6 minute read

Sobreviventes. Ou, sobre viventes

Sobre Ou, sobre viventes . viventes

Há algo muito profundo na formação deste povo que o direciona para a vida e a sobrevida, para a esperança e a possibilidade de reconstruir tudo, muitas vezes a partir do nada.

Advertisement

Marcia Rozenthal

O documentário

Começa mais um documentário sobre o Holocausto, que passa na tela da minha televisão. É inexorável o caminho dos meus dedos em direção ao botão “play”, quando um destes filmes se insinua no menu de opções de “entretenimentos” virtuais.

Percebo que nunca assisto aos filmes sobre o nazismo com os olhos de vítima, embora eu tecnicamente o seja, nem com sentimentos de vingança. Assisto com perplexidade. Se Darwin tinha alguma razão, e o mundo aposta que sim, vejo nesses filmes a quintessência da lei da sobrevivência. Não só de pessoas, mas de um povo inteiro.

Desta vez, estou assistindo ao julgamento de Oskar Gröning em Lueneburg. Para quem não sabe, ou não lembra, trata-se de um criminoso nazista, julgado no ano de 2015, aos 92 anos de idade.

Logo no início do documentário são introduzidos alguns filmetes de arquivo, mostrando as atrocidades cometidas por mais um nazista “que apenas cumpria ordens”. Estes, se me permitem uma digressão, mais parecem filmes expressionistas alemães criados e executados por diretores intoxicados por ácido lisérgico; é impossível não se estranhar o grau de distanciamento afetivo entre a informação visual e os dramas dos personagens, e entre a história exposta e o que se entende por natureza humana. Gröning, personagem em pauta, trabalhava em Auschwitz e, direta ou indiretamente, cometera cerca de 300.000 crimes contra judeus.

Postas estas informações iniciais, entra Como judeus, sabemos Sobre adaptar, capacitar e o pão em cena uma das sobreviventes que iria depor, inicialmente a contragosto, nesse tribunal. Era uma senhora judia, de feições fortes, bem trajada, que caminhaque o nosso passado transcende os fatos que vivemos em nosso da vergonha. O povo judeu é composto, basicamente, por expatriados e sobreviventes; mesva com desenvoltura por um apartamentempo de vida. Ele mo tendo que passar por alguns campos to cômodo, e que se expressava com efié “hipertemporal” e de refugiados, que serviram de entreposciência em inglês. Disse ela, emocionada, olhando diretamente para a câmara: “Tente imaginar que amanhã alguém virá está gravado na nossa “hipermemória”. tos para dali partirem para cumprir seus destinos, os judeus jamais se viram ou foram designados como refugiados. e te falará que você precisa sair de casa. Há algo muito profundo na formação Seus pais são levados e você não sabe se os verá de novo. E, deste povo, que o direciona para a vida e a sobrevida, para numa hora isso acaba. E você sobrevive. E aí, você descoa esperança e a possibilidade de reconstruir tudo, muitas bre que está sozinho. Você não tem pais... Não tem famívezes a partir do nada. lia... Será que realmente vai acabar?” Corta a cena. Em hebraico, há dois conceitos etimologicamente co

Depois, um outro senhor, também claramente já adapnectados (compartilham a mesma raiz, samech-guimel-latado a uma vida confortável, é arrolado como testemunha, med), que são lehistaguel (se adaptar, se ajustar) e messugal onde terá que retomar nefastas memórias de sua vida, já (habilitado, capacitado). A conexão entre os dois termos é ciente de que a evocação das mesmas certamente despercuriosa: a qualidade que deriva do verbo reflexivo “se adaptará emoções inauditas. tar” deveria ser “adaptado”. Mas o hebraico puxa o tapete

e afirma que quem se adapta fica habilitaNosso idioma, o hebraico, ter deveres, assim como tem o dever de ter do. Uma forma simples de expressar esta conexão seria dizer que você deve se adaptar ao lugar e às leis do local em que vive. E, para sobreviver, não cabe apenas esque conta nossa saga, é uma simbologia sagrada. Ele nos ensina, também direitos. Este deveria ser o mote principal de qualquer comissão relacionada aos “direitos humanos”. perar que lhe deem peixes, porque você através de suas palavras, Sobre o passado tem fome e tem “direitos”, mas, também, quando analisadas à luz você precisa aprender a fazer e a usar o anzol para pescar o peixe; assim, você terá como providenciar a sua alimentação e a da etimologia. Como visto neste texto, fica claro que É importante ter em mente que o passado representa uma sequência de experiências, que forjam a personalidade dos seus, no exercício do seu dever. o Homem para sobreviver e o repertório de aprendizados a serem

Seguindo por essa mesma linha, no juprecisa se adaptar e se usados no futuro. Longe de vítimas do daísmo existe uma figura de linguagem interessante: o “pão da vergonha”. Este termo designa uma sensação ruim, de profundo desconforto interno, que toma, capacitar. Para o hebraico, estes dois conceitos estão umbilicalmente passado, somos resultantes dele. Como judeus, sabemos que o nosso passado transcende os fatos que vivemos em nosso tempo de vida. Ele é “hiperdesde criança, o ser humano quando reconectados. temporal” e está gravado na nossa “hicebe algo que sabe não ter feito por merepermemória”. cer. Este sentimento é universal, profundo, inerente à conNosso idioma, o hebraico, que conta nossa saga, é dição humana na sua essência. À diferença do restante da uma simbologia sagrada. Ele nos ensina, também através natureza, o Homem tem consciência daquilo que eleva sua de suas palavras, quando analisadas à luz da etimologia. alma, como ser generoso, justo, digno. Como visto neste texto, fica claro que o Homem para sodignidade as adversidades. Muitas vezes, a eles é toleranário, onde personificam algum “culpado” pelas suas dobreviver precisa se adaptar e se capacitar. Para o hebraiSobre Direitos e Deveres co, estes dois conceitos estão umbilicalmente conectados.

A equação que trata da relação Direito–Dever é extreprio judaísmo. Nossa cultura sobrevive há milênios, conmamente delicada. Um deve vir junto ao outro na confortinuamente, apesar de tantas intempéries. Para isso, o jumação genética do Homem social. daísmo se comporta como um ser vivo, sempre mantendo

A massificação do discurso político pelos Direitos e a as capacidades adaptativas e evolutivas. Está sempre apto negligência que é devotada aos Deveres é um golpe perpara absorver novos conhecimentos que alimentarão suas verso e nefasto sobre a humanidade, com o poder de criar raízes, estas, sim, fixas e arraigadas à nossa terra, desde os e deixar proliferar seres deformados, e intoxicados pelo primórdios de nossa história. pão da vergonha. O judaísmo segue os mesmos princípios da vida in

Assistimos em todos os instantes, na mídia, a exibição teligente: a capacidade de adaptação – relacionada com de povos inteiros que aparecem numa postura de vítima, a sobrevivência e o respeito ao local que nos acolhe, e a incapazes de se erguer sem ajuda externa. Estes são privanecessidade de estar sempre se capacitando – relacionados da possibilidade de ter consciência de seu potencial da com a criação de bases sólidas e dignas para a interapara contribuir para o bem comum e de enfrentar com ção com a realidade. da toda e qualquer reação, direcionada a um alvo imagiAm Israel chai – o povo de Israel vive Não há melhor exemplo para um judeu do que o próres. Talvez dirigissem suas energias para atitudes mais digMarcia Rozenthal é Neuropsiquiatra, Doutora em Psiquiatria, Pós- nas se fossem conscientizados de que todo Homem tem o -Doutora em Ciências da Computação e Professora Associada da que dar para o bem comum; todo Homem tem o direito a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Estado do RJ.

This article is from: