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Lavar as mãos sem lavar as mãos
Era o mês de outubro do ano de 1347. Navios chegavam da Criméia para a Sicília. Traziam, além de carga e passageiros, ratos. Esses ratos, por sua vez, traziam doença que se espalhava pela Europa, causando inúmeras vítimas. Em janeiro do ano seguinte – 1348 – a doença foi julgada eliminada. No entanto, com a chegada da primavera naquele ano, voltou a se alastrar de modo avassalador. Além das condições climáticas, a inexistência de um sistema sanitário – uma vez que o esgoto era eliminado nas próprias ruas a céu aberto – provocou muitíssimas vítimas. Os registros apontam 25 milhões de pessoas.
Em qualquer período e lugar este número é assustador, e se torna ainda mais apavorante por corresponder a um terço da população europeia do século XIV. Era a peste bubônica, cuja causa era na época desconhecida. A ignorância foi instantaneamente preenchida pelo preconceito que atribuiu a culpa aos judeus. Judeus foram – como bodes expiatórios – acusados de intencionarem a morte de cristãos a ser executada através da feitiçaria e do envenenamento de poços d´água.
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A falsidade da acusação foi irrelevante diante do ódio que impregnava as massas. Um ódio alimentado pelo preconceito que destilava há tempos, tanto é que, anos antes, em 1337, judeus de Provença foram acusados de trazer doenças que se espalhavam pela Europa. E um ódio que contava com a complacência de muitos, como o Czar Ivan IV, que corroborava as agressões ao afirmar que “os judeus importam ervas danosas à nossos reinos”, e o Imperador Carlos IV, que deu imunidade às hordas que matavam, queimavam e torturavam judeus e suas comunidades. Muitos se aproveitavam para confiscar propriedades dos judeus e a nobreza do sistema feudal europeu para aniquilar alguns de seus credores (1).
A barbárie era tão intensa que o próprio Papa Clemente VI tentou intervir negando a responsabilidade dos judeus pela disseminação da peste. No entanto, à exceção de Avignon – localidade na França que naquele período era a residência papal – a mensagem do Papa não surtiu efeito. A matança prosseguiu. Fica a lição da história de como, diante do medo, o ódio impregnado e o preconceito cultivado são forças que, manipuladas, podem sobrepor a razão e as hierarquias institucionais. E mais, alavancar o fanatismo. Foi o que aconteceu: junto com a peste bubônica floresceu a epidemia do ódio acrescida do fanatismo de seitas, como o culto dos Flamejantes, que tinham como propósito apaziguar a ira divina na intenção, dentro de sua crença, de cessar a peste através de uma prática ascética. O incremento desse culto, condenado pela Igreja, era também insanamente atribuído aos judeus.
A percepção preponderante era a de que o número de judeus vitimados pela peste bubônica era menor do que o restante da população, justificando as alegações dos perpetradores da perseguição. Os registros históricos não permitem corroborar tal percepção. No entanto, os ensinamentos judaicos enfatizam o cuidado com a higiene que tornam-se, ao serem ritualizados, obrigações religiosas, práticas a serem seguidas. Diante deste cuidado é inevitável uma menor propensão para contrair doenças infectocontagiosas, embora claro que isto não garanta de maneira alguma imunidade individual ou coletiva.
Em torno de um terço dos mandamentos prescritos na Torá são relacionados a regras de saúde. Entre elas, leis sobre lepra e chaga e os cuidados de limpeza descritos no livro Vaikrá [Levítico]. O pressuposto destas leis é a advertência que a responsabilidade da liberdade conferiu: não fazer como na terra do Egito antigo, o que significa zelar pela saúde sem recorrer à magia e feitiçaria, lembra a Torá (Vaikrá/Levítico 19:31). Curiosamente, os judeus foram acusados da feitiçaria que abominam.
A preocupação com a saúde se expande no texto bíblico além da Torá. No livro dos profetas há referência da “casa mais distante”, lugar de isolamento além dos limites da cidade, indicando a necessidade de um lugar de cuidado aos doentes e de evitar a proliferação de enfermidades. E com elas o pânico. A Bíblia reconhece o perigo: “havia pânico de morte” (1 Shmuel/Samuel 5:11). Este reconhecimento é crucial para que não haja – tal como na peste bubônica – o pânico da insanidade que impede lidar apropriadamente com as causas reais das pragas, pestes e epidemias.
É com intento preventivo que o Talmud – livro de debate rabínico das leis do judaísmo editado no século V – traz importantes ensinamentos profiláticos: • Lavar as mãos e os pés diariamente é o melhor dos remédios (Tratado Shabat); • Beber somente a água que foi fervida antes (Tratado Terumot); • Evitar multidões e ruas estreitas durante epidemias (Tratado Baba Kama). Os textos rabínicos acrescentam a relevância do cuidado ambiental e sanitário: • A produção de couro (curtume) deve ficar afastada dos limites da cidade e oposta à rajada dos ventos (Tratado Baba Batra); • É proibido cavar poços perto de lixões e cemitérios (Tosefta/Tratado Baba Batra). Essas leis higiênicas e sanitárias podem parecer óbvias ao nosso olhar contemporâneo, mas grande parte das recomendações atuais para lidar com a crise do coronavírus e para evitar o agravamento das condições da saúde ecoam esses ensinamentos milenares e antigos.
Independentemente das circunstâncias – nas quais a aflição de antes se renova, as ameaças ressurgem ou novas surgem, os pavores reaparecem ou novos aparecem – resgatamos as lições do passado para que possamos atuar no presente. Este foi o intento de Eleazar da cidade de Mainz na Em torno de um terço dos mandamentos prescritos na Torá são relacionados a regras de saúde. O pressuposto destas leis é zelar pela saúde sem recorrer à magia e feitiçaria.
Estes são dois dos alicerces do judaísmo: lavar as mãos cuidando do corpo e não lavar as mãos em indiferença aos outros. Alemanha no ano de 1357. Já passada a peste bubônica – ainda que seus efeitos fossem sentidos –, escreveu, seguindo o costume judaico, um testamento ético aos seus filhos. Nesse testamento, exortou-os a frequentar a sinagoga, ter conduta ética com judeus e não judeus, não se render à maledicência, ajudar ao próximo e, em particular, manter a casa limpa e asseada, item que ele enfatiza no testamento ter tido atenção especial.
Quem foi Eleazar de Mainz? Uma pessoa simples que vivenciou os horrores da peste bubônica e da perseguição aos judeus. Uma pessoa simples que legou uma mensagem de esperança e ética à nova geração ao pontuar a preocupação com a limpeza (higiene) e lembrar a importância da conduta. Não deixou o pânico nem os traumas prevalecerem sobre o valor de não ser indiferente ao outro. No fundo, estes são dois dos alicerces do judaísmo: lavar as mãos cuidando do corpo e não lavar as mãos em indiferença aos outros.

Matança de judeus na fogueira durante a Peste Negra na Europa, Crônica de Nuremberg, 1493.
Quem é Eleazar? Uma pessoa simples. Que, sem passar pelas mesmas agruras – embora cada época tenha a sua –, talvez seja eu, você, cada um de nós. Que Eleazar seja um pouco de cada um de nós pela capacidade de preservar e transmitir, em meio às dificuldades, os sagrados princípios do cuidado pessoal e do cuidado para com os outros. É a profilaxia ao vírus que ataca o corpo vulnerável e a prevenção ao vírus que prolifera no espírito insensível.
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O Rabino Sérgio R. Margulies serve na ARI – Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro.
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(1) Depois verificaram que sem os judeus o próprio sistema de crédito ficou comprometido e os juros mais elevados, fazendo com que os judeus, antes considerados indesejados, fossem convocados para retornar aos seus países. Os reis ainda utilizaram esta oportunidade para elevar seus proventos extorquindo dos judeus pagamentos por proteção.
