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Genebra, da utopia para o projeto
Este artigo foi escrito e entregue a Devarim dias antes da revelação do Deal of the Century, o plano de paz de Trump para Israel e os palestinos. Evidentemente os detalhes não eram conhecidos, mas podia-se intuir sua direção geral, considerando seu autor e as circunstâncias, algumas semanas antes das eleições em Israel. Este artigo não é, portanto e no entanto, um contraponto ao plano de Trump, mas uma indicação – mais do que isso, uma constatação – de que, seja qual for o plano, ele terá de ser transformado num acordo, e não numa imposição, mas também de que seja qual for o plano, ele pode ser a base de uma negociação e de um acordo. Sem isso, não haverá uma paz verdadeira, sustentável, construída sobre o consenso de que um acordo é melhor do que uma vitória momentânea enquanto o conflito perdura.
O autor deste artigo não é contra o plano de Trump em si mesmo (embora não acredite que seja aceito pela outra parte do conflito, nem mesmo que seja aceitável para ela). Se foi lançado como ponto de partida para uma renovada negociação que leve a um acordo, bem-vindo seja. Se for aceito, realmente aceito, em sua integralidade, melhor ainda. Standing ovation. Mas de nada valerá como solução se for enfiado goela abaixo, imposto. Vitórias não substituem acordos, nenhuma das vitórias israelenses foi melhor que o acordo de paz com o Egito e com a Jordânia. O grande perigo é (Israel) não negociar com base nessa proposta, não fazer nenhuma concessão e se agarrar à proposta e a seus detalhes como o mínimo aceitável (culpando os palestinos pela recusa), e com isso avançar ainda mais no caminho, que a certa altura será sem volta, que leva ao fim da ideia de dois estados. O futuro de um só estado será o de ou não ser judaico ou não ser democrático, e o presente será o de uma imposição pela força, ou de sua própria destruição, se outras forças prevalecerem. As condições do acordo de Genebra não são melhores, para os israelenses, do que as do plano de Trump. Mas Genebra é uma prova de que no meio do caminho pode-se achar um ponto de inflexão que transforme utopia em realidade. Paulo Geiger Por que Jerusalém, símbolo de espiritualidade, de múltiplos credos, não pode ser a cidade única de todos os seus habitantes? Roma resolveu. É uma cidade 100% italiana, todos os seus habitantes são cidadãos italianos, mas ela abriga um outro estado.
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No último número de Devarim (Seção Cócegas no Raciocínio – última página, em Devarim 40, dezembro de 2019) prometi apresentar uma utopia não em forma de sonho, mas em forma de projeto. Aqui pretendo cumprir a promessa. Não preciso imaginar um projeto, ele existe, imaginado por outros: um acordo firmado entre representantes de Israel e do povo palestino para uma solução definitiva do conflito, formulado, debatido, aprovado e publicado entre 2003 e 2005 em Genebra, Suíça. Um acordo não só genérico, não só de princípios e conceitos, mas detalhado em todos os itens que constituem o cerne, a superfície e as consequências desse conflito de cem anos.
Evidentemente, não foi um acordo oficial, com o endosso das lideranças israelense e palestina. Se o fosse, já teria sido implementado, para o bem (de muitos) e para o mal (de muitos também). Mas não foi um acordo entre neófitos ou inocentes iludidos. O principal representante de Israel foi Iossi Beilin, que fora diretor do Ministério do Exterior. O dos palestinos, Yasser Abed Rabbo, várias vezes ministro no governo da Autoridade Palestina. Contou com o apoio explícito de Tony Blair, Jimmy Carter, Jacques Chirac, Bill Clinton, Vaclav Havel...
Evidente, também, que os porta-vozes oficiais o repudiaram. Não é preciso aqui explicar por quê. Também é impossível dizer que, se o acordo tivesse sido implementado, hoje o conflito estaria resolvido e a paz instalada. É mais do que razoável e racional supor que não. Há muitos outros fatores que não estiveram em Genebra, que não assinaram o acordo e que provavelmente não iam ficar impassíveis diante dele. Irã, Hamas, Hezbollah, grande parte dos palestinos que se dizem moderados mas não aceitam a ideia de que Israel é o estado nacional do povo judeu, nem sua existência, radicais islâmicos, anti-israelenses e antissemitas de raiz (da direita, da esquerda e do centro), extremistas nacionalistas e religiosos dos dois lados e dos outros lados também. Sem dúvida, sua implementação suscitaria riscos e ameaças, o que não seria novidade nem inovação. O que, então, teria de positivo com toda a certeza? A percepção, exatamente cem anos depois, de que o conflito não é inevitável, de que há lugar para as duas realizações nacionais, de que o acordo que houve até 1920 entre Haim
Weizmann e o emir Feiçal – que reconheciam mutuamente o direito do outro a um estado nacional – ainda é possível.
Tampouco quer dizer que TODAS as cláusulas aprovadas então sejam as que vão realmente vigorar num acordo real. Algumas, mais polêmicas (assentamentos, Jerusalém) certamente terão de ser revistas. Novas lideranças poderiam renegociar detalhes. Em 15 anos muita coisa mudou. Mas a utopia virou projeto, e se o princípio que fundamenta qualquer solução é o da não eliminação do outro, física ou nacional, base de qualquer projeto humanista e realista ao mesmo tempo, Genebra não foi um sonho ingênuo de visionários românticos ou imbecis alienados.
Entre todas as cláusulas (que são detalhadas no fundamento e na aplicação), resumindo as decisões mais importantes (para o acordo completo, procure o sr. Google 1 ). Em itálico, temas que serão comentados no fim do artigo. • Reconhecimento mútuo: cada estado reconhecerá o outro como estado legítimo. • Reconhecimento mútuo do direito de viver em paz, fim do terrorismo e da violência; as partes não participarão de coalizões ou acordos externos contra a outra parte. • Fronteiras de 4 de junho de 1967 com modificações de comum acordo (são apresentados mapas detalhados). Serão territórios invioláveis. Retirada dos israelenses dos assentamentos. Força multinacional de segurança supervisionando o cumprimento do acordo. • O estado palestino será desmilitarizado (apenas forças internas de segurança). • Não haverá incitamento de qualquer tipo à violência contra o outro ou a sua rejeição. • Retirada de equipamento e pessoal militar de Israel; haverá uma força de segurança israelense ao longo do Jordão por mais três anos, prazo extensível. • Capital dos dois estados na área de Jerusalém sob a soberania de cada um. O Muro Ocidental ficará sob soberania israelense. 1 https://geneva-accord.org/wp-content/uploads/2019/06/Portuguese.pdf • Solução do problema dos refugiados com direito de opção para residência permanente no território da Palestina, ou em outro país. Israel aceitará certo número de refugiados à sua discrição, número por ele estabelecido. Fim do status de refugiado para todos os refugiados palestinos, onde quer que estejam. • Fim de todas as reivindicações, sob qualquer aspecto. O acordo prossegue com todos os detalhes do processo de solução da questão dos refugiados, comitês de cooperação, utilização de rodovias, locais de significado religioso, fronteira, água, relações econômicas, prisioneiros palestinos, mecanismo de resolução de disputas. E submete o status final à aprovação do Conselho de Segurança e da Assembleia-Geral das Nações Unidas (para outorgar validade e legalidade internacionalmente reconhecida no principal fórum internacional, como base de futuras decisões e como recomendação ao reconhecimento por todas as nações-membros [isolando com isso as inevitáveis dissidências, como certamente a do Irã e de outros, e isolando definitivamente organizações, como Hamas, Hezbollah, BDSs, e alguns redutos de esquerda e direita antissemitas, inclusive acadêmicos]).
Claro que este plano, num primeiro momento, suscita mais rejeição do que apoio, e não só dos mais extremistas. Muita gente vai rir da ingenuidade de acreditar no outro, o inimigo declarado. Vai ver a armadilha armada, a emboscada sinistra. Mesmo a se acreditar na boa fé recíproca, quem garante que no futuro estas condições serão cumpridas? Além disso, reiterando o que já foi dito aqui, e me antecipando ao que muitos vão dizer balançando a cabeça, claro que muitos dos princípios, e das soluções, teriam de ser renegociados. Mas se o objetivo mútuo for, realmente, o do fim do conflito, não é utopia supor que novas soluções possam ser encontradas.
Por exemplo, eu teria minhas sugestões, ou pitacos, se assim o quiserem, para as duas controvertidas e dolorosas questões dos assentamentos e de Jerusalém.
No caso dos assentamentos, se a intenção é haver dois estados para dois povos, com respeito pela integridade terMuita gente vai rir da ingenuidade de acreditar no outro, o inimigo declarado. Vai ver a armadilha armada, a emboscada sinistra. Mesmo a se acreditar na boa fé recíproca, quem garante que no futuro estas condições serão cumpridas?
ritorial do outro, e se os assentamentos, apesar da aprovação por Trump, forem enclaves israelenses, anexados a Israel sem a concordância palestina, seriam uma violação do acordo. Mas não a presença física de judeus. Se existem centenas de milhares de árabes palestinos que são cidadãos israelenses “assentados” em Israel (muitos deles há centenas de anos), por que não poderia haver judeus, como cidadãos de dupla nacionalidade (isto é, também como cidadãos palestinos) ou não (ou seja, apenas como cidadãos estrangeiros) assentados na Palestina? Pagando impostos à Palestina? Respeitando as leis palestinas [que teriam, por sua vez, de levar em consideração a particularidade desses cidadãos estrangeiros (cultural, religiosa, familiar etc.)]? E contanto que isso não constitua um processo em aberto para mais assentamentos, mais enclaves sem a concordância dos palestinos, mas que seja possível como em toda política imigratória de todo país. Se em Israel pode haver e há minorias não judaicas, inclusive árabes e islâmicas, por que a Palestina quer ser e teria de ser judenrein? Quanto a Jerusalém, não creio que seja uma boa solução uma cidade dividida entre duas nações por uma muralha. A última delas caiu em 1990. Naomi Shemer, em seu esplêndido verso “e em seu coração uma muralha”, anterior à unificação de Jerusalém, expressa a dor e o surrealismo dessa imagem e dessa condição. Por que Jerusalém, símbolo de espiritualidade, de múltiplos credos, não pode ser a cidade única de todos os seus habitantes? Porque, já viria a resposta, os palestinos a querem como capital, mas ela é a capital do povo judeu há 3.000 anos, e de Israel há quase 72. Como resolver isso?
Roma resolveu. É uma cidade 100% italiana, todos os seus habitantes são cidadãos italianos, mas ela abriga um outro estado. Por que uma cidade 100% israelense não pode abrigar não um estado, mas a capital de outro estado? Como uma embaixada, um território estrangeiro dentro de uma área sob outra soberania?
Amós Oz escreveu que para resolver problemas aparentemente insolúveis, basta um pouco de imaginação. E de humor também.
Risco sempre haverá. A pergunta é se a recompensa vale o risco.
Voltando ao começo, à questão da utopia: as possibilidades estão sufocadas pelas impossibilidades. Mas só se constrói um futuro com possibilidades.
Paulo Geiger é membro do Conselho Editorial de Devarim.

| Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI Wildpixel/iStockphoto

