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Escola em tempos de pandemia
André Frank
Mobilizar adolescentes ao estudo, debate e reflexão pode se revelar uma tarefa bastante difícil. Contudo, há um tema que sempre despertou com certa facilidade o interesse de meus alunos: o estudo da Shoá – a tragédia dos judeus na Segunda Guerra Mundial. O caráter profundamente dramático dessa catástrofe, a conexão familiar que temos com suas vítimas e a proximidade cronológica com os nossos tempos ajudam a explicar o magnetismo que o assunto exerce, mas destaco aqui um fator adicional que identifiquei ao longo de minha trajetória docente: o grande número e ampla variedade de dilemas éticos enfrentados pelos participantes daquele período.
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Muitas vezes, o contexto extremado da Shoá exigiu que indivíduos e instituições precisassem responder a questões nunca antes colocadas, em um curto espaço de tempo, e com implicações terríveis não importando o caminho escolhido. Através da análise de tais situações, aprendemos mais sobre a própria natureza humana – especialmente sobre o potencial de, mesmo enfrentando as maiores adversidades, sermos fiéis a uma escala de valores pessoais. Acredito que, também por conta disso, adolescentes – que vivem um processo de formação identitária e precisam elencar os valores que direcionarão os primeiros passos de suas jornadas adultas – encontram na Shoá a possibilidade de observar com clareza o que cada bandeira oferece para aqueles que as levantam.
Durante a Shoá e em diversos outros períodos da história, um valor específico foi repetidamente alçado pelo povo judeu às maiores colocações, rivalizando mesmo com o inquestionável valor da vida: o valor da educação. Desafiando as vontades de Antíoco, Adriano ou Hitler, inúmeros judeus arriscaram ou mesmo abriram mão de suas vidas para seguirem ensinando e apren-
Diante desse cenário tão dramático e complexo questionamos: o quão essencial a escola pode ser no contexto da pandemia? A qual nível de risco podemos sujeitar a nossa sociedade em prol da continuidade do processo de aprendizagem de nossos filhos?
dendo. Movidos pelo mandamento bí- Para a criança, a No último mês de setembro, na cidade blico de “veShinantam LeVanecha”, pela escola não é mera do Rio de Janeiro, após meio ano de porforça da cultura judaica ou simplesmente por suas consciências, tais indivíduos “preparação para a tões fechados, a retomada das atividades escolares presenciais teve início em meio a passaram a ser lembrados como heróis vida”. Para a criança, a um acalorado debate público e sob granpela memória coletiva judaica. escola é vida em si. de insegurança jurídica, com variadas in-
Diferentemente de muitas civilizações terpretações de múltiplos instrumentos antigas, o povo judeu não inclui em seu rito de passagem legais de diferentes instâncias executivas e judiciárias. para a vida adulta demonstrações públicas de força ou vi- Nesse cenário, apenas nove escolas se lançaram à rearilidade, mas de erudição – diante de todos os demais, a bertura de suas unidades – duas delas eram escolas judaicriança lê um livro: O Livro. cas. Considerando que a comunidade judaica represen-
Cientes do amor judaico pelo conhecimento, os dife- ta menos que 0,4% da população do Rio de Janeiro, enrentes algozes que se levantaram contra os nossos antepas- xergo esse acontecimento como sendo muito representasados nunca se satisfizeram em apenas queimar seus cor- tivo. Antissemitas de plantão farão uso retórico desse epipos, mas faziam questão de lançar às chamas inúmeros dos sódio para tentar engordar suas teorias de que o povo juseus livros também. As comunidades judaicas espalhadas deu tem natureza agitadora, truculenta e impetuosa. Senpelo mundo seguem tornando palpável o grande valor que do o diretor-geral de uma das referidas escolas, é de se esconferem à educação ao insistirem na criação e manuten- perar que minha leitura seja absolutamente diferente. Sinção de suas próprias escolas, Batei Midrash, movimentos to que ainda é muito cedo para avaliar plenamente os efeijuvenis e outros variados e inovadores projetos educacio- tos positivos e negativos do movimento das nossas escolas, nais, mesmo que sustentar tais instituições e iniciativas se mas não tenho dúvidas que ele originou-se do gigantesco revele uma tarefa árdua e dispendiosa. valor que a civilização judaica, em todas as suas vertentes,
Hoje, vivemos um período excepcionalmente sensível confere à educação. e desafiador decorrente da ainda arrebatadora ação da Co- O quão essencial é a escola no contexto da pandemia? vid-19. Lamentamos as mais de um milhão de vidas per- Tão essencial quanto sempre foi e talvez ainda mais. Muididas ao redor do mundo e as demais mazelas decorren- to me entristece que o debate sobre a reabertura das escotes desta pandemia. Somado a isso, é difícil encontrarmos las passou a receber maior atenção da grande mídia apenas algum campo de atividade humana que não tenha sido em função do processo de retomada econômica do Rio de fortemente impactado pelo advento do novo coronavírus. Janeiro. No momento em que escrevo esse texto, a maior Testemunhamos forçosas (e talvez perenes) transformações parte dos alunos da rede pública de ensino continua sem em nossas esferas pessoais, familiares, comunitárias, profis- acesso à educação formal e o questionamento mais recorsionais, entre tantas outras. rente dos órgãos de comunicação segue sendo “como os
A cada dia surgem novos dilemas, muitas vezes emer- adultos podem exercer suas atividades profissionais a contengenciais, e tanto a resiliência quanto a escala de valores de to se as crianças não podem ser deixadas nas escolas?” A percada um vêm sendo colocadas à prova. Diante desse ce- gunta é pertinente, mas acredito que não deveria ser vista nário tão dramático e complexo questionamos: o quão es- como a mais importante. A escola não faz falta, pois a presencial a escola pode ser no contexto da pandemia? Quan- sença das crianças no lar dificulta o ofício dos pais. A esto tempo, dinheiro e esforço devemos investir para opor- cola faz falta pois, nela, as crianças descobrem, exploram, tunizar o acesso à educação formal para cada uma das nos- socializam e conquistam; enfim, vivem. Para a criança, a sas crianças? A qual nível de risco podemos sujeitar a nossa escola não é mera “preparação para a vida”. Para a criança, sociedade em prol da continuidade do processo de apren- a escola é vida em si. dizagem de nossos filhos? Há crianças das quais nos despedimos de forma trági-
Ao tentar responder esses questionamentos, me vejo es- ca e prematura, sem que elas tenham completado sequer sencialmente movido pela primazia conferida à educação dezoito anos. Por vezes, nesses momentos de pranto, nos pela Tradição e Cultura Judaicas. Sei que não sou o único. vemos considerando que tais jovens poderiam ter se tor-

nado “novos Alberts Einsteins” ou “novas Maries Curies”. Entendo e compartilho desse lamento, mas temo que, ao nos limitarmos a ele, esqueçamos do valor intrínseco da pessoa humana mesmo em tenra idade. Não falo apenas de crianças prodígio como as descritas pelo Midrash – o jovem Avraham que desafiou a idolatria de seu pai, a jovem Miriam que restabeleceu os casamentos entre os israelitas no Egito. Não penso somente nas vozes juvenis que tocaram o coração do mundo, como as de Anne Frank ou Malala Yousafzai.
Toda e qualquer criança preenche o mundo com brilho e esplendor advindos da sua própria existência e sua dignidade precisa ser devidamente resguardada. Como o diretor da presente revista tão elegantemente resumiu durante o período de confecção deste texto: “As crianças não são 'adultos em formação' e, sim, seres humanos completos, dentro de suas limitações físicas, que, de uma forma ou de outra, todos temos”. Cientes de tais limitações inerentes ao período da infância, o mundo adulto precisa assumir coletivamente a responsabilidade por zelar pelo melhor interesse das crianças e, na atualidade, o acesso à escola é fator indispensável para cumprir com esse princípio.
Graças ao grande comprometimento, adaptabilidade e determinação de incontáveis professores espalhados pelo mundo, muitas escolas conseguiram, de forma emergencial, desenvolver surpreendentes programas de Ensino à Distância (EAD) para a Educação Básica. Contudo, mesmo dentro dessas escolas privilegiadas, por variados fatores socioeconômicos, emocionais e cognitivos, muitos alunos não se viram em condições de usufruir a contento de tais programas. Mesmo nas piores crises, há espaço para reconhecermos oportunidades e nossa torcida é que o período de pandemia possa, ao menos, provocar discussões há muito postergadas e acelerar avanços de variados setores, incluindo o da educação.
O EAD na Educação Básica, por exemplo, sempre foi um tabu mas já começa a ser visto como uma ferramenta potencial para a democratização do ensino. Todavia, devemos reconhecer que essa modalidade não atende à necessidade de todos. Mesmo no Ensino Superior, em que o EAD é devidamente legitimado e amplamente oferecido, nem todos os estudantes se adequam à sua alta exigência de autonomia e organização pessoal. As crianças que não têm condições de estudar em EAD, por qualquer motivo

Ljupco/iStockphoto

que o seja, precisam ser lembradas. Mesmo no Ensino De fato, a curva de contágio aumen-
O Tratado de Avot contém duas pas- Superior, em que o EAD é ta à medida que aumenta a circulação de sagens aparentemente contraditórias no que diz respeito a postos de comando. Por devidamente legitimado pessoas. Mas então, combinemos o se guinte: adultos, nos últimos meses, te um lado, “em um lugar onde não houver lí- e amplamente oferecido, mos voltado a viver – de forma contida, deres, trate você de ser líder” (2:5) mas, por nem todos os estudantes de forma gradual, mas temos voltado a outro, “odeie cargos de liderança” (1:10). se adequam à sua alta viver – e não apenas nos esforçado a soProcurando conciliar as duas fontes, po- exigência de autonomia breviver. Nos disponhamos a, nos próxidemos entender que somos encorajados a assumir responsabilidade pelo bem coletie organização pessoal. mos três meses, fechar novamente os bares, as academias e os shoppings. Os savo, especialmente quando somos os mais lões de beleza, os templos, os pontos tucapacitados para tal, mas, ao mesmo tempo, devemos es- rísticos. Os cinemas, as praias, as pistas de dança. E, petar atentos aos riscos que circundam o poder e cientes do los próximos três meses, abramos as escolas. Nos mobilipeso incluído ao abraçarmos esse papel. zemos e providenciemos todos os espaços, equipamentos
Os últimos meses não têm sido gentis com nossos lí- e treinamentos necessários para a reabertura das escolas ser deres. As tomadas de decisão se tornaram tarefas ainda a mais segura possível – para todas as crianças –, indepenmais difíceis durante a pandemia. Contudo, mesmo dota- dentemente de idade, origem, cor de pele ou condição fido dessa compreensão e ciente de minha perspectiva limi- nanceira. Façamos uso da nossa criatividade, engenhosidatada e tendenciosa, não consigo evitar a sensação de que, de e boa vontade. Articulemos pontes e não nos afundeem vez de conferir a devida antecedência à pauta da edu- mos ainda mais em abismos políticos. cação, os governantes locais mantiveram-na entre as últi- Devemos fazer os devidos sacrifícios para não colapsar mas de suas listas. o sistema de saúde, mas, sempre quando de curva achata-
Na cidade do Rio de Janeiro, já vimos retornar todas as da e leitos dando vazão, oportunizemos o ensino presenatividades comerciais, culturais e sociais com a única exces- cial. Estendamos a liberdade de escolha para as famílias. são das escolas públicas. Essa situação não atenta só con- Que cada um possa viver de acordo com sua própria escatra os pressupostos judaicos e filosóficos previamente men- la de valores, sempre quando isso não fere os direitos escionados, mas contra o próprio senso comum e as orien- senciais dos demais. Estendamos também às crianças o ditações de importantes organizações de saúde. Assim como reito de viver e não apenas o de sobreviver. declarou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus: “Dadas as consequências devastadoras em crianças, André Frank é o diretor-geral da Escola TTH Barilan do Rio de jovens e na nossa sociedade como um todo, a decisão de fechar Janeiro, Mestre em Educação Judaica pela Universidade Hebraiescolas deve ser um último recurso, temporário, e apenas a ní- ca de Jerusalém e Mestrando em Gestão Escolar pela USP. Gravel local, em áreas com intensa transmissão”. Adicionalmen- duado em Design pela Universidade Mackenzie e pós-graduado te, o famoso código de conduta já determinava há muito em História Judaica pela Universidade Federal do Rio de Janeitempo: “Mulheres e crianças primeiro”. ro (UFRJ).
