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Cócegas no Raciocínio: Sou esquerdopata

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Em Poucas Palavras

Em Poucas Palavras

sou esquerdopata

Paulo Geiger

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Em 13 anos (bar-mitsvá) e 39 números de Devarim (3 vezes bar-mitsvá), é o primeiro Cócegas em 1ª pessoa. Porque acho justo, depois de todo esse tempo e todos esses textos, que se conheça meu viés, ou meus vieses, já que nenhuma opinião, posição, ideologia ou religião são verdades absolutas. Até Deus (o do Tanach) se permitia deixar convencer.

Etiquetas estão substituindo conversas e debates. Diferença de opinião se resolve com um adjetivo e pronto, está resolvida a questão. Bandido e mocinho. Verdade e mentira. Heróis e vilões. Não me colaram (ainda) esta etiqueta na testa. Mas das etiquetas que já vi coladas em certas pessoas (e suas ideias), cheguei à conclusão de que ela me cabe. Sei que a intenção é pejorativa, mas com isso já estou acostumado. Já nos colaram e continuam colando outras etiquetas de intenção pejorativa, como a de ‘sionista’, e bem antes disso, de ‘judeu’. Bem, mesmo sabendo da intenção pejorativa, nunca tentei me justificar ou defender por ser judeu ou sionista. Sempre, sim, tentei e ainda tento explicar o que acho que sou como judeu e como sionista.

Acho que neste espaço de Devarim, anos e textos depois, não preciso explicar o que acho que é o judaísmo e o sionismo. Mas sinto-me desafiado a explicar por que acho que me cabe a etiqueta de esquerdopata (embora não concorde com o termo em sua estrutura etimológica). Ou melhor, vou tentar explicar o que EU acho que significa ser esquerdopata, descartando o lado pejorativo, assim como descartei a intenção pejorativa de quem pronuncia, com esta intenção, as palavras ‘sionista’ e ‘judeu’. Deixo a intenção pejorativa na cabeça de quem a tem.

Como judeu sionista, acho que sou esquerdopata porque meu ideal sionista não se esgota quando o povo judeu tem um estado, uma bandeira e um hino. Mesmo orgulhoso que sou de um estado que em apenas 71 anos fez tudo o que fez de bom e continua fazendo, mesmo que me emocione com a bandeira e o hino. Mas o esquerdopata que há em mim não se basta com a bandeira e o hino, e busca no sionismo algo mais profundo, mais histórico, mais ligado ao povo ao qual Howard Fast se referiu como ‘aquele maravilhoso povo de outrora, para o qual a resistência à tirania é a verdadeira obediência a Deus’.

Meu sionismo de esquerdopata é o sionismo da utopia que atravessou 2.000 anos e foi se realizar na síntese de várias ideias, que transcendem o ufanismo patriota: 1) a ideia sionista original, de que o povo judeu se formou tendo como parâmetros de sua identidade o conteúdo conceitual e comportamental de sua religião, e o vetor de um futuro comum numa terra comum, a Terra Prometida, que seria Sion; 2) a ideia do fundador do sionismo contemporâneo, Herzl, que idealizou um estado moderno, estado judeu e estado de todos os seus cidadãos, consentâneo com os ideais democráticos e de coexistência das diferenças; 3) a ideia da revolução interna do povo judeu, o sionismo realizador e obreiro, que arregaçou as mangas e construiu, continua construindo, na simplicidade do trabalho criador, a verdadeira base de toda nação e toda sociedade e todo país e todo estado; 4) a ideia de que o sionismo é valor do povo judeu como um todo, uma visão unificadora do povo judeu em toda a sua história, por reconhecer, sentir, instituir Sion como seu centro virtual e real. Virtual como ponto de partida no passado e porto de chegada em qualquer futuro, base cultural e fonte permanente de seus valores, como queria Achad Haam. Real como estado judeu atuante, o músculo que realiza e garante ao povo judeu o controle de seu próprio destino; 5) finalmente, síndrome inequívoca de esquerdopatia, a ideia e o conceito de que o sionismo é também o instrumento de inserção do povo judeu e do estado judeu nos ideais e na utopia redentora de um planeta e de uma humanidade que ainda estão ameaçados por ideologias e políticas imediatistas, por desigualdades profundas, por nacionalismos que beiram o chauvinismo, por preconceitos que se renovam e se multiplicam assustadoramente, por radicalismos de todas as cores que desistiram de pensar e conversar em busca de um bem comum e preferem colar etiquetas.

As utopias do sionismo, que redimiram um povo, podem contagiar as utopias da humanidade: se Sion era o destino comum do povo judeu, onde ele iria viver segundo a fé, a ética e a moral de sua herança histórica, a Terra é o destino comum da humanidade, e está precisando mobilizar todos os seus “sionismos” para também sobreviver. Sou sionista esquerdopata porque não quero me isolar em meu sionismo judaico, quero que ele seja parceiro nos projetos de redenção do planeta e da humanidade. E [não] por acaso não é este o cerne de todos os mandamentos e mitsvot do judaísmo? Justiça social, respeito à natureza, ética em todos os níveis de comportamento e atitudes. Utopia, talvez. Como a do sionismo moderno. E foi Herzl quem disse: Se quiserem, não será uma lenda.

Educester/istockphoto.com

Como israelense que também sou, mesmo vivendo fora de Israel, sou esquerdopata porque ainda alimento a utopia [uma possibilidade entre impossibilidades, sem ilusões, ingenuidades, wishful thinking] de que para o bem de Israel como estado judeu [do povo judeu e baseado nos valores judaicos] a solução é a de dois estados para dois povos, pois qualquer outra seria ou o fim do estado judaico como tal, ou o fim do estado democrático como tal, ou a indefinição como realidade [indefinição que é, inclusive, arma de todo regime totalitário], e que não pode ser um objetivo de futuro ou de presente.

Como israelense sou esquerdopata porque ainda me resta a lembrança [não saudosismo romântico] e a esperança de uma sociedade igualitária, tolerante, partícipe interna e externamen

te, como prega o próprio judaísmo, de um esforço humanista ainda incompleto, que coroe seu imenso sucesso econômico e tecnológico. Que será a melhor resposta para os detratores patológicos de Israel, antissemitas de esquerda e de direita, mas também para os que se bastam com a bandeira e o hino e esquecem o que eles representam. [Claro que esta possibilidade utópica depende de que nela embarquem também palestinos, árabes, islâmicos, antissemitas, radicais de esquerda e direita, que eles abandonem definitivamente o projeto de acabar com o estado judaico, projeto implícito em manifestações anti-israelenses com o pretexto da ocupação e de ridículas alegações de apartheid, e explícito nas declarações e ações de Hamas, Hezbollah, Irã e outros. Utopia, mas realizável como toda utopia.]

Como ser humano e terráqueo sou esquerdopata porque quero preservar a Terra como único lar possível para a humanidade [ficção científica ainda é ficção]; porque quero que todo ser humano tenha a dignidade que merece e acredito que poderia ter ainda hoje, ou amanhã, e sem a qual a minha dignidade também é ficção; porque sou contra o contrário de tudo isso: o acúmulo desenfreado nas mãos de poucos em detrimento de muitos, da Terra como planeta, de um futuro viável e vivível para todos.

Se isso é ser esquerdopata como judeu, sionista, israelense, ser humano terráqueo, por que seria pejorativo?

P.S. Da mesma forma eu poderia escrever (e talvez escreva) um artigo chamado Sou direitopata, o simétrico deste, pois esta é a etiqueta que me atribuiriam certas esquerdas radicais por eu ser sionista, por defender Israel (não seu governo), por achar o BDS uma burrice sectária, enfim, por ser soft em minha esquerdopatia.

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