
13 minute read
Anabella Esperanza
o Piyut como caso de evolução da comunidade
anabella esperanza
Advertisement
Com hinos de louvor te exaltaremos, Adonai nosso Senhor
תורימזבו תוחבשב וניהלא 'ה ךללהנ
Sexta à tardinha, o sol já se põe no horizonte e é esta hora que nossos lábios chamaram Shaat Chesed, a hora de bondade, na qual a claridade do dia se funde com o princípio da noite. Nesta hora tão especial, ao caminhar pelas ruas já tranquilas de Yerushalaim, é possível ir ouvindo estas melodias de Kabalat Shabat que transmitem tanta história. Lechá dodi likrat kalá, cantam os congregantes, sabendo a grande importância que essas palavras possuem e ensinando aos jovens o seu significado antigo e sua relevância no presente. Assim como o “lechá dodi”, existem muitas canções litúrgicas que enriquecem a vida da Sinagoga, a tefilá e a vida judaica paralitúrgica, nas nossas casas, tanto no Shabat como em toda ocasião e evento judaico.
O Piyut (plural Piyutim) é definido como um poema litúrgico. A palavra Piyut (טויפ) parece ter sua origem no grego e significa “canção”.
Os primeiros Piyutim foram compostos nos primeiros séculos da era comum em Israel. Alguns estudiosos até consideram os Tehilim, Salmos, como primeiros indícios do que posteriormente se tornaria uma obra incansável de poemas sagrados. Em Eretz Israel, Piyutim foram compostos para enriquecer o Shemá Israel e suas berachot (bênçãos) e a Amidá em shabatot e Chagim e rashei chodashim (princípios de mês). Estas duas partes eram o que formava a Tefilá no seu início, segundo o que nossos sábios do Talmud mencionam no tratado de Berachot.
Levando isto em conta, fica claro que os Piyutim, portanto, enriqueciam os fragmentos principais e indispensáveis da reza. Entre os Paiytanim, os poetas,
Annatv / iStockphoto.com
que conhecemos desta época, reconhecemos Yanai, Yosei Ben Yosei e, mais tarde, Elazar Hakalir, graças ao arquivo judaico do Cairo, encontrado ao final do século 19 na lendária sinagoga Ben Ezra. Este arquivo guardava documentos, cartas e escritos desde o século nono da era comum.
Aqui podemos contemplar a qualidade com a qual foi conservado um dos piyutim de Yanai, “הלילה רצחב יהיו” vayehi be chatzer halaila, do ano 1000 aproximadamente. Está disponível no site “An invitation to Piyut” graças à Universidade de Cambridge, Unidade de Taylor-Schechter.

De que forma e quando se cantavam os Piyutim?
Como havíamos mencionado na época de nossos sábios z’l, a tefilá era composta por duas partes. O Shemá Israel e suas Berachot e a Amidá. A tefilá era recitada duas vezes: a primeira em silêncio e a segunda cantada pelo Sheliach tzibur (a pessoa da congregação que lidera a recitação das orações). Esta forma repetitiva se tornou extensa demais e exigiu soluções criativas por parte dos líderes espirituais. Foi assim que a tefilá cantada pelo Sheliach tzibur começou a tomar uma nova forma. Começaram a escrever fragmentos da tefilá levando em consideração o significado das Berachot originais, conservando também a Chatimá da tefilá, quer dizer, a última frase com a qual se encerra a Berachá (singular de Berachot, ou seja, benção) específica.
Estes novos fragmentos, então, foram uma alternativa à tefilá tradicional que todos já sabiam de cor. Os congregantes esperavam escutar os novos Piyutim e provar a criatividade de seus criadores. Os primeiros paytanim compunham tefilot para dias específicos da semana, para Shabatot e Chagim. Estes poetas tratavam de impactar o público com sua criatividade, escrevendo Piyutim que combinavam o dia específico em que eram ditos (por exemplo na terça-feira) e a parashá na qual estavam refletindo naquela semana.1
À medida que a liturgia judaica foi evoluindo, os Piyutim deixaram de ser uma alternativa à tefilá original e passaram a enriquecer a tefilá geral, e abundavam os espaços entre a tefilá e a tefilá anterior e posteriormente às tefilot importantes.
Em que locais se desenvolveu?
Este corpo Piyutico cresceu consideravelmente e foi se desenvolvendo à medida que a oração judaica foi evoluindo. A criação piyutica se expandiu até os países do Oriente e Ocidente, compondo uma parte importantíssima da criação literária judaica, assim como da oração judaica. Conhecemos assim os piyutim da Babilônia, França, Itália, de Marrocos, Líbia, Turquia, Grécia, Tunísia e também da Espanha, ou, melhor dizendo, Sefarad, a partir do século 10, a Idade de Ouro. Este período tão produtivo para o povo judaico permitiu também uma abertura crucial para a criação de novos poemas. Foi assim que conhecemos os rabinos poetas como Joseph Ibn Abitur, Salomón Ibn Gabirol, Isaac Ibn Ghayyat, Moisés Ibn Ezra, Judah Halevi e Abraham Ibn Ezra, entre outros.
Da mesma maneira que as orações formais nas sinagogas, os eventos do ciclo de vida judaico sempre existiram. Estes eventos, como o Brit Milá, os casamentos, os enterros, também demandaram seus próprios costumes, entre eles a criação dos Piyutim, que refletem a alegria, o amor, a melancolia e a dor, respectivamente. Chamamos estas orações de paralitúrgicas, por não serem escritas e recitadas na tefilá formal.
Assim também encontramos Piyutim para as Birkat Hamazon (a Berachá para depois da refeição), como Tzur Mishelo ou para festividades que se comemoravam na casa de família ou em comunidade, fora do ambiente formal da tefilá. Aqui, por exemplo, vemos novos poemas paralitúrgicos de Purim, Pessach, Shavuot e os demais. Compreendendo isso e considerando que o hebraico passou a ser a prerrogativa da elite rabínica e de intelectuais da época, com o agravante de que muitos dos membros das comunidades foram se esquecendo da sua língua materna, o hebraico, percebemos com o passar dos séculos que muitos dos Piyutim começam a ser escritos nos idiomas ou dialetos que os judeus falavam na diáspora. Temos Piyutim, por exemplo, em francês, italiano, judeu-espanhol ou ladino, judeu-árabe, ídiche etc.
Vejamos na página ao lado um exemplo de Piyut para Shavuot em Ladino:
A K ETUB á DA L EI
Es razon de alavar a el Dio grande i poderozo Kon temuridad de korason i alegria i gozo En el dia el este santo i temerozo
En este dia abasho el Dio en Sinay I milarias de malahim kon El A dar la Ley a su puevlo, kaza de Israel Por mano de Moshe Rabenu pastor fiel
Non kijo abashar sovre ningun monte alto Salvo en monte de Sinay ke se arebasho tanto Porke deprenda el ombre i tome la anava por manto
Yamo i disho el Dio Baruh-U a los djidios mi kompanya ermoza Azme ver a tu vista ehemplada a la roza Ke tu boz savroza i tu vista donoza
Israel ke oyeron la boz del Dio bendicho Diheron estaremos siempre a su komando i a su dicho Aremos i oyeremos todos su buen dicho
Izo partido kon eyos de darles la Ley kon kenes dieran fiansa Eyos dieron a los ijos ke es la mas emportansa De afirmar la Ley tanto kon provesa komo tener muncha bonansa
Viendo el Dio Baruh-U ke lo amimos aava raba Tambien el mos aplazo komo novio kon grande hiba Esta es la ketuba
Dia de Shaba resivieron los djidios la Ley de la mano del Dio Al sesh de sivan el mez tresero ke Israel de Misraim salio En anyo de dos mil i kuatrosientos i kuarenta i ocho ke el mundo se krio
Izieron estos tenaim los djidios kon la Ley Santa Te tomare komo novia ke sos de vanda alta T’estimare komo s’estima el yerdan en la garganta
Besiyata dishmaya siempre en ti mis mientes metere I a todas tus demandas yo komplire De dia i de noche kon ti me apegare
El se venge de todos los ke sierven idolos I bendiga tu puevlo “am goralo” I diran todos aunamente “ashre a-am she kaha lo”. É motivo para louvar a Deus, grande e poderoso, com respeito/temor no coração e alegria e júbilo, Neste santo e temível dia.
Neste dia Deus desceu ao Sinai junto a milhares de anjos, para dar a lei ao seu povo, a casa de Israel, pelas mãos de Moshé Rabeinu, pastor fiel.
Não quis descer sobre nenhum monte alto apenas no monte Sinai que se rebaixou tanto Para que suba o homem que fez da humildade um manto.
Deus, Abençoado seja, falou aos judeus: Minha companhia graciosa, deixe-Me ver teu rosto semelhante ao da rosa porque tua voz é agradável e tua face formosa.
Disse Israel, que ouviu da boca do Deus Bendito: sempre estaremos sob Seu comando e às Suas ordens Faremos e ouviremos todas as Suas boas palavras
Fez um pacto com eles de dar-lhes a Lei, com eles que Lhe deram como fiança a seus filhos, a coisa mais importante. Para afirmar a Lei con modéstia, para ter muita bonança.
Ao ver o Deus Abençoado o nosso grande amor, ele também nos abraça como um noivo, com grande amor. Esta é a ketubá.
No dia de Shabat receberam os judeus a Lei da mão de Deus. Em seis de sivan, o terceiro mês da saída de Israel do Egito no ano de dois mil quatrocentos e quarenta e oito da criação do mundo
Os judeus assumiram promessas com a Lei Santa: te tomarei como noiva de alto nível que és, te estimarei como se estima a um colar na garganta.
Com a ajuda de Deus, pensarei sempre em ti e a todas as tuas demandas eu cumprirei. De dia e de noite a ti me apegarei.
Ele se vingará dos que servem aos ídolos e abençoará a Seu povo, “o povo de Seu destino”. E dirão em uníssono “feliz é o povo para quem é assim”.

Este Piyut faz parte da tradição sefaradi e foi escrito pelo rabino Yehuda Bar Leon Kakai, no século 18 em Tessalônica, na Grécia2. O Piyut fala da Ketubá como se fosse a Torá, metáfora adaptada do Piyut escrito em hebraico pelo Rabino Israel Naggara, também sefaradi. O pacto entre marido e mulher, através da Ketubá, representa o amor entre o povo de Israel e Deus e durante todo o poema este amor e desejo por Deus se refletem na metáfora de amor entre o casal e é preservado através das Mitzvot (os preceitos).
É importante mencionar que entre os congregantes impossibilitados de saber o hebraico estavam as mulheres. Ao mesmo tempo, sabemos que estas mulheres eram as agentes de transmissão mais importantes da cultura oral, entre estes, os Piyutim paralitúrgicos. Não é por acaso então que estes Piyutim tenham sido escritos em idiomas judaicos locais, de acordo com a cultura da congregação de mitpalelim (pessoas que rezam juntas), formada por todas as classes sociais, homens, mulheres, crianças, idosos, ricos, pobres, intelectuais, comerciantes e todos os demais.
O Piyut como caso de Revolução litúrgica literária
Como já analisado anteriormente, o Piyut não deixa de ser uma obra de criação constante, de renovação da tefilá formal e paralitúrgica. Esta renovação incansável reflete um desenvolvimento da vida das comunidades judaicas ao redor do mundo. Cada comunidade escrevia seus próprios Piyutim segundo suas necessidades e seus costumes, como é o exemplo do Piyut “A Ketubá da Lei” que vimos antes. Este ato de escrita litúrgica e paralitúrgica nos indica que sem dúvida as comunidades souberam achar um equilíbrio entre a tefilá tradicional e a renovação necessária, para manter vivos seus costumes e suas preces, tanto particulares como em comunidade. Pelo seu aspecto tão renovador, muitos foram os opositores da inclusão do Piyutim durante a tefilá, dizendo, entre outros argumentos, que eles distraíam os orantes e lhes faziam perder o ritmo e a kavaná (intenção) da reza.
Até hoje os Piyutim são escritos, muitos deles passaram a fazer parte da obra canônica dos distintos Sidurim. Nós
Terbrana / iStockphoto.com


conhecemos muitos destes Piyutim que transcenderam o tempo e espaço, entre eles Adon Olam, Igdal Elohim Chai, Lechá Dodi, Aleinu Leshabeach, e, como vemos, compõe parte integral de nossa tefilá até o dia de hoje e enriquecem a reza formal com palavras de louvor e melodias que alcançam nossa alma.
Este ato, que não começou como um ato revolucionário e sim como uma forma de conectar os mitpalelim às suas próprias raízes, aos seus textos, chega a transcender hoje em dia a maioria das comunidades judaicas no mundo e ser mais relevante do que nunca, enriquecendo nossa vida espiritual e nos ajudando a expressar nossos sentimentos à Elohim e sua criação.
Termino com este Piyut tão precioso que tive a oportunidade de ensinar no último Lashir Benefesh, seminário para Chazanim e Shlichei tzibur da WUPJ-LA. Seu nome é Yala Yala הלעי הלעי, escrito por Rab Israel Nadjara, Safed, século 16.
Este Piyut é inspirado no relato de Shir Hashirim ריש םירישה, Cântico dos Cânticos. A metáfora de amor entre o povo de Israel e seu criador aparece também em nosso Piyut. O escritor pede à sua amada, a gazela, que se aproxime de seu jardim em flores e coma de seus saborosos frutos. Ele promete ser seu eterno namorado e formar seu Mishkan, seu lar espiritual, nela. Aqui também vemos a metáfora dos apaixonados para se referir ao pacto entre Deus e o povo de Israel, que não pode ser rompido.
הלעי הלעי הרא’גנ לארשי 'ר תפצ 16 האמ
ינִּגַלְ יאִוֹבּ הלָעֲיַ הלָעֲיַ ינִפְגַּ החָרְפָּ ןוֹמּרִ ץנֵהֵ יָבוֹא דוֹדִי יָחִישׁ צְעָדָיו וְיֹאכַל אֶת פְּרִי מְגָדָיו אִם יְדִידִי אָרְכוּ נְדוּדָיו אֵיךְ יְחִידָה אֵשֵׁב עַל כַּנִי שׁוּבִי אֵלַי, אַתְּ בַּת אֲהוּבָה שׁוּבִי אַתְּ, וַאֲנִי אָשׁוּבָה הִנֵּה עִמִּי זֹאת אוֹת כְּתוּבָה כִּי בְּתוֹכֵךְ אֶתֵּן מִשְׁכָּנִי רֵעִי, דּוֹדִי, נַפְשִׁי פָּדִיתָ וּלְבַת מֵאָז אוֹתִי קָנִיתָ עַתָּה לִי בֵין עַמִּים זֵרִיתָ וְאֵיךְ תֹּאמַר כִּי אֲהַבְתָּנִי אֲיֻמָּתִי, לְטוֹב זֵרִיתִיךְ וְלִתְהִלָּה וּלְטוֹב שָׂרִיתִיךְ כִּי אַהֲבַת עוֹלָם אֲהַבְתִּיךְ עַל כֵּן אוֹשִׁיבֵךְ עַל דּוּכָנִי לוּ יְהִי כִדְבָרְךָ, יְדִידִי עַתָּה מַהֵר תֶּאְסֹף נְדוּדִי וּלְתוֹךְ צִיּוֹן נְחֵה גְדוּדִי וְשָׁם אַקְרִיב לָךְ אֶת קָרְבָּנִי חִזְקִי רַעְיָה חִכֵּךְ כְּיֵין טוֹב כִּי צִיץ יִשְׁעִי רַעֲנָן וְרָטֹב וּלְסִירַיִךְ אֶכְרוֹת וְאֶחְטֹב וְחִישׁ אֶשְׁלַח לָךְ אֶת סְגָנִי IAALA IAALA3 Piut de Israel Nadjara (Safed, Séc XVI)

Iaala iaala bôi legani, henets rimon parchá gafni Iavo dodi iachish tseadav, veiochal et pri megadav Im iedidi archu nedudav, eich iechidá eshev al kani Shúvi elái, at bat ahuvá, shúvi at, vaani ashuva Hine imi zot ot ketuvá, ki betochech eten mishkani Rei, dodi, nafshi padita, ulevat meaz oti kanita Atá li vein amim zerita, veeich tomar ki ahavtani Aiumati letov zeritich, velitehilá uletov saritich Ki ahavat olam ahavtich, al ken hoshivech al duchani Lu iehi chidvarchá, iedidi, atá maher tessof nedudi Uletoch Tsion neche guedudi, vesham akriv lach et [korbani Chizki raiá chikech keiein tov, ki tsits ish’i raanan veratov Ulessiráich echrot veechtov, vechish eshlach lach et segani
Notas
1. Em Eretz Israel da Antiguidade, a leitura da Torá não era composta por Parashiot e sim Sedarim (ordens). A leitura da Torá era concluída em um ciclo de quase três anos e meio. Os paytanim mencionados eram compostos segundo o sedarim e não segundo a leitura das parashiot que conhecemos hoje. 2. Neste link é possível ouvir o Piyut recitado pelo Rabino Hazan İzak Algazi Efendi (1889 IzmirTurquia- 1950 Montevidéu, Uruguai) <https://www.youtube.com/ watch?v=KuK-iXViblU>. Neste site está a sua biografia em inglês <http://www. jewish-music.huji.ac.il/content/isaac-algazi> e neste em ladino <http://www.aki-yerushalayim.co.il/ay/088/088_11_el_rav.htm> 3. Agradeço ao Hazan Oren Boljover pela transliteração fonética.
Anabella Esperanza é a coordenadora do Netzer e do TaMaR (movimento juvenil e de jovens adultos da WUPJ) para os países de fala hispânica e portuguesa. Anabella é mestranda em Piyut e Tefilá dos judeus sefaradim na Universidade Hebraica de Jerusalém.
SHANÁ TOVÁ UMETUKÁ
arymax.org.br

