
9 minute read
Cassio Tolpolar
memórias de um lugar inexistente
cassio tolpolar
Advertisement
Meus avós paternos emigraram da Bessarábia para o Sul do Brasil em 1931. Eu nunca os conheci, e sabia quase nada sobre suas vidas na terra de origem. A Bessarábia sempre foi um lugar imaginário para mim, muito distante e completamente fora da minha realidade. Mais tarde aprendi que este lugar não era um país, mas sim uma região formada por parte da Romênia e da Ucrânia e a totalidade da Moldávia. Mas o que era a Moldávia e como chegar até lá? Seria possível ir até os vilarejos, os shtetls de onde minha família veio? Ainda existem reminiscências judaicas na região?
Sempre fui avisado a não tentar viajar a este país, que tal aventura poderia se tornar desastrosa, muito pelo fato de ser o país mais pobre e com menos infraestrutura da Europa Oriental, com notícias frequentes de corrupção, tráfico de mulheres e de órgãos. Além dos percalços naturais das diferenças de língua e cultura. Somente a tentativa de conseguir o visto foi uma peripécia em si, já que Brasil e Moldávia não possuem relações diplomáticas, e foi necessário contratar uma empresa moldava para nos ajudar a emitir um convite para entrar no país, para então aplicar para o visto. Foi somente em 2008, após três anos de pesquisa genealógica, de muita preparação e finalmente já com o visto, que consegui realizar este sonho.
A primeira viagem foi em maio de 2008 com meu pai e irmã. Foram 12 dias na terra dos meus antepassados, visitamos dez cidades/vilarejos e fizemos muitos contatos diretos com moldavos e outros estrangeiros. Em 2012, voltei no que seria minha segunda e última (até agora) viagem ao país, desta vez com
iStockphoto.com Mark Rubens /
Página anterior: Memorial às vítimas do Holocausto em Chisinau, Moldávia.
minha esposa e filha. A viagem de uma semana foi abreviada para quatro dias por problemas de atraso de voo causado por um tornado em Dallas.
Em primeiro lugar, é necessário entender que a Moldávia é um país com dificuldades de compreender sua própria identidade e história, e ainda mais a história da sua comunidade judaica. Existem poucas reminiscências, que vagarosamente estão se esfacelando com o tempo e com a falta de recursos em mantê-las. Há um centro comunitário judaico, um museu, escola e sinagoga, mas tudo concentrado na capital Chisinau. No interior, onde estão os “ex-shtetls”, a população judaica é minúscula, pobre e idosa. Cidades como Teleneshty, onde moravam cerca de quatro mil judeus, hoje abriga seis famílias, cujos filhos mais jovens já pensam em mudar para a capital ou emigrar para países como Canadá, Estados Unidos ou Israel. É preciso ressaltar que a maioria da juventude, judaica ou não, sonha em sair do país, muito pela falta de perspectiva de empregos decentes. Por tudo que ouvi e Cemitérios a céu aberto em complesempre entendi, a comunidade judaica to abandono foi uma paisagem comum a nós. Livros de registro incompletos ou mesmo ausentes. Em alguns, como o local estava em de Rezina, é quase impossível distinguir profunda decadência, uma pedra no chão de uma lápide. Falta mas pessoalmente vi de cercas ou proteção ajuda os vândalos algo diferente em 2012. a roubarem fotos e destruírem túmulos. Daqueles que visitamos, apenas os cemiMuitos judeus com térios de Chisinau, Orhei e o novo de Relaços na Moldávia e que zina apresentam certa organização. outrora moravam em A palavra “Holocausto” é ainda nova. países como Ucrânia e Isto porque a antiga União Soviética Romênia agora estão (Moldávia era “República Socialista da Moldávia” até 1991) nunca reconheceu o voltando e reconstruindo termo. Para os russos, toda sua populauma espécie de nova ção foi vítima, e reconhecer o termo Hocomunidade. locausto seria destacar os judeus como vítimas especiais ou exclusivas. Esta tentativa unificadora apenas contribuiu para que a memória da comunidade judaica fosse aos poucos se esvaindo. No bairro judaico de Oliscani, aldeia do meu avô, as casas, a sinagoga e as lojas foram substituídas por um mato fechado com uma estrada de areia no meio. Nin-

A vida simples em Oliscani, Moldávia.
Memorial às vítimas do pogrom de 1903 em Chisinau, Moldávia.


Sinagoga em Soroca, Moldávia.
guém mais sabe dos Tolpolares, e o último judeu imigrou para Israel em 1954. Acredito que existam muitos outros shtetls com história parecida ou, mais especificamente, sem nenhuma história.
A população idosa vai morrendo, e com ela o passado. Pouca coisa está catalogada, ou foi propriamente investigada, explorada, classificada. Não estamos falando da Polônia, Ucrânia ou Romênia, onde historiadores publicaram livros, pesquisas e onde até filmes foram produzidos. Aqui nada disso aconteceu. Ainda podemos encontrar alguns livros em inglês sobre o famoso pogrom de 1903 em Kishinev, mas ficamos por aí. O que uma vez existiu está quase indecifrável em um russo antigo que poucos compreendem, ou foi perdido ou foi destruído com as guerras. Por exemplo, nossa pesquisadora contratada para procurar documentos no Arquivo Nacional às vezes mal conseguia ler os textos escritos no século 19, por serem de uma ortografia e gramática muito antigas.
A própria história da Moldávia também não contribui para a preservação da memória. Ora parte da Romênia ora parte da Rússia, até se tornar república soviética e finalmente independente em 1991, a Moldávia é como se fosse um antigo país novo. E extremamente dividida entre etnias e povos, que basicamente identificam-se ou com romenos ou com russos. Esta divisão e falta de identidade consolidada e mais a separação da Transnistria deixaram o país fragilizado política, econômica e socialmente. Como George Friedman, renomado cientista político norte-americano, bem colocou, a Moldávia é um país sem ser uma nação.
Mas o que afinal encontrei? Eu tinha muitas pistas e algumas informações concretas, que foram ou se confirmando ou se desmentindo durante a viagem. Para começar, quase ninguém conhecia o meu sobrenome. Seguindo um endereço descoberto em um dos documentos, chegamos até uma casa onde uma vez Shabsa Tolpolar havia vivido. Mas os moradores atuais são jovens e não sabem nada daquele lugar. Fomos até Orhei, onde minha avó nasceu, mas não achamos nada de sua família. Fomos até Rezina, mas não encontramos absolutamente nada. Fomos até Edinitz e achamos, desta vez, uma pérola: o vizinho do nosso primo Fima, um senhor judeu que tinha nove anos quando a
segunda guerra havia começado. Sobrevivente de campo de concentração, ele nos levou até a antiga casa de Fima, de seu pai e irmãos, agora um restaurante. A dona não sabia de nada, e foi difícil sentir alguma emoção ao ver uma casa que foi da nossa família, mas que agora está completamente remodelada, sem resquícios do que uma vez foi, sem uma história.
Muitas vezes era complicado saber o que era verdade. Muitas informações eram contraditórias ou apenas suposições. Tínhamos que confrontar os fatos, ir até os locais e perguntar incansavelmente para chegar perto da verdade. Tivemos sorte ao localizar o historiador Iuri Zagorcea, que, apesar de não ser judeu, trabalha para que monumentos sejam erguidos em aldeias onde houveram assassinatos em massa durante a guerra. Ele enfrenta muitas vezes a resistência dos próprios moradores, porque muitos ainda pertencem às famílias dos criminosos.
Iuri nos levou a um lugar em Cepeleutz, onde um pri-
Muitos perguntam se mo nosso havia sido assassinado com sua senti antissemitismo ao percorrer o país. esposa e outras famílias. Ele confirmou que os corpos haviam sido jogados no mato, apontando exatamente para o lo-
Minha resposta é cal. Enquanto explicava a história, um senão. Ao contrário, nhor de idade se aproximou e começou a fomos recebidos conversar em romeno. Nossa guia, espancalorosamente por tada, virou-se para nós e disse que aquele senhor tinha sido testemunha do assasum povo que tem em sinato. Acontecimentos como este ainda sua maior virtude podem acontecer na Moldávia, mas são a hospitalidade e o cada vez mais raros. Já de volta em 2012, dom de fazer um dos soubemos que este senhor havia falecido melhores vinhos do e, com ele, outras narrativas. O que tudo isto quer dizer? Se ficássemundo. mos na Moldávia por mais um mês, meses ou anos, talvez encontrássemos mais coisas e entendêssemos mais dos judeus do país. Minha pesquisa não parou após as viagens, e continuei percorrendo pistas e entrando em contato com diferentes pessoas. Achei algumas respostas que estava procurando, outros mistérios ainda permanecem.
Cemitério abandonado em Vadul Rascov, Moldávia.


Museu dos Judeus da Bessarábia, em Chisinau.
Por tudo que ouvi e sempre entendi, a comunidade judaica local estava em profunda decadência, mas pessoalmente vi algo diferente em 2012. Muitos judeus com laços na Moldávia e que outrora moravam em países como Ucrânia e Romênia agora estão voltando e reconstruindo uma espécie de nova comunidade, com muita ajuda financeira e suporte de americanos e israelenses. A ambulância para atender somente os judeus mais pobres foi comprada por um milionário americano com raízes no país, por exemplo. Fora isso, ainda não há uma continuidade e certeza de progresso econômico que possa sustentar esta comunidade no futuro. Uma pena, pois a nossa história nesse país foi extremamente rica. Um dos maiores exemplos é o escritor Ihil Shreibman. Falecido em 2005, foi o último grande escritor em ídiche do país, que descrevia minuciosamente em seus livros o cotidiano dos shtelts. Mas infelizmente seus inúmeros livros nunca foram traduzidos além do russo.
Em resumo, a Moldávia é um país com muito a ser revelado, mas continua a pagar o preço de uma ingratidão geográfica e histórica, que fez com que caísse nas mãos de vários invasores, desde os tártaros, passando por turcos, russos e romenos. Todos estes estrangeiros nunca fizeram nada que satisfizesse as necessidades do próprio país, e seu legado não é motivo de orgulho.
Muitos perguntam se senti antissemitismo ao percorrer o país. Minha resposta é não. Ao contrário, fomos recebidos calorosamente por um povo que tem em sua maior virtude a hospitalidade e o dom de fazer um dos melhores vinhos do mundo. Claro que isso não quer dizer que tal sentimento não existe nos habitantes locais.
Minhas duas viagens resultaram no documentário Mamaliga Blues, que espero que contribua para ser um registro de uma vida judaica rica e extensa que não existe mais. E que também aponte para a responsabilidade que todos nós temos em carregar a memória de nossos antepassados.
Cassio Tolpolar é cineasta e diretor do documentário Mamaliga Blues (www.mamaligablues.com).



