9 minute read

Ricardo Sichel

Next Article
Stephane Beder

Stephane Beder

recorda que fostes escravo

Afirmar que o Islã é responsável pelo terror e pelo Estado Islâmico na Síria, além de dar guarida a partidos radicais, como a Frente Nacional na França, ao movimento Pegida na Alemanha, ignora o fato de que a desestabilização da ditadura síria foi fomentada pelos governos ocidentais, esperando sua derrocada rápida, porém gerando o caos, o mesmo tendo acontecido quando da invasão do Afeganistão pela URSS, quando os talibãs foram treinados e armados pelos EUA.

Advertisement

ricardo sichel

Recorda que fostes escravo na terra do Egito..., assim está escrito na Torá. Com esse ensinamento busca-se estabelecer um elo de solidariedade com o forasteiro, com o oprimido ao nos lembrar da situação vivida na terra do Egito. O ano de 2015 começou e fomos surpreendidos com os atentados em Paris, primeiro na revista satírica Charlie Hebdo e, posteriormente, em um supermercado casher. Houve um consenso em apontar o fundamentalismo islâmico como responsável. Em vários países europeus movimentos xenófobos ganham espaço ao apontar para os seguidores do Islã como sendo responsáveis por todas as mazelas. Neste ponto, temos que ter cuidado adicional para não repetir erros do passado, criar uma generalização de culpados e, com isso, estigmatizar um grupo com as terríveis consequências deste comportamento insano.

Após os atentados em Paris, a Chanceler alemã Angela Merkel advertiu para os riscos da generalização de responsabilidade dos muçulmanos, mas, por outro lado, recomendou que a sua liderança evidencie a sua separação daqueles que pregam o terror. Os atentados, segundo o deputado alemão Gregor Gysi, são uma afronta à democracia, à liberdade de expressão e ao direito à vida. A sátira, segundo o parlamentar, pode ser boa ou de mau gosto, mas ela deve ser livre, sob pena de não ser sátira. O conceito da liberdade de expressão não é novo e vem a ser um dos pilares da liberdade. O terror não deve ou pode comprometer o nosso comprometimento com a democracia. Nesse sentido, vale transcrever o que alguns pensadores, ao longo dos tempos, defenderam:

“Povos livres, lembrai-vos desta máxima: A liberdade pode ser conquistada, mas nunca recuperada”. (Jean-Jacques Rousseau)

“O meu ideal político é a democracia, para que todo homem seja respeitado como indivíduo e nenhum venerado.” (Albert Einstein)

Em todo o caso, a análise dos fatos é feita, na maioria das vezes, em cima de fatos recentes, esquecendo-se das origens de sua ocorrência. Quando o povo grego elege um determinado grupo, o mundo olha assombrado para a sua postura, mas se esquece, entretanto, das imposições impostas a este povo, da redução de sua renda, do desemprego e da falta de esperança.

Falamos, muitas vezes, orgulhosos dos atos heroicos do Estado de Israel e, inclusive, da nossa situação como vítimas, seja do Holocausto, como também de ataques feitos por terroristas palestinos, e reclamamos, com vibrante intensidade, da indiferença da Comunidade Internacional. Na verdade, estamos querendo a solidariedade mundial, porém fomos nós solidários com as vítimas nigerianas do Boko Haranm quando sequestrou meninas na Nigéria? Onde estávamos quando se praticou o massacre em Sebrenica, que, em 1995, assassinou 8.373 bósnios muçulmanos? Quando nos manifestamos sobre a opressão no Tibete, as perseguições a minorias na Síria, ao massacre em Ruanda? Esta relação não se limita a estes fatos, mas silente ficamos. Estranho o nosso comportamento.

Porém, ficamos indignados com ataques feitos em Paris e queremos pretender uma solidariedade mundial, apontando um grupo, de forma genérica, como sendo responsável pelo mesmo. Em todo o caso, não podemos em momento nenhum esquecer que o povo judeu sempre teve problemas quando a sociedade em que vivia passava por períodos de exceção, enquanto em democracias a nossa dignidade se viu respeitada.

Políticas de apaziguamento, conduzidas de forma inconsequente nos anos 30 do século XX, foram responsáveis pela 2a Guerra Mundial, não pela ascensão ao poder do regime nazista. Neste último caso, tem-se como um dos responsáveis a forma irresponsável com que se conduziu o término da 1a Guerra Mundial, com a imposição de pesadas reparações de guerra à Alemanha, conduzindo o povo à miséria e à falência das instituições democráticas. O mesmo foi imposto ao povo grego, salários, pensões e aposentadorias foram reduzidos; ao povo sírio onde se impôs o boicote à ditadura síria, mas o povo é que veio a ser atingido, fazendo surgir campo fértil para fundamentalismos e radicalismos.

Entretanto, para defender a democracia não se pode ser atraído por soluções simplistas que buscam resolver problemas com aparente “simplicidade” e, desta forma, se abrir mão das garantias individuais que a Lei estabelece. Começando pelo Brasil, certo é que a violência se constitui um grave problema, momento em que surgem aqueles que advogam a redução da maioridade penal para 16 anos. Deve-se perguntar se, reduzida a maioridade penal, menores de 16 anos praticarem crimes, será então necessário defender uma nova redução desta maioridade? Qual o limite, talvez dois anos? Não é esta obviamente a solução, uma vez que a causa desta violência, na maioria dos casos, decorre da exclusão social, da miséria e, neste ponto, indaga-se: O que se tem feito para minorar a exclusão social, melhorar a justiça social e assim se propiciar um futuro melhor para as pessoas, uma perspectiva de vida melhor para todos?

Quando surge o terror, muitas vezes se sugere violações de dados pessoais, a adoção de medidas de exceção, com vistas a garantir a “segurança”. Após os atentados de setembro de 2001, a histeria causada levou à prisão de vários em Guantánamo sem que houvesse uma acusação formal. Por outro lado, o fato de usar turbante levou a assassinatos de pessoas, muita embora não fossem muçulmanos.

A liberdade e a democracia, como a conhecemos hoje, foi conquistada ao longo do século XX. Os direitos humanos foram editados em momentos de crise, seja na Revolução Francesa como também após a 2a Guerra Mundial. Na América Latina, o período no final do século XX foi marcado pelo término de ditaduras militares, que importaram na morte do seguinte quantitativo de pessoas: Argentina – 30.000 1, Brasil – 858 2, Chile – 40.000.

A liberdade conquistada, o Estado Democrático de Direito, impõe o respeito irrestrito aos direitos humanos e, desta forma, igualmente, acata o princípio básico do Direito Penal, no sentido da individualização da pena e da responsabilidade e, portanto, não generalizar responsáveis sob pena de se dar início a uma histeria que, no passado, levou a vida de 6 milhões de judeus.

Por outro lado, o garantismo legal não importa em impunidade, mas sim no estabelecimento de garantias individuais, onde todos têm o direito de previamente sa-

Para defender a ber qual a acusação e, portanto, baseandemocracia não se pode ser atraído por soluções do-se no princípio da presunção da inocência, apresentar a sua defesa. Em nenhum caso este posicionamento pode ser simplistas que buscam considerado como uma leniência do Esresolver problemas com tado com relação a responsáveis, muito ao aparente “simplicidade” contrário, estes serão condenados, porém e, desta forma, se abrir o que não pode ser admitido, em hipótese alguma, é a responsabilização genérica mão das garantias de grupos. A responsabilização penal deve individuais que a Lei ser sempre individualizada, garantindo-se estabelece. ao acusado o direito de defesa, como aliás propiciado quando do julgamento, em Israel, de Eichmann. A conquista dos direitos fundamentais da pessoa humana, o respeito à dignidade da pessoa, não pode ser questionada, mesmo diante de problemas e crises colocadas. Soluções populistas e simplistas escondem interesses escusos e importam na nossa perda de garantias. A Democracia e, por fim, a Lei, é a nossa garantia contra o arbítrio, em defesa de nossa liberdade. Afirmar, no momento atual, que o Islã é responsável pelo terror e pelo Estado Islâmico na Síria, além de dar guarida a partidos radicais, como a Frente Nacional na França, ao movimento Pegida na Alemanha, ignora o fato de que a desestabilização da ditadura síria foi fomentada pelos governos ocidentais, esperando sua derrocada rápida, porém gerando o caos, o mesmo tendo acontecido quando da invasão do Afeganistão pela URSS, quando os talibãs foram treinados e armados pelos EUA. O nosso conforto, a manutenção de regalias em detrimento de direitos básicos da pessoa, em algum momento vai gerar a retaliação. Esquecemos da origem do problema, muitas vezes iludidos com uma visão equivocada da realidade, além da hipocrisia de querer impor a sociedades um determinado padrão de comportamento (vide a Primavera Árabe), acabando por gerar uma reação que não podemos antever, na medida em que surge com o rompimento de todos os parâmetros anteriormente existentes. Desta forma, não podemos em momento algum esperar que a solução de problemas decorra da generalização de responsabilidades, mas em todo caso devemos nos manter atentos e vigilantes na defesa das liberdades democráticas, dos direitos humanos e da justiça social e assim nos solidarizarmos com todos aqueles que são opri-

midos pela arrogância humana, para que, quando vitimados, também tenhamos a solidariedade dos outrora perseguidos. Como falou Hannah Arendt: “A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos”, assim temos que respeitar os direitos dos outros para que os nossos sejam respeitados. Temos que buscar a origem de conflitos e não fazer uma análise simplista, baseado em um fato recente, esquecendo da origem destes.

A conduta que o Estado Democrático de Direito deve ter em lidar com esse tipo de problema não pode prescindir do cumprimento aos dispositivos no ordenamento jurídico, sem o estabelecimento de medidas de exceção, sob pena de se criar um Estado injusto, que se baseia no medo e que já foi objeto de filmes como o V de Vingança. Não se trata de medida de apaziguamento, mas sim em tratar, nos termos da Lei, com todas as garantias que esta estabelece, as infrações e desta forma evidenciar a capacidade do Estado em equacionar os problemas. A resposta da violência não é a mais apropriada, principalmente quando a posteriori, sob pena de se generalizar os culpados e criar o estado de terror. A solução bélica, como alerta o deputado alemão Gregor Gysi, gera mais violência e não traz solução para os problemas, apontando para o ocorrido no Afeganistão ou no Iraque e o esfacelamento destes Estados que, com o vazio do poder, cedeu espaço para grupos extremistas. Temos que Soluções baseadas na violência, bem rejeitar a ideia de responsabilidade como conclamar medidas desta natureza não trazem, a longo prazo, a resolução destes. O bem-estar social, a certeza da escoletiva sob pena tabilidade das relações humanas, de forde se admitir que o ma a que o cidadão, independentemenpreconceito e o racismo te de seu padrão social, tenha as necessátenham algum lugar de rias condições para garantir o sustento de seu grupo familiar, é que vai viabilizar a razoabilidade construção de uma sociedade onde o sentimento de paz prevaleça. O homem anseia pela paz e somente dá ouvidos ao fundamentalismo quando os mecanismos sociais não funcionam ou quando se sente oprimido. Por fim, a liberdade é um bem supremo, da mesma forma que a dignidade da pessoa humana. Temos que rejeitar a ideia de responsabilidade coletiva sob pena de se admitir que o preconceito e o racismo tenham algum lugar de razoabilidade e desta forma negar que a conquista das liberdades, que teve sua origem no sacrifício de várias pessoas, possa alcançar o lema advogado pela Revolução Francesa: Liberdade, igualdade e fraternidade.

Notas

1. http://blogs.estadao.com.br/ariel-palacios/ditadura-argentina-a-mais-sanguinaria-da/, access 14/3/2014 2. http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2012/05/16/interna_ brasil,30.256, access 14/3/2014 Ricardo Sichel é conselheiro da ARI, ativista, professor universitário (UNIRIO) e Procurador Federal.

This article is from: