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EDITORIAL O medo e o sonho

É a linguagem que molda a cultura ou a cultura que molda a linguagem? A resposta a esta pergunta tem mais repercussão que parece à primeira vista. Pois se for a linguagem que molda a cultura, bastaria adotar o linguajar politicamente correto para mudar o mundo. Se for ao contrário, a linguagem passa a ser a consequência das mudanças culturais que ocorrem por outros meios.

O judaísmo é uma antiga civilização cuja trajetória oferece uma bela plataforma para a compreensão de como se dá o desenvolvimento das culturas. Ela evidencia que o desenvolvimento da linguagem vem à reboque das mudanças culturais. Por exemplo, os judeus não desenvolveram o ladino porque almejavam morar na Península Ibérica e sim porque já estavam morando lá. As palavras e expressões são inventadas conforme a necessidade cultural do uso.

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O que efetivamente molda a cultura (e depois disso a linguagem) são as regras criadas pelos diversos grupos sociais e implementadas através do convívio cotidiano. Por exemplo, na primeira metade do século XX dar palmadas nos filhos não era mal visto. Isto mudou radicalmente. Hoje, uma pessoa que declara aplicar moderados castigos corporais como reforço pedagógico é imediatamente estigmatizada. Os amigos se distanciam e os convites sociais minguam.

O humano é um ser social e ser afastado ou mal visto pelo grupo é uma punição severa. Então a maioria se esforça em entender e caminhar dentro das normas (e absorver a linguagem) criadas pelo grupo. É assim que a mudança cultural acontece. Não se muda a cultura pela mudança da linguagem.

O crescimento dos atos antissemitas em nossos dias é fator de constante preocupação. Indignados com o fenômeno e na tentativa de refreá-lo, colocamos fora da lei livros e símbolos antissemitas e tentamos banir os discursos de ódio. Ou seja, tentamos mudar a cultura através do controle da expressão do antissemitismo (ou seja, da linguagem). É preciso reconhecer que o racismo (incluindo sua vertente antissemita) jamais vai desaparecer e que, então, os esforços têm que ser dirigidos para a contenção de sua proliferação e efeitos. E os esforços atuais não estão funcionando!

Uma extensa pesquisa sobre a percepção do antissemitismo, conduzida em maio e junho de 2018 pela União Europeia, revela não apenas o aumento do assédio antissemita no continente, como também joga uma luz a respeito dos grupos dos quais partem os ataques (1). Nas páginas 12 e 13 do documento se lê: “A normalização do antissemitismo é também evidenciada pela ampla variedade dos perpetradores, que abrangem todo o espectro político (2). As categorias de perpetradores mais frequentemente mencionadas nos mais sérios incidentes de assédio antissemita são: (i) 31% – Um desconhecido; (ii) 30% – Uma pessoa com uma visão muçulmana extremista; (iii) 21% – Uma pessoa com uma visão de esquerda; (iv) 16% – Um colega de trabalho ou de estudos; (v) 15% – Um amigo ou conhecido; (vi) 13% – Uma pessoa com visão de direita” (3).

Importante entender que estes números não revelam a proporção de antissemitas em cada grupo e sim, tão somente, de onde partem os assédios. Ao mesmo tempo, como o primeiro, terceiro e quarto itens da lista não revelam a visão política do perpetrador, eles podem ser ignorados para a análise que faço a seguir.

O segundo item da lista – pessoas com visão muçulmana extremista – preocupa, mas não surpreende. Como se sabe, o extremismo muçulmano se opõe agressivamente à existência do Estado de Israel e é virulentamente antissemita. Assim que, mesmo sendo a população muçulmana extremista uma pequena fração da população europeia, ela contribui com a maior quantidade de assédios.

A surpresa está concentrada na comparação entre o terceiro e o último itens: pessoas com visão de esquerda e de direita.

Era de se esperar que estes dois grupos apresentassem resultados semelhantes. Pois, por um lado, ambos são compostos por pessoas do mesmo arcabouço social (não é incomum que haja divisão esquerda-direita dentro de famílias, moradores de um bairro, apreciadores de arte, etc.) e, pelo outro lado, a quantidade de pessoas nos dois grupos parece ser equilibrada (conforme indicam os resultados das eleições europeias, onde a diferença entre o vencedor e o perdedor é quase sempre de poucos pontos percentuais – uma diferença de 11 pontos, como a da última eleição do Reino Unido, é considerada uma aberração histórica).

Mas o equilíbrio não existe! A percepção que o assédio foi cometido por alguém de esquerda é 60% superior à da direita, o que é uma grande surpresa, principalmente para quem cresceu em contato direto com relatos pessoais, filmes e livros sobre a Shoá. Para os que, como eu, foram educados neste caldo de cultura, a extrema-direita é a materialização da frase que lemos no Seder de Pessach: “ela she bechol dor vador omdim aleinu lechaloteinu” (eis que a cada geração se levantam para nos destruir). O sujeito na frase é indefinido: “Quem se levanta?” Para as gerações pós-Shoá a resposta aflora sem hesitação: a extrema-direita.

A pesquisa não mostra que há mais antissemitismo na esquerda do que na direita. Pode ser que nossos instintos estejam certos e que ele seja mais prevalente na extrema-direita do que na extrema-esquerda. Mas ela mostra claramente que ele se manifesta mais descaradamente na esquerda.

Por que será? Perdi o sono com essa questão. E cheguei a uma, inicialmente hesitante, conclusão baseado no que coloquei no começo deste texto: a esquerda sofre de menos censura social.

A esquerda é percebida, inclusive pelos que aderem às propostas da direita, com tintas românticas. A visão à esquerda é percebida como um sonho bonito que, mesmo quando se prova irrealizável ou descamba para a ditadura, conserva o seu valor espiritual. É esta aura que, por exemplo (um dentre muitos), empresta credibilidade às alegações espúrias de um movimento como o BDS, composto majoritariamente por pessoas de esquerda, que propõe a aberrante comparação do apartheid sul-africano com as vitais medidas de segurança de Israel, um país que outorga direitos iguais a todos os cidadãos, a tal ponto que a minoria árabe se revolta ruidosamente contra a esdrúxula proposta de ser transferida para a soberania Palestina.

Comparem também a quantidade de pessoas que vocês já viram passar com uma camisa de Che Guevara, um convicto extremista totalitário, com a quantidade de pessoas que usam a camisa de algum expoente da direita, mesmo a moderada e democrática. Até na Inglaterra há muito mais Guevaras que Churchills se exibindo pelas ruas.

E, assim, sendo a esquerda vista com muito mais benevolência do que a direita, ela se sente menos inibida, o que por sua vez resulta num maior afloramento da violência em suas franjas extremistas.

A análise que a falta de inibição social faz eclodir a violência é comprovada pelo medo que a Europa tem das reações dos extremistas islâmicos, medo este que constrange as ações para contê-los. Penso que o episódio mais emblemático deste medo foi a declaração do Papa Francisco após o atentado ao Charlie Hebdo, quando ele quase justificou a violência dizendo que se uma pessoa, até mesmo um amigo seu, insultar sua mãe vai levar um soco. Se o Papa sente a necessidade política de justificar o extremismo islâmico, o que acontece com os que têm menos condição de se defender?

Este temor inibe o repúdio inequívoco do antissemitismo prevalente no Islã radical-supremacista e, sem o freio da estigmatização, o fenômeno cresce sem controle.

Então, me parece que os atos antissemitas estão crescendo no mundo por dois motivos: por um lado, a carta branca (motivada pelo medo) dada aos radicais muçulmanos e, por outro lado, pela maior predisposição de tolerância que temos face à esquerda radical (que se beneficia do olhar romântico derramado à esquerda em geral), predisposição esta que inexiste no caso dos grupos de extrema-direita.

A contenção destes atos depende muito mais do inequívoco e incessante repúdio e combate social e legal às distorções aberrantes dos demonizadores de Israel, onde quer que se situem, do que do policiamento do discurso de ódio. Pois o segundo meramente deriva da nossa falha em entabular o primeiro.

Raul Cesar Gottlieb – Diretor de Devarim

(1) Foram entrevistados mais de 16.000 judeus em 12 países membros da UE, o que corresponde a aproximadamente 1,6% da população judaica destes países.

(2) Experiences and perceptions of antisemitism / 2nd survey on discrimination and hate crime against Jews in the EU: https://fra.europa.eu/sites/default/files/fra_ uploads/fra-2018-experiences-and-perceptions-of-antisemitism-survey_en.pdf

(3) "The normalisation of antisemitism is also evidenced by the wide range of perpetrators, which spans the entire social and political spectrum. The most frequently mentioned categories of perpetrators of the most serious incident of antisemitic harassment experienced by the respondents include someone they did not know (31%); someone with an extremist Muslim view (30%); someone with a left-wing political view (21%); a colleague from work or school/college (16%); an acquaintance or friend (15%); and someone with a right-wing political view (13%)." Notar que a soma dos valores não soma 100%, ou seja, existem respostas múltiplas. Um perpetrador pode ser uma colega de estudos com viés à direita.

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