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Cócegas no Raciocínio

O SACRIFÍCIO DE ITSCHAK

Vinte e cinco anos do assassinato de Itschak Rabin

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Parte deste artigo foi escrito 25 anos atrás – logo após o assassinato de Itschak Rabin em 4 de novembro de 1995 – para o órgão interno do Fundo Comunitário do Rio de Janeiro, mas, se minha memória ainda alcança 25 anos, não chegou a ser publicado. E se foi, a parte aqui repetida não perdeu a atualidade, em minha opinião. Ao contrário, ela ecoa fortemente a época de polarizações e radicalismos em que vivemos. A parte acrescentada consiste, precisamente, nesses ecos contemporâneos de uma quase [no caso de Rabin, sem o ‘quase’] tragédia bíblica que ainda nos ameaça, a menos que um anjo salvador torne a conter a consumação de tragédias perpetradas em nome de uma suposta vontade divina, ou uma suposta verdade absoluta, ou uma suposta razão econômica, racial, religiosa ou ideológica. Somos todos Itschaks.

Na Bíblia, o sacrifício de Itschak não chega a se consumar. Deus não quer sua morte como preito de fidelidade à sua suposta vontade, e, por decisão divina, no espírito divino, a fidelidade a Deus [ou a qualquer crença, ideia, ideologia ou interesse] não se expressará no sacrifí-

Paulo Geiger

cio de Itschak. Os que invocaram no passado [e alguns, ainda hoje] a vontade divina [ou crenças, ideias, ideologias ou interesses], explícita ou implícita, para justificar o assassinato de Itschak Rabin são os verdadeiros traidores do judaísmo explícito das mitsvot, e implícito dos valores éticos que elas expressam. Nos dias que antecederam o assassinato, Rabin, primeiro-ministro de Israel, por ter assinado os acordos de Oslo, era apontado pela direita e pela facção religiosa radical israelense como traidor (mosser), e cartazes com sua imagem sob o desenho de uma mira de arma de fogo, ou num uniforme nazista, eram colados e distribuídos por todo o país. Os líderes da direita nacionalista, num comício na praça Tsion, em Jerusalém, incitavam a multidão contra ele. Impossível dissociar estes fatos dos motivos que levaram Igal Amir a pô-lo sob a mira de sua arma e apertar o gatilho.

Os que admitem que atos terrroristas de judeus contra a vida humana, contra um líder e um patriota na nação judaica, contra a estrutura democrática do estado judaico e a percepção humanista do povo judeu, possam atentar contra uma atuação política legitimada por essa democracia e

esse humanismo – porque contestada por quem se arvora em intérprete de uma suposta verdade, uma suposta vontade divina (que a Bíblia afinal desmentiu) – estão admitindo também, implicitamente, que outras percepções de supostas verdades absolutas sejam motivo para compreensíveis jihads, guerras santas, ou até mesmo holocaustos.

Agora, vinte e cinco anos depois, e cada vez mais, toda ideia diferente faz de seu portador não um adversário, mas um inimigo, e os discursos de ódio proliferam com reverberações que, uma vez mais, supostamente, invocam a vontade de Deus, ou do progresso, ou da pureza racial, ou do crescimento econômico, ou da ‘justiça histórica’, ou de uma verdade religiosa única e excludente.

O fundamentalismo religioso e o radicalismo ideológico e político são irmãos gêmeos do totalitarismo [de qualquer cor] e do fascismo; se uma ideia, por pretender ser a expressão da vontade divina ou de uma verdade incontestável, se transformar na justificativa para a destruição [física ou não] de seus oponentes, voltaremos à idade das trevas e do obscurantismo.

É o contrário da visão judaica que, a partir de inequívocos mandamentos e mitsvot, construiu durante séculos um sistema aberto de interpretações para que, ao longo do tempo, o espírito vivo da vontade de ser judaica pudesse se adaptar a todas as circunstâncias e oferecer opções concretas para a sobrevivência do judaísmo.

Nossos sábios mostraram o caminho: reiterar a pergunta, sempre em busca das respostas [diferentes uma da outra] que, a cada momento e realidade, mantenham o espírito da ética e da fé judaicas. Mudar, se preciso, para ser o mesmo. E foi isso que aconteceu no decorrer da história: os suicidas de Massada e os que se submeteram aos romanos em Iavne, chassidim e mitnagdim, cabalistas, messiânicos, místicos, iluministas, os que morreram al kidush haShem e os cristãos-novos de Belmonte, Herzl e Achad Haam, sionistas e bundistas, os que se revoltaram nos guetos, os chalutsim e os fundadores de Tel Aviv, todos representam concepções diferentes de comportamento judaico, visando à integridade e à preservação do judaísmo. Este é o judaísmo. E deu certo.

O legado de Itschak Rabin, que motivou e ainda motiva grande parte dos israelenses e do povo judeu, é uma visão otimista e corajosa de um futuro de paz para a nação judaica. Futuro compatível com a essência dos valo-

Excertos do discurso de aceitação (Doutor Honoris Causa, Universidade de Jerusalém, junho 1967)

Sinto-me pleno de reverência ao estar aqui diante dos professores de nossa geração, neste antigo e magnífico lugar com vista para nossa capital eterna e os locais sagrados da história primeva de nossa nação. Eu considero que estou aqui na qualidade de representante de todas as Forças de Defesa de Israel: dos milhares de oficiais e dezenas de milhares de soldados que conquistaram para o Estado de Israel a vitória da Guerra dos Seis Dias. É oportuno perguntar o que levou a Universidade conceder a mim o grau de Doutor honorário em Filosofia; a um soldado em reconhecimento por seus serviços de guerra. O que os soldados têm a ver com o mundo acadêmico, que representa a civilização e a cultura? Qual a relação dos que estão profissionalmente ocupados com a violência com os valores espirituais? A resposta, penso eu, é que, através desta honra que vocês conferem através de mim aos soldados, vocês expressam sua apreciação ao caráter especial das Forças de Defesa de Israel, que são em si uma expressão da especificidade do povo judeu como um todo. O mundo reconhece que o Exército de Israel é diferente da maioria dos outros exércitos. Embora sua primeira tarefa, a de manter a segurança, seja de fato militar, ele também desempenha numerosas tarefas dirigidas à paz. Tarefas construtivas, e não destrutivas, que são realizadas com o objetivo de fortalecer os recursos culturais e morais da nação. Hoje, no entanto, a Universidade está nos conferindo um grau honorário não por conta dessas coisas, mas em reconhecimento à força moral e espiritual do exército, demonstrada precisamente no combate ativo. Pois estamos todos aqui neste lugar apenas em virtude do que surpreendeu o mundo. A guerra é intrinsecamente dura e cruel, e sangue e lágrimas são seus companheiros. Mas a guerra que acabamos de travar também trouxe exemplos maravilhosos de coragem e heroísmo raros, e as mais comoventes

(Continua)

Centro Itschak Rabin, em Tel Aviv.

expressões de fraternidade, camaradagem e até mesmo grandeza espiritual. Qualquer pessoa que não tenha visto uma tripulação de tanque continuar seu ataque, mesmo que seu comandante tenha sido morto e seu tanque quase destruído, que não tenha visto sapadores arriscando suas vidas para libertar companheiros feridos de um campo de minas, que não tenha testemunhado a preocupação por um piloto que caiu em território inimigo e os esforços incessantes feitos por toda a Força Aérea para resgatá-lo, não conhece o significado da devoção entre os camaradas. A nação foi exaltada e muitos choraram quando souberam da captura da Cidade Velha. Os jovens “sabras”1 , e certamente nossos soldados, não têm gosto pelo sentimentalismo e evitam qualquer demonstração pública de emoção. Neste caso, no entanto, a tensão da batalha e a ansiedade que a seguiu se juntaram à sensação de libertação, a sensação de estar no coração da história judaica, e quebraram a casca externa de dureza, despertando fontes de sentimentos e descoberta espiritual. Os paraquedistas que conquistaram o Muro encostaram-se nas pedras e choraram. Foi um ato que, em seu significado simbólico,

1 “Sabra” é o nome da fruta do cactus e é como os israelenses gostam de se definir: espinhosos por fora, mas doces por dentro. tem poucos paralelos na história das nações. Nós, do exército, não temos o hábito de falar em linguagem rebuscada, mas a revelação daquela hora no Monte do Templo, uma verdade profunda que se manifestou como se fosse um raio, superou todas as reservas habituais. Há mais para contar. A euforia da vitória apoderou-se de toda a nação. No entanto, entre os próprios soldados, um fenômeno curioso pôde ser observado. Eles não conseguiram alegrar-se de todo o coração. Seu triunfo foi marcado pela tristeza e pelo choque, e há alguns que não conseguiram se alegrar de forma alguma. Os homens na linha de frente viram com seus próprios olhos

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res judaicos, razão de ser da continuidade do povo judeu e do recriado estado nacional judaico. Rabin foi um general vitorioso, um patriota, um defensor de Israel. Sua visão de que uma paz contratual, contanto que definitiva, representava um futuro melhor para Israel, de acordo com a ética e a visão humanista judaicas, não fazia dele um traidor. Como não faz com que sejam traidores os que ainda hoje defendem a ideia de que um acordo definitivo, mesmo à custa de alguns quilômetros quadrados, é melhor para Israel e as futuras gerações de israelenses do que uma imposição de soberania em detrimento das aspirações de um povo que habita a mesma terra há treze séculos. Porém, novamente, o patriotismo que exige sacrifícios é confundido com traição, e de novo vozes de intolerância e de ódio reeditam os estigmas que levaram ao sacrifício de Itschak Rabin.

A visão pacifista de Rabin não era ingênua. Ele reconhecia os perigos, não confiava em que uma assinatura em acordos comprometeria todos os palestinos, o Irã, o Hezbolá, o Hamas, os islâmicos radicais, os antissemitas e anti-israelenses. Era general e sabia ler um mapa, o futuro mapa de dois estados, estrangulando Israel em sua faixa mais populosa. Sabia que qualquer acordo não seria o fim do conflito, mas o começo de um processo que, possivelmente, levaria ao fim do conflito. Conhecia os riscos. Mas teve a coragem dos bravos, porque o prêmio compensaria os riscos, e pagou com a vida por isso.

O legado de Rabin consiste em refletir sobre os caminhos que queremos seguir como povo, como religião, como estado judaicos. O povo judeu sempre conviveu com divergências internas quanto ao caminho a seguir, mas a direção era sempre a mesma.

Hoje em dia, estamos falando da mesma direção? O que queremos ser, para nós mesmos, em nossa integração com o mundo e com o universo em que vivemos? O que aprender de nossa história, de nossas fontes, de nossos textos, de nossa tradição? Ter a coragem de enfentar riscos para construir um futuro que seja a confirmação de nosso legado, esta a mensagem de Rabin para as gerações de hoje e de amanhã.

O sacrifício de Itschak não era necessário, não era a vontade de Deus, nem abriu caminho para um caminho melhor. Que não tenha sido inútil. Que sirva de advertência quanto aos inspiradores e incitadores de ódio do pre-

Excertos do discurso de aceitação (Doutor Honoris Causa, Universidade de Jerusalém, junho 1967)

Cont.

não apenas a glória da vitória, mas também seu custo, seus camaradas caídos ao lado deles encharcados de sangue. E sei que o terrível preço que o inimigo pagou também comoveu profundamente muitos de nossos homens. Será que é por conta de seu ensinamento, e não por sua experiência, que nunca habituou o povo judeu a exaltar a conquista e a vitória, que eles as receberam com sentimentos tão mistos? O heroísmo exibido na Guerra dos Seis Dias em geral foi muito além do ataque único e ousado no qual um homem se lança para a frente quase sem refletir. Em muitos lugares aconteceram batalhas longas e desesperadas: em Rafah, em El-Arish, em Um-Kal Um-Kataf, em Jerusalém e nas Colinas de Golan. Nesses lugares, e em muitos outros, nossos soldados mostraram um heroísmo de espírito e uma coragem de perseverança que inspiraram sentimentos de admiração e exaltação naqueles que os testemunharam. Falamos muito de poucos contra muitos. Nesta guerra, talvez pela primeira vez, desde as invasões árabes na primavera de 1948 e as batalhas de Negba e Degania, as unidades das Forças de Defesa de Israel em todos os setores estavam na situação de serem poucas contra muitas. Unidades relativamente pequenas entraram em redes longas e profundas de fortificações, cercadas por centenas e milhares de tropas inimigas, através das quais tiveram que abrir caminho por muitas horas. Eles seguiram em frente, mesmo quando o momento estimulante da primeira carga havia passado, e tudo o que restou para sustentá-los foi sua crença em nossa força, na ausência de qualquer outra alternativa, na compreensão do objetivo pelo qual a guerra estava sendo travada, e na necessidade imperiosa de reunir todos os recursos de força espiritual para continuar a lutar até o fim. Assim, nossas forças blindadas irromperam em todas as frentes, nossos paraquedistas abriram caminho em Rafah e Jerusalém, nossos sapadores limparam os campos minados

(Continua)

sente. E que inspire os bravos, dispostos a assumir riscos para a construção segura e lúcida, sem ilusões, de um futuro condizente com o legado judaico e seu papel no mundo.

O futuro de um estado que seja judaico e democrático. Vivendo em paz com todos os estados e povos do mundo. Fazendo as concessões necessárias, sem abrir mão de sua segurança e de seus princípios. Itschak Rabin mereceu ver tal futuro como resultado de sua visão e de seu trabalho. Os israelenses e o povo judeu de hoje em dia merecem também.

Post scriptum

Pessoalmente, por duas vezes Rabin impressionou-me fortemente. A primeira, no início da década de 1960, em 1964. Eu vivia em Israel, tinha 29 anos e era, naturalmente, reservista de Tsahal. Minha divisão realizou um grande exercício no norte (a época era de grande tensão com a Síria), e na cerimônia de conclusão iria falar Itschak Ra-

Menorá em frente ao Parlamento de Israel, onde se lê a frase bíblica: “Não pelo exército nem pela força e sim por Meu espírito”.

Wikimedia Commons

sob o fogo inimigo. As unidades que penetraram nas linhas inimigas após horas de batalha lutaram, recusando-se a parar, enquanto seus companheiros caíam à direita e à esquerda deles. Essas unidades foram levadas adiante, não por armas ou técnicas de guerra, mas pelo poder dos valores morais e espirituais. O que nossos soldados mostraram não foi apenas frieza e coragem na batalha, mas uma fé apaixonada na justiça de sua causa, o conhecimento pleno que apenas sua resistência pessoal e individual contra imensos perigos poderia salvar seu país e suas famílias, e que a alternativa para a vitória era a aniquilação. Em todos os setores, nossos comandantes de todas as patentes mostraram-se superiores aos do inimigo. Sua desenvoltura, sua inteligência, seu poder de improvisação, sua preocupação com suas tropas e, acima de tudo, sua habilidade em liderar seus homens para a batalha: estas não são questões de técnica ou equipamento. Não há explicação inteligível, exceto uma – sua profunda convicção de que a guerra que travavam era justa. Todas essas coisas têm sua origem no espírito e terminam no espírito. Nossos soldados prevaleceram não pela força de suas armas, mas por seu senso de missão, por sua consciência da justiça de sua causa, por um profundo amor por seu país e por sua compreensão da pesada tarefa que lhes foi confiada: assegurar a existência de nosso povo em sua pátria, e para afirmar, mesmo à custa de suas vidas, o direito do povo judeu de viver sua vida em seu próprio estado, livre, independente e em paz. O exército que tive o privilégio de comandar com esta guerra veio do povo e volta ao povo: um povo que se eleva acima de si mesmo em tempos de crise e prevalece sobre todos os inimigos na hora da prova por sua força moral e espiritual. Como representante do Exército de Defesa de Israel e em nome de cada um de seus soldados, aceito seu conhecimento com orgulho.

Traduzido do inglês por Raul Gottlieb.

À esq., Itschak Rabin, chefe do Estado-Maior.

Abaixo, as sepulturas de Léa e Itschak Rabin.

Wikimedia Commons / National Photo Collection of Israel

bin, recém-empossado como Ramatkal, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.

Em meio aos outros oficiais, baixo e corpulento, não parecia ser um poderoso comandante. Até começar a falar com sua voz de baixo profundo, serena, pausada, penetrante. O impacto foi imediato. Conferi depois com meus companheiros de batalhão. Toda aquela parafernália militar, aquele jogo de mocinho e bandido, foi tratado pelo comandante supremo como a forma errada mas única possível de manter o certo: nossa existência física em nossa terra, nossos princípios, nosso futuro de nação judaica. Rabin começou a falar como general, mas quando terminou era o estadista, pacifista, humanista que sempre foi, inclusive como primeiro-ministro assassinado.

Na segunda vez eu o ouvi numa gravação de seu discurso, em junho de 1967, logo após a Guerra dos Seis Dias, ao aceitar o título de doutor Honoris Causa pela Universidade Hebraica de Jerusalém: http://archive.jewish agency.org/news/content/23540 (ver box). Quem acessar o link e ler o discurso, feito poucos dias após a vitória que fez dele um dos grandes líderes de todas as guerras na história em defesa do povo judeu e do estado judeu, e mesmo sem ouvir aquela voz grave e pausada falando em hebraico, vai reconhecer não o general vitorioso, mas o líder humano e humanista, o homem da paz, o já então estadista.

Poucas vezes um chefe de governo de qualquer país teve em seu funeral a presença de tantos e diversos líderes mundiais de primeira linha, entre reis, príncipes, presidentes, primeiros-ministros e chefes militares de tantas nações, inclusive de países árabes, como a Jordânia e o Egito. [Há vários vídeos no Youtube].

Não foi o funeral de um traidor, mas de um grande líder, de um pacifista, de um homem cuja visão de um futuro para sua pátria não cabe no estreito campo visual dos radicais e extremistas de qualquer cor, partido ou ideologia.

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