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O humano vale a pena?

O progresso é também assunto de um grande debate filosófico. A Grécia Antiga não acreditava no progresso. O mundo está submetido a um processo cíclico pelo qual tudo se repete.

Rabino Dario Bialer

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Lembro perfeitamente da minha primeira aula na universidade. Lembro da sala lotada com centenas de alunos. Lembro da maioria fumando e tomando chimarrão, lembro de ver os que chegavam tarde sentando no chão por falta de cadeiras, mas o que lembro especialmente é da fala do professor naquela aula introdutória de sociologia geral.

Ele começou a falar maravilhas do Império Romano. Como as cloacas e as estradas foram algumas das enormes contribuições dos romanos para o desenvolvimento da civilização. Eu fiquei chocado. Simplesmente não podia entender do que estavam me falando.

Primeiro pensei que era um erro. Que estavam falando de outro povo e eu havia entendido errado. Mas, quando, em determinado momento, o professor repetiu o nome dos romanos, aí eu pensei algo bem argentino: “Ah, esse cara não entende nada!” (era o meu ego falando, seguramente).

Claro que eu não pensava que ele não sabia nada de sociologia ou de história, pois minha arrogância não chegava ao ponto de imaginar que ele era um ignorante. O que eu pensava é que ele não sabia nada da outra parte, dessa que eu entendia, a história judaica...

O certo é que me senti muito mal nessa hora. Mais ele falava bem dos romanos, mais aumentava a minha dor e indignação.

Até que explodi! Levantei a mão para explicar já não apenas ao professor, mas para as centenas de colegas à minha volta que olhavam e ouviam obnu-

bilados pelo carismático professor, e gri- Como os nossos sábios Naquele momento, eu pensei que tei para o mundo que não era verdade o definiriam o progresso? realmente existia uma verdade, que obque eles estavam ouvindo! Que os romanos eram ruins! Que eles nos aniquilaPara Shamai, o progresso viamente era a minha, e que o outro a desconhecia e, por isso, falava como faram! Que os romanos destruíram o Tem- sempre terminará em lava dos romanos, mas tinha certeza que, plo de Jerusalém! desastre. O mal é um quando ouvisse a minha verdade, ele iria

Os colegas me olhavam sem entender destino inevitável. Para mudar de opinião. do que eu estava falando. E, tudo bem, eu não esperava que eles entendessem. Já o professor ... ele sim conhecia a Hilel, embora nossos impulsos ocasionalmente Hoje eu penso que aquela verdade que eu sentia palpitante dentro de mim não excluía a verdade do professor, mas que história, ele sabia. Reconheci isto em seu nos empurrem para as duas são faces da mesma moeda. Penolhar antes mesmo de ele me responder o mal, nossa vontade semos por exemplo no sentido da palavra com duas palavras, que passados 25 anos pode conquistá-los. progresso.1 Imagino que a maioria tem ainda não esqueci: uma sensação positiva quando pensa no – E daí? progresso. Quem não gosta de progredir?

E creio que ele deve ter visto a dor no meu rosto, pois Considere o primata que encontrou pela primeira vez seguramente, por misericórdia, decidiu acrescentar algo à uma pedra afiada. Essa pedra mudou o curso da história sua resposta: ao usá-la para cortar carne ou couro curtido. Aquela pedra – Aquilo foi um dano colateral ao progresso inegável tornou-se uma flecha e uma lança, uma espada de bronze, que os romanos trouxeram para a civilização. uma espada de aço, uma catapulta, o primeiro mosquete,

Dano colateral... canhão, rifle, metralhadora, granada, lança-chamas, tan-

Sabem? Durante muito tempo continuei lembrando que, míssil e arma nuclear. Um progresso claramente exdessa história. ponencial. Será que essa corrida armamentista era necessá-

ria ou inevitável como parte do próprio progresso? As armas nucleares já estavam escritas na história da humanidade na época em que uma pedra afiada foi encontrada? O destino do progresso é inevitável?

Em algum momento no passado, um ancestral descobriu que a concha de um animal podia carregar água. Essa concha foi transformada em potes de barro. Um pouco mais tarde, tripas de animais. Com a descoberta do vidro polido, os líquidos foram contidos com muito mais eficiência, surgiram as cantinas de alumínio, e no final da linha veio o plástico abençoado, tão barato que é usado e descartado. E, então, há mais plástico no oceano do que aquilo que você pesca. E novamente nos perguntamos: O plástico é uma consequência necessária e inevitável do progresso? O plástico era nosso destino inexorável?

Ou, nas palavras de Heschell2:

“É nossa civilização um caminho para o desastre, como muitos de nós estão propensos a crer? É a civilização essencialmente um mal, para ser rejeitada e condenada?

A civilização técnica é o produto do trabalho, do exercício do poder pelo homem tendo em vista a produção de bens. Começa quando o homem, insatisfeito com o que está disponível na natureza, empenha-se em uma luta com as forças da natureza a fim de intensificar sua segurança e aumentar seu conforto. Para usar a linguagem da Bíblia, a tarefa da civilização é submeter a terra, ter o domínio sobre a besta.

Quão orgulhoso nós ficamos amiúde ante nossas vitórias na guerra com a natureza, orgulhosos ante a multidão de instrumentos que conseguimos inventar, a abundância de mercadorias que temos podido produzir. Contudo, nossas vitórias vieram a assemelhar-se a derrotas. A despeito de nossos triunfos, caímos vítimas do trabalho de nossas mãos; é como se as forças que conquistamos nos tenham conquistado.”

O progresso é também assunto de um grande debate filosófico. A Grécia Antiga não acreditava no progresso. O mundo está submetido a um processo cíclico pelo qual tudo se repete.

Já em tempos do Iluminismo, o francês Voltaire (16941778), com base na razão humana, mantém uma visão extremamente otimista do progresso. O grande filósofo Immanuel Kant (1724-1804) pensava que o progresso não é automático ou contínuo. O influente filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844–1900) recuou e negou a ideia de progresso e voltou ao conceito cíclico grego. Para filósofos como Hegel e Marx, o progresso só é alcançado por meio do conflito.

E mais próximo aos nossos dias, Yuval Harari alerta: “Um projeto central consiste em proteger a humanidade e o planeta como um todo dos perigos inerentes ao nosso poder. Conseguimos controlar a fome, as pestes e a guerra graças, enormemente, a um fenomenal crescimento econômico, que nos provê de alimento, medicina, energia e matérias-primas abundantes. Mas esse mesmo crescimento desestabiliza o equilíbrio ecológico do planeta de maneiras que só estamos começando a investigar”.3

“O gênero humano atrasou-se no reconhecimento desse perigo, e até agora pouco fez para combatê-lo. A despeito de todos os discursos sobre poluição, ameaça global e mudança climática, a maioria dos países ainda terá de fazer sérios sacrifícios econômicos e políticos para melhorar a situação. Quando chega o momento de optar entre crescimento econômico e estabilidade ecológica, políticos, executivos e eleitores sempre preferem o crescimento. No século XXI, teremos de fazer melhor do que isso se quisermos evitar a catástrofe.”

Como vemos, não há consenso sobre a ideia do progresso, e eu diria que isso acontece, pois o impacto que tem no mundo é consequência inseparável das ações do ser humano. Os rabinos vão mais longe na discussão e, em vez de questionar se o progresso é bom ou ruim, se perguntam se o homem é bom.

Por dois anos e meio, sem trégua, a escola do sábio Shamai e a escola do sábio Hilel discordaram. Qual assunto mereceu tamanha relevância? A criação do homem. O humano vale a pena?

Shamai afirmava que teria sido melhor se o ser humano não tivesse sido criado. Ao contrário, a casa de Hilel sustentava que era preferível que o ser humano tivesse sido criado do que se não tivesse sido criado. Ninguém ganhou e eles tiveram que apelar para uma votação. A votação favoreceu Shamai: é preferível que o homem não tivesse sido criado. Mas Hilel acrescentou: Shamai, você pode estar certo. Mas agora que ele foi criado, você deve passar a examinar as suas ações.4

Esta é uma passagem singular. Os rabinos abandonam suas discussões regulares sobre a lei e passam a discutir o dilema mais fundamental: a própria existência da humanidade.

Shamai vê a bestialidade e a brutalidade dos assírios, babilônios, persas, helenos e romanos. Um império após o outro traz amargura e destruição. Shamai vê o mundo e tira uma conclusão: o ser humano é essencialmente mau. A existência do ser humano é um equívoco.

Hilel, o eterno otimista, responde: de que adianta argumentar se a criação do homem é boa, visto que já nascemos. Shamai é filosófico. Hilel é pragmático.

Como os nossos sábios definiriam o progresso? Para Shamai, o progresso sempre terminará em desastre. O mal é um destino inevitável. Para Hilel, embora nossos impul-

sos ocasionalmente nos empurrem para Freud explica a libido Lendo as fontes rabínicas, penso em o mal, nossa vontade pode conquistá-los. como uma energia que Freud e a libido. Freud explica a libido Mas, além das discrepâncias, um princípio é estabelecido: Se deixado à sua natuengloba tudo o que tem como uma energia que engloba tudo o que tem a ver com amor. É uma força proreza, o indivíduo cairá em desgraça. Nos- a ver com amor. É uma funda na psique. A busca por poder e consa tendência é negativa. Só o progresso força profunda na psique. quistas surgem disso. Vemos que os rabiguiado por valores se transforma em fu- A busca por poder e nos anteciparam Freud em dois mil anos. turo. O progresso sem um guia moral nos enganará. Shamai se desespera, mas Hilel acredita que as garrafas de plástico, as arconquistas surgem disso. Vemos que os rabinos Os rabinos entenderam que uma estratégia deve ser criada para controlar o impulso do mal. Assim, lemos no tratado de mas e tudo o que compromete o bem-es- anteciparam Freud em Yoma: O Abençoado seja Ele disse a Israel: tar do planeta são evitáveis. O ser huma- dois mil anos. Entenderam Eu acredito no impulso do mal, mas acreno escolheu isso entre tantas outras esco- que uma estratégia deve dito na Torá como seu antídoto. Se eles lhas à sua disposição. ser criada para controlar estudarem a Torá, eles serão protegidos. O mal como mal se vence quando não Como controlamos nossos impulsos? o impulso do mal. temos uma atividade de grande valor que

Nos conta um midrash em Bereshit Rabá: conquistadora é canalizada em batalhas de estudo formi-

“Cansados pela imposição do mal, os rabinos se juntaram, dáveis, sem trégua, entre os rabinos. Os rabinos entendeo pegaram e o prenderam. Imaginem o júbilo! ram que o progresso traz em seu seio uma semente de des-

Mas o impulso do mal apareceu aos sábios na forma de truição. Mas o impulso do mal é ruim apenas na medida um leão em chamas e alertou os sábios ... fique claro que se em que o usamos para o mal. me matarem o mundo acaba. Eles o mantiveram numa gaio- O mal não é um destino, mas uma possibilidade. Não la por três dias e então algo estranho aconteceu, nenhuma ga- somos ruins. Nós às vezes agimos mal. Os rabinos, em sua linha em Israel botou um ovo. Os rabinos arrancaram seus infinita sabedoria, tratavam o mal como uma energia e não olhos e foram forçados a libertá-lo novamente. Dessa forma, como a essência do homem. Nenhum de nós é ruim em o incesto foi reduzido em Israel.” seu âmago. Só temos que encontrar maneiras positivas de

Esta passagem nos ensina várias coisas. Podemos su- canalizar nossa energia. primir o impulso do mal, mas a um preço alto: nossa vida O progresso é a energia total da humanidade. O procriativa. O negativo e o criativo são um. Agora, por que as gresso é impulsionado pela energia negativa e criativa (pogalinhas não botam ovos? O ovo representa a energia de sitiva) da humanidade. O mundo sempre teve e tem a opprocriação. É por isso que cegam o leão. Para diminuir as ção de ser bom. Como ensinava Heschel: A fé do judeu tentações que surgem ao olhar. Inveja e paixões. E é por não é um meio de sair deste mundo, mas um meio para isso que o incesto é limitado por cegá-lo; como energia estar dentro deste mundo; a solução do problema mais decriativa maliciosa. batido da humanidade não será encontrado na renúncia da

Esta passagem magnífica se desdobra em um Midrash, civilização tecnológica, mas na obtenção de algum grau de ou semão rabínico, onde Rabi Nachman, em nome de Sh- independência dela. muel, explica que o impulso do mal é chamado na criação de “muito bom”, porque sem ele as casas não seriam Dario E. Bialer é rabino e serve na ARI – Rio de Janeiro. construídas, as famílias não seriam criadas ou procriadas. o transforme. A mesma força negativa e Faça a ligação com o que meu professor de sociologia disse. Em outras palavras, o mau impulso é perigoso e tenNotas 1 Inspirado numa aula do meu amigo, colega e mestre, o Rabino Alfredo Borodowski. tador, mas essencial. É o motor do progresso. Ele se ma- 2 A. J. Heschell. O Schabat: Seu significado para o homem moderno. São Paulo, nifesta no desejo de competir e vencer. O desafio é que o 3 Perspectiva. Yuval Harari, Homo Deus. São Paulo, Companhia das Letras progresso está enraizado naquela força que cria e destrói. 4 Talmud Bavli, Tratado Eruvin.

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