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Resgatando a mitsvá da mikve no século XXI

A ideia que proponho é resgatar o mikve como um local de oração individual, em vez de focar apenas nas regras aparentemente misteriosas da purificação do corpo, como modelo, como paradigma para ajudar as pessoas a encontrar significado em um ritual que nunca sentiram antes como seu.

Foto: Nathalie Ventura

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Ester Silvia Dorfman

Todas as tradições religiosas usam a água para denotar mudança e transformação. No judaísmo, esta tradição recebe o nome de mikve. A imersão ritual é uma tradição antiga, sua origem remonta à Torá e subsequentes comentários rabínicos. A piscina do mikve lembra o estado aquoso em que cada um de nós estava antes do nascimento. O ritual de entrar e sair de “maim chaim” (águas vivas) cria tempo e espaço para reconhecer e abraçar uma nova etapa da vida. Mergulhar é mergulhar em novas conexões com a criação e com nossa espiritualidade. A água faz parte de uma narrativa sagrada, como quando os hebreus atravessaram as águas do Mar Vermelho ao deixar o Egito, marcando sua transformação de uma tribo de escravos a um povo livre.

As pessoas mergulham em um mikve para celebrar momentos de alegria, para marcar a recuperação após momentos de tristeza ou doença ou para comemorar transições e mudanças. Hoje, existem apenas alguns casos em que a imersão ainda é designada como mitsvá ou ato exigido pela lei judaica: para convertidos ao judaísmo, para noivas e para mulheres que observam nidá. 1 O mikve também tem sido usado para outros propósitos ao longo da história judaica, por exemplo, por homens antes do Shabat e chaguim, por mulheres no nono mês de gravidez. Hoje, as pessoas podem mergulhar para comemorar uma grande variedade de transições e ocasiões: antes da leitura da Torá pela primeira vez; antes ou depois de uma cirurgia; na ocasião de serem ordenados rabinos; ao se tornarem avós; nos aniversários.

1 Estado da mulher desde o começo de seu período menstrual até a passagem pela mikve.

Reza ao receber a 1ª menstruação 2

Antes do mergulho, dizem a mãe ou avó: “Você se junta hoje às mulheres do teu povo, às mulheres da tua família, quando teu corpo respondeu ao ciclo da lua. Que tuas luas sejam muitas e cheias de alegria E que seu corpo seja saudável e puro.” Responde a menina/mulher: “Eis que hoje me uno às mulheres de Israel, e mergulho em comemoração a esta nova etapa da minha vida.”

Uma mulher judia pode mergulhar no mikve para ajudar num processo de cura, após um aborto ou tentativa de suicídio, ou ao quebrar uma promessa que gera culpa e estresse. Idem para um garoto/garota antes de seu bar/bat mitsvá. Novos rituais podem ser criados, nos quais membros das nossas kehilot, sem se sentirem religiosamente obrigados a mergulhar, abraçam a mikve como parte de sua prática espiritual individualizada.

Os rabinos enraizaram nas leis a necessidade de purificar-se ritualmente após certas condições, como menstruação, emissão seminal masculina, certas doenças de pele ou contato com os mortos. Eliminar impurezas era uma condição prévia para entrar em contato com o sagrado, como se aproximar do santuário. Com a destruição do Templo, essas leis permaneceram obrigatórias para as mulheres e opcionais para os homens. Enquanto os judeus tradicionais continuam a usar o mikve para “pureza familiar”, a maioria dos judeus liberais raramente o faz.

O que poderia incentivar os judeus liberais a mergulhar nas águas do mikve?

Criação

“O mikve nos transporta para o passado quando mergulhamos no mundo da Criação. A raiz k-v-h que forma a palavra mikve aparece pela primeira vez em Gênesis 1: 9: “Que as águas sob o céu sejam coletadas [ikavu] em um só lugar”. Além disso, no verso seguinte, surge a expressão “mikve hamaim”, o nome dado aos mares, onde k-v-h conota “o encontro”. Este primeiro mikve está cheio de maim (água). No manuscrito hebraico mais arcaico, a letra mem é uma linha em zigue-zague, desenhada como ondas que lembram a água. É interessante notar que, em muitas línguas, o fonema “m” está associado à “mãe” (ima, umm, madre, mamá, etc.). A pessoa que submerge no banho ritual completamente cercada por água, nua, sem barreiras e sem tocar nos lados, se assemelha ao feto no ventre da mãe. A imersão se torna um retorno às sensações do útero, um retorno à nossa fonte e um ato de renovação.

Você não pode saber quem você é sem saber de onde você é. Esse retorno ao que aconteceu antes é, às vezes, uma maneira de amenizar os traumas do passado, para recomeçar a vida após uma experiência difícil. Por outro lado, às vezes é uma maneira de celebrar algo precioso na vida ou algo novo”. 3 Quando as letras da palavra mikve (mem, kuf, vav, hei) são reorganizadas, a palavra komá é formada e ela significa “em pé” ou “em plena estatura”. Paradoxalmente, para alcançar nossa estatura de completa espiritualidade e retornar à nossa verdadeira essência interior, precisamos remover todos os tipos de roupas e objetos físicos e mergulhar nas águas, nus do ego. Quando alguém está submerso, os vínculos com a Criação e com nossa espiritualidade se estendem ainda mais. Quando lembramos que fomos criados à imagem de Deus, o mikve se torna um lembrete do infinito dentro do finito, do imortal dentro do humano, das opções ilimitadas oferecidas à humanidade. Não é de surpreender que a Torá seja comparada à água na literatura rabínica. Mergulhar na água também é mergulhar no “Universo da Torá”, a fonte infinita de transformação do mundo.

Essa experiência do retorno ao útero nos reconecta com a fonte da vida e sua energia rejuvenescedora. Do estado primordial do “nada”, nasce um ego retificado e a capacidade de transformar nosso potencial puro no atual, nesse sentido a tevilá (o mergulho na mikve) reflete a criação de Deus do universo “algo a partir do nada”. Quando lembramos que fomos criados à imagem de Deus, o mikve se torna um lembrete do infinito dentro do finito, do imortal dentro do humano, das opções ilimitadas oferecidas à humanidade. A palavra mikve também pode estar relacionada à palavra tikvá, que significa esperança.

2 Parashat Hamaim – Imersão em água como uma oportunidade para renovação e crescimento espiritual, por Alona Lisitsa; Dalia Marx; Maya Leibovich, Tamar Dubdevani. 3 A Torá: Um Comentário das Mulheres, editado por Tamara Cohn Eskenazi e Andrea L. Weiss (Nova York: URJ Press e Women of Reform Judaism, 2008).

Espiritualidade “A água aparece pela primeira vez no segundo verso da história da criação: “E então o espírito de Deus (ruach) deslizou sobre a face das águas” (1:2). Assim, desde o início, a água está sempre ligada ao divino, ao espiritual. A espiritualidade em relação à água não tem necessariamente a ver com “pureza”. A pureza estava originalmente ligada à missão do Templo; e, como ele não mais existe, a purificação não precisa ser aplicada à imersão contemporânea. Ir a um mikve não é apenas um meio de lavar o passado, de eliminar o legado de algum “pecado”, mas também de se preparar para o futuro. É assim que funciona quando usado para se preparar para o Shabat e festas ou momentos importantes da vida. Neste caso, é praticado por mulheres e homens.

A lei judaica tradicional exige que apenas as mulheres vão ao mikve. No entanto, quando a imersão faz parte da vida sexual de um casal, ambas as partes o fazem, afirmando o compromisso de construir juntos. Fazer uma visita ao mikve como parte regular do ciclo de vida de um casal não implica uma negação da sexualidade, mas a decisão de um casal de estabelecer limites de tempo para ela.” 4 4 A Torá: Um Comentário das Mulheres, editado por Tamara Cohn Eskenazi e Andrea L. Weiss (Nova York: URJ Press e Women of Reform Judaism, 2008). O Talmud (BT. Yoma 69b) nos diz que sem paixão o mundo deixaria de existir. No entanto, a sexualidade, como a água, deve ser canalizada para que a vida floresça completamente. A paixão é estimulante, mas não é uma condição permanente. Além disso, pode ganhar intensidade quando os limites são estabelecidos, como é o caso da música, onde notas silenciosas sublinham a melodia. O tempo de inatividade (que pode ser limitado à menstruação no caso das mulheres), pontuado pelo mikve usado por ambas as partes, é uma forma de suspensão. Você pode deixar o espaço necessário para descobrir uma face diferente da outra, em uma tensão mais disciplinada. Em Gênesis 1, Deus cria o mundo separando as águas e depois retirando-as para dar espaço para que a terra e a vida apareçam. A raiz de acadia ku’u (um dos possíveis antecedentes da palavra hebraica kav) significa “esperar, esticar, sublinhar o estresse de perseverar ou esperar”. A expectativa é a estrutura romântica do amor e do desejo. O mikve reintroduz o outro como amigo; o amante é um amigo novamente, e o amigo é um amante.

Assim também reintroduz a espiritualidade em nossas vidas de maneira habitual. Os sábios rabínicos capturam o poder dos hábitos em sua determinação de que rituais frequentes prevalecem sobre rituais pouco frequentes (BT Sukkah 54b, 56a; Psachim 114a; Meguilá 29b); e em ouQuando lembramos que fomos criados à imagem de Deus, o mikve se torna um lembrete do infinito dentro do finito, do imortal dentro do humano, das opções ilimitadas oferecidas à humanidade.

tros lugares. Somos chamados a não construir a vida no excepcional, mas a renovar o comum, talvez um dos segredos de estar junto com outro na sociedade.

As leis de Taharat Hamishpachá, ou “de pureza familiar”, são frequentemente ridicularizadas como atribuindo vergonha à menstruação, como se as mulheres fossem ao mikve por estarem “contaminadas ou sujas”, contudo, a palavra hebraica usada no versículo de Levítico 15:24 não é a palavra meluchlach, que significa sujo, mas sim a palavra tamé, que significa impuro. Esta é a mesma palavra usada em referência à necessidade do Sumo Sacerdote de ir ao mikve (Levítico 21:24). Esta falta de pureza não tem uma conexão particular com as mulheres, nem está relacionada a estar fisicamente suja. A “pureza” tahará referida em ambos os casos indica um estado espiritual experimentado tanto pelo Sumo Sacerdote como pela mulher que menstrua.

A verdade é que ir à tevilá (imersão) não é limpar, mas permanecer vivo.

Por que digo isso? Os dois vão ao mikve quando encontram a morte e se apegam à vida. O Sumo Sacerdote deveria ir depois de entrar em contato com a morte (Levítico 21:1) ou antes de orar para que os pecados do povo fossem perdoados. Já a mulher menstruada honra o ovo que foi perdido, que nunca abrigará uma alma humana, ao abraçar um novo potencial de vida que agora pode conferir ao mundo, honra a morte de oportunidades perdidas, mas valoriza a vida que cria novas eleições.

Como modelo, faço uma tradução livre do poema (reza para após o período menstrual) da Rabina e Doutora Rachel Sabat Beit-Halachmi, Oração emergindo das águas da Tevilá:

Deixe cada parte do meu corpo fazer contato com água viva e renovada para o bem e criação. Deixe meus dedos dos pés e minhas pernas dançarem. Deixe-me apressar suas mitsvot Transformá-los em obras do bem. Deixe meus braços estarem receptivos para quem precisa de conforto. Que minhas mãos possam escrever palavras verdadeiras e de ensino. Que meus dedos gerem música e que eu possa brincar com amor. Que minha boca se encha de palavras de compaixão e minha língua de caridade e graça. Que meus lábios falem palavras da Torá e oração e que meus olhos vejam as maravilhas de Deus. Quão grandes são suas obras! Que os olhos reflitam o amor e a gratidão do corpo. Me dê a benção do amor e da esperança para o próximo mês.

Antiga mikve em sítio arqueológico em Jerusalém, Israel.

Na minha barriga, o ciclo de completitude e vazio,

como as fases da lua. Que seja sua vontade que me renove no caminho reto.

Vou renascer agora à imagem de Deus. 5 Da responsa 5756/6 da CCAR 6 , lemos: “... como judeus liberais que procuram afirmar nossa conexão com nosso povo em todas as terras e idades, devemos manter a prática tradicional na ausência de uma razão convincente para abandoná-la ou alterá-la”. Simplificando, não vemos nenhuma razão tão convincente para dizer “não” ao uso do mikve. Não é ofensivo, degradante ou desigual em sua aplicação, de alguma forma que o torne inaceitável para o nosso entendimento do judaísmo.

Primeiro, preserva nossa continuidade com a tradição judaica e o povo.

Segundo, nos permitiria expressar nossa solidariedade com os judeus progressistas de Israel e em outros lugares que a usam regularmente.

Terceiro, a adoção do mikve é uma declaração importante de nossa dedicação ao Klal Israel, a unidade do povo judeu. A questão não é que, ao exigir a imersão de nossos convertidos, tornamos nossas conversões aceitáveis aos olhos dos judeus ortodoxos. Nada do que fazemos alcançará este objetivo. Mas, usando o mikve, uma prática que de forma alguma compromete nossos princípios liberais, damos um passo que convencerá muitos rabinos conservadores a reconhecer nossas conversões como válidas ... ” A ideia que proponho é resgatar o mikve como um local de oração individual, em vez de focar apenas nas regras aparentemente misteriosas da purificação do corpo, como modelo, como paradigma para ajudar as pessoas a encontrar significado em um ritual que nunca sentiram antes como seu; é um lugar para os judeus se recuperarem após ou durante doenças ou em tempos de luto, todos os usos não tradicionais, incomuns e permitidos em outras correntes religiosas, um lugar onde judeus gays, lésbicas ou trans 5 Parashat Hamaim. 6 CCAR (Central Conference of American Rabbis) Responsas “Uma reforma adequada – Mikve”. também eles poderiam participar de rituais físicos antigos sem se preocupar com o olhar discriminatório ou expulsivo. Ou, por exemplo, pessoas após a mudança de gênero ou que queiram celebrar a obtenção do nome em hebraico, pessoas que vêm marcar eventos como o divórcio ou a recuperação do câncer.

Quando falo sobre resgatar o mikve, falo sobre tirar o tabu de nossas cabeças que significa estar ligado ao monopólio judaico que determina como praticamos o judaísmo, uma nova maneira de criar um espaço acolhedor e incorporar o princípio judaico de Hiddur Mitsvá (embelezamento da mitsvá), reunindo homens e mulheres que desejam ingressar na cadeia do ciclo de vida para recriá-la e se conectar com seu caminho.

Talvez o mikve moderno seja uma fonte de inspiração e renovação para os judeus de nascimento e para aqueles que desejam compartilhar nossa fé, que certamente forneça uma fonte de esperança para o futuro espiritual de muitos de nós; para alguns será apenas água e para outros, nosso depósito espiritual interno, sempre lá, sempre disponível, sempre pronto para a exploração de múltiplos e sagrados caminhos de encontro. Bibliografia “Entrando no Mikve”, Jane Solomon. Revista do judaísmo reformista CCAR (Central Conference of American Rabbis) Responsas. “Uma reforma adequada – Mikve” Rabino Lance J. Sussman, PhD e “Mergulhe no judaísmo: Reforma e o mikve”, Rabino Avraham Arieh Trugman. Tamar Paley. Jovens adultos IMPJ. A Torá: Um Comentário das Mulheres, editado por Tamara Cohn Eskenazi e Andrea L. Weiss (Nova York: URJ Press e Women of Reform Judaism, 2008). Levítico-Vaykra (12: 1-8, 15:16 e 11:36). Gênesis – Bereshit (1: 2; 1: 9) Parashat Hamaim – Imersão em água como uma oportunidade para renovação e crescimento espiritual, por Alona Lisitsa; Dalia Marx; Maya Leibovich, Tamar Dubdevani. Ester Silvia Dorfman é estudante do Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica. Traduzido do espanhol por Raul Cesar Gottlieb. A mikve é um lugar para os judeus se recuperarem após ou durante doenças ou em tempos de luto, todos os usos não tradicionais, incomuns e permitidos em outras correntes religiosas, um lugar onde judeus gays, lésbicas ou trans também eles poderiam participar de rituais físicos antigos sem se preocupar com o olhar discriminatório ou expulsivo.

| Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI Wildpixel/iStockphoto

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