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Livros: O valor da linguagem, de Sandra Helena Bondarovsky

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Ricardo Sichel

Ricardo Sichel

o valor da linguagem

Resenha do livro os judeus e as palavras, de Amóz oz e Fania oz-salzberger

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Os judeus e as palavras, de Amóz Oz e Fania Oz-Salzberger, Companhia das Letras, 2015, 251 páginas, tradução de George Schlesinger.

sandra helena Bondarovsky

Amóz Oz nasceu em Jerusalém, em 1939, cresceu, na sua infância, durante a guerra pela independência do Estado de Israel, na luta contra os ingleses e os árabes. Esse período o marcou tanto que dedicou um romance autobiográfico, narrado sob o ponto de vista de um menino de nove anos no ano de 1947: Pantera no porão, publicado em 1995. Tem tradução para o português e foi editado em 1999 pela Companhia das Letras, dirigida por Luiz Schwarcz, que já publicou outros 14 títulos do autor, além desse, aqui resenhado, e Pantera.

Agora, junto com sua filha Fania Oz-Salzberger, historiadora, nos brinda com Os judeus e as palavras. Trata-se de uma viagem no tempo e no espaço sobre o valor da palavra, ou melhor, da linguagem, para a cultura judaica. É bom lembrar que ambos são nativos de Israel e falantes de hebraico. Mas são judeus seculares. Lembram que os textos judaicos há muito tempo estão disponíveis por escrito. Primeiro em pedra, depois em papiros, pergaminhos e papel. Argumentam também que, na tradição judaica escrita, todo leitor é revisor de originais e todo aluno um crítico. E isso não é pouco.

Para os autores, nossa linhagem não é de sangue, mas de texto. Assim, a continuidade judaica é articulada em palavras orais ou escritas sujeitas às interpretações, aos debates e às discórdias. Os textos hebraicos antigos estão sempre com dois pares fundamentais: pais e filhos; professores e alunos. Na sinagoga, na escola e sobretudo em casa essa interação envolve sempre duas ou três gerações em conversas profundas. Desde os tempos talmúdicos meninos estudavam hebraico na escola a partir dos três anos até os 13 (bar-mitsvá), num nível suficiente para ler e escrever. Poucos permaneciam iletrados.

Professor e aluno, rabi e talmid formaram pares subsequentes tais como: “Moisés recebeu a Torá no Sinai e a passou a Josué, e Josué aos anciãos, e os anciãos aos profetas, e os profetas passaram aos homens da Grande Assembleia”. Esta corrente continuou até a era moderna com Medelssohn, Asher Ginzberg, Gershom Scholem, Franz Rozenzweig, Martin Buber, Emmanuel Levinas, Mordecai Kaplan, Abraham Joshua Heschel e Yeshayhu Leibowitz. As crianças herdam não só a fé, o destino coletivo e a circuncisão para os meninos, mas também o início de uma biblioteca. Esse é um encargo pesado para pais e mães.

Em “Mulheres vocais”, o segundo capítulo do livro, estão em sintonia com os acadêmicos modernos que acreditam que o sentido psicológico e gramatical de O Canto dos Cânticos não foi escrito por Salomão, mas para Salomão, o que explicaria o texto altamente erótico no cânone bíblico. Consideram a linguagem bíblica profun-

Para os autores, a damente patriarcal e a gramática hebrailinhagem judaica não ca notoriamente chauvinista. Em seguié de sangue, mas da afirmam que as mulheres bíblicas apa recem em todas as idades e formatos, fa de texto. Assim, a zendo um desfile de mulheres ativas, cocontinuidade judaica meçando por Eva – Mãe de Todo Ser é articulada em Vivo. Continua com Lilite, Sara, Rebepalavras orais ou ca, Raquel e o time de mulheres talenescritas sujeitas às tosas que trouxeram Moisés ao mundo. Saltando dos textos bíblicos para a era interpretações, aos pré-moderna aparece a dupla: pão e ledebates e às discórdias. tra. As mulheres cuidando do pão e os homens das letras. Ou seja, as mulheres tiveram parte ativa na Bíblia, mas eram mantidas à distância do Talmude. E assim permaneceram como quase todas as mulheres das outras culturas até os tempos modernos. Assim mesmo, não deixaram de aparecer mulheres que se destacaram. E lançam a pergunta: “Que outra sociedade tradicional, ponderamos, produziu tantas mulheres documentadas, nomeadas, vocais e obstinadas antes do início da modernidade?”

Relacionam muitas mulheres que se destacaram nas últimas gerações na dianteira do mundo acadêmico, a partir do momento que, já no final do século XIX, foram permitidas as entradas de judeus e mulheres na universidade.

O passado judaico está fortemente entrelaçado com o passado de outros povos. Somos uma nação com muito mais história do que geografia, nos encontrando em cada caminho importante na História do Oriente Médio e da Europa. Outros povos utilizaram a Bíblia, que é um coquetel de fatos, mitos e tipo de ficção que contém verdades profundas. Todos puderam beber de Gênesis, Isaías e Provérbios, que se sustentam incólumes ao fluxo do tempo. O Talmude, por sua vez, tem um sofisticado senso de parábola e símbolo. A concepção judaica do tempo não é linear, que marcha para o progresso. A própria língua hebraica dá costas para o futuro e tem a face virada para o passado. Este é o nosso tempo e a nossa atemporalidade.

“Cada pessoa tem um nome; ou os judeus precisam do judaísmo?”, seu quarto capítulo, discute extensamente quando os hebreus ou filhos de Israel se tornaram yehudim, judeus; tal passagem ocorreu entre a destruição do Primeiro Templo e a construção do Segundo Templo. Ressalta-se que o hebraico moderno é definido na Wikipédia como: “Extinta como língua nativa no século IV acc, revivida nos anos 1880.” Trata-se do maior empreendimento linguístico dos tempos modernos. O hebraico moderno usa pronúncia sefaradita e sintaxe ídiche alemã. Seu vocabulário tem bons respingos de russo, alemão, polonês, francês, inglês e árabe. Em compensação, o hebraico deu às línguas europeias as palavras amém, aleluia, ganef (ladrão) e chutzpá (atrevimento, descaramento).

A conclusão do livro dedica parte significativa ao que chamam de “(...) uma teologia judaica da chutzpá. Ela reside na sutil junção de fé, tendência a discutir e fazer humor de si mesmo. E redunda numa reverência especialmente irreverente. Nada é tão sagrado que não mereça uma zombaria ocasional. Você pode rir do rabino, dos anjos e até mesmo do Todo Poderoso”. São inúmeras as anedotas contadas que mostram o amplo espectro do humor judaico, lembrando que nesse humor vai uma boa dose de autoanálise e, também, um instrumento para enfrentar os momentos difíceis.

A reunião de um dos maiores escritores contemporâneos com sua filha historiadora resultou numa narrativa esclarecida, leve sem perder em profundidade e rigor, além de fácil leitura. O valor da palavra lembra que, além da nossa casa, habitamos também a nossa linguagem, daí a importância do estudo hebraico pelas novas gerações.

Os judeus e as palavras abre-se, entre suas epígrafes, com: • “Os judeus escolheram Deus e pegaram sua lei • Ou inventaram Deus, então legislaram. • O que veio antes talvez não saibamos • Mas eras se passaram, e nisto ainda estão: • Empenhando raciocínio, não reverência, • E nada deixando sem debater”.

Sandra Helena Bondarovsky é economista e especialista em desenvolvimento urbano.

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