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Cócegas no Raciocínio

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Em Poucas Palavras

Em Poucas Palavras

O PASSADO É O FUTURO DO PRESENTE

Paulo Geiger

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Recentemente, conversando sobre esse tiroteio ideológico dentro da comunidade, onde sobram balas perdidas e achadas, meu interlocutor me disse que, referindo-se a mim e à minha geração (ou seja, a ideias e posições de minha geração, que para muitos somos como elementos estranhos que o corpo expulsa antes que eles o infeccionem), muitos dizem que representamos, ou melhor, somos, o passado. Sim, não há como negar, o mundo corre apressado em direção ao futuro, não há tempo, há que chegar logo lá, cortar todos os caminhos possíveis. Na era da informação, progresso não mais se refere ao aumento do bem-estar e à ampliação da dignidade, e sim a rapidez e eficiência, tecnologia, algoritmos em vez de gente, telas iluminadas em vez de rostos de pessoas. Controle absoluto de nossas mentes, nossas presenças, nossas vontades e nossas intenções. Pôr em risco florestas, ecossistemas, o próprio ar que respiramos, o ozônio que nos protege, para alimentar “nosso” (não o meu!) desenfreado “progresso” nas cidades. Saber tudo que acontece no mesmo instante, quase nunca compreendendo o que significa. O que importa é mais, mais informação, mais instantaneidade, mais riqueza o mais rápido possível, mais crescimento, sugar hoje e agora tudo que o hoje e o agora podem oferecer. Quem vai usufruir disso? E quem ou o quê vai pagar por isso? A Terra aguenta isso? Até onde, até quando, para quem? Isso não importa. Quem viver, verá. O futuro dirá. Em último caso, Elon Musk já está preparando a fuga para Marte. O que é futuro? Aliás, o que são presente, passado e futuro? Lembrei-me de Heráclito, o filósofo grego que disse uma vez que um rio nunca é o mesmo, porque a água que estava aqui agora já não está mais, o ponto que era seu futuro é agora seu presente, o ponto em que estava presente há um átimo é agora seu passado. Assim também é o tempo. Só existe em forma de memória e de feitos do passado, e de um microssegundo chamado presente no qual o futuro se transforma em passado. A Torá também sabia disso. Em seu texto, um verbo flexionado no tempo futuro vira instantaneamente passado com o acréscimo da letra ‘vav’. Logo no primeiro parágrafo de Bereshit temos isso cinco vezes: vaiômer, vaiehi, vaiar, vaiavdel, vaikrá.

Tudo que existe veio do passado. Tudo que somos, ou sabemos que somos, ou pensamos que sabemos que somos, é nosso passado. O futuro é só uma intenção, que se transforma em fato, em passado, a cada microssegundo. Todos nós, todos os algoritmos, todas as tecnologias, todos os bens (e males) visam a esse futuro que se transforma instantaneamente em passado, e só o passado é a intenção (nossa, dos algoritmos, das

tecnologias) realizada, transformada em realidade. Sem o conhecimento do passado (saber quem somos e de onde viemos e o que fizemos de nosso futuro) e sem uma intenção de futuro não se sai do lugar. Mas para ter uma intenção de futuro é indispensável ter um ponto de partida, uma realidade, definida pelo passado. Todo esse papo pseudofilosófico é para dizer que nossas intenções, nossa pressa, nossa corrida célere só terá sentido quando se transformar em passado. E que o ponto de partida para isso é o passado que já existe. E para dizer, portanto, que “ser o passado” significa ter tido uma intenção de futuro que se realizou. E que a única forma de se avaliar a história, comparar ideias e ideologias, é comparar as intenções de futuro: as que se transformaram em passado e as que hoje se propõem a isso. Só assim se pode avaliar, por exemplo, o nazismo. Não é nos discursos de Hitler prometendo no futuro um Reich de mil anos. Mas no passado em que esse suposto futuro se transformou. Como identificar promessas de futuro que podem se transformar em passados semelhantes? Queremos promessas de futuro como as de 1984, de Orwell? Ou de Admirável mundo novo, de Huxley? Mas não me arvoro em filósofo, antropólogo, historiador ou profeta, portanto vou me restringir a meu próprio terreno, às intenções de futuro dos companheiros de minha geração de jovens judeus sionistas chalutzianos, intenções que se realizaram no que hoje é o passado com o qual nos identificamos e nos identificam. Nossa intenção foi participar da construção de uma pátria para o povo judeu, há 2.000 anos no exílio e, na nossa época, recém- -saído do Holocausto. Construção tinha significado literal, significava ir para lá, deixar Copacabana e a faculdade, redimir a terra, construir um país e uma sociedade. Ao mesmo tempo, defendê-los, servir no exército, estar pronto para lutar e até morrer. Ao mesmo tempo, revolucionar o caráter do povo judeu, fazê-lo de novo um povo de obreiros, que vive de seu próprio trabalho. Ao mesmo tempo, fazer desses valores uma forma de vida cotidiana, coletiva e cooperativa, sem classes, baseada na solidariedade e na igualdade. Ao mesmo tempo, ser um exemplo de um socialismo que não é o dos regimes e que pode conviver com outro regime, que vem de dentro para fora, não imposto e sim voluntário, sem senhores e sem mentores. Ao mesmo tempo, ser um fator, um exemplo para o mundo de uma sociedade igualitária possível, que não se impõe pela autoridade, pelo empoderamento, pela repressão. E ser parceiro de outros povos, reconhecer o ‘outro’ da ética grega, o que inclui nossos vizinhos, mesmo os que não têm o pedigree de uma história multimilenar. [Hoje chamam isso de ‘esquerda’ (o que é uma medalha de mérito para a ‘esquerda’) mas embolam com outras ‘esquerdas’ que tiveram e têm intenções diferentes. E com isso a palavra ‘esquerda’, assim como ‘passado’, passa a ser derrisória.]

Esta foi a intenção de futuro que se transformou no que hoje se chama de passado, porque realmente é. Devemos nos sentir diminuídos por sermos representantes desse passado?

Que passado nos aguarda a partir das atuais intenções de futuro, lá em cima descritas? A imensa conquista do desenvolvimento científico e tecnológico nos deveria prometer um futuro/passado melhor, mas não é o que parece estar acontecendo. Não é preciso ler Yuval Noah Harari – nem assistir a esses filmes que mostram um futuro distópico assustador, que nos divertem quando na verdade nos advertem – para ter noção disso. A pergunta relevante é se o passado que parece estar se anunciando das intenções e das ações do presente será melhor do que o passado que nos trouxe até aqui. E se for melhor, para quem? E se não for para todos, por que seria melhor? Não é tarde demais. Mas até quando haverá tempo? Que passado nos trará o futuro de nosso presente? Eu me orgulho do passado que dizem que sou. Espero que as novas gerações possam um dia dizer o mesmo.

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