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Nomear o que não tem nome
Rabino Sergio Bergman
Assim como o D’us 1 de Israel se manifesta em múltiplas formas e seus setenta nomes são aproximações à sua essência como nomes que não o nomeiam, que não podem contê-lo ou abrangê-lo em sua onisciência, onipotência e onipresença, poderíamos dizer, da mesma maneira, que a Shoá manifesta a ausência mais absoluta de D’us. É de forma análoga, por oposição, o termo hebraico para nomear o que não tem nome.
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Como expressar esse horror devastador e colocar em uma palavra o assassinato sistemático em escala industrial de seis milhões de judeus – incluindo mais de um milhão e meio de crianças – que a tecnologia da morte alemã gerou sob o comando do nazismo – na Europa ilustrada e civilizada, diante da indiferença do mundo –, negando a dignidade humana e eliminando os outros pelo fato de serem diferentes? Foi uma perseguição que começou racista, continuou com a eliminação de pessoas com deficiência, estendida a homossexuais, ciganos e opositores do regime; e alcançou um nível de antissemitismo em escala sem precedentes. A Shoá 2 devastou a vida judaica europeia e fez com que uma nação culta,
1 De acordo com a religião judaica, o nome de D’us não se escreve com todas as letras, pois não há representação Dele. Como a linguagem constrói a realidade, escrever a palavra “deus” significaria limitá-la em sua limitação e sua perfeição de ser, nomear o inominável, descrever o indescritível, humanizar o transcendente. É um valor positivo de respeito e de consideração. 2 Shoá é o termo hebraico usado no Tanach para nomear a destruição incontrolável; a calamidade; a catástrofe (aparece pela primeira vez em Yeshaiahu / Isaías 10:3).
Página anterior: Monumento ao Holocausto em Berlim, Alemanha. Foto: Nathalie Ventura
que, degradada, permitiu que não apenas os nazistas, mas toda a sociedade alemã – como a dos países ocupados –, participasse com entusiasmo ou indiferença da execução dos judeus pelo simples fato de sê-lo.
O nazismo não eliminou apenas judeus; mas o judaísmo foi a única razão pela qual seis milhões de seres humanos foram condenados. Eles não eram inimigos, não ocupavam territórios estratégicos, não opunham resistência ao domínio do Reich, mas eram, isto sim, testemunhas de séculos de perseguição e, ao mesmo tempo, de resiliência e continuidade de uma civilização religiosa que põe à prova o desafio a uma humanidade que ainda não é humana.
Enquanto a Shoá expressa o que não tem representação possível em sua dimensão de horror, não há dúvida de que o termo geralmente usado para nomear essa experiência aterradora de degradação do ser humano é inaceitável. A Shoá não foi um holocausto. Usar esse termo é uma licença que não podemos conceder. Um holocausto, em sua etimologia grega, significa algo completamente queimado. Na esfera religiosa, é o sacrifício de animais, cujos corpos são completamente consumidos no fogo como uma oferenda à divindade.
A Bíblia menciona cinco tipos de sacrifícios (ofertas) a D’us: o holocausto, a oferta de cereais, a oferta de paz, a oferta pelo pecado e a oferta expiatória. São eles: • Olá, holocausto, é voluntária, é uma expiação de pecado não intencional, expressando amor e devoção a D’us (Vaykrá / Levítico 1:3-17, 6:8-13). • Minchá, a oblação, é voluntária, expressa amor, gratidão e devoção a D’us (Vaykrá / Levítico 2:1-16, 6:14-18, 7:12-13). • Shalom, a oferta de paz, é voluntária, expressa paz, comunhão e gratidão a D’us (Vaykrá / Levítico 3:1- 17, 7:11-21, 7:28-34). • Chatat, causado por pecado, é obrigatória, expressa a confissão de um pecado não intencional específiNão foi holocausto o que se deu por encerrado há 75 anos quando Auschwitz foi liberado. Foi Shoá – que não será uma ação militar de libertação, mas cultural de evolução –, que terminará quando a humanidade for humana e todos assumirmos que o perigo ainda não acabou.
Acima: Monumento ao Holocausto em Berlim, Alemanha. Foto: Nathalie Ventura Na página seguinte: Memorial exibe fotografias de judeus assassinados no Holocausto em antigo prédio do gueto de Varsóvia, Polônia.

Monumento e fachada do Museu do Holocausto na cidade de Skopje, Macedônia.

co e busca o perdão de D’us e a purificação quando não há possibilidade de restituição (Vaykrá / Levítico 4:1-5 13, 6:24-30). • Asham, a expiação, é obrigatória, expressa a confissão de um pecado específico não intencional ou intencional, mas confessado voluntariamente, sendo a restituição possível e obrigatória (Vaykrá / Levítico 5,14:6,7, 7:1-7). Entendendo, então, que esses são os diferentes sacrifícios-ofertas especificados no Livro de Levítico, como é possível igualar a Shoá a essas categorias?
Eu insisto: não podemos aceitar o termo holocausto. Não foi esse o caso. O que aconteceu é uma Shoá, uma catástrofe que arrancou a existência e a vida de maneira violenta e comovente, em uma confirmação retumbante de que a humanidade – por ação e omissão – perdeu esse atributo ao aniquilar com plena consciência e intenção outros seres humanos, apenas por serem judeus. Uma expressão exponencial de um antissemitismo que já tinha raízes antigas nos Pais da Igreja; e se estende até hoje em manifestações de negação.
Não foi holocausto o que se deu por encerrado há 75 anos quando Auschwitz foi liberado. Foi Shoá – que não será uma ação militar de libertação, mas cultural de evolução –, que terminará quando a humanidade for humana e todos assumirmos que o perigo ainda não acabou. Não terminou para os judeus, nem até os dias de hoje, quando somos capazes de assistir em silêncio cúmplice como outros seres humanos são eliminados por serem diferentes. Todos juntos, e não por sermos judeus, mas humanos, somos testemunhas de que o monstro mudou, que continua a sofrer mutações e que vive ativo ou latente entre nós, sempre. Não esquecer é o que devemos aos mortos e à memória dos Shoá.
Sergio Bergman é rabino e vive em Buenos Aires. Formado pela Faculdade de Farmácia e Bioquímica da Universidade de Buenos Aires (1986); Mestre em Educação, Sum Cum Laude, pela Universidade Hebraica de Jerusalém (1993); Mestre em Estudos Judaicos no Seminário Teológico Judaico (1992) e Mestre em Literatura Ra bínica no Hebrew Union College (1993). Presidente da Fundación Argentina Ciudadana, uma organização da sociedade civil dedicada a promover a participação ativa e o envolvimento do cidadão. Rece beu inúmeros prêmios concedidos por organizações nacionais e internacionais em reconhecimento ao seu desempenho acadêmico e seu contínuo trabalho social. Ele é autor de sete livros, entre eles: Ci dadão da Argentina com textos bíblicos, com prólogo do então cardeal Jorge Bergoglio. Foi legislador da cidade e se tornou o primeiro rabino do país eleito para uma posição representativa. Em 2013, ele atuou como deputado nacional. Com a ascenção de Mauricio Macri à presidência da Argentina em 2015, foi nomeado chefe do Minis tério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Nação.
Traduzido do espanhol por Raul Cesar Gottlieb.


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