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Rabino Dario Ezequiel Bialer

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Em poucas palavras

Em poucas palavras

o sagrado sangrando

Falar em nome de Deus, atuar em nome de Deus e matar em nome de Deus. Tão terrível quanto tentador ser administrador do sagrado. E para melhor controlar, se investe no reino do espaço, pois um Deus que posso mostrar é um Deus que posso manipular. Isso é o sagrado sangrando.

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rabino dario ezequiel Bialer

A que nos referimos quando falamos do sagrado no judaísmo? A um local ao qual podemos nos dirigir? A um objeto que podemos comprar? A uma pessoa a quem deveríamos adorar?

Quem procura por arte vai encontrá-la em galerias e museus. Aquele que procura por literatura vai achá-la em bibliotecas e livrarias. Mas “ onde fica o local da religião? Será que os símbolos visíveis preservados em templos, as doutrinas e os dogmas contidos em livros contêm a totalidade da religião?

Para transmitir estes conhecimentos o homem tem que usar uma linguagem compatível com o indescritível, cujos termos não pretendem descrever, mas esboçar; apontar em vez de capturar. Estes termos são muitas vezes paradoxais, radicais ou negativos. O maior perigo da filosofia da religião é a tentação de generalizar o que é essencialmente único, de explicar o que é intrinsicamente inexplicável, de ajustar o incomum ao nosso senso comum.

Não temos uma palavra para a compreensão destes momentos, para os eventos que constroem a história secreta da religião, ou para o registro no qual estes instantes são capturados.

Teologia é a doutrina de Deus, mas estes momentos não são nem doutrina nem exclusivamente divinos. Eles são tão humanos quanto divinos”.1 Com essas palavras, Rabi Abraham Joshua Heschel (1905-1972), mestre dos meus mestres e um autentico profeta2 dos nossos dias, indaga sobre as qualidades, virtudes e mentiras do sagrado.

Esse texto vai em busca do seu espírito, com citações de suas obras fundamentais, bem como colocações minhas que procuram ser coerentes com o homem que em Selma, Alabama, marchou com Martin Luther King, desafiando vozes contrárias de sua própria comunidade, e aquele que, mesmo visitando a Casa Branca para dar lições de moral ao presidente John F. Kennedy, continuava humilde sabendo-se pequeno diante do Criador.

A pergunta fundamental. Onde está Deus?

A Torá não é um livro de dogmas nem um manual de história. É o ponto de encontro entre Deus e os homens. A experiência religiosa judaica é a resposta humana diante do Sagrado. Os rituais, as roupas, os templos, as cerimônias não são o sagrado que o homem na sua busca existencial procura.

As religiões foram desde seus primórdios, e ainda o são, frequentemente dominadas pela noção de que a deidade reside no espaço, em locais especiais como montanhas, florestas, árvores ou pedras, que são, portanto, escolhidas como lugares sagrados. A deidade está ligada a uma terra em particular, e a santidade a uma qualidade associada a coisas do espaço. A questão primordial é: “Onde está Deus?”, mas quando essa pergunta existencial se torna obsessão, o sagrado – que é indescritível, misterioso e transcendente – se confunde com uma tentativa de apreender a divindade e, portanto, no fundo, de controlar Deus. Falar em nome de Deus, atuar em nome de Deus e matar em nome de Deus. Tão terrível quanto tentador ser administrador do sagrado. E para melhor controlar, se investe no reino do espaço, pois um Deus que posso mostrar é um Deus que posso manipular. Isso é o sagrado sangrando.

Neste momento, o homem religioso, quase sem o perceber, se torna profanador de qualquer vestígio de santidade à qual podia aspirar no início da sua busca espiritual. A metamorfose do sagrado pela reverência à imagem sagrada, aos santuários nacionais, aos estandartes e bandeiras; a homenagem a monumentos erigidos em honra de reis e heróis, e em todo lugar a profanação de santuários sagrados, é considerada um sacrilégio. O santuário pode tor-

A maioria se aproxima nar-se tão importante que a ideia que ele da religião para tentar controlar o futuro. representa é destinada ao esquecimento.3 Os sábios do Talmud, seguramente cientes do risco de acabar adorando pe-

Spinoza dizia que os dras e não ideias, estabelecem uma caterituais são as formas gorização da santidade dos objetos de culmágicas com as quais to, e vejam como é interessante o lugar a religião procura dar ocupado pela sinagoga: Com o dinheiro da venda de rechová a sensação de controle shel ir (termo hebraico que rotula um losobre o futuro. cal público de reunião) os membros da comunidade podem comprar uma sinagoga. Se venderem a sinagoga podem comprar uma teivá (o conjunto de móveis onde se realiza a leitura do Sefer Torá); se venderem a teivá eles podem comprar matpechot (os invólucros e enfeites do Sefer Torá); se venderem as matpechot podem comprar sefarim (os livros da Torá editados separadamente); se venderem os sefarim podem comprar um Sefer Torá. Mas se venderem um Sefer Torá eles não podem comprar chumashim, se venderem chumashim não podem comprar matpechot, se venderem matpechot não podem comprar uma teivá, se venderem a teivá não podem comprar uma sinagoga e se venderem a sinagoga não podem comprar uma rechová shel ir. O mesmo se aplica às sobras do dinheiro.4 O Talmud evolui esta mishná dizendo que isto vale apenas para sinagogas isoladas no campo (ou seja, que não estão mais em uso). E que uma sinagoga em uso não pode ser vendida, pois pertence à comunidade, sendo que a sua santidade é diretamente proporcional à quantidade de gente que a frequenta. A sinagoga é considerada entre os níveis mais baixos de santidade, muitas vezes menor do que um Sefer Torá, e também – surpreendentemente para muitos – menor que a sua mobília ou que uma cópia de um dos livros da Torá! Além disso, a santidade do lugar é dada pelas pessoas que frequentam a sinagoga para rezar, jamais pelo edifício em si. As coisas sagradas – é bom lembrar – sempre estão à mercê do homem. Embora por demais sagradas para serem poluídas, elas não são por demais sagradas para serem exploradas, indica Heschel quando denuncia que para perpetuar a presença de Deus a sua imagem é moldada. No entanto, um Deus que pode ser moldado, um Deus que pode ser confinado, não é senão uma sombra do homem.

Dessa forma, Heschel irrompe no mundo do culto às coisas para nos advertir que o genuinamente precioso se encontra no reino do tempo e não no do espaço.

Os monumentos de bronze vivem graças à memória dos que contemplam a sua forma, enquanto que os monumentos da alma perduram mesmo que sejam relegados às profundidades da mente.

No início da Criação havia somente uma santidade no mundo, a santidade no tempo. Quando no Sinai a palavra de Deus estava a ponto de ser proferida, um chamado em prol da santidade no homem foi proclamado: “Tu hás de ser perante mim o povo sagrado”.5

Foi apenas depois que o povo sucumbiu à tentação de adorar uma coisa, o bezerro de ouro, que a construção do Tabernáculo, da santidade no espaço, foi ordenada.

A santidade do tempo veio em primeiro lugar, a santidade do homem, em segundo, e a santidade do espaço, por último. O tempo foi abençoado por Deus; o espaço e o Tabernáculo foram consagrados por Moisés.

A ilusão de possuir o sagrado

Numa passagem do livro do Shemot / Êxodo, Deus ordena ao povo construir um santuário, mas não para habitar nele e sim “para que Eu [Deus] habite entre eles [as pessoas que construíram o santuário]”.6 É uma frase sutilmente desconcertante: Deus encomenda uma casa para habitar fora dela! Contudo, foram muito poucos os que deram a esta mensagem o significado de que Deus absolutamente não precisa de espaço físico e sim da ação criativa de homens para que se aproximem Dele e vivenciem instantes sagrados.

A maioria se aproxima da religião para tentar controlar o futuro. A religião, da mesma forma que a política, versa sobre poder e controle. De pessoas controlando pessoas. De ofertar a ilusão de que é possível controlar o futuro. Spinoza dizia que os rituais são as formas mágicas com as quais a religião procura dar a sensação de controle sobre o futuro.

A religião tenta criar métodos para manter Deus dentro do santuário. Não só para trazê-Lo para perto, mas para mantê-Lo todo o tempo que for possível. E a ironia é que quanto mais você tenta controlar, menos controle você tem.

Em Devarim / Deuteronômio7, a ideia sobre o sagrado e o local da imanência do divino é bem diferente. Olha desde a habitação de Tua santidade, desde os céus, e abençoa Teu povo, Israel, e a terra que nos deste... A santidade de Deus não está no santuário, mas no céu. Isto

cria uma nova teologia, que se exemplifica muito claramente com o profeta Jeremias.8 Deus ordena ao profeta para ir até a porta do templo e advertir àqueles que ingressam para adorar a Deus: “Melhorem vossos caminhos e vossas ações – melhorem vossa sociedade – e Eu farei que vocês habitem nesse lugar. Não confiem nas palavras mentirosas que dizem: oh o templo do Eterno, o templo do Eterno, o templo do Eterno!”

Porque quem reside no templo é a comunidade e não a santidade de Deus. Definitivamente, a grande pergunta da religião não deve ser como fazer com que Deus esteja presente, mas como fazer com que nós estejamos presentes.

A teologia da santidade de Deus residindo no espaço cria uma falsa sensação de imunidade. Que só precisamos de rituais para manter Deus à vontade dentro desse espaço e tudo estará bem. E essa é uma falsa teologia.

A Santidade como palácio no tempo

Para compreender a mensagem da Bíblia, a pessoa precisa aceitar sua premissa de que o tempo tem um significado para a vida que é, pelo menos, igual ao do espaço; que o tempo tem uma significação e soberania próprias, e que será no tempo e não no espaço aonde o homem deve buscar a presença de Deus.

O judaísmo nos ensina a atribuir santidade ao tempo, a nos vincularmos aos acontecimentos sagrados, a aprender como consagrar santuários. E são os shabatot nossas grandes catedrais; o kodesh ha kodashim9 nosso Santo dos Santos, um palácio construído no tempo.

Pensemos na palavra kadosh: comumente traduzida como santo ou sagrado, mas que deve ser interpretada como consagrado. A ação de consagrar é o ato de separar, extrair da rotina, do cotidiano. O sagrado nunca é sagrado em si mesmo.

Tudo o que conseguimos colocar à parte de nossos interesses e corrupções é sagrado.10

Pensar no sagrado como uma coisa que pode ser conquistada, no melhor dos casos, quando não usurpada, é uma referência que reduz à sua mínima expressão o encontro com o Divino. Isso fica perfeitamente claro des-

A teologia da santidade de o início mesmo da Torá. Quando o de Deus residindo no espaço cria uma falsa mundo é criado, qual imaginam que foi o primeiro objeto santo na história do universo? Teria sido uma montanha, tesensação de imunidade. ria sido um altar? A palavra kadosh é Que só precisamos de usada pela primeira vez no Livro de Berituais para manter reshit / Gênesis ao final da história da Deus à vontade dentro criação para ser aplicada ao tempo: “E Deus abençoou o sétimo dia, e fê-lo santo”. desse espaço e tudo Não há referência no relato da criação a estará bem. E essa é nenhum objeto no espaço que teria sido uma falsa teologia. dotado com a qualidade de santidade. Esta é uma diferença radical do costumeiro pensamento religioso. Da mentalidade que, após o estabelecimento do céu e da terra, Deus criaria um lugar santificado – uma montanha sagrada ou uma fonte sagrada – sobre a qual seria erigido um santuário. E nesse instante em que nasce o shabat, o povo de Israel apresenta ao mundo o profundo sentido do sagrado, um tempo que nos iguala, nos eleva, nos abraça e transforma. Um tempo que não existe apenas em si mesmo, mas em relação com os outros tempos não consagrados, mas não por isso depreciados. O trabalho é um ofício e o descanso do sábado, uma arte. O resultado de um acordo entre o corpo, a mente e a imaginação para celebrar nesse palácio feito de alma, alegria e reserva. O contrário do tempo consagrado é o cotidiano, nunca o profano. Desmerecer o espaço e a benção das coisas do espaço é desmerecer os trabalhos da criação, os trabalhos que Deus contemplou e viu “que eram bons”. O sétimo dia se manifesta em todo seu esplendor quando há seis dias prévios de criação. Sem esse tempo essencial de trabalho não haveria necessidade alguma do dia de descanso. Assim vivemos a vida, de alguma forma indo e voltando entre kodesh e chol, instantes de santidade e longas jornadas de esforço e dedicação, para voltar a nos aproximar, desta vez sim, a perguntas poderosas, que vibram e comovem. A pergunta sobre a santidade não é outra que: Como lhe dar sentido à vida, como lhe dar brilho? E como permitir que o divino brilhe em nós? Como lhe permitimos se expressar na obra das nossas mãos? A distância que separa essas perguntas daquelas que abrem este texto é a mesma distância que separa aos pa-

gãos que exaltavam as coisas sagradas, dos profetas que abençoam as ações sagradas.

O objeto mais precioso que já existiu na Terra foram as duas tábuas de pedra que Moisés recebeu no topo do Monte Sinai. “As tábuas eram obra de Deus; também a escritura era a escritura de Deus, esculpida nas tábuas.”

Mas ao descer do monte com as duas tábuas que ele tinha acabado de receber nas mãos, Moisés viu as pessoas dançando em volta do bezerro de ouro, então ele arremessou as tábuas e as quebrou diante dos olhos do povo.

A pedra está quebrada, mas as palavras estão vivas. A reprodução das tábuas originais que Moisés fez em seguida também desapareceram, mas as palavras não estão mortas. Elas seguem chamando de nossas portas como se pedissem para serem gravadas nas “tábuas” de cada coração. 11

Notas

1. Tradução livre de trecho do livro Depth Theology: The Insecurity of Freedom, de

Abraham Joshua Heschel, Farrar, Straus e Giroux, 1963, cujo original segue:

Who is in search of art, will find it in works of art as preserved, for example, in art collections. He who is in search of literature will find it in books as preserved in libraries.

But where is the place of religion? Do visible symbols as preserved in temples, doctrines and dogmas as contained in books, contain the totality of religion?

To convey these insights, man must use a language which is compatible with his sense of the ineffable, the terms of which do not pretend to describe, but to indicate; to point to, rather than to capture. These terms are not always imaginative; they are often paradoxical, radical or negative. The chief danger to philosophy of religion lies in the temptation to generalize what is essentially unique, to explicate what is intrinsically inexplicable, to adjust the uncommon to our common sense.

We do not have a word for the understanding of these moments, for the events that make up the secret history of religion, or for the records in which these instants are captured.

Theology is the doctrine of God, but these moments are neither doctrine nor exclusively divine. They are human as well as divine. 2. Eis a definição de Heschel sobre profecia: “Profecia é a voz que Deus empresta à agonia silenciosa, uma voz para as pobrezas saqueadas, para as riquezas profanadas. É uma forma de viver, um ponto de interseção entre Deus e o homem. Deus fica irado usando as palavras do profeta...”. “Essential Writings: Os profetas, “que tipo de homem é o profeta?”. 3. Trechos retirados de O Schabat, de Abraham Joshua Eschel, Editora Perspectiva, 2004. 4. Talmud da Babilônia, tratado Meguilá, folha 25-b. Evitei traduzir rechová shel ir, teivá, matpechot e chumashim para palavras discretas em português, por que o seu sentido talmúdico exige uma explicação mais ampla. 5. Shemot / Êxodo 19:6 6. Idem, 25:8 7. Devarim / Deuteronômio, 26:15 8. Jeremias / Yermiahu, 7:1-3 9. Santo dos santos era o espaço mais sagrado do templo de Jerusalém, onde apenas o sumo sacerdote podia ingressar e, mesmo ele, apenas no dia da expiação de Iom

Kipur. 10. Bonder, Nilton. O Sagrado, Editora Rocco, 2007. 11. La Tierra es del señor: El mundo interior del judío en Europa Oriental. Ediciones del Seminario Rabinico Latinoamericano, 1984.

O Rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI. Cursou estudos rabínicos no Seminário Latino-Americano Marshall T. Mayer em Buenos Aires, Argentina, e no Schechter Institute for Jewish Studies em Jerusalém, Israel.

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