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Vittorio Corinaldi

sinagoga: divagações soBre forma e conteúdo

Na cidade medieval, a catedral é o símbolo incontestado da visão de mundo, e, portanto, um depósito sagrado da fé generalizada, um santuário que domina a cidade com sua figura, sem necessidade de recorrer a perspectivas ou grandes espaços de acesso.

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vittorio corinaldi

Acomunidade judaica de Veneza, Itália, hoje muito pequena, é portadora de uma tradição longa e gloriosa, manifesta, entre outras coisas, na presença de cinco maravilhosas sinagogas, em sua maioria não mais operantes e conservadas como monumento histórico e artístico de excepcional qualidade.

Essas sinagogas, bem como o rico museu judaico e as demais instituições e dependências da comunidade, atraem interesse e movimento para o antigo ghetto, o bairro judeu onde se situam. Este ano o ghetto comemorará os 500 anos de sua existência, que cunhou o nome adotado por toda parte para designar os setores de separação discriminatória dos judeus (ghetto é uma corruptela da palavra italiana “getto”, cujo significado é “fundição” e se refere a uma oficina dessa atividade que ocupava a ilhota da cidade lagunar onde os judeus foram forçados a se instalar).

Ali a comunidade organiza a cada ano um seminário de estudos que atrai público não somente judaico, mas também geral, da cidade e do país. Cada ano é escolhido um tema-título e os palestrantes são convidados a desenvolver conforme suas diferentes inclinações profissionais ou intelectuais.

O tema deste ano foi: “Aspectos do Sagrado no Judaísmo”. Nesse quadro, coube-me abordar o tema como arquiteto e minha apresentação – baseada em conceitos gerais de interpretação e crítica arquitetônica – recorreu, porém, de forma natural a exemplos e citações especificamente relevantes para o público italiano.

A análise do tema, porém, traz à tona uma problemática que abrange setores mais amplos do público judaico e aspectos que não são objeto da atenção corrente. E sob este prisma surge o interesse de pôr em foco a arquitetura sinagogal, capítulo que só recentemente começa a aparecer na literatura crítica e documentária de arquitetura.

Apoiando-nos no assunto debatido no simpósio de Veneza, e admitindo que tratar de arquitetura sinagogal pressupõe a intenção de identificar nela elementos característicos de sacralidade, perguntamo-nos se eles efetivamente aparecem na sinagoga, tida como elemento tipológico determinado.

Antes de tentar responder a essa pergunta é preciso, porém, que deixemos claro o que é que permite classificar em geral uma arquitetura como “sagrada”, enquanto outras – mesmo se destinadas à mesma função – não merecem esse adjetivo. Para tanto, forçoso é recorrer aos exemplos da arquitetura cristã, na qual nossa cultura ocidental reconhece o máximo expoente de um espírito sacro.

Nesse contexto, a catedral gótica é tida como o exemplo mais eloquente: a aspiração mística que era a base de toda a cultura medieval levou ao desejo de elevação espiritual cuja tradução em espaço físico é a verticalidade, a proporção vertical dominante sobre a horizontal. O olhar é obrigatoriamente dirigido para o alto, para uma imaginária entidade suprema, diante da qual o indivíduo se sente pequeno e sem expressão.

Isto dá origem ao maravilhoso esquema estrutural que equilibra os esforços estáticos da construção gótica, e que é a essência visível de um sistema onde os cheios supérfluos são eliminados, e os grandes vazios são preenchidos pelos vitrais – que, filtrando a luz através das imagens cheias de cor, infundem uma atmosfera carregada de mistério e sacralidade no observador, física e espiritualmente orientado para o alto.

Já no Renascimento, mesmo quando as dimensões são até maiores do que no Gótico, o equilíbrio entre as proporções horizontal e vertical garante um domínio do indivíduo sobre o espaço, o que corresponde a uma tendência da sociedade em que o homem é o centro do fazer universal, o racional substitui o místico, o conhecimento se antepõe ao legado legendário. Aqui a arquitetura não pretende e não transmite um sentido de sagrado, e se este é aplicado, é por uma determinação hierárquica da autoridade da Igreja, não por um impulso social.

Também em nível do ambiente urbano, esta diferença entre as duas atitudes é perfeitamente distinguível. Na cidade medieval, a catedral é o símbolo incontestado da visão de mundo, e, portanto, um depósito sagrado da fé generalizada, um santuário que domina a cidade com sua figura, sem necessidade de recorrer a perspectivas ou grandes espaços de acesso.

Já o Renascimento estabelece uma igualdade de valores entre a igreja e o palácio ou outros símbolos do poder civil, inserindo-os num entorno urbano de escala controlada, destituído de intenções sagradas, antes pretendendo encorajar uma celebração consciente e orgulhosa da supremacia humana, tendência que foi se acentuando com o passar do tempo e com o progresso científico e tecnológico. E em nossos dias, a ausência de um impulso sagrado desloca-nos para um extremo oposto, a criação de um novo culto, o do consumo e da supremacia do deus-mercado – praticado nos templos pagãos dos shopping centers ou dos bancos, pregado nos incessantes “sermões” da publicidade.

Este rápido apanhado de caracterização arquitetônica pode parecer estranho para introduzir o assunto da arquitetura sinagogal, que – antes mesmo de qualquer estudo mais aprofundado – se apoia em construções de bem menor amplitude. Mas ele visa pontualizar critérios de observação válidos para qualquer espaço ritual.

E então, voltando-nos para a sinagoga, devemos constatar a existência, através dos séculos, de exemplos de no-

Detalhe de construção gótica: a verticalidade das linhas e a evidência do princípio estrutural.

tável valor artístico e não menos importante valor histórico. O exemplo italiano é dos mais característicos: sinagogas do século XVI, tanto em Veneza como em pequenas cidades das regiões do Veneto, Piemonte, Lombardia, Emilia e Toscana, exibem riquíssimos exemplares de arquitetura barroca, não discerníveis do exterior dos edifícios, testemunhos de prósperas comunidades que o domínio da Igreja impedia de se manifestarem de forma muito evidente. A completa extinção dessas comunidades condenou essas sinagogas a um lamentável abandono, e muito de seu patrimônio se perdeu ou estava em ameaça de desaparecimento.

O judaísmo italiano empenhou-se numa iniciativa de salvação: algumas dessas sinagogas foram transferidas para Israel na crença de que com isto elas iriam adquirir nova vida, servindo a comunidades ativas. Em outros casos, apenas alguns apetrechos de culto (em especial Aronot-Kodesh) foram instalados em sinagogas existentes, vindo a funcionar para ritos de comunidades estranhas à tradição que lhes deu origem, geralmente incapazes de compreender o valor dos objetos que lhes eram legados.

Atualmente, talvez em função dos esforços de conservação empreendidos por iniciativa judaica, nota-se um despertar de interesse por estes tesouros de uma cultura que – muito tarde – a Europa reconhece como parte de sua formação. E por toda parte no continente velhas sinagogas são restauradas e introduzidas como museus em itinerários que procuram resgatar valores até agora ignorados ou desprezados – e dentre eles o acervo arquitetônico.

Mas serão esta riqueza arquitetônica e este alto valor histórico correspondidos por uma natureza “sagrada” do espaço? Ou haverá um sentido de sagrado no tratamento do espaço, independentemente da maior ou menor qualidade artística do ambiente?

Em geral, creio poder dizer que não existe na sinagoga uma intenção de sacralidade: ela é um espaço de reunião (Beit-Knesset), um espaço de estudo (Beit-Midrash, Shil na Europa Oriental, Scola em Veneza) – não um lugar a que a atividade ritual confere uma intrínseca categoria de santidade. A santidade se expressa na presença dos Sifrei-Torá, respeitosamente mantidos no Aron-hakodesh, e nos objetos destinados a glorificar o ensinamento daqueles livros; não nas paredes e na estrutura construída.

O nominativo de “Templo” vem de época posterior, quando, com a abolição dos guetos e a emancipação civil, surge o desejo da comunidade judaica de pôr em evidência sua igualdade social e jurídica, através da construção de grandes “catedrais” judaicas, comparáveis às basílicas e igrejas cristãs. O recurso a ecléticas ambiciosas arquiteturas, imitações de estilo oriental ou neoclássico, certamente não infundem espírito de santidade, antes uma retórica monumentalidade. Exemplos como os de Budapeste, Berlim, Roma, Firenze, Trieste ou outras grandes sinagogas encontradas na Europa são representativos dessa nova consciência civil, e do prestígio alcançado pelas comunidades judaicas aceitas no geral convívio gentio. O ritual nessas grandes “catedrais” já não se baseia numa democrática, espontânea e íntima participação do público, e sim numa hierarquia institucionalizada à semelhança do clero eclesiástico e num uso de expedientes coreográficos (música coral, órgão, púlpito e “altar”) trazidos do costume cristão.

A destruição da vida judaica na Europa com a Shoá pôs um fim à ilusória sensação de segurança, bem-estar e igualdade civil que aqueles grandes “templos” simbolizavam. Quando não literalmente destruídos pela barbárie nazista, eles permanecem como mudos testemunhos de comunidades desaparecidas ou violentamente mutiladas.

Igual e não menos cruel destino atingiu as pequenas sinagogas disseminadas pela Europa. Podemos vê-las em Cracóvia, Praga ou Amsterdam – órfãs sobreviventes da fúria assassina que as relegou a uma função de objeto de exposição, e inspiradoras de um mudo respeito proveniente da antiguidade e da memória de gloriosos capítulos da sabedoria judaica.

A Segunda Guerra Mundial marca uma transformação profunda na liturgia judaica. A fundação de Israel após o

A Velha Sinagoga de Cracov, hoje Museu. (desenho de V. Corinaldi)

O templo Beth-El em São Paulo. Arquiteto Samuel Roder.

Holocausto; o deslocamento dos centros de influência para Israel e para as Américas; e o surgimento de correntes que, mesmo quando com raízes anteriores à Shoá, tomaram impulso e a forma definida depois dos traumáticos acontecimentos da guerra (Chabad do lado ortodoxo; Reformista e Conservador do lado liberal); a formação de grupos de tradição Sefardita propositalmente acentuada – todos estes são acompanhados por uma transformação física, qualitativa e quantitativa do edifício da sinagoga.

Paralelamente, no terreno geral da conceituação crítica, novas correntes vêm modificar a percepção da arquitetura desde os inícios do século XX, em direções que evidenciam uma poética assentada em critérios e valores atualizados. As retóricas afirmações do Academismo eclético já não conseguiam expressar os anseios de uma sociedade mais aberta, menos baseada em diferenças de “status”, promotora de um amplo desenvolvimento tecnológico, exigente de uma interpretação mais funcional e utilitária do ambiente construído.

No caso da sinagoga, não só o recurso a ícones como o arco ou a cúpula já não dava a imagem automática de um pseudo-orientalismo que a época romântica atribuía ao lugar de oração judaico, como também a reza não mais era a função única do espaço sinagogal.

Os primórdios da emigração judaica nas Américas ainda nos apresentam casos de recurso a estes símbolos, em geral com certa esquemática saudosista a ingenuidade, aqui ou lá com bom resultado arquitetônico (como, por exemplo, o desativado Templo Beit-El de São Paulo, agora destinado ao Museu Judaico).

Também testemunhamos o aparecer de modestos ambientes de oração, adaptados para atender de forma simples e digna às necessidades de novas congregações em formação. Pessoalmente tenho muito viva a lembrança da pequena sinagoga da CIP à Rua Brigadeiro Galvão em São Paulo, onde uma austera decoração de linhas modernas formava o quadro de fundo para o desempenho de uma atividade comunitária (não só litúrgica) de novos louváveis endereços. Creio que esse caráter sóbrio e esse uso multifuncional tenham servido de base para o programa que orientou o arquiteto no projeto da nova sede quando esta se tornou uma necessidade para a já estabelecida e eficiente Congregação.

Igual processo se verificou com a ARI no Rio de Janeiro, e creio serem estes os dois primeiros casos no Brasil de uma concepção atualizada e dinâmica da sinagoga, que se manifesta numa arquitetura solene mas despretensiosa, inspirada em sadios postulados funcionais e em critérios de bom gosto radicados em assimilada autêntica cultura.

Mas estes citados casos brasileiros não são fenômeno isolado. Eles são parte de uma corrente que teve sua maior expressão nos Estados Unidos, onde novas congregações (movidas por uma preocupação de renovar não só o aspecto religioso, mas igualmente o educativo e o comunitário) erguem notáveis Centros Judaicos, recorrendo a arquitetos de qualidade e renome.

Dentre estes, quero citar dois, de projeção indiscutida no panorama da arquitetura contemporânea: Frank Lloyd Wright e Erich Mendelsohn.

O primeiro é o conhecido gênio patrocinador da Arquitetura Orgânica, criador de obras de incalculável origi-

Sinagoga nas imediações de Filadelfia. Arqiteto Frank Lloyd Wright.

Dois projetos de Erich Mendelsohn nos Estados Unidos: Sinagogas e Centros Comunitários a elas anexos. Sinagoga da Universidade de Tel Aviv: vistas do exterior e do interior. Arquiteto Mario Botta.

nalidade e coerência artística. Sua contribuição para a arquitetura sinagogal é limitada a poucos casos de grande valor, mas frutos de uma concepção individualista e desligada de um conhecimento íntimo da vida judaica.

O segundo em vez é proveniente da cultura judaico-europeia. Seu nome se liga, como uma das principais figuras, aos inícios do Movimento Moderno Europeu, ao lado de Le Corbusier, Walter Gropius e Mies Van der Rohe. Tem, porém, uma posição singular dentro do movimento, com uma linguagem expressionista que o diferencia da linha severa daqueles, buscando desde então maior plasticidade e movimentação de volumes. Vítima da discriminação nazista, ele deixou a Alemanha, onde já tinha um acervo considerável de obras e uma posição teórica assentada, e foi para a então Palestina (Eretz Israel). Na mesma época acorrem ao país outros arquitetos de formação centro-europeia, trazendo consigo o “Estilo Internacional” e o ensinamento da “Bauhaus”, claramente discernível nas construções dos anos 30, particularmente em Tel Aviv, agora declarada pela Unesco “Patrimônio da Humanidade” graças à grande concentração de edifícios que documentam aquele período.

O legado de Mendelsohn para a arquitetura de Israel é essencial, representado por importantes obras que ele aqui executou nos poucos anos de sua permanência, antes da criação do Estado, obras que denotam sua excepcional sensibilidade para as condições geográficas, físicas e ambientais. No entanto não há em Israel nenhum projeto de sinagoga de Erich Mendelsohn. Emigrando para a América, foi lá que ele executou diversos projetos nesse setor, notáveis precursores da citada tendência do judaísmo americano, mas pouco reveladores do impacto desse grande arquiteto para o Movimento Moderno.

Ao lado e acima: a antiga “Altneuschule”, em Praga, e abaixo, o Gueto Novo, em Veneza.

Sinagoga da Universidade Hebraica de Jerusalém. Arquiteto brasileiroisraelense David Resnik.

Em Israel, poucos são também os exemplos significativos daquela época, de outros arquitetos modernistas, e o esforço construtivo daqueles anos parece ter se concentrado em necessidades prementes da crescente população leiga do “Ishuv”, pouco inclinada a exigências religiosas.

A fundação do Estado movimentou um vasto processo de construção, cristalizando uma linguagem arquitetônica adaptada às funções que o momento requeria: habitação, edifícios públicos, infraestruturas. Israel se afirmou então – não obstante as difíceis condições de seus primeiros anos – como um case-study de interesse mundial. As típicas características do Estilo Internacional receberam um tratamento próprio, baseado no uso generalizado do concreto como material quase exclusivo, trabalhado plasticamente num jogo que utilizava a forte luz e os contrastes volumétricos que ela realçava como elementos formadores da arquitetura. O adjetivo de “Brutalista” que acompanhou a Arquitetura Moderna de após-guerra no mundo casa-se admiravelmente com essa fase da arquitetura israelense.

Onde estão então os exemplos de uma nova arquitetura sinagogal que se esperaria encontrar, como sintoma de uma nova cultura judaica da qual Israel se tornou o principal e essencial fator no panorama judaico de hoje?

A resposta a essa pergunta traz uma inegável decepção. Pouco temos a mostrar de arquiteturas de sinagogas que se possam incluir no rol de autênticas contribuições modernas para a antiga tradição. Poucos são os casos de interpretação mais erudita e esteticamente desenhada do conteúdo funcional e espiritual da sinagoga.

Talvez se deva atribuir esta lacuna à retrógrada hegemonia ortodoxa no campo do desempenho religioso. Talvez o acento exclusivo no estudo mecânico das escrituras e na prática automática de mitzvot, em detrimento de um enfoque mais amplo de disciplinas atualizadas, e em desprezo de conceitos mais abertos de estética e de ambiente, bem como de finalidades mais dinâmicas de comunidade, sejam um freio para a aceitação de um design renovador da sinagoga. Talvez a anacrônica cega veneração de personagens rabínicos assentados no topo de uma hierarquia rigidamente defensora de instituições obsoletas explique a grosseira provinciana arrogância de muitos dos edifícios das grandes sinagogas e yeshivot de Jerusalém e Bnei-Berak, grotescos “míni Vaticanos” de grupos religiosos menos ou mais agressivos, menos ou mais coercivos de suas regras de comportamento social.

Ou será tudo isto sintoma de uma necessidade de reformulação das exigências a nível nacional neste campo, uma vez que a existência do Estado de Israel criou um relacionamento diferente do cidadão perante a atuação religiosa? Certamente parte das funções que a sinagoga, em sua versão moderna, desempenha na Diáspora são aqui preenchidas por instituições da sociedade civil.

Para definir o lado espiritual, faz-se necessário um aprofundamento teórico e prático, no espírito que o Judaísmo Progressista vem fazendo, mas voltado especificamente para a realidade israelense. Qual será o caminho para isto – é um desafio que somente o tempo será capaz de desvendar.

Sinagoga de uma base militar no Neguev. Arquiteto Zvi Hecker.

Vittorio Corinaldi é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), vive em Israel desde 1956. Durante 40 anos foi membro do Kibutz Broch Chail. Atualmente vive em Tel Aviv. Atuou como arquiteto no escritório central de planejamento e organização dos kibutzim, tendo sido seu arquiteto-chefe por dez anos. Executou numerosos projetos em dezenas de kibutzim e trabalhou em planejamento rural, mais especificamente naqueles ligados ao movimento kibutziano.

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