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Literatura brasileira em Israel

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Um jovem carioca

Um jovem carioca

Entrevista com Jacques Fux

“Esta é a beleza da ficção. Você pode se apropriar de fatos reais, biográficos e mentirosos e misturar tudo, criar um grande amálgama que ninguém – nem o próprio autor – sabe ao certo o que é citação, intertexto, verdade ou ilusão.”

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Em fevereiro deste ano foi lançada em Israel a tradução para o hebraico do romance Antiterapias, do premiado escritor mineiro Jacques Fux. Em celebração desta “exportação” de cultura brasileira-judaica, entrevistamos o autor durante sua estada em Tel Aviv.

Devarim: Qual a sensação de ter um livro seu traduzido para o hebraico? O que você sentiu visitando Israel para o lançamento de Antiterapias? Foi muito diferente do que nas outras visitas?

JF: Um sonho feliz voltar a Israel, agora lançando o meu primeiro romance. Foi com esse livro que tudo começou, por ter sido premiado na minha estreia 1 e, assim, poder seguir com minha carreira literária. E, curiosamente, neste livro conto as minhas histórias no período em que morei no Kibutz Hatserim, as minhas histórias na Tnuá – Habonim Dror – na Escola Judaica Theodor Herzl em Belo Horizonte. A busca (e as muitas perdas) pelo amor, a Diáspora, o “ser judeu” e a minha formação enquanto leitor e autor. De volta a Israel, visitei muitos lugares e pessoas que apareceram no livro. Muito interessante essa mistura/amálgama entre as memórias, a literatura, o passado escrito e o presente redescoberto.

D: Conte um pouco sobre você. Sobre a sua educação judaica em Belo Horizonte, em casa, na escola e na tnuá, e a sua posterior inserção no mundo da matemática e da inteligência artificial.

1 Antiterapias venceu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2013.

Acima, lançamento em Israel do livro Antiterapias, de Jacques Fux.

JF: Sempre estive inserido no mundo judaico. Clube, escola, família e o Habonim Dror. Ah, a tnuá! Acho que foi a parte mais importante da minha formação, sem dúvida. Amigos, amores, saudades, lutas, engajamentos, discussões, machanot, shnat. Fui Maskir, sionista, um apaixonado pela cultura judaica e pela história. Estou impregnado de judaísmo, de valores e conhecimentos judaicos, mas não sou religioso. Tenho a possibilidade de conhecer muito sobre religião e valores judaicos sem ter fé, ou tendo uma “fé literária”. Minha formação foi bem eclética. Fiz engenharia elétrica, depois matemática, mestrado em computação, doutorado (e alguns pós-doutorados) em Literatura Comparada. Gosto de tudo, e sempre quis abraçar o conhecimento. Talvez seja por isso a minha escolha pela escrita – nesse mundo posso querer tudo, de todas as maneiras (como já disse o Pessoa).

Eu admiro profundamente a Matemática e os matemáticos. Os grandes problemas e as grandes soluções, apesar de difíceis e quase impossíveis de se entender, revelam poesia e arte. Para mim, o pessoal das Ciências Exatas ou Duras (como se diz na França) é artista, apesar de muitas vezes não saber disso. Assim, almejando aumentar as minhas possibilidades artísticas e literárias, caminho como um intruso na Matemática. Dou aulas de Cálculo, Equações Diferenciais e Álgebra e Inteligência Artificial, mas sempre tentando motivar os alunos pelos grandes problemas e pelas possíveis relações com a Literatura. A Literatura sempre me perturbou, principalmente quando li pela primeira vez Jorge Luis Borges. Eu lia e não entendia nada e me perguntava como aquilo poderia ser bom. O tempo foi passando e comecei a entender um pouco mais de Borges, encontrando ali algumas possibilidades matemáticas. Porém, desde pequeno, era um bom aluno nas ciências exatas e sempre imaginei que seguiria essa profissão.

D: Por que a literatura? O que o atraiu para ela?

JF: Encantado com Borges, e com sua matemática, lógica e ficção, fui atrás de outros escritores que também se utilizaram dessa área “exata” para escrever. Fiz uma tese de doutorado, que foi publicada sob o título: Literatura e Matemática, e escrevi muitos artigos acadêmicos. Apesar de gostar da academia, queria eu mesmo aplicar essas descobertas e constatações na minha literatura – e por isso me dediquei à ficção. A escrita ficcional é, mesmo que utilizemos regras e restrições, muito mais rica e sofisticada que a escrita acadêmica. Eu faço uso da teoria, mas constantemente a subverto e a contradigo, tudo isso como um recurso ficcional. E acho isso maravilhoso. O mais impor

tante é gostar de estudar. Gostar sempre de descobrir e aprender novas coisas. Fascinar-se com o conhecimento, com a poesia e a beleza dos mistérios das diferentes áreas do saber humano. O conhecimento diversificado me possibilitou abrir novos campos de estudo. Juntar áreas e pesquisas distintas. Assim, conhecendo um pouquinho de algumas coisas, pude propor alguns estudos e abordagens diferentes dentro da ficção e da literatura. Lugar onde me sinto feliz e quero continuar. D: Fale sobre seus livros, a tetralogia: Antiterapias, Brochadas, Meshugá e Nobel. Um pouco sobre cada um deles e como você construiu esse caminho.

JF: De posse do que aprendi e descobri na minha tese de doutorado – a questão do uso “disfarçado” de regras e restrições, dos problemas de acesso da memória, do testemunho dos sobreviventes e da formação do meu cânone literário –, resolvi escrever um texto ficcional. Foi algo ingênuo, sem muita expectativa, mas que acabou me lançando como escritor em virtude do livro ter recebido o Prêmio São Paulo de Literatura. Uma enorme alegria – e a certeza de que estava no caminho que sempre sonhei – tomou conta de mim. O Antiterapias vai além dos próprios conceitos da autoficção. O livro embaralha a noção de gênero e reinventa artifícios memorialísticos já que, muitas vezes, a memória do narrador é uma memória literária e não pessoal – mas que se confunde, de fato, com momentos vividos pelo autor/narrador. Esse projeto, a meu ver, amplia a noção de gênero, e subverte uma tentativa de classificação. Após Antiterapias, publiquei o Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor, a minha “Ilíada da impotência”, no qual intercalo relatos pessoais, troca de e-mails e esboço histórico sobre o tema, dando assim um aspecto ensaístico e um caráter híbrido ao texto. E de antemão aviso: “Tudo aqui é verdade, exceto o que não invento”. Esse livro nasce de um pé de página do Freud no livro O Mal-Estar na Civilização. Nessa passagem, Freud nos fala sobre a questão dos odores e de como, pelo fato de nos levantarmos e nos transformamos em seres bípedes, acabamos por recalcar o cheiro e privilegiar a atração pela “visão”. Daí surge a minha teoria dos desencontros – brochadas – já que na hora do sexo os cheiros irrompem. Não há como escondê-los e, portanto, se o cheiro não for atrativo não há o encontro. Essa ideia foi corroborada por artigos científicos publicados no início dos anos 2000. Outro aspecto que me chamou a atenção para escrever meus livros foi o fato de existir um mito sobre a hipersexualidade judaica. Se, como esse mito diz, é o povo que mais transa e mais, é compulsivo sexual, logo também, por raciocínio estatístico, tem que ser o povo que também mais brocha. Este livro, então, discute a história da sexualidade em Foucault, em Freud em Bataille, no judaísmo e nas minhas “próprias” relações sexuais. No meu terceiro livro ficcional Meshugá, como é dito logo nas primeiras linhas, trato dos mitos e das crenças atribuídas (pela cultura, pela História e muitas vezes pela ciência) ao louco judeu, ou ao judeu como louco potencial. Misturando dados históricos, literários e ficcionais de célebres personagens, o narrador entra na mente de seus protagonistas buscando construir seu próprio “ensaio sobre a loucura”. Este livro surge como uma continuação natural do Brochadas. Se lá resolvi dar um foco na questão da sexualidade, aqui, em Meshugá, decidi investigar a questão da loucura. Uma das teorias mais disseminadas era que a loucura estava diretamente relacionada à tara sexual judaica e também à ideia de o judeu ser um povo incestuoso. Fui atrás dessas teorias – absurdas – e pseudocientíficas e encontrei personagens e biografias “reais” para corroborar insanamente com essas suposições.

O livro, portanto, decide entrar na mente dessas figuras “famosas” (Woody Allen, Bob Fischer, Ron Jeremy) e entender a loucura deles – ou nossa? O livro é delicadamente construído, e os momentos ficcionais são tão engendrados que chega a confundir o leitor levando-o a acreditar que se trata de “biografias”, o que não é verdade. O narrador de Meshugá é tragado, numa espécie de efeito Zelig, por esses personagens que acabam sustentando ou ilustrando mitos que pretendia derrubar. Esta é a beleza da ficção. Você pode se apropriar de fatos reais, biográficos e mentirosos e misturar tudo, criar um grande amálgama que ninguém – nem o próprio autor – sabe ao certo o que é citação, intertexto, verdade ou ilusão. Dentro do domínio do texto, do livro, do pacto, tudo tem sua razão e sua autenticidade, mas não é necessário haver uma “comprovação”. Acho que a tnuá foi a parte mais importante da minha formação. Amigos, amores, saudades, lutas, engajamentos, discussões, machanot, shnat.

“Eu admiro profundamente a Matemática e os matemáticos. Os grandes problemas e as grandes soluções, apesar de difíceis e quase impossíveis de se entender, revelam poesia e arte.”

E, o que aconteceu de fato foi que o narrador Jacques Fux, que aparece no primeiro e no último capítulo, acaba introjetando todas as histórias de seus personagens e enlouquecendo. Em Antiterapias o narrador diz, ainda no primeiro capítulo: “A ideia do Nobel seria a visão que me desestabilizaria emocionalmente, como uma doce náusea, ainda bastante jovem. Deveria estar com tudo pronto para receber meu prêmio aos 33 anos. Mas a vida é cheia de obstáculos”. Aí se inaugura a tetralogia. A questão é que essa ideia acabou sendo criada – e os livros conversam bastante. Eu tinha que ganhar o Nobel no Antiterapias e, de fato, o ganhei em 2018. O Nobel é o meu discurso de recebimento!

D: Antiterapias ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura, foi traduzido para o hebraico e está sendo considerado por editores em outros países. Este reconhecimento faz você pensar em se dedicar exclusivamente à sua escrita? JF: Antiterapias foi traduzido para o espanhol, e o Meshugá para o italiano. Infelizmente ainda não posso viver só de literatura – é um sonho. As pessoas leem pouco e compram poucos livros. Mas, sigo na luta e esperando que um dia possa viver só disso, me dedicando integralmente às letras.

D: Você alguma vez leu a Torá como se estivesse lendo literatura?

JF: Sim. Sempre! É um dos mais importantes livros de literatura!

D: Finalmente, conte-nos um pouco sobre o livro infantil que você está lançando. Para que faixa etária você está escrevendo? Fazer literatura infantil é muito diferente do que escrever para adultos? O que o fez embarcar em mais esta empreitada? JF: O livro começa com a citação de Guimarães Rosa, “Queria a língua que se falava antes de Babel”. Foi a partir daí o mote para a escrita da obra. A ideia que norteia o livro é a ideia da “Torre ou da Biblioteca de Babel”. A ideia de unificação, de entendimento, de paz e concordância entre os povos e os seres do nosso mundo. E, se a “língua” falhou – como no mito de Babel – a proposta é que a matemática – que clama por uma universalidade – nos ajude a unir a compreensão.

Gosto de falar de grandes autores e grandes obras para crianças de todas as idades – nós, adultos, escritores ou leitores, também somos crianças que fazemos um pacto/contrato com o livro. E nos divertimos com ele. Então, falar de Rosa, Borges, Poe, Carroll, Perec – e muitos outros – é uma grande brincadeira para todos. O Enigma do Infinito é cheio de mistérios, palíndromos, lipogramas e enigmas, tanto nas entrelinhas quanto nas ilustrações. E, partindo dessa ideia da Torre de Babel, uma ideia mítica e mística, percorremos várias histórias, autores e mistérios, caminhando junto com o leitor por esse mundo fascinante dos mistérios das letras e dos números. O livro explica brincando esses conceitos. Falo das derrotas da “Torre de Babel” e falo, assim, falo sempre da A Torre da Derrota (que pode ser lido de trás para frente!). Conto do jogo da Torre de Hanói – que é bem simples – mas que, se jogarmos com muitas argolas, o jogo pode durar até o fim do mundo – ou até o dia em que as estrelas comecem a se apagar. É um grande barato!

As ilustrações também são fantásticas. A ilustradora/ inventora/autora Raquel Matsushita recriou e reinventou enigmas, paradoxos e mistérios nas figuras. Cabe ao leitor descobri-los! Está repleto, e repleto de sonhos, desejos e infinitos.

D: Muito obrigado e muito sucesso nas suas empreitadas!

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