9 minute read

Minian: do Décimo ao Primeiro

Next Article
Resenha de Livros

Resenha de Livros

Minian : do ao Primeiro Décimo

Rabino Sérgio Margulies

Advertisement

No Museu da Diáspora em Tel Aviv, que retrata a vitalidade da vida judaica ao longo dos séculos, há um espaço denominado minian – grupo de oração constituído de ao menos dez membros da comunidade. No entanto, há somente nove estátuas. Não falta uma, pois o observador representa o décimo membro. A mensagem lembra que cada um de nós é responsável pela existência do minian.

Da onde...

Da onde surge a concepção do número dez? Será que a efetividade da oração está relacionada a um número específico? Se considerarmos como efetividade moldar o desígnio divino, pouco importa o número porque isto seria subverter o propósito das orações, que não é de submeter Deus ao anseio humano. No entanto, se compreendermos a oração como uma linguagem espiritual de apoio mútuo, algum número torna-se relevante. Mas qual número?

O filósofo Saadia haGaon (882-942) ensina que o número dez representa a perfeição. No entanto, a aceitação da perfeição de um número exige a utilização de algarismos, o que o judaísmo não possui, tanto que os valores numéricos são representados por letras. Em acréscimo, a composição do minian surge de uma história da Torá (Parashá Shelach Lechá) que associa dez à imperfeição humana.

O episódio remonta a saída dos hebreus do Egito antigo e sua jornada pelo deserto cujo destino era a Terra de Israel. Doze emissários, um de cada tribo que compunha o povo de Israel, foram enviados para verificar as condições da terra para a qual seguiam. Os relatos divergem. Enquanto dois – Ioshua [Josué] e Caleb – afirmaram tratar-se uma terra que emana leite e mel, os dez demais

Cada um de nós – todos nós! – somos convocados a ser o décimo membro que viabiliza a existência de um minian. E ainda que haja dez, nos consideremos sendo o décimo.

adicionaram a palavra ‘mas’ à observação. Minian é o grupo que a nulificação do potencial humano. ExerReconhecem ser de fato uma terra que emana leite e mel, mas que vai devorá- -los e serão esmagados como gafanhotos. A mensagem destes emissários era nunão autoriza sermos esmagados como se fossemos ‘zero’, na cer a oportunidade de estar junto é transcender o egoísmo que anula a sacralidade dos vínculos. Independentemente do número exigido, minian é o grupo que não trida pela visão do passado; enxergavam analogia do relato autoriza sermos esmagados como se fosseo futuro pelas lentes do medo como se dos emissários, mos ‘zero’, na analogia do relato dos emisainda fossem escravos. Com isto, instigam contra a liderança de Moshé [Moisés] e contra a promessa divina difundingafanhotos propensos a serem pisoteados sários, gafanhotos propensos a serem pisoteados pelo desespero. Tampouco somos, em função da sindo rancor. Estes dez emissários foram depelo desespero. gular condição humana, reduzíveis a núnominados pela Torá como eda ha-rá (a meros. Neste sentido, o texto bíblico alercongregação perversa). Deles surgiu o número dez do mita para que recenseamentos não sejam feitos, pois nas panian. Pasmem: o minian congregacional origina-se de um lavras do profeta bíblico Hosheá [Oséias] somos “numerogrupo perverso! sos como as areias” – impossíveis de serem contadas. Aler

A intrincada lógica talmúdica [Tratado Meguilá] exta mais contundente vem da iniciativa do Rei David [Taplica: A expressão edá ha-rá é superposta com outra pasnach: 2Shmuel] cuja ordem do censo provocou uma prasagem da Torá [Bamidbar/Números 16:21] que cita o terga que dizimou mais de milhares. Isto difere da ordem dimo edá (congregação) associado à palavra betoch (dentro). vina estabelecida na Torá que convoca a realização do cenAplicando uma nova superposição, a palavra betoch apareso na travessia do deserto. Entre, de um lado, a proibição, ce também no verso da Torá [Vaikra/Levítico 22:32] que e de outro, a necessidade do censo em determinadas insmenciona a santificação divina. Assim, conclui-se que a tâncias, a decisão é de não contar o número de integrantes santificação divina requer dez. Talvez pudéssemos seguir de um minian. Isto ajuda a preservar o sentido de humapor um caminho mais simbólico: cada minian constituínidade e a considerar cada indivíduo. Porém, uma vez que do contrapõe o desespero dos dez emissários, reverte as ânem dadas situações urge a necessidade de verificar a quancoras do imobilismo e impulsiona a fé na liberdade. Em tidade de componentes, nossa tradição se vale de um articonsequência, cada um de nós – todos nós! – somos confício. A checagem é realizada através de um verso dos Salvocados a ser o décimo membro que viabiliza a existência mos (28:9) que contém dez palavras no texto em hebraide um minian. E ainda que haja dez, nos consideremos co: hoshia et amecha uvarech et nachalatecha urem ve-nasem sendo o décimo. ad há-olam. “Salva Teu povo e abençoe Tua herança, sê Tu

Para que... Com quem...

No momento de oração que celebra a alegria, se olhos

o seu pastor e enaltece-o para sempre.” não enxergarem ninguém à volta a felicidade murcha; nas A não contagem via números evita quantificar o ser huocasiões de busca de conforto, se o entorno está vazio o demano. E em relação à qualificação, há alguma restrição? salento torna-se mais intenso. Ou no anseio de estabelecer Por exemplo, a falta de caráter e a desonestidade desautouma conexão espiritual, por exemplo, no Shabat ou num rizam alguém de ser considerado componente do minian? Chag percebemos que esta conexão é sustentada através A oração se desenrola no ambiente do tsibur. Tsibur dos vínculos que estabelecemos uns com os outros. O livro em hebraico é o conjunto comunitário. As três letras que bíblico Mishlei [Provérbios] ensina: “Na multidão do povo compõem esta palavra geram uma interpretação: tsadik, se reside a glória do rei, mas em sua ausência reside a ruína refere aos tsadikim justos, beit aos beinonim, medianos, e do príncipe”. A expressão ‘mas’ dos Provérbios é a mesreish, aos rashaim, malvados. Desta interpretação aprendema do episódio dos emissários, em hebraico: efes. Efes tammos que um ambiente comunitário é composto por pesbém significa zero. Ter a chance de compartilhar é romper soas de distintas atitudes e posturas. Corrobora a citação

do Talmud [Tratado Keritot] de que algumas oferendas realizadas no Templo de Jerusalém eram de incensos que produziam aroma desagradável. O paralelo entre as oferendas e a constituição do minian conclui que tanto quanto não contabilizamos os corpos presentes, não escrutinizamos suas almas.

E se sem...

Sem dez algumas orações não podem acontecer, como, por exemplo, Barechú, Kedushá, leitura do rolo da Torá e recitação do Kadish. O que fazer com os que compareceram? Devem ficar privados da realização destes preceitos religiosos? Algumas alternativas foram sugeridas como incluir um menino antes de atingir seu Bar Mitsvá, que já tenha estudo judaico ou até mesmo um neném desde que segurando um Chumash (Torá sob a forma de livro) ou reduzir o número dez para sete (Talmud: Tratado Soferim). Outra solução é considerar o rolo da Torá como se fosse o décimo do minian (Talmud: Tratado Berachot). Estas sugestões são consideradas pelos códigos de lei judaicos e desencorajadas para evitar a acomodação. No entanto, só o fato de serem sugeridas demonstra a necessidade de fazer face às situações emergenciais.

Ou quem mais...

E as mulheres? Podem ser reconhecidas como integrantes do minian? As mulheres são isentas da realização de certos preceitos religiosos (Mishná Kidushin). Isenção – pontua o rabino Isaac Halevi, que foi mestre do proeminente comentarista da Torá Rashi (séc. 11/12) – não é proibição. Logo, podem exercer a opção de participar. Esta isenção decorria de uma estrutura social na qual muitas mulheres eram desprovidas de educação. Assim, limitar a participação visava evitar constrangimentos. Esta situação mudou. Deste modo, não faz sentido preservar uma instância anacrônica. Isto é seguido pelo judaísmo liberal. Em complemento, cada vez mais se intensifica a tendência de grupos da ortodoxia moderna de ampliar a participação ritualística feminina.

Daqui em diante...

O filósofo e codificador da lei judaica Maimônides (séc. 12) estipulou que toda comunidade de pelo menos dez judeus é obrigada a ter uma estrutura para a qual as pessoas possam dirigir-se no tempo apropriado [de oração]. Este lugar chama-se sinagoga, concluiu Maimôni

des. E se não houver sinagoga ou se houRabinos debatem se robôs siderados membros de um minian. Nos ver impossibilidade de ir para lá, consideraríamos a validade de um minian virtual on-line? Na busca de uma orientação as foncom inteligência artificial podem ser considerados como membros do minian. tempos atuais, esta questão traz outra: que tipo de judeus almejamos ser? Cumpridores dos requisitos estabelecidos como se isto bastasse a despeito do sentir genuíno tes de referência são estudadas. O Talmud O que pode parecer uma e do pensar criativo ou apreciadores da es[Tratado Sanhedrin] afirma que a presenhilária questão alimentada sência singular do convívio humano que ça divina está em bei asara – expressão hebraica interpretada como ‘casa dos dez’, do que se conclui ser necessário que dez pela imaginação encontra paralelo entrelaça sentimentos inesperados, sorrisos súbitos e lágrimas imprevistas? Os caminhos de escolha são sinuosos, estejam na mesma casa. A discussão se esem nossa história. ora abraçamos uma ou outra opção, ora tende: casa se refere ao ambiente físico ou um pouco das duas com diferentes pesos, de convívio? Esclarecido que ao lugar físico, a definição é ora nada. Por estes caminhos frequentemente nos perdealargada e permite a participação daqueles que não estemos. Daí a importância do encontro humano para resgajam no mesmo lugar desde que os rostos sejam vistos. O tar nossa essência através dos que estão conosco. Genuidebate pode ser ampliado: vistos presencialmente ou por namente conosco e não artificialmente, pois nem só os rointermédio de algum reflexo que seria o paralelo ao virtual bôs são artificiais, tal como nem só a inteligência é artificontemporâneo? É indubitável a relevância do comparticial, também os sentimentos podem ser. lhar presencial pela troca afetiva e genuína que propicia. Por outro lado, tal como nossas fontes de estudo mencioA missão... nam alternativas para o número dez em situações emergenciais, será que o mesmo critério referenda a possibiliEstar em minian é estabelecer vínculos de responsabilidade de um minian virtual desde que enfatizada a ressalva dade mútua compreendendo que somos todos igualmente de não ser isto um convite para a acomodação? O debate diferentes uns dos outros. E aí, cada um de nós se imbuiprossegue. E se expande. rá tanto da missão de ser o décimo quanto de ser e consi

Rabinos debatem se robôs com inteligência artificial derar todos os demais igualmente o primeiro dos compopodem ser considerados como membros do minian. O que nentes do minian. Mesmo que haja quatrocentos como no pode parecer uma hilária questão alimentada pela imaginaCabalat Shabat da ARI. ção encontra paralelo em nossa história. Na Idade Média, criaturas artificiais eram criadas para proteger as comuniSérgio R. Margulies é rabino e serve na ARI – Associação Religiodades judaicas em perigo e foi perguntado se seriam consa Israelita do Rio de Janeiro.

This article is from: