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Para fora do bem e do mal
Marcia Rozenthal
Apalavra Yetser, do hebraico, pode ser traduzida como “inclinação”, que pode ser para o bem (yetser hatov), ou para o mal (yetser hará); sua raiz é a mesma da palavra hebraica, yetsiritiut, que significa criatividade; ou seja, o livre arbítrio e a criatividade derivam da mesma raiz etimológica. Ambos dependem da mesma fonte: Liberdade.
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Mas, afinal, não somos livres? Então por que nosso povo tanto cultua a liberdade?
O princípio
“Então o Eterno Deus fez crescer árvores encantadoras para os olhos e boas para frutificar; e no meio do jardim, a Árvore da Vida e a Árvore de Todo o Conhecimento”.1
“Então o Eterno Deus levou o homem e o colocou no Jardim do Éden para trabalhá-lo e mantê-lo. Em seguida o Eterno Deus ordenou ao homem, dizendo: “Você pode comer tudo o que quiser de toda árvore do jardim, mas da Árvore de Todo o Conhecimento você não poderá comer, pois no instante em que comer dela, estará condenado a morrer”.2
“Então os olhos de ambos se abriram e, ao se darem conta de que estavam nus, costuraram folhas de figueira umas às outras e fizeram saias para si mesmos”. 3
Então o Eterno Deus disse: “Vejam, os humanos são como nós, conhecedores de todas as coisas”. 4
A herança cultural, de origem judaica predominante no ocidente, legou uma certeza atávica de que o Homem é dotado do livre arbítrio e, com isso, da possibilidade e responsabilidade pela escolha de seus atos. Isso tem grandes implicações em fundamentos, regras e valores que regem a conformação destas sociedades humanas.
Esse relato atinge e penetra, como um raio, nas profundezas da realidade e da solidão humana; nele, vemos a preocupação de Deus, com o uso que Adão e sua descendência fariam com a conquista do conhecimento do bem e do mal, e também com a potencial saga trágica que o Homem optou seguir, ao comer o fruto da árvore proibida. Essa passagem é capciosa.
O pecado da desobediência, a meu ver, já era inevitável; a proibição pressupõe escolha – reprimir, ou não, a vontade. Para escolher a atitude a ser tomada, de forma consciente, o Homem precisou passar por uma situação de conflito (a serpente representa a tentação) ao se deparar com suas inclinações – Yetser hatov / Yetser hará, para traçar seu caminho.
Foi, então, que o Homem passou a ter o ônus e os bônus de ser o dono de seu destino. E foi assim que se quebrou, para sempre, a percepção paradisíaca do mundo, que existia quando o Homem não tinha consciência dos perigos e da responsabilidade.
Para escrever sobre este momento ímpar, o dito “pecado original”, é preciso tocar no vórtice da visão judaica de civilização, talvez a nossa maior contribuição para a formação do homem ocidental: “Sabemos” que somos livres para escolher e para interferir no nosso destino. Entretanto, isto está longe de ser um consenso e aqui falo como cientista. Em vista disto, os convido a margear a obscura fronteira entre a ciência e a religião, e a penetrar neste terreno nebuloso.
Ciência e crença: O nó górdio
O Homem conserva, na sua intimidade, uma intuição, uma convicção inata de que ele existe como entidade única e que, através do seu corpo, percebe, compreende e age sobre o meio externo.
Dentro deste seu mundo secreto e particular, o Homem vivencia uma natureza independente e distanciada da rigidez do tempo e do espaço e, portanto, da realidade externa, que está atrelada às propriedades e leis da natureza.
O Homem pode vivenciar um tempo que se dirige em qualquer sentido, e que corre em velocidades varia-
das; ele pode criar espaços e distâncias, A visão determinística sim, o caráter determinístico do comporque podem ser estendidas ou retraídas; entende que todo evento tamento das partículas mais elementares pode, ainda, vivenciar realidades fantasiosas e até mesmo fantásticas e, também, é causado por um em situações especiais; porém, probabilidade não significa escolha, e, sim, chance é capaz de moldar concepções e enten- evento que o precede, de um evento ocorrer. dimentos originais que percorrem o seu podendo assim ser Assim sendo, a “sensação” do livre arpensamento, em paralelo às informações previsto (Karl Popper), bítrio, para as ciências da natureza, peradvindas do dito mundo real. Isso sugere que o Homem “parece” conjugar dois universos paralelos – o físico e o menportanto, a ideia do livre arbítrio é uma ilusão. manece no terreno da ilusão. Para elas, o Homem é constituído de “matéria viva”, e ele responde às suas leis. tal –, o que faz com que a relação entre o cérebro e a mente se torne um tema bastante singular. O que as ciências nos dizem sobre a “matéria viva”?
A herança cultural, de origem judaica predominante no ocidente, legou uma certeza atávica de que o Homem A ciência nos acena com elementos interessantes, que é dotado do livre arbítrio e, com isso, da possibilidade e nos permitem perceber algumas características curiosas, responsabilidade pela escolha de seus atos. Isso tem gran- inerentes à natureza da matéria. Esses conhecimentos podes implicações em fundamentos, regras e valores que re- dem nos dizer muito sobre a natureza humana, ou sobre gem a conformação destas sociedades humanas. parte dela, já que somos constituídos de matéria e vive-
Paralelamente a este paradigma, a ciência moderna tem mos neste mundo. a maior parte de suas áreas de conhecimento e atuação apontadas, justamente, para o sentido contrário: o do de- Sobre a “personalidade” da “matéria viva” terminismo e do materialismo. Prevalece a ideia de que a Estudos multidisciplinares vêm convergindo para alnatureza é, em última análise, uma máquina de grande guns pontos interessantes, que ajudam a entender a relaprecisão e, portanto, subjugada às leis da matéria; estão in- ção entre o ser vivo e o meio ambiente. A matéria pode se cluídos neste contexto o próprio Homem e, naturalmen- organizar em estruturas dinâmicas, vivas e capazes de intete, o seu cérebro, que é visto como o senhor de seus senti- ragir com o meio ambiente. Estas estruturas são fechadas, mentos, pensamentos e ações. e precisam ser mantidas dentro de uma faixa de equilíbrio
Em síntese: a visão determinística entende que todo interno, que lhes garanta a sobrevivência. evento é causado por um evento que o precede, podendo A exposição a novas experiências pode ser um desafio à assim ser previsto (Karl Popper), portanto, a ideia do livre sobrevivência de um organismo; mas é, justamente, o que arbítrio é uma ilusão. permite a aquisição dos aprendizados, que reforçam o po-
O determinismo pressupõe que o futuro, em todos os der de sobrevivência e também a capacidade de adaptaseus aspectos, já está definido, e o Homem não é a cau- ção destes seres. sa de seus atos. O mecanismo adaptativo se processa através da estru-
É bem verdade que as novas descobertas da física, no turação de aprendizados, que “facilitam” e “aceleram” as início do século XX – incluindo o princípio da incerteza respostas aos novos perigos. Isso explica por que bactérias de Heisenberg, as teorias da física quântica e da relativi- se tornam resistentes aos antibióticos; os insetos resistentes dade, a matemática do caos –, frustraram a ideia de que o aos inseticidas; o nosso sistema imunológico cria defesas homem poderia ter acesso à realidade absoluta. Com isso, específicas para organismos agressores; e nós criamos deelas provaram que existe um limite para a previsibilida- fesas comportamentais para nossa proteção e sobrevivênde dos eventos da natureza pelo Homem, embora man- cia. Vemos, então, um aspecto da “personalidade” da matenham o caráter determinístico dos fenômenos naturais. téria; uma tendência à indolência, quando não há amea-
A física quântica abriu uma nova janela, na medida em ça externa, e à repetição de padrões, que são os aprendizaque constatou que, na essência da matéria, os comporta- dos, enquanto estes se mostram eficientes. mentos são imprevisíveis e indetermináveis, retirando as- Para sobreviver, a “matéria viva” busca a praticidade
do uso da experiência acumulada, em de- Pode-se fazer um esforço das consequências trazidas pela ideia de trimento da criatividade, a qual requere- de imaginação para Seleção Natural. ria também exposição ao risco, e esforço para se desviar de caminhos já seguros e avaliar o que deve ter A Teoria da Evolução das Espécies de Charles Darwin é filosoficamente abranconhecidos. sido o drama ímpar da gente e é amplamente aceita no mundo
Pode-se ainda vislumbrar o “caráter espécie humana ao ser da ciência. Está impressa, nas suas entrelireativo” da “matéria viva”. Ela pode ser ca- agraciada com recursos nhas, qual seria a real “índole” da matéria, paz até de modificar o meio, para garantir sua sobrevivência; mas não lhe é próprio o ímpeto, o desejo de criar proativalinguísticos e simbólicos e, principalmente, ao se considerarmos nossos “estranhos” preceitos “intuitivos” de Moral e Ética. Em resumo, a evolução das espécies é mente um padrão comportamental, ape- tomar conhecimento o resultado de um processo de competinas para realizar ou transcender a nature- de si e do mundo. ção cruenta entre diferentes seres, consza de suas experiências. truindo um cenário onde os termos for-
Em suma, a matéria não é livre; ela não escolhe, por- te e fraco têm um valor capital. Numa visão realista, poque é prisioneira de seus automatismos, através dos quais de-se dizer que a evolução das espécies é um longo proela reage ao meio. cesso que se desenrolou no tempo em larga escala, para o qual foi derramado, impiedosamente, grande quantidade Sobre a “índole” da “matéria viva” de sangue, que jaz embebido no tecido do passado da his-
Os darwinistas trazem, sem dúvida, contribuições re- tória da vida. levantes quanto à importância do uso de mecanismos efi- Nesta perspectiva darwinista, pode-se dizer que noções cientes para a sobrevivência ao descortinarem as profun- como compaixão, humildade, justiça, bem e mal não per-

tencem à natureza da matéria. Mais surpreendente ainda é a constatação de que toda a complexidade e espetaculosidade da vida tenha se desenvolvido num ambiente de disputa truculenta, implacável e inclemente. O método que a natureza tem seguido para dar forma ao mundo foi o de uma guerra surda e constante pela sobrevivência e, principalmente, pela fecundação e procriação.
Para falar sobre a “índole” da matéria, basta observar sua finalidade e as ferramentas utilizadas para alcançá-la: sua essência é amoral, competitiva e extremamente ambiciosa. Em última análise, a sobrevivência da “matéria viva” depende do seu ímpeto de conquistar, de se expandir e de se perpetuar a qualquer preço.

De volta à história de Adão e Eva
Dentro deste contexto, pode-se fazer um esforço de imaginação para avaliar o que deve ter sido o drama ímpar da espécie humana ao ser agraciada com recursos linguísticos e simbólicos e, principalmente, ao tomar conhecimento de si e do mundo. Assim como os ruídos primordiais da história do Universo reverberam até hoje sinais e ondas no Cosmo, os resquícios deste drama parecem ecoar até hoje na alma humana.
Durante seu desenvolvimento ontológico, o Homem, em algum momento, se percebeu consciente dentro de seu meio. Certamente ele vivenciou a situação curiosa de ter sido jogado, praticamente despido, dentro do seu já conhecido meio. Este ambiente já era dominado pelo seu patrimônio de aprendizados de comportamentos adaptativos, mas se tornou novo e inusitado para o seu patrimônio conceitual.
A consciência da vida e da morte, da dor, do medo, do futuro, das diversas manifestações da natureza, passaram a habitar o seu imaginário, a instigar sua curiosidade e a empurrar o Homem em direção à busca do entendimento de si e do mundo, o qual ele agora poderá transcender, e sobre ele interceder.
Concluindo
A história de Adão e Eva nos faz crer que o Homem é composto por duas naturezas, em eterno conflito, à medida que se tornou consciente dos mesmos: O “yetser hará” – relacionado aos comportamentos automáticos, não planejados e reativos, que visam à sobrevivência no mundo – inerente à sua dimensão material; e o “yetser hatov” – derivado da capacidade humana de transcender e discernir o bem e o mal.
A transcendência, a capacidade de reflexão e escolha são premissas básicas para a formação de princípios éticos e morais, para a proatividade e para a criatividade.
A ciência ainda não dá suporte para a existência destes atributos, porém profissionais de várias áreas (inclusive médicos, juízes, advogados, educadores) se baseiam neles em muitas das suas práticas profissionais.
Uma última reflexão:
Findos os seis dias da Criação, foi designado um dia para ser santificado. O Homem necessita de momentos de isolamento do automatismo da vida para se desligar do funcionamento no “modo matéria” e se conectar com o “modo divino”.
É na sintonia do Shabat que ele tem a Liberdade para escrever a sua própria história e traçar o seu destino.
Marcia Rozenthal é Neuropsiquiatra, Doutora em psiquiatria pela UFRJ, pós-Doutora em Ciências da Computação pela COPPE-UFRJ e Professora Associada da Escola de Medicina e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Notas
1 Bereshit / Gênesis 2:9, segundo o livro Torá – Um Comentário Moderno, de Gunther Plaut, cuja tradução para o português será lançada pela UJR no primeiro semestre de 2020. Literalmente, a “árvore de todo o conhecimento” é “a árvore do conhecimento do bem e do mal”, explicando Plaut que “bem e mal” neste trecho é um merisma que tem o significado de “tudo”. 2 Bereshit / Gênesis 2:15-17, segundo a obra citada na nota anterior. 3 Bereshit / Gênesis 3:7, segundo a obra citada na nota 1. 4 Bereshit / Gênesis 3:22, segundo a obra citada na nota 1. O hebraico para “conhecedores” tem origem na raiz ד–ע–ת, com o significado de “conhecer, penetrar, experimentar”.
