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Yehuda Amichai
Moacir Amâncio
Amelhor definição – talvez – para a poesia do mais conhecido poeta israelense, Yehuda Amichai, não é da sua lavra e sim de outro grande poeta, o italiano Giuseppe Ungaretti, que intitulou sua obra completa como “A Vida de Um Homem”. Ler a poesia de Amichai é justamente isso, acompanhar suas emoções, seus pensamentos, suas relações diversas, família, memória, dúvidas, desesperos, entusiasmos e a perplexidade que acompanha sua trajetória de judeu nascido na Alemanha em 1924, de onde a família conseguiu sair 11 anos depois, rumo a Israel, onde ele viveu até 2000, naquela casa de pedra de Yemin Moshê, bairro voltado para as muralhas da Cidade Velha.
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Filho de um pequeno comerciante, família ortodoxa, Ludwig Pfeuffer, nome civil, colocaria a religião de lado, tornando-se um homem laico, mas não baniu a religião de si mesmo. Lutou as guerras de Israel, as suas próprias guerras, como diz num dos poemas, publicou a obra literária toda em hebraico, aliás, no melhor modelo sionista daqueles anos.
Mas, como filho da diáspora, não esqueceu o idioma da infância, o alemão, que o acompanhou até mesmo na redação de versões iniciais de poemas, segundo constatações da pesquisadora Nilli Sharf Gold, que esmiúça o assunto em seu livro Yehuda Amichai – The Making of Israel’s National Poet.
Embora ele tenha ido para a Terra Santa ainda criança e com todo o foco na experiência judaica em Israel, diversos outros lugares estão presentes em sua obra. Inclusive a cicatriz nunca apagada, herança da Alemanha natal, na poesia e na prosa. O romance Não Deste Tempo, Não Deste Lugar, por exemplo, fala de uma viagem à crucial Alemanha. Cenas estrangeiras, da Europa a Nova York e Buenos Aires aparecem com certa frequência nos poemas, mas isso não signifi
Israel, o seu presente vivo, é temática recorrente no dia a dia mais banal – e Amichai é um grande mestre das banalidades, como o foram Bandeira e Drummond, com os quais ele compartilha a mestria modernista – e nas visões extraordinárias daquelas paisagens tão bíblicas quanto contemporâneas. Tanto líricas como épicas.
ca que ele não estivesse em Israel e envolvido pela língua hebraica o tempo todo. O que por certo impressiona quem toma contato com a sua literatura é o fato de ela ser ao mesmo tempo tão judaica e tão universal. Tão imbuída de religiosidade e tão laica.
Isso não quer dizer que o leitor encontrará uma biografia factual nos poemas de Amichai. Encontrará, sim, a gama de sentimentos e ideias que o autor experimenta ao longo de sua vida e, transformados em metáforas, permitem aos leitores vivenciarem essa expressão que também lhes diz respeito, também é parte deles, mesmo que jamais tenham passado pelas situações vividas pelo autor. Esta é a ação do poeta: fazer com que os leitores se encontrem nas pequenas máquinas verbais produzidas pelo engenho sutil da alquimia literária. E, nessa operação socializadora, ele nos permite compartilhar poeticamente a sua trajetória.
Nem todos trocamos de nome e sobrenome, como ele fez, quando Israel se encontrava no momento da definição como país, pouco depois da Shoá, com o propósito nazista de eliminar os judeus do mapa. Um país que surgia na terra de origem do judaísmo, como um marco de redenção. Diante disso, como não sentir e avaliar o impacto de coisas que passariam batido em outra situação. Amichai significa “meu povo vive”, não é preciso dizer mais nada. O importante é sentir
T radutor e poeta
Ricardo Gorodovits
Ao contrário de um ghost writer, que entrega ao outro as palavras que este precisa mas que não sabe criar, o tradutor precisa executar com precisão e cuidado o gesto contrário, abstrair suas próprias palavras para dar ao outro um espaço exclusivo para expor sua criação. Sem intervir na obra, entretanto, o tradutor está presente: na escolha em que privilegia a rima ou a métrica, a sonoridade ou o significado, o ritmo, a tônica, a sutil ironia de um jogo de palavras ou a lembrança de um outro texto, de um outro contexto, de uma textura. O tradutor de poesia deve ser também poeta, seja de ofício ou de sensibilidade, deve se
No Dia do Perdão
No Dia do Perdão de 1967 eu vesti minhas escuras roupas de festa e fui à Cidade Velha de Jerusalém. Parei um bom tempo diante do nicho da loja de um árabe, não longe do Portão de Siquém, loja de botões, zíperes e carretéis de todas as cores, botões de pressão e fivelas. Luz preciosa e muitas cores, como na Arca Sagrada aberta.
Eu lhe disse em meu coração que meu pai também tinha uma loja como essa de linhas e botões. Expliquei tudo a ele em meu coração sobre as dezenas de anos causas e acontecimentos pelos quais estou aqui agora a loja do meu pai foi queimada lá e ele está enterrado aqui.
Quando terminei já era a hora do fechamento dos portões. Ele também baixou a porta de correr, fechou o portão e eu voltei para casa com todos os fiéis.
Nota: Fechamento: Neilá, que também é o nome da seção das orações de encerramento do Dia do Perdão, na sinagoga.
deitar entre as duas cobertas das línguas que aproxima, e gerar uma poesia filha, em que a mãe se reconheça.
Por tudo isso, reconhecemos o enorme desafio enfrentado pelo professor, escritor e poeta Moacir Amâncio quando se debruça sobre a obra de Yehuda Amichai, e, em tradução primorosa, traz para o português seus poemas no livro Yehuda Amichai, Terra e Paz, Antologia Poética, lançado pela editora Bazar do Tempo.
A escolha dos poemas se dá mais por afinidade do tradutor do que por critérios de cronologia ou para cobrir períodos específicos da criação do poeta. Como

afirma Amâncio em sua apresentação ao livro, “Amichai pode ser lido a partir de qualquer um de seus textos, pois ali o leitor certamente encontrará todo o poeta possível”.
Convivendo com o universo judaico desde seus escritos fundamentais e sua liturgia, Amichai preserva na sua obra uma visão que consegue fazer conviver a vida laica da Israel moderna ao sentimento religioso profundo que permeia sua educação e uma parcela significativa do mundo à sua volta. É dessa convergência que resultam pequenas obras-primas, como o trecho de “fonte de sufleh nas montanhas da judeia” (página 45), uma fonte em uma antiga e já inexistente aldeia árabe nas cercanias de Jerusalém:
“Cuidado, área de saudades! É tão fácil ser louco se tiras de quem lembra a sua memória, de quem olha a paisagem, a paisagem que ele olha, de quem conversa, aquele com quem conversa e de quem reza, o seu Deus.”
Ou o quase hai-kai “Uma vez eu disse” (página 127)
“Uma vez eu disse com precipitação: a morte é Deus, a mudança é o seu profeta. Agora eu já estou calmo, e digo a mudança é Deus, a morte seu profeta.”
É impossível não se apaixonar e se emocionar lendo Amichai e só podemos agradecer a Moacir Amâncio por fazê-lo mais próximo dos leitores da língua portuguesa.
Jerusalém
Num telhado da Cidade Velha, a roupa no varal ilumina-se à última luz do dia: lençol branco de uma inimiga, a toalha de um inimigo para enxugar o suor do seu rosto.
No céu da Cidade Velha há uma pipa. No fim da linha – um menino, que eu não vejo por causa da muralha.
Nós hasteamos muitas bandeiras, Eles hastearam muitas bandeiras. Para pensarmos que eles são felizes. Para pensarem que nós somos felizes.
a força e a riqueza da frase que em hebraico ocupa uma só palavra, contendo a história toda.
Claro, cada experiência é intransferível, o que não significa, repito, que não possa ser compartilhada. Por exemplo, nem todos tiveram uma amiga de infância chamada Ruth, Ruthinha, a Pequena Ruth, que certo dia, após certa desavença entre eles, sofreu um acidente de trânsito que levaria à amputação de uma de suas pernas. A mesma Ruthinha, cuja família não teve a sorte de conseguir deixar a Alemanha rumo à Terra de Israel e por isso foram todos assassinados num campo nazista. Ela se tornaria um marco na memória e na inspiração de Amichai. É fácil ver no remorso infundado, mas nem por isso menos intenso ou injustificável, a fantasia de um caso de amor cortado na raiz. Se quisermos, encontraremos pistas para isso nos seus poemas.
Além de um poema com o nome da menina no diminutivo, há também um texto intitulado “Pena. Éramos Uma Boa Invenção”, sobre o homem e a mulher que formam um avião capaz de voar um pouco, tendo o voo interceptado pelos “engenheiros” ao separarem os dois corpos com a frieza de hábito. Tudo muito belo e trágico, verossímil, tudo isso, mas o poeta fez questão de desmentir ou desiludir as pessoas em busca do improvável conforto de uma paixão frustrada que as aproximasse do poeta e
Pena. Éramos uma boa invenção
Eles amputaram as tuas coxas dos meus quadris. Para mim eles são sempre médicos. Todos. Eles nos separaram, um do outro. Para mim eles são engenheiros. Pena. Éramos uma boa invenção de amar: um avião feito de homem e mulher, asas e tudo: nós nos elevamos um pouco do chão, voamos um pouco.
sua vivência, supondo um happy end antecipado, porém mesmo assim a trazer algum conforto. Com ironia atroz ele disse que a Ruthinha era sua Anne Frank particular. A perturbação provocadora acompanha cada releitura e cada lembrança desses poemas e, também, a temática do amor, constante na obra de Amichai.
Mesmo poemas longos, desses que ocupam um livro inteiro, como Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, podem ser lidos e relidos de maneira descontínua e aleatória, pois, como se sabe, o poema longo é formado por muitos poemas curtos que formam unidades mínimas de um todo maior. De modo inverso, também será possível ler poemas curtos, de um mesmo autor, na sequência que bem entendermos – ao final teremos a imagem do poeta – isto é, a chamada “mensagem” – em muitas facetas, ângulos, claros, escuros, vermelho, negro, azul etc.
Não pode ser diferente com Amichai. Israel, o seu presente vivo, é temática recorrente no dia a dia mais banal – e Amichai é um grande mestre das banalidades, como o foram Bandeira e Drummond, com os quais ele compartilha a mestria modernista – e nas visões extraordinárias daquelas paisagens tão bíblicas quanto contemporâneas. Tanto líricas como épicas. Ver o filho partindo para o serviço militar tem conotações únicas em Israel. A cena de um dos poemas do livro nos coloca entre o passado e a angústia em relação ao futuro, com a profissão quase dogmática do otimismo. Um otimismo retorcido sob o aspecto trágico daquele poema no qual são descritos um “inimigo” e uma “inimiga” com suas roupas lavadas e suas bandeiras
tentando criar um clima de festa diante dos inimigos, cada um com o seu símbolo precário e seus trapos. A dualidade conflituosa torna-se uma unidade trágica. Amichai não fala de mera ficção, mas de uma situação real e sempre de

sestabilizadora, tirando qualquer um da zona de conforto. O estilo, como se percebe à primeira leitura de qualquer um dos seus textos, é simples, direto e ao mesmo tempo muito sutil. O poeta nos revela a riqueza de significa
O moinho de Yemin Moshê
Esse moinho nunca moeu farinha. Ele moeu o ar sagrado e os pássaros da saudade de Bialik, ele moeu palavras e o tempo picado, ele moeu a chuva e até morteiros, mas ele nunca moeu farinha.
Agora ele nos descobriu e mói nossa vida dia a dia, para fazer de nós a farinha da paz e fazer de nós o pão da paz para as futuras gerações.
Nota: No bairro onde o poeta viveu, chamado Yemin Moshê, em Jerusalém, existe um moinho simbólico doado, como símbolo de um sonho para o futuro país de Israel na Palestina, pelo benfeitor Moisés Montefiore (1784-1885), judeu italiano nascido em Livorno e naturalizado britânico. Hayim Nachman Bialik (Rússia 1873–Aústria 1934). Autor que deu início à modernização da poesia hebraica, é considerado o poeta nacional de Israel.
dos ocultos em palavras “pobres” descobertas em sua riqueza. Essa é a grande tarefa dos poetas: retirar as palavras do limbo aonde são jogadas pelo desgaste do dia a dia e pelo mau uso que fazemos delas, esvaziando-as de conteúdo. De modo inconsciente, a grande maioria de nós. De modo consciente, há exemplos famosos, como o dos nazistas, que moviam campanhas contra a inteligência, a filosofia, a arte, ridicularizando-as, vulgarizando suas expressões até borrar o que elas têm de belo e profundo. As ditaduras comunistas não faziam outra coisa ao atacar a chamada “arte burguesa”, “filosofia burguesa” etc.
Nos anos 50, a lição modernista ainda estava em voga e Amichai, assim como seus companheiros de geração, destacando-se outro grande poeta, Natan Zach, líder intelectual do grupo, empenharam-se em renovar a dicção poética do hebraico. Natan Alterman, herói poético de Israel, configurava-se como o alvo na guerra de gerações. Os novos criticavam o estilo verborrágico e, habilidoso ao excesso, versátil, brilhante, diziam, ele pecava exatamente por causa de suas qualidades levadas ao exagero que sufoca autor e intenção.
Na história da literatura hebraica, o ano de 1958 permanece um marco indicador de outra etapa, enquanto os
Poema infinito
Dentro do museu novo em folha uma sinagoga antiga. Dentro da sinagoga eu. Dentro de mim meu coração um museu. Dentro do museu uma sinagoga, dentro dela eu, dentro de mim.
israelenses e judeus dos demais países festejavam com forte barulho os primeiros dez anos do Estado. Alterman trazia o clangor das fanfarras passadistas, Amichai estava entre os que punham fé no futuro, na força das palavras antes de serem pronunciadas, naquele espaço inatingível em sua fugacidade entre o ruído e o silêncio. Como disse o poeta brasileiro José Paulo Paes, para “bom entendedor meia palavra bas”.
O trompete em surdina está longe de negar a música, ao contrário, revela essa música inesperada que se encontra oculta nas coisas e em nós mesmos. Basta ler, reler ou lembrar o “Poema infinito”, aqui publicado. É sobre o ser Yehuda Amichai. Até hoje – há anos isso me ocorre – não sei exatamente se o poema foi explicado por uma peça do Museu de Israel, ou a tal peça do museu refletia o poema, esclarecendo-me a respeito de ambos e muito mais. Trata-se da sinagoga italiana de Vittorio Veneto, pequena e linda em seus requintes, conservada lá dentro, entre paredes. Conservada com seu poder evocativo, relíquia que se interioriza e situa no mundo, ou melhor, no universo, ou melhor...
Moacir Amâncio, poeta e tradutor, é professor de literatura hebraica na Universidade de São Paulo. Autor de Dois Palhaços e Uma Alcachofra, estudo sobre o romance Adam Filho de Cão, de Yoram Kaniuk; Yona e o Andrógino, estudo e tradução de poemas da is raelense Yona Wollach; Ata, reunião de livros de poemas publicados e inéditos; Terra e Paz: antologia poética, reunião de traduções de poemas de Yehuda Amichai; Matula, poemas etc.
