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Perguntas sem resposta
A vitória militar da Guerra dos Seis Dias (1967) reviveu no judaísmo ortodoxo velhas aspirações a uma messiânica reconstituição do esplendor do Reino Bíblico. O culto da Terra de Israel se sobrepôs ao da dignidade humana e desencadeou fantásticos “veredictos” de condenar a quem ousasse pesar a hipótese de dividir essa terra com outro povo que a habita.
Vittorio Corinaldi
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Uma pergunta que se apresenta com frequência a quem observa ou estuda os acontecimentos históricos é: “O que teria sido se…”
O que teria sido se Colombo não tivesse feito sua viajem através do Atlântico, que levou o Ocidente para a América?
O que teria acontecido se Felipe e Isabel não tivessem expulsado os judeus da Espanha?
O que teria sido diferente se Chamberlain não tivesse apaziguado Hitler em Munich?
No que poderia ter mudado o destino do judaísmo europeu se os Aliados tivessem concordado em bombardear os campos de extermínio e as vias férreas que levavam a eles?
Ainda mais radicalmente, e se o Estado de Israel tivesse sido fundado 15 anos antes, em 1933, garantindo o refúgio negado pelos países do mundo a todos os judeus da Europa?
E – em linha com a comemoração dos 25 anos do trágico evento que teve lugar nos dias em que escrevo – o que teria sido se três tiros assassinos não tivessem posto fim à vida de Itschak Rabin?
Neste caso, antes de analisar os efeitos políticos que teria tido a continuação das negociações de Oslo, cabe tentar compreender como pôde se realizar aquilo que até então ninguém acreditava possível: o atentado ao primeiro-ministro de Israel pela mão de um agressor judeu.
Memorial no local do assassinato do primeiro-ministro Itschak Rabin.
A resposta a esta pergunta não se concentra apenas na desprezível figura do assassino Igal Amir; não transparece no cínico sorriso com que ele é visto em fotos publicadas em diferentes ocasiões desde o processo que o condenou à prisão perpétua: um sorriso que corresponde a sua fanática convicção na justificativa de seu feito.
A resposta tem que ser procurada em fontes que se encontram além da pessoa cuja ideologia e inclinações de alma podem ser objeto de investigação em outra sede. E ela sim provém do incentivo recebido de pretensos rabinos do setor ortodoxo, que se autodesignaram como autoridades de um ressuscitado obsoleto direito supostamente baseado na Torá.
A vitória militar da Guerra dos Seis Dias (1967) reviveu no judaísmo ortodoxo velhas aspirações a uma messiânica reconstituição do esplendor do Reino Bíblico. O culto da Terra de Israel se sobrepôs ao da dignidade humana, e desencadeou fantásticos “veredictos” enunciados em arcaica linguagem bíblica, de condenar a quem ousasse pesar a hipótese de dividir essa terra com outro povo que a habita.
Sobre este alicerce de suposto direito nasceu e proliferou o movimento dos assentamentos na Judéia e Samária (Cisjordânia), e ganhou impulso um ofensivo racismo judeu. Um contínuo discurso de incitação inspirado em tendenciosas interpretações do texto religioso se tornou regra corrente, levando a uma perigosa cisão na opinião popular, e ameaçando repetir o crime político de 1995. Os regimentos de militantes “da kipá de crochê”, inspirados de fanático apego a esse ideal da Grande Israel, se lançaram a uma investida ao mesmo tempo sobre o território e sobre os recursos orçamentários desproporcionais, extorquidos de um governo ideologicamente solidário com seus propósitos.
Aliás, a extorsão orçamentária não é uma prerrogativa exclusiva desses militantes: ela é uma característica geral do setor ultraortodoxo, em todas as modalidades de seitas e partidos religiosos que compõem a coalizão mais inflada e mais inepta que tenha surgido na história dos governos de Israel.
Esta inépcia vem se revelando de forma inequívoca no tratamento da crise da epidemia de corona: diante da preocupante situação da saúde e da economia, normal seria que o governo desse a esses campos uma absoluta prioridade, evitando quaisquer cálculos partidários e eleitorais. Foi inclusive com esse argumento que Beni Gans cindiu o Partido “Branco e Azul” (que havia consegui-
do significativo resultado na última elei- O que teria acontecido É verdade que a intransigente recusa ção) – na ingênua ilusão de que o estado se em 1948, no limiar do homem de confessar o absurdo de tal de emergência exigia uma fusão de for ças com o que também o Likud concor - da proclamação do ordenamento no século XXI tem levado muitas mulheres “charediot” a um tipo daria. E embora formalmente exista uma Estado, Ben Gurion não de revolta feminista a seu modo, buscoalizão em que ambos os partidos de- tivesse sancionado cando autonomamente empregos fora veriam ter voz paritária, Netaniahu atua a fórmula do “Status de casa, e distinguindo-se por exemplo consistentemente de forma individual e centralista, driblando os ministros brancos-azuis e orientando toda a ação polítiQuo”, com que – pensou – neutralizaria a então na técnica de computação. São então as mulheres que concedem ao setor religioso aquela dose de “modernidade” com ca, não para o combate à epidemia e suas pouca relevância dos que sobrevive às pressões da realidade circonsequências, e, sim, para se esquivar “charedim” na premente cunstante – enquanto os homens conticom maquinações politiqueiras dos pro- situação do momento? nuam no “sagrado” parasitismo que os cessos a que está convocado por graves cofres públicos sistematicamente concoracusações de corrupção. dam em financiar.
Nisto ele se fia no apoio dos partidos ultraortodoxos, O mesmo critério moral que lhes faz justificar a recusa que vêm sendo o principal freio a medidas eficazes con- de servir no exército e o regime de escravização da mulher tra a epidemia. O preço desse apoio é uma discriminação permitiu inventar o conceito de “Gói de Shabat”, o não jupreferencial em assuntos em que os “charedim” não con- deu a quem se encarrega de acender a luz e fazer as tarefas cordam absolutamente em abrir mão: o pleno funciona- supostamente proibidas no dia do descanso (que deve vimento de suas escolas, “ieshivot” e “Talmudei Torá”, a gorar também para o gentio, segundo o mandamento…), despeito das limitações impostas às demais escolas do se- ou o grotesco cerimonial anual da “Venda do Chamets…” tor geral; a insistência em manter as rezas nas sinagogas a um cidadão árabe na véspera de Pessach: demonstrações com pouco respeito às regras de separação e ao número de um ritual avesso à verdadeira natureza do judaísmo, que máximo de congregados; a realização de eventos de gran- é universal e respeita o ser humano como tal. de concentração, seja nos feriados religiosos, seja em ca- Para finalizar esta resenha de um fenômeno insistentesamentos ou datas importantes ligadas com lendários “ad- mente presente na atual realidade israelense, o tema volta morim” das cortes chassídicas; seja (mutatis mutandis) em para uma pergunta no espírito do início deste escrito: O enterros. Também se pleiteia uma abolição das multas a que teria acontecido se em 1948, no limiar da proclamaque estão sujeitos comércios e empreendimentos por não ção do Estado, Ben Gurion não tivesse sancionado a fórcumprir limitações que lhes podem ser fatais, e que por mula do “Status Quo”, com que – pensou – neutralizaria definição deveriam se aplicar igualmente às atividades da a então pouca relevância dos “charedim” na premente sicomunidade religiosa. tuação do momento? Como explicar que o grande líder
O fugir das obrigações decorrentes do convívio social é de larga visão tenha desprezado a possibilidade (que se deum hábito arraigado no público “charedí”. Ele é apresen- monstrou real) de um aumento de influência daquele anatado como sendo contrabalançado pela reza e pelo estudo crônico fator nos destinos do país e do povo? da Torá, sobre os quais se assentaria a milenar sobrevivên- A História não gosta de perguntas desse tipo. Mas no cia do povo judeu. O mais citado e o menos sintomático que toca a um sadio desenrolar da futura sociedade isde qualquer consideração moral é a recusa do serviço mi- raelense, terá que lhes dar respostas. litar. Igualmente insustentável dentro de padrões atualizados de comportamento é a total inatividade econômica Vittorio Corinaldi é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitedo homem (destinado a um “estudo” permanente das es- tura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP), vive em crituras), e o completo depositar do sustento familiar so- Israel desde 1956. Foi membro do Kibuts Broch Chail e atuou em bre a mulher, relegada a uma vida de ausência de direitos diversas funções ligadas a arquitetura, planejamento e organização e exaustiva servibilidade às tarefas domésticas. dentro do movimento kibutsiano.
