8 minute read

Do geral ao particular: O trabalho rabínico nas comunidades judaicas

DO GERAL AO PARTICULAR

O trabalho rabínico nas comunidades judaicas

Advertisement

O judaísmo não é “uma entidade” que possui uma “essência”, mas uma “família de comunidades”. O importante não é o conteúdo do debate, mas a sua ocorrência em si mesma. O fundamental é que a família se reúna para conversar, independentemente de como a mesa é armada.

Hernán Rustein

Em Bereshit 18, conta-se que Deus recebeu notícias de um comportamento imoral cometido pelos povos de Sdom e Amorá.1 Sua reação imediata foi checar a veracidade da informação. Será que Deus não sabe tudo? Que necessidade tem de verificar? A opinião do comentarista medieval Abraham ben Meir Ibn Ezra a esse respeito é que, talvez, Deus saiba tudo de uma maneira geral (dérech kol), mas desconhece as particularidades (dérech chélek).

Será que a função rabínica responde pelo judaísmo como um todo? Ou por cada judia ou judeu em particular? Reformulando a pergunta, será seu papel ensinar às pessoas a maneira correta de viver uma vida judaica? Ou criar uma vida judaica junto com as pessoas? Minha proposta para as próximas linhas é explorar a atribuição rabínica em relação ao judaísmo em geral, e em relação às judias e judeus em forma particular.

Dérech Kol – O escopo geral do trabalho das rabinas e dos rabinos

A primeira coisa que devemos esclarecer é que o que chamamos de “judaísmo” se refere ao campo de ação da atividade rabínica. Junto com o rabino Dana Kaplan e o teólogo Michael Satlow, propomos que “não há qualquer crença ou prática particular” que possa ser chamada de “núcleo” judaico. O judaísmo não é “uma entidade” que possui uma “essência”, mas uma “família de comunidades”. Segundo essa corrente de pensamento, o que as une é o fato de participa-

rem “de um discurso contínuo sobre determinados textos e práticas rituais”. O importante aqui não é o conteúdo do debate, mas a sua ocorrência em si mesma. O fundamental é que a família se reúna para conversar, independentemente de como a mesa é armada.2

O rabino Mark Washofsky, especialista em halachá, argumenta que essas conversas se caracterizam como sendo “persuasivas”. Cada pessoa entra no diálogo judaico e compara seus próprios argumentos com os das demais, querendo influenciar as concepções alheias. Esses diálogos foram sendo registrados na literatura haláchica, cujo desenvolvimento persiste ainda hoje. Os contornos das comunidades vão sendo estabelecidos à medida em que essas discussões evoluem ao longo do tempo. Algumas congregações escolherão um princípio de autoridade que determine a resposta correta. Já as “liberais e pluralistas”, por outro lado, manterão o processo de persuasão aberto. Os consensos irão acontecendo, contudo, sem qualquer pretensão de torna-los definitivos.3

É importante aproveitar este ponto para desmistificar a ideia de que o judaísmo reformista não é haláchico. Nas palavras do próprio Washofsky:

“Historicamente, o judaísmo tem se expressado sobretudo por meio de mitsvá (dever religioso) e maassê (ação sagrada). Nós, judeus, interpretamos o pacto do Sinai (brit) como um chamado à ação e respondemos a ele na forma de uma práxis, um sistema de atos concretos que abarca quase todos os aspectos da existência humana e funciona como um mecanismo, através do qual santificamos nosso mundo e nossas vidas. A halachá é a substância dessa práxis, e os textos haláchicos – o Talmud e o enorme corpus de comentários, códigos e responsas rabínicas que dele derivam – são sua fonte literária. (...) Essa tradição de bases e argumentos construídos ao longo de dois mil anos é a que nos referimos quando dizemos ‘halachá’, e nenhuma expressão religiosa que, sinceridade, defina-se a si mesma como ‘judaica’ pode prescindir dela (...) Apesar de que o judaísmo reformista se relacione com a halachá, a lei judaica opera em nosso movimento de um modo diferente ao que acontece na ortodoxia ou em outros segmentos do mundo judaico. (...) Nossa ênfase é posta no pluralismo, através de uma variedade de abordagens com relação à prática religiosa, que se sobrepõe à uniformidade; razão pela qual, embora nossos textos haláchicos ofereçam informações e argumentos, eles não constituem

determinações legais impositivas, no senti- A tarefas de rabinos e Dérech Chélek – As particularidades do tradicional”.4 rabinas se desenvolverá da tarefa rabínica Um judaísmo sem essências e com discussões abertas em torno de seus textos em comunidades que Há 200 anos, o rabino Samuel Hole práticas pode parecer um vasto territó- continuarão um debate dheim advertiu que a atividade rabínirio para o desenvolvimento da tarefa ra- ancestral em torno de ca não se limitava ao ritual. “Junto com bínica. Existe algo dentro da comunidade práticas e valores. A Torá a instrução acerca das leis cerimoniais e que seja inadmissível? O rabino Donniel Hartman propõe duas categorias de “desvios intoleráveis” que ele identifica na litee a literatura haláchica são os textos em torno outros atos religiosos, [a profissão rabínica] consiste principalmente em buscar propagar dentro de sua própria comuniratura haláchica: min (inimigo) e meshu- dos quais essas conversas dade, através do ensino e do exemplo, a mad lekol haTorá kulá (aquele que nega serão consideradas religião e a moralidade em sua ampla e completamente a Torá). judaicas. As comunidades benéfica extensão”. Para Holdheim, forAqueles que não estão “atacando ati vamente ou desmerecendo a vida judai liberais procuram manter talecer a quem está fragilizado, escutar aqueles que necessitam de uma escuta, ca e os compromissos de qualquer mem- esses debates abertos, transmitir calma, difundir a justiça e ofebro da comunidade”, bem como aque- e não os fechar fazendo recer conhecimento onde há ignorância les para quem “qualquer componente da uso de autoridade. são tarefas fundamentais de quem exerce tradição de 3 mil a 4 mil anos de valo- a função rabínica. res e vida judaicos seja irrelevante” es- “[Aquele que ocupa uma posição rabítão “fora das fronteiras do judaísmo”. Em suma, encon- nica] deve se esforçar para despertar e restaurar, criar e protramos aqui uma generosa delimitação do que pode ser mover, estabelecer e preservar em todos os corações um senconsiderado judaico. Podemos diferir substancialmente so de justiça e responsabilidade, de religião e moralidade, de em nossas práticas e crenças. Podemos não ser capazes amor a Deus e ao ser humano, de amor por seu rei e seu país, de compartilhar os mesmos espaços de oração ou a mes- de fidelidade inviolável à lei e àqueles que a executam, e fama comida. Podemos até ser tão diferentes a tal ponto zer com que a virtude e a religião possam governar em todos de não podermos nos casar entre nós. No entanto, en- os lugares.” quanto uma pessoa considerar que uma parte da nossa Há um componente obrigatório profundamente hutradição lhe é significativa e não fizer nada para atacar mano e ético nessa empreitada. É como se o conteúdo dos ativamente a vida judaica de outrem, isso a torna parte debates judaicos estivesse a serviço dessa tarefa principal; do judaísmo.5 mais universal do que judaica, e com as individualidades

Com isso, parece que delimitamos um pouco o cam- assumindo um protagonismo.6 po de ação das rabinas e dos rabinos. Sua tarefa se de- Abraham Geiger também sinalizou um caminho no senvolverá em comunidades que continuarão um deba- qual a atividade rabínica deveria estar atenta às particulate ancestral em torno de práticas e valores. A Torá e a li- ridades de cada comunidade e daqueles que a constituem. teratura haláchica são os textos em torno dos quais essas “É algo muito nobre abdicar-se até mesmo do maior dos conversas serão consideradas judaicas. As comunidades prazeres, a saber, seguir as próprias ideias com ousadia e, liberais procuram manter esses debates abertos, e não os em sentido contrário, acomodar-se com tentativas sempre fechar fazendo uso de autoridade. Enfim, é inadmissível renovadas de conquistar algum lugarzinho para essas ideias que alguém queira participar de nossas comunidades e (...) para ser precisamente eficaz na esfera mais estrita do não encontre nada relevante de tudo o que foi propos- exercício da própria influência”. Para Geiger “é difícil ser to ao longo desse desenvolvimento histórico. Tampouco rabino”: sua posição demanda dele desbravar novos camié possível que alguém seja parte, se busca desmerecer ou nhos. Em uma comunidade haverá pessoas que não irão atacar as convicções, valores e práticas de outro membro querer nenhuma mudança, mas também haverá aqueles da comunidade. que não podem esperar mais por elas. O ofício rabínico é

detectar o que a comunidade precisa e tentar conduzi-la, aos poucos, por esse caminho.7

A atribuição rabínica nas comunidades judaicas

As rabinas e os rabinos não resguardam nenhuma essência. Não são estes os guardiães dos segredos de qualquer verdade. Eles não determinam a validade das práticas judaicas e nem mesmo das suas próprias ideias. Nem estabelecem quem pode pertencer e quem não pode. Antes, são as comunidades as que constroem a vida judaica. Elas são as que debatem e escrevem os textos da nossa tradição. Respeitando-se mutuamente, as pessoas criam e recriam os espaços comunitários.

Então, o que corresponde ao fazer rabínico? A busca por uma melhor maneira de fazer com que essas conversas ocorram. Para que os espaços de escuta sejam habilitados. Para que cada um encontre o seu lugar e respeite o lugar da outra e do outro. Assume-se a responsabilidade de estudar e trazer nossos textos para a mesa. De compartilhar nossos ritos e de renová-los. De ser honesta e honesto com seus próprios sonhos e buscar o pragmatismo para realizá-los da melhor maneira. Ser uma rabina ou um rabino não é estar a serviço do judaísmo. É estar a serviço de cada pessoa. Para que dérech chélek, desde as peculiaridades, o judaico viva e se enriqueça.

Hernán Rustein vive em Buenos Aires, é estudante de rabinato no Instituto Ibero-Americano de Formação Rabínica Reformista e atua no Templo Libertad.

Gentilmente traduzido do espanhol por Kelita Cohen.

Notas

1 Nomeadas nas traduções bíblicas para o português por Sodoma e Gomorra (N.T.). 2 Kaplan, D. (2013). The New Reform Judaism: Challenges and Reflections. Filadelfia:

JPS (ver a introdução). 3 Ibidem, ver capítulo 6. 4 M. Washofsky “The Jewish Path”, em Kaplan, D. (2017). A Life of Meaning: Embracing Reform Judaism’s Sacred Path. Nueva York: CCAR Press. 5 Hartman, D. (2007). The Boundaries of Judaism. Londres: Bloomsbury Publishing (grifo nosso). 6 Plaut, W. G. (2015). The Rise of Reform Judaism: A Sourcebook of Its European Origins (JPS Anthologies of Jewish Thought). Lincoln: University of Nebraska Press. (Ver capítulo 10). 7 Ibidem.

This article is from: