas atitudes repressoras religiosas foram tendo reflexos em outras questões, como no impedimento dos judeus gozarem dos seus direitos, tornando-os marginalizados em relação ao restante dos cidadãos marroquinos. Partindo desse ponto, eles começaram a levar uma vida totalmente injusta e precária, onde muitas famílias começaram a passar fome e serem colocadas em guetos.
Concomitantemente a esses episódios de repressão e abusos, entre 1859 e 1860 Marrocos e Espanha travaram uma guerra chamada “Guerra Hispano-Marroquina”, provocada pela definição das fronteiras da cidade de Ceuta, uma possessão espanhola encravada no território do Marrocos. O governo marroquino, além de continuar com as ações de intolerância religiosa e opressão, insuflou a população contra os judeus alegando que estes apoiavam os espanhóis na guerra, o que, tendo em vista o histórico de perseguição e repressão que o país exercia sobre os judeus, era uma forma simples de esconder seus fracassos.
O Brasil, por sua vez, estava em um momento de expansão em relação à exploração das riquezas. Diante disso, houve uma abertura dos portos às nações amigas, fazendo com que os judeus começassem a ver o Brasil como uma oportunidade tanto de crescimento profissional quanto para ser um lugar onde eles poderiam ser livres para seguir a religião judaica. Devido a esses fatos e acontecimentos, as famílias judias começaram mais
uma saga de mudanças e deslocamen- Apesar das migrações do magnífico legado e dos ensinamentos tos, chegando ao Brasil e se instalando dos judeus para outros valiosos que todos deixaram na região. em locais que apresentavam, na época, grande prosperidade e liberdade. A reestados brasileiros Aben-Athar gião amazônica foi uma das regiões que após o declínio da os judeus escolheram. Por esse motivo, borracha, ainda é muito A família Aben-Athar fazia parte do ainda hoje é possível encontrar seus des- comum encontrar a grupo de judeus que mudaram um pouco cendentes e também as influências dei xadas pelos antepassados. A presença judaica na região amazô cultura judaica viva tanto nos descendentes o caminho padrão da maioria dos judeus que chegaram no Brasil. A família se estabeleceu em Gurupá. Marcos Jayme Abennica, especificamente na Ilha de Marajó, quanto nos demais -Athar era proprietário de seringais na reaconteceu um pouco antes do início do moradores da região. gião e também mantinha um comércio de ciclo da borracha. Época na qual as ri- produtos variados. Outro membro da faquezas do local estavam sendo amplamente exploradas. mília, Amadeu Aben-Athar, também marcou história em As famílias começaram a chegar ao Brasil, sendo que, Gurupá. Ele era conhecido como “Jabá”, devido ao promuitas vezes, o marido vinha primeiro, conseguia recur- duto comercializado, e era regatão, percorrendo os locais sos e então trazia a mulher e os filhos, que estavam à sua próximos da região levando suas mercadorias. espera no Marrocos ou em outra região que também esta- O filho de Jabá, Max Cardoso Aben-Athar, ao fava sofrendo algum tipo de perseguição religiosa ou opres- lar sobre seu pai, demonstra bastante o orgulho que ele são. A capital, Belém, foi considerado o ponto de entra- sente: “Meu pai foi um dos regatões que viajavam no da dos judeus, porém, muitos foram se espalhando pelas rio Amazonas”. A partir desse relato é possível sentir os cidades vizinhas, onde tinham mais opções de trabalho. grandiosos ensinamentos e tradicionalismos judeus que Por mais que Breves tenha sido a cidade na qual a maio- os antepassados deixaram para seus descendentes, dando ria se instalou, outros locais da região também foram ex- a certeza que toda a luta e perseverança valeram a pena plorados, tais como: Muaná, Melgaço, Gurupá e Portel. e ainda está viva. Apesar das migrações dos judeus para outros estados brasileiros após o declínio da borracha, ainda é muito co- Castiel mum encontrar, como já falado, a cultura judaica viva tanto nos descendentes quanto nos demais moradores da A família Castiel também fez história em Gurupá, poregião, que acabaram agregando alguns costumes dos ju- rém, antes de chegar na região, eles moravam no alto do deus aos comportamentos locais. rio Moju. A família era grande e bastante unida. Os relatos da família serão iniciados por Alegria Castiel, que era Famílias na Ilha de Marajó filha de Isaac Serfaty e Sol Serfaty. Ela é esposa de Moyses Castiel, seu primo, com quem teve 12 filhos. A ma-
As famílias e os descendentes dos judeus são a chave triarca Alegria fazia questão de manter os valores familiapara compreender ainda mais como aconteceu toda a pas- res e também as tradições judaicas, por isso era costume a sagem desde a chegada na Ilha de Marajó, passando pela família realizar reuniões para que os rituais judaicos fosbusca por trabalho e liberdade religiosa até as dificuldades sem mantidos. Eles seguiam tanto a religião e os preceiencontradas quando a extração e o comércio da borracha tos judaicos que o filho de Moyses Castiel, Miguel, aprecomeçaram a declinar. sentou em seu registro de nascimento uma emenda para
Seria grandioso poder contar a história de todas as fa- que o nome do seu filho fosse modificado para Mair. A mílias que viveram na região, porém, não é segredo que comunidade sefaradita de Belém afirmava que este nome muitos documentos e registros históricos acabam se per- não estava de acordo com os preceitos religiosos judeus, dendo conforme o tempo passa, mas as histórias das famí- pois o seu significado “Quem é como Deus?” era entenlias que serão apresentadas servirão como representações dido como um insulto aos poderes de Deus.
Devido ao seguimento fiel aos pre- Há nove meses, criei o viúvo e tinha três filhos. Logo que chegou ceitos, muitas famílias judias que mora- Projeto Marajó Sefardi em terras brasileiras, não demorou muivam na região aproveitavam as datas importantes da comunidade para se enconcom o objetivo de alargar to para que ele se casasse com Maria Ponina, uma brasileira que seguia a religião trarem com as demais famílias da região. a pesquisa para outras católica. O local que eles escolheram para A família Castiel ajudava na organização cidades do Marajó e criar iniciar a vida de casados foi a região do rio dos encontros, que eram feitos em casas um espaço dedicado à Macaco, nome esse definido pelo próprio vizinhas, pois não existia uma sinagoga. Alegria afirma em seus relatos que a vivência em Gurupá foram tempos difímemória, vivências e histórias desses judeus Abraham, que, ao chegar na região, avistou uma quantidade enorme de macacos próximos ao rio. ceis, pois foi nessa época que ela perdeu marroquinos, uma Abraham seguiu o padrão de trabalho alguns de seus filhos, além da hostilidade espécie de museu que que os judeus estabeleciam ao chegar ao das pessoas da região acerca da conduta teria sede em Breves. Brasil, criando um comércio de estivas e religiosa da família. miudezas. O patriarca fazia questão de se-
Mesmo com todas as dificuldades e guir todas as tradições judaicas, realizandesafios que eles enfrentaram, toda a família deixou um do os rituais e também não esquecendo de nenhuma data legado muito importante para a região, abrindo caminhos dentro do calendário judeu. Todos da região o chamavam e oportunidades para o desenvolvimento local, enrique- de “Velho Abraham” e o seu rigor perante as tradições jucendo a cultura. daicas era visto com muita admiração pelos moradores loMarrocos e veio para o Brasil se instalando, primeiramentina Maria da Conceição, e teve seis filhas: Ester, Sarah, cais. Ele mudou-se para Belém, onde permaneceu até a Bothebol sua morte. A sua passagem pela região foi tão forte que até
Simão Amôr Bothebol, patriarca da família, nasceu no também enaltecendo a sua devoção religiosa. te, no estado do Ceará. Casou-se com uma brasileira, Al- Athias hoje é possível encontrar pessoas contando a sua história e Simi, Lea, Alegria e Raquel. Simão, buscando manter as A história da família Athias será contada a partir de tradições judaicas e também pensando no futuro das filhas, Fortunato Athias, que nasceu em 1867, em Rabat. Seu pois queria que elas se casassem com judeus, levou toda a pai era Maluf Athias, um comerciante de especiarias, e sua família para Breves, região que estava sendo base para mui- mãe Alegria Athias. A língua materna de todos eles era o tas famílias judias. árabe. Assim como muitos relatos históricos, a história de
Em razão da grande comunidade judaica na Ilha de Fortunato Athias no Marrocos acabou ficando perdida no Marajó, Simão conseguiu que quase todas as suas filhas tempo, pois ele veio para o Brasil muito jovem, realizando se casassem com judeus, mantendo a tradição ainda mais todo o processo sozinho. Toda essa ação de deslocamento forte. Alegria Bothebol casou-se com Quintino Miranda de um país para o outro prova que ele era um jovem dese, por ele não ser judeu, ela teve uma vida repleta de priva- temido e que estava em busca da sua liberdade religiosa e ções. A história da família ainda está viva na região através também de bons caminhos profissionais. Ele chegou em dos descendentes que Simão e Altina deixaram. Belém, mas logo foi para o Macapá trabalhar em uma das firmas aviadoras da época. Ele passou por um período de Chocron muita solidão, então não demorou muito para que ele encontrasse a sua primeira mulher, com quem teve o seu pri-
Abraham Mojluf Chocron, nascido em Teutan, no meiro filho, José Athias. Marrocos, foi o patriarca da família Chocron. A sua vinda Após alguns anos, a mãe de José faleceu. Passado o pepara a América teve como país inicial a Argentina, onde ríodo de luto, ele encontrou Meriam Roffé, com quem se viveu um tempo antes de se estabelecer no Brasil. Ele era casou seguindo a tradição judaica. Fortunato já estava es-

tabelecido profissionalmente e levava uma vida estável, então ele, a esposa e o filho mudaram-se para Macapá, sendo lá o local do nascimento dos filhos que teve com Meriam. Apesar de terem passado um tempo de forma estável, os Athias tiveram alguns acontecimentos marcantes e tristes.
O primeiro foi a ruína dos negócios, pois o declínio do ciclo da borracha fez com que muitos judeus fossem à falência. Nessa época eles já estavam morando em Livramento do Ituquara, localidade conhecida por fazer parte do município de Breves, na Ilha de Marajó. O segundo acontecimento foi a triste história de seu filho Maluf, que morreu após tomar um líquido venenoso em uma das viagens que fez com o pai. Toda a família ficou arrasada com a história, mas a religião judaica serviu como força para que eles pudessem seguir em frente. Os outros filhos continuaram tomando conta do negócio do pai em Ituquara, e Fortunato e Meriam mudaram-se para Belém, onde viveram os últimos anos de suas vidas.
Sarraf
Abraham Sarraf, descendente de judeus marroquinos e sefaraditas portugueses, foi casado com Elisa Baruel. Eles tiveram seis filhos: Samuel, Simão, Júlio, Piedade, Lea e Helena. O filho Samuel, considerado o patriarca da família, foi casado com Mercedes Bentolila, jovem judia que veio do Marrocos para se casar. Antes de chegar ao Pará, na região de Belém, eles viveram uma temporada no Rio de Janeiro, devido aos trabalhos de Samuel.
No Pará, Samuel trabalhou como comerciante na região ou “regatão”. Ele era destemido e adentrava os rios, igarapés e furos da região amazônica para realizar a venda e a troca de produtos. Seu trabalho, que acontecia juntamente com o auge do ciclo da borracha, ia muito bem até que empresários locais começaram a entrar na concorrência. As casas aviadoras praticavam uma luta desigual contra o trabalho de Samuel, mas mesmo diante de tanta dificuldade, a prosperidade profissional aconteceu.
Nesse tempo, uma triste notícia pairava sobre a família, pois a matriarca Mercedes viera a falecer. Apesar das dificuldades e tristeza em relação à morte de Mercedes, a família conseguiu seguir em frente com seus trabalhos. Samuel teve um novo relacionamento, com a paraense cristã Maria Lemos, e eles tiveram um filho. Samuel estava em busca de direcionar os filhos do primeiro casamento profissionalmente, então decidiu se mudar para Breves, na Ilha de Marajó, fixando-se na região do Rio Jaburu. A família conseguiu uma propriedade chamada Paraíso do Jaburu e lá viveram por muitos anos.
Todos os filhos de Samuel seguiram a profissão do pai. A região de Breves, como já falado, possuía muitas famílias judias, e foi nesse encontro que Samuel teve um novo casamento com Sarah Bothebol, filha de Simão Amôr Bothebol. Eles tiveram cinco filhos: Fortuna, Raquel, Leonor, Estrela e Simão. Com o declínio da borracha e as mudanças que a vida proporciona, os filhos e netos foram crescendo e seguindo rumos diferentes em algumas regiões do Brasil.
Considerações finais
Todas as histórias apresentadas foram relatadas com o máximo de respeito às famílias, que tiveram papeis fundamentais na formação da cultura local, além de outras questões que envolvem o desenvolvimento social e cultural. A Ilha de Marajó e região é um ponto de importantíssimo valor para o País, então a divulgação das histórias das famílias que fizeram parte dessa construção é indispensável para que elas sejam preservadas e ganhem a atenção merecida.
O estudo da presença judaica no Marajó é fruto da vontade de conhecer nossa história e a história de nossos antepassados. Por volta de 2002, ao fazer a pós-graduação em Estudos do Imaginário Social da Amazônia, pela Universidade Federal do Pará, me deparei com a fascinante jornada dos judeus que adentraram na Ilha de Marajó no século XIX, dentre eles, meu próprio avô.
A partir de então, com este projeto de pesquisa, fui aprofundando o estudo e fazendo trabalhos escolares com meus alunos dos ensinos médio e fundamental. Há nove meses, criei o Projeto Marajó Sefardi com o objetivo de alargar a pesquisa para outras cidades do Marajó e criar um espaço dedicado a memória, vivências e histórias desses judeus marroquinos, uma espécie de museu que teria sede em Breves. Além disso, estou em fase de preparação de um livro sobre esse tema. Eu e minha equipe, formada por descendentes de judeus, fazemos palestras e apresentações on-line sobre o tema.
Íria Chocron é professora da rede pública estadual, reside em Breves-PA e pesquisa a presença judaica no Marajó há mais de 15 anos.
