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A Tosefta, talvez o mais judaico dos livros

Temos uma cultura fantástica! Ela não permite que aquilo que não foi considerado legal ou autêntico por uma geração seja desprezado, na esperança que sirva como lição para outras gerações. Nada é perdido! Nem as opiniões perdedoras, pois elas podem ter valor no futuro.

Página anterior: A Tosefta para o Seder Mo‘ed, 1400-1499, exemplar da British Library.

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Rabino Dario E. Bialer

Rabi Avahu estava em Tveria. Os discípulos de Rav Yochanan notaram o brilho em seu rosto e disseram ao mestre: “Rabi Avahu deve ter encontrado um tesouro”. Ele lhes perguntou: “Por quê?”, eles responderam, “Eis que seu rosto está brilhando”. Rav Yochanan retrucou: “Talvez ele tenha achado um novo ensinamento na Torá”. Os discípulos de Rav Yochanan foram até Rabi Avahu e perguntaram: “Que novo ensinamento você aprendeu?”, ao que Rabi Avahu respondeu: “Uma antiga Tosefta”.

Diz-se de Rabi Avahu: “A sabedoria de uma pessoa ilumina seu rosto”.

Talmud Yerushalmi, Shabat Capítulo 8, Halachá 1 Talmud Bavli 54b L embro de um episódio bastante traumático que aconteceu comigo enquanto ainda adolescente e que poucas vezes contei a alguém. Eu tinha 16 anos quando uma bomba do terrorismo islâmico, contando com a cumplicidade e a corrupção do governo argentino, destruiu o centro mais emblemático da comunidade judaica na Argentina.

Ali me encontrava eu, numa montanha de escombros, tirando pedras e mais pedras de forma atabalhoada, procurando ansiosamente por algum indício de vida. Mas cada vez que minhas mãos encontravam um livro, e não importava qual era, se em espanhol, hebraico ou ídiche, livro de religião ou de qualquer outro assunto, eu fazia uma pausa e com cuidado colocava-o de lado, no intuito de salvá-lo também.

Fiz isso algumas vezes até que um soldado israelense, que tinha viajado desde a terra ancestral do povo do livro, se aproximou de mim com um olhar de reprovação e falou: não é para isso que estamos aqui. Estamos aqui para salvar vidas.

Concordei inteiramente com a crítica do soldado e talvez por isso essa história tenha ficado escondida na minha memória até agora. Mas igualmente reconheço que aquele jovem (eu) buscava preservar uma identidade, cuja sobrevivência também estava ameaçada e cujo destino repousa na decisão de cada um que a toma em suas mãos. Eu seguramente errei quanto ao momento e à urgência, mas não quanto à certeza de que não obstante o prédio ter sido derrubado, se as palavras continuassem vivas elas seriam uma pequena vitória sobre a bomba.

Se a palavra, seja ela falada ou escrita, é a chave da continuidade judaica, então o resgate do livro também tem algo de missão sagrada.

E eu sei que foi exatamente isso que meus avós fizeram quando, entre os poucos pertences que salvaram da Europa nazista, trouxeram alguns livros. E sei também que foi esse mesmo senso de dever sagrado que impeliu alguns sábios, há dois mil anos, resgatar a Tosefta da escuridão. Eles sabiam-se guardiões de uma luz que ainda tinha muito que iluminar. O que é a Tosefta e qual será aquela luz? Tosefta significa literalmente “um adicional” ou “um suplemento” à tradição haláchica e hagádica.

No final do século II da era comum, Rabi Yehuda ha Nassi, realizou a monumental tarefa de compilar Mishná, o registro das discussões entre os rabinos, uma obra fundamental que serviria como base para o que posteriormente viria a ser o Talmud. Até então a cultura que evoluiu do Tanach era transmitida de boca em boca (por isso ela ainda se chama “oral” séculos depois de ter sido colocada por escrito), de mestre a discípulo. Rabi Yehuda entendeu que a vasta quantidade de material disponível demandava uma editoração por escrito, pois se sua conservação dependesse apenas da memória e repetição, em algum momento o material acabaria se perdendo e/ou se corrompendo pelo fenômeno natural da comunicação oral, expresso pelo dito brasileiro: “Quem conta um conto aumenta um ponto”.

Nesse sentido, o trabalho de Rabi Yehuda foi fundamental e superlativo, mas também não podemos desconhecer que foi arbitrário. Compilar é o exercício de reunir numa mesma obra partes ou estratos procedentes de fontes diversas e a atividade de Rabi Yehuda envolveu também uma seleção.

Nos informa um texto de Alieza Salzberg: “Acredita- -se que o Rabi Yehuda ha Nassi compilou a Mishná tomando muitas decisões editoriais, incluindo mudanças no idioma, no formato e dando voz às posições que melhor se encaixavam em sua visão de mundo 1 .” A tarefa de Rabi Yehuda, além de preservar o compilado na Mishná, ao mesmo tempo confinou ao esquecimento o material que ele não incorporou à sua obra. Material este que era tão prolífico que superava em mais de três vezes o volume do material introduzido na Mishná. E assim, como a obra canônica tem como objetivo preservar a palavra, o que fica de fora resulta apócrifo e portanto desconsiderado e abandonado.

A definição para “apócrifo” é: “Texto religioso que carece de autoridade canônica” (um conceito que se encaixa perfeitamente na Tosefta), mas no mesmo dicionário há um outro significado referente ao reino da literatura, segundo o qual “apócrifo” quer dizer “obra ou fato não autêntico, falsamente atribuído a determinado autor; falso, suposto”. 2 Acontece que o judaísmo cimentou suas bases a partir do pluralismo e da diversidade. Então, qual sábio poderia dormir tranquilo sabendo que uma imensa montanha de ideias e raciocínios, emoções e argumentos, tão interessantes quanto inéditos, acabariam se perdendo? Quando eles viram isso 3 , resolveram se dedicar à tarefa de compilar o material desprezado por Rabi Yehuda, que em qualquer outra cultura teria se perdido. Eles editaram a Tosefta, o livro que reúne as opiniões rejeitadas pela Mish1 https://www.myjewishlearning.com/article/Mishná-Tosefta/ – item “History of the Debate”. 2 Essa definição é do dicionário eletrônico Michaelis. 3 De acordo com Talmud foi Rabi Hiyya, do circulo mais íntimo de discípulos do próprio Rabi Yehuda, quem tomou a iniciativa – ver Sahnedrin 33a – e entre os eruditos há consenso que a Tosefta foi composta num período histórico bem próximo ao da Mishná. Joga-se no lixo muita riqueza. Perdem-se muitas oportunidades pela impaciência e pela soberba de pensar que “já sei e tenho tudo o que preciso”.

Fragmento de Tosefta de uma geniza, Cambridge University Library.

ná, preservando versões não apenas tão relevantes quanto às da Mishná, senão que em muitos casos mais autênticas, pois são fontes mais próximas da tradição original, posto que não passaram pela caneta vermelha de Rabi Yehuda. Mais uma vez nos informa Alieza Salzberg: “Para as mentes curiosas dos rabinos talmúdicos, as opiniões não canonizadas não estavam fora dos limites, apesar de terem sido nomeadas baraitot – estrangeiras. O debate talmúdico ultrapassou a tentativa da Mishná de se revestir de autoridade legal, da mesma forma como o comentário sobre os textos judaicos continuou a florescer ao longo dos séculos 4 .” Em muitos aspectos, a Tosefta e a Mishná são idênticas, mantendo uma mesma estrutura, o mesmo idioma (hebraico), as mesmas regras legais e os mesmos Tanaítas (denominação dos rabinos daquele período) citados na Mishná.

4 https://www.myjewishlearning.com/article/Mishná-Tosefta/ – item “On Canonization”.

A história escrita também pelos perdedores

Temos uma cultura fantástica! Ela não permite que aquilo que não foi considerado legal ou autêntico por uma geração (ou por um grupo de gerações) seja desprezado, na esperança que sirva como lição para outras gerações, Nada é perdido! Nem as opiniões perdedoras, pois elas podem ter valor no futuro.

Diz-se que a história é escrita pelos vencedores, mas no caso do judaísmo, os perdedores também a escrevem. Este é um fiel retrato da cultura judaica. Uma cultura inclusiva e diversa, na qual os vencedores e os vencidos têm a mesma oportunidade de serem ouvidos.

Um dos pilares do sucesso do Estado de Israel como uma “Start Up Nation” é o não esmorecimento diante dos fracassos, é a recusa em descartar os que falharam em suas primeiras tentativas, em considerar também o que foi rejeitado. A obstinação dos sábios que compilaram a Tosefta parece ter criado um dos motores que impulsiona o frené

tico desenvolvimento da ciência e da tecnologia que experimentamos hoje.

O judaísmo não se apressa em descartar senão que se ocupa em reciclar. Jogar fora o que acreditamos não precisar agora é símbolo de imaturidade.

Temos a tendência a descartar muito rápido o que não se encaixa na nossa visão de mundo. Descartam-se ideias, opiniões, experiências e relacionamentos. Joga-se no lixo muita riqueza. Perdem-se muitas oportunidades pela impaciência e pela soberba de pensar que “já sei e tenho tudo o que preciso”.

Já nossos sábios sabiam que para ter tudo era preciso ter um colega com quem discordar, com quem discutir, a quem desafiar. Era preciso ser desafiado, exposto e testado. Qual empresa, qual comunidade, faz isto? Quem preserva o que deu errado, quem preserva o que foi rejeitado pela maioria? A minha resposta é: as que têm sucesso, pois as que aprendem com os erros têm condição de avançar. Sabem o que me comove especialmente na Tosefta? Os sábios que recolheram entre as cinzas ensinamentos derrotados antes que fossem perdidos nas sombras apócrifas do esquecimento. Eles acreditavam no valor do resgate sem se importar nem com o autor do texto nem com seu conteúdo. Até mesmo os filhos e discípulos de Rabi Yehuda ha Nassi constam da Tosefta, não obstante terem sido excluídos pelo pai e mestre da narrativa oficial. Não importava aos “tosafistas” se o texto era a favor do ou contra o que pensavam. Ao costurar cada fragmento permitiram que chegassem até nós todas as palavras. O mais judaico dos livros Talvez por isso a Tosefta seja o mais judaico dos livros. Porque ele ensina a mais judaica das lições: o valor do retorno, do arrependimento, das segundas oportunidades, de que nada é definitivo, de que sempre há uma forma de voltar. O valor supremo da esperança. Que nada nem ninguém é condenado ao esquecimento. É isso que animou os compiladores da Tosefta e é isto que anima e distingue o mundo judaico até hoje.

A evolução não é necessariamente uma construção linear, que avança até chegar ao ponto máximo. Ela é um conjunto de construções, com idas e voltas, com contradições, verdades e outras verdades, e outras e outras. Todas verdades, mas nenhuma absoluta. A Tosefta é o livro sagrado do profano. Que entrelaça o apócrifo e o revelado, o rejeitado e o resgatado.

O divino e o humano dialogando no texto. Os vencedores e os vencidos. E resgata o que estava destinado ao esquecimento.

Há tanta beleza na vida, tanta verdade, tantas oportunidades que se perdem! Ninguém as enxerga. Passamos por alto. Descartamos sem pensar duas vezes condenando à escuridão o que poderia ter iluminado revelando-nos um mundo diferente. A história da Tosefta é fascinante pois ela nos ensina que ganhar e perder, que absorver e descartar, que abraçar e rejeitar, são de fato exercícios que praticamos de forma permanente e simultânea ao longo da vida.

Em qualquer outra cultura, as palavras da Tosefta jamais teriam sobrevivido.

Mas, no judaísmo, preservar todas as vozes, especialmente as dissonantes, é parte inseparável da vida. Desde que o judaísmo se estruturou como povo, na saída do Egito, ele se comprometeu a cuidar dos despossuídos, se ocupou em preservar a voz das minorias, dos mais retraídos, dos que não prevaleceram, qualquer que seja o motivo. Tantos discursos vão ficando pelo caminho, mas quando um sábio os descartam outros vêm atrás e os recolhem com paciência devolvendo-os ao lugar que lhes pertencem – ao altar da memória, do consagrado, para que outras mãos e outras vozes as possam continuar estruturando, um futuro de dialética e reflexão. Uma prática que dê sentido a tanto esforço e erudição. A Tosefta é um livro antigo, muito antigo, mas é também um livro novo. Toda vez que nós, eu ou você, damos valor à Tosefta, passamos a ser seus autores à nossa própria imagem. E à imagem dos sábios. E à imagem de Rabi Yehuda. E à imagem de Deus. O Rabino Dario E. Bialer serve na ARI – Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro. A Tosefta é o livro sagrado do profano. Que entrelaça o apócrifo e o revelado, o rejeitado e o resgatado. O divino e o humano dialogando no texto. Os vencedores e os vencidos. E resgata o que estava destinado ao esquecimento.

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