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Onde estava Deus? A dignidade da vida diante da máquina da morte

ONDE ESTAVA DEUS?

A dignidade da vida diante da máquina da morte

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“Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar para defendê-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso consentimento.” (Primo Levi)

Francisco Caruso

Abarbárie dos campos de concentração nazistas ainda espera por explicação racional – caso isso seja factível. É possível que uma pessoa que tenha sido reduzida a um corpo sem cabelos, pelos, roupas, nome e fé – seja no humano, seja no divino – tenha encontrado forma moral de resistência em meio a esse martírio inominável? A história de um sobrevivente – que, à semelhança de personagem da literatura, negou-se a dar consentimento – oferece-nos possível resposta.

Advertência inicial. Não sou homem que tenha fé religiosa. No entanto, assim como o escritor italiano Primo Levi (1919-1987), declaro minha inveja por aqueles que creem, todos. Declaro, ainda, por eles, minha sincera admiração. Compartilho, por isso, o drama daqueles que, submetidos às maiores atrocidades, se viram obrigados a questionar e, eventualmente, renegar sua fé. É possível infligir ao ser humano dúvida mais atroz?

Não há afronta maior a qualquer sentido que se possa dar ao termo “humanidade” do que a indigna existência do Holocausto. Nunca conseguiremos compreendê-lo. Talvez tenha razão uma sobrevivente húngara ao dizer que apenas os mortos poderiam falar sobre ele.

Tal barbárie foi imposta ao povo judeu pelos nazistas, mestres em criar e retomar slogans cínicos como “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”) e, o pior de todos, “Gott mitt uns” (“Deus está conosco”). Que Deus compactuaria com tamanha barbárie?

Nunca na história se havia matado em escala industrial. O projeto? A famigerada Solução Final. A grande maioria dos 6 milhões de vítimas judias encontrou a morte, depois de sistemática perseguição e muito sofrimento, pelo sim-

ples fato de existirem. Idosos, mulheres e Quando seu campo foi O motivo pelo qual decidi escrever crianças. Alguns, confinados em campos liberado, Jack Fuchs estas linhas é que, nesse sentido, o dede concentração/extermínio eram obrigados a se submeterem a infindável e sádico foi atendido pela Cruz poimento do sobrevivente Jack Fuchs, nascido em Lodz (Polônia), tocou miprocesso de bestialização do ser humano. Vermelha, pele e osso. nha alma. Mesmo correndo o risco de Tudo lhes era tirado. Família, casa, per- Nesse momento da não conseguir, gostaria de tentar tradutences, sonhos, futuro, como muito bem entrevista, esboça zir em palavras esse momento e os senressalta Primo Levi, no seu clássico livro É isto um homem? (Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 39). levíssimo sorriso e recorda que, naquele timentos que em mim despertaram para poder compartilhá-los. Antes, no entanto, gostaria de repro-

Em Auschwitz, tiravam-lhes, também, exato e longínquo duzir aqui conselho que Primo Levi receos cabelos, os pelos, as roupas, a dignida- momento, disse a si beu, em Auschwitz, de outro prisioneiro, de, o nome – este trocado por número no mesmo: “Agora, eu que marcou a ele (a mim) e, de certa forbraço esquerdo. O último desafio, antes de tirar-lhes a vida, era roubar-lhes a fé, posso morrer”. ma, tem a ver com esse momento: “Sim, somos escravos, despojados de não importa se no humano ou em Deus. qualquer direito, expostos a qualquer inÉ este o último elo a ser quebrado para que os opressores júria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos possam se considerar vencedores. resta uma opção. Devemos nos esforçar para defendê-la a

Quantos seres humanos, submetidos a essa humilha- todo custo, justamente porque é a última: a opção de reção e degradação, não se perguntaram: “Onde está Deus?” cusar nosso consentimento”. E ele, em seguida, vai comMesmo não sendo judeu e não tendo fé, essa pergunta tira pletar o raciocínio dizendo que é essa recusa que pode eviminha paz de espírito desde quando a ouvi pela primei- tar que se comece a morrer: “Portanto, devemos nos lavar, ra vez. Frequentemente, a remoo. Penso no drama de pes- sim; ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o soas religiosas que tiveram que enfrentar esse trágico dile- casaco como toalha. Devemos engraxar os sapatos, não ma. Primo Levi declarou várias vezes que não há palavras porque assim reza o regulamento e, sim, por dignidade e na linguagem de cidadãos livres para descrever certas coisas alinho. Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não ou situações nos campos de extermínio. De forma análo- em homenagem à disciplina prussiana e, sim, para contiga, acredito que o conceito de Deus das pessoas livres não nuarmos vivos, para não começarmos a morrer”. comporte tamanha atrocidade. Por outro lado, em seu primeiro dia no Lager, o jovem

Sei que nunca teremos resposta capaz de elucidar e Elie, ainda sem compreender o significado de ser mandamuito menos de aplacar a dor e angústia sintetizadas nes- do para a esquerda ou para a direita, foi obrigado a seguir, sa pergunta, formulada seja em Auschwitz, seja em qual- atordoado, por caminho que o levou a passar perto de uma quer outro Lager. Inquirir sobre a existência de Deus ou fossa com enormes labaredas, nas quais bebês estavam sensobre sua omissão é ainda muito mais penoso para uma do queimados. Experimentou sentimentos de total abanpessoa religiosa, como foi o caso emblemático de Elie Wie- dono (“A humanidade não se interessa por nós”, A Noite, sel (1928-2016), escritor judeu sobrevivente dos campos p. 40) e de revolta. Revolta com relação a Deus. Por que de concentração e ganhador do Nobel da Paz de 1986. ele, que sempre foi muito religioso, deveria louvá-lo na-

A consciência de que não pode haver réplica para essa quele inferno? Aquelas chamas, das quais esteve a apenas questão e que esta continuará assombrando a humanida- dois passos, delas e do suicídio, começavam a calcinar a fé de – ou, pelo menos, assim deveria ser – não me impede em seu coração; mesmo assim, naquele exato momento, de procurar, em tudo que leio ou ouço sobre a Shoah, al- superando a revolta, conseguiu murmurar “Itgadal veitkagum indício, alguma pista que diga à minha alma que al- dash shmê rabá...” (traduzido como “Exaltado e santificaguém possa ter chegado perto de, ou arranhado, resposta, do seja o Seu grande Nome”) (A Noite, p. 41). ainda que por seus atos conscientes ou inconscientes. Isso Em outra ocasião, ao presenciar o enforcamento de me traria certo conforto ao espírito. uma criança, Wiesel ouviu atrás dele um homem pergun-

tar duas vezes: “Onde está Deus?” Na se- Com os olhos um pouco Sentado em uma poltrona, com os gunda vez, ele sentiu uma voz dentro dele vermelhos, levantando um dois braços nela apoiados, seu depoiresponder: “Onde Ele está? Ei-Lo – está aqui, na forca” (A Noite, p. 72). A esse pouco o olhar apertado mento não demostrava qualquer emoção. Olhos pequenos, quase fechados, voz graponto ele confessa a morte do espírito: para o alto e para o lado, ve, fala pausada. Expressava-se mais com “Não me interessava por mais nada se questiona sobre por as mãos do que com palavras. Suas mãos além do meu prato de sopa diário, do que então não disse: se tocavam e se separavam; seus dedos se meu pedaço de pão seco. O pão, a sopa... eram toda a minha vida. Eu era um cor“Agora, posso viver!” entrelaçavam e, em alguns momentos, adquirindo mais vida, se movimentavam po. Talvez menos ainda: um estômago fa- mais firmemente, quase como se Fuchs minto”. (A Noite, p. 60). estivesse recorrendo a uma memória motora em sua narraDistribuído em DVD pela Universal (1995), o filme tiva. Ele conta que passou quatro anos no Gueto de Lodz “Rompendo o Silêncio” (Broken Silence) – apresentado e foi um dos últimos a serem deportados. Todo seu esforpelo diretor norte-americano Steven Spielberg e pela Sur- ço se concentrava em ficar junto da família e de amigos e viviors of the Shoah Visual History Foundation – nos traz não ser deportado. Esse era seu maior medo, não a morte. cinco filmes, de cinco países, com cinco visões. O primei- Quando seu campo foi liberado, Fuchs foi atendido ro deles – “Algunos que vivieron”, do diretor argentino pela Cruz Vermelha, pele e osso. Depois de ter sido barbeaLuis Puenzo – apresenta entrevistas com sobreviventes do do, ter seus cabelos cortados e passado por desinfestação, Holocausto. Entre elas, uma me chamou particularmen- ganhou pijamas e, pela primeira vez, poderia dormir em te a atenção, pois lançou luz sobre a pergunta “Onde Ele uma cama. Nesse momento da entrevista, esboça levíssimo está?”: a de Jack Fuchs (1924-2017), como já adiantei. sorriso e recorda que, naquele exato e longínquo momen-

Monumento ao Holocausto na estação de trem de onde eram efetuadas as deportações em Lodz, Polônia.

Monumento às crianças assassinadas no Holocausto e na Segunda Guerra Mundial, em Lodz, Polônia.

to, disse a si mesmo: “Agora, eu posso morrer”. Com os olhos um pouco vermelhos, levantando um pouco o olhar apertado para o alto e para o lado, se questiona sobre por que então não disse: “Agora, posso viver!”

Ao ouvir esse testemunho, imediatamente veio-me à mente a intervenção de Deus que impediu o sacrifício de Isaac. Perguntei-me se não era essa mesma mão que tinha afastado a forca do pescoço de Jack ou qualquer outra coisa que o opressor pudesse usar para lhe tirar a vida.

Morrer, sim; mas não pela vontade de seus carrascos. Provado ao extremo, como Abraão, Fuchs optou, para usar a expressão de Levi que recordamos aqui, por se recusar a dar seu consentimento para sua morte, que lhe era constantemente imposta pelos nazistas. Sua resistência e gigantesca força de vontade em continuar vivendo acabaram recolocando sua morte nas mãos de Deus. Como homem livre, mais do que a vida, recuperou um futuro. Naturalmente, isso inclui a morte, que o levou há pouco – como há de ocorrer a todos. Ele fez o que pôde para salvar sua vida e logrou êxito. Nessa determinação, muito além do que o humano pode esperar, vejo algo de divino. Afinal, ele salvou uma vida, a sua, e, como diz o Talmude, “Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro”.

Portanto, Fuchs nos dá lição inesquecível ao dizer para si mesmo, apenas por deitar-se em uma cama – talvez, o primeiro ato banal que o fez se lembrar de sua nova condição de homem livre –, que “Agora, eu posso morrer.” Exatamente nessa frase, sem lógica e inesperada para muitos, por mais paradoxal que pareça, vejo a presença de Deus, mais do que naquela forca.

Francisco Caruso, doutor em física pela Università degli Studi di Torino (Itália). É pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Professor Associado do Instituto de Física da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do Pen Clube do Brasil e ocupa a cadeira 33 da Academia Brasileira de Filosofia.

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