XIV Seminário Capixaba do Ensino da Arte: Perspectivas Plurais (UFES/ES)

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XIV - Seminário Capixaba sobre o Ensino da Arte Perspectivas Plurais


COMITÊ CIENTÍFICO

COMISSÃO ORGANIZADORA

Prof. Dra. Adriana Magro (CE) Prof. Dr. Alexandre Siqueira de Freitas (CAR) Prof. Dra. Fernanda Monteiro Barreto Camargo (CE) Prof. Dr. Gean Pierre da Silva Campos (CE) Prof. Dra. Isabela Frade (CAR) Prof. Dra. Julia Rocha (CE) Prof. Dra. Larissa Fabrício Zanin (CAR) Prof. Dra. Maira Pêgo de Aguiar (CAR) Prof. Dra. Margarete Sacht Góes (CE) Prof. Dra. Maria Angélica Vago Soares (CE) Prof. Ms. Maria Fonseca - Novo Milênio Prof. Dr. Potiguara Curione Menezes (CAR) Prof. Dra. Rosana Paste (CAR) Prof. Dra. Stela Maris Sanmartin (CAR) Prof. Dra. Thalyta Botelho Monteiro (Ifes) Prof. Dra. Vera Lúcia de Oliveira Simões (CAR)

Adriana Magro Clara Pitanga Rocha Fernanda Monteiro Barreto Camargo Fernanda Zambon Pretti Assef Gean Pierre da Silva Campos Isabela Frade Jordana Ferreira Bernardino Silva Julia Rocha Larissa Fabricio Zanin Maira Pêgo de Aguiar Margarete Sacht Goes Maria Angélica Vago Soares Maria da Penha Fonseca Myllena Sunderhus Rosana Paste Stela Maris Sanmartin Stefanie Fraga De Moura Thaíze Caló de Oliveira Thalyta Monteiro Barreto Vera Lúcia de Oliveira Simões

Capa: Clara Pitanga Rocha. Arte da Capa: Álvaro Nomura. Preparação de originais: Jordana Ferreira Bernardino Silva e Adriana Magro. Coordenação editorial: Adriana Magro. Diagramação: Jordana Ferreira Bernardino Silva. PROEX - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), 2021.

FICHA CATALOGRÁFICA


SUMÁRIO PARTE 1 - ARTIGOS COMPLETOS 9 Arte e terceira idade: uma experiência com estêncil, durante a pandemia da Covid-19 (2020) 10 A (re)existência tapuia: somos Goitacazes, Botocudos, Aymorés e Puris 21 A arte esculpe o homem: reflexões sobre imagem e condição humana 31 A BNCC e o ensino de artes visuais no ensino médio: o que está em jogo? 45 A presença feminina em exposição: um olhar sobre instituições museais do sudeste brasileiro entre 2015 e 2019. 56 A técnica de xilogravura na escola pública e a contribuição do projeto de pesquisa do laboratório de gravura da universidade federal do espírito santo (ufes). 68 A terceira onda nos estudos da criatividade: a perspectiva de Vlad Petre Glaveanu sobre a psicologia cultural 76 Arte contemporânea em jogo - relações entre práticas educativas e produções artísticas 90 Arte e feminilidade compulsória: tecendo pontos de reflexão a partir da análise de exposições 104 Boneca de pano preta, na escola: antirracismo e prática artística no ensino fundamental 118 Cavalo-marinho: corpo, memória e arte 130 Desenho geométrico nas aulas de arte: o caminhar de um estudante com deficiência intelectual no ensino fundamental 154 Educação musical e educação do campo em escolas públicas rurais do Espírito Santo 169 Em busca de sonhos em uma viagem com Ariano Suassuna: encontro de professoras entre memórias, afetos e práticas escolares 182 Interculturalidade e arte primitiva pela arte/educação em museus e escolas 193 Material educativo em arte para crianças 210 Mediação cultural em museu de artes visuais: aspectos históricos 226 Memórias de um sarau virtual: uma proposta artística em momento de pandemia covid-19 236 O lugar do desenho nas aulas de artes visuais 247 Quando se afasta a presença: reinvenções constantes do educador em teatro 257 Três décadas da arte capixaba na obra de jeveaux 268 Um caso de estudo: as disciplinas práticas do ateliê de gravura no earte 281 Um produto educacional em artes visuais: possibilidades de integração curricular no ensino médio integrado 294 PARTE 2 - RELATOS DE EXPERIÊNCIA 307 “Arte à distância”: reflexões iniciais sobre ensino de arte e, educação infantil, durante a pandemia da covid-19 (2020). 308 A arte como meio de socialização 312 A moda inspirada na arte africana 318 Criatividade, ensino de arte e literatura na eja: uma ação para formação de professores 323 Ensino de performance na educação básica: a inquietude dos corpos, procurando sentido dentro dos sentidos. 328 Entropia da consciência 332 Espaço educativo na escola virtual: o lugar da arte em tempos de isolamento social 338 Formando e (re)performando dentro do museu: ações e registros de uma mediação 343 Memórias, identidades e histórias do congo: práticas com o ensino de arte na educação infantil 347 Muro mangue escola - relato de uma pintura mural no bairro Maria Ortiz 352 Notas de encantamento para corpos insurgentes 357


Pluralidade das cores: um trabalho a partir da conexão entre arte e ciências da natureza 361 Práticas artísticas no ensino da arte contemporânea 365 Resgate de identidades culturais locais através de elementos visuais 371 Tecnologias digitais no ensino de arte: relato de experiência 376 Temperando o saber: aula de campo no galpão das paneleiras e oficina de moqueca com os alunos da rede pública estadual, Vitória (ES) 381 PARTE 3 - EXPOSIÇÃO COLETIVA “O MÚLTIPLO E O DIVERSO” O tempo das águas Saberes pelas mãos Sempre o mesmo e deformado As várias faces de um ser incompleto Olhar.Expressar.Sentir''

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APRESENTAÇÃO Realizado bienalmente desde 1993, o Seminário Capixaba sobre o Ensino da Arte tem consolidado na história da Universidade Federal do Espírito Santo um espaço de formação para os/as arte/educadores/as, em processo de formação e também, em atuação. O XIV Seminário Capixaba sobre o Ensino da Arte objetivou refletir sobre os princípios plurais para o ensino de Artes, atualizando e ativando pesquisas de professores/as e estudantes que atuam no ensino da arte no âmbito escolar e não escolar, dando continuidade às edições anteriores, o Seminário propôs ainda, promover espaços de formação profissional em Artes e Educação, por meio da divulgação de pesquisas, projetos, relatos de experiência sobre o ensino de Artes Visuais, Dança, Música e Teatro. Com ampla participação desses públicos, em diferentes modalidades, o SCEA tem possibilitado ainda, além do engajamento nos debates promovidos durante o evento, consulta aos materiais produzidos para esses debates por seus autores por meio da publicação dos Anais, ampliando desse modo, os referenciais teóricos de arte/educadores/as e estudantes das licenciaturas em Artes Nesse sentido, o XIV Seminário Capixaba sobre o Ensino da Arte apresenta aqui o resultado de pesquisas e relatos de experiências apresentados durante a edição de 2021, realizada em formato virtual, devido à necessidade de distanciamento social em decorrência da pandemia de Covid-19. Os artigos, os relatos de experiência e a exposição que compõem os Anais do XIV Seminário Capixaba sobre o Ensino da Arte apontam para a valorização das culturas locais, para os saberes produzidos nos âmbitos locais e convidam à importantes reflexões sobre os princípios plurais para o ensino de Artes, a partir da articulação entre a universidade e a sociedade por meio da troca de saberes entre estudantes de graduação, pós-graduação, de professores/as da educação básica, do ensino superior e da pós-graduação, de pesquisadores/as e artistas das mais diversas linguagens da arte, levando assim, à aproximação da universidade com a sociedade. As obras que compuseram a exposição “Múltiplo e Diverso” encontram-se disponíveis no perfil do Instagram da Galeria de Arte e Pesquisa da Ufes, @gap.ufes. Todo o conteúdo e revisão textual de todos os trabalhos que compõem os Anais do XIV Seminário Capixaba sobre o Ensino da Arte são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. Importante destacar a qualidade das produções, bem como a relevância das temáticas que dialogam com questões contemporâneas presentes nas políticas e pesquisas sobre o


ensino de artes, passando pela discussão de práticas artísticas nas escolas, instituições promotoras da arte e espaços não formais de educação, na perspectiva de envolver igualmente as diferentes manifestações artístico-culturais. Boa leitura! Maira Pêgo de Aguiar Larissa Fabrício Zanin


/ PARTE 1 - ARTIGOS COMPLETOS


ARTE E TERCEIRA IDADE: uma experiência com estêncil, durante a pandemia da Covid-19 (2020) Regina Ridão Ribeiro de Paula¹ Eloiza Amália Bergo Sestito² RESUMO Devido ao atual contexto de pandemia da covid-19, no ano de 2020, a educação vivenciou em um caos total, porém mesmo com os obstáculos que impossibilitaram a acessibilidade dos discentes aos cursos da UNATI, devido as suspensões das aulas na modalidade presencial, a instituição manteve proposições de cursos via on-line. Ao presenciar a experiência de regência de uma das turmas da UNATI, perguntamos: Como ensinar e aprender Arte ao público da terceira idade, a distância, durante a pandemia da covid-19? Nesta reflexão temos como objetivo descrever sobre práticas educativas de estagiários/as de Artes Visuais e suas atuações na Universidade Aberta à Terceira Idade - UNATI na cidade de Maringá, durante a pandemia. Os pressupostos teóricos e metodológicos que orientaram este artigo pautam-se em teóricos voltados à Educação e ao Ensino de Arte, com aproximações aos pensamentos freirianos para identificar conteúdos aplicáveis a esta etapa de ensino. Como resultado dessa pesquisa, intentamos incentivar a prática de uma docência que utiliza de artifícios para além dos estereotipados e convencionais no ensino de arte mesmo na modalidade virtual, em tempos de pandemia. Palavras-chave: Arte; Estêncil; UNATI; Terceira idade.

ABSTRACT Due to the current context of the covid-19 pandemic, in 2020, education experienced total chaos, but even with the obstacles that made it impossible for students to access UNATI courses, due to the suspension of classroom classes, the institution maintained course proposals via online. When witnessing the experience of conducting one of the UNATI classes, we asked: How to teach and learn Art to senior citizens, from a distance, during the covid-19 pandemic? In this reflection we aim to describe the educational practices of interns in Visual Arts and their performance at the Open University for the Third Age - UNATI in the city of Maringá, during the pandemic. The theoretical and methodological assumptions that guided this article are based on theorists focused on Education and Art Teaching, with approaches to Freire's thoughts in order to identify contents applicable to this teaching stage. As a result of this research, we intend to encourage the practice of a teaching that uses artifices beyond the stereotyped and conventional art teaching, even in the virtual modality, in times of pandemic. Keywords: Art; Stencil; UNATI; Third Age.

INTRODUÇÃO Este artigo, tem como objetivo, descrever sobre práticas educativas de estagiários/as de Artes Visuais e suas atuações na Universidade Aberta à Terceira Idade - UNATI na cidade de Maringá, durante a pandemia. Os exemplos de atuações de ensino com Artes Visuais em período de pandemia descritos aqui, ocorreram no segundo semestre do quarto ano de Artes Visuais, que se passaram no início de 2021, na Universidade Estadual de Maringá – UEM. Essas intervenções pedagógicas ocorreram como parte constitutiva da avaliação da disciplina de Estágio Supervisionado em Artes Visuais IV. Intentamos aqui descrever o percurso de trocas de saberes sobre Arte e seus contextos, promovido pelas intervenções pedagógicas do curso denominado “Estudo da Arte e seus contextos” da UNATI, com finalidade de promover


diálogos interativos dos/as participantes junto aos conhecimentos de história da Arte e seus contextos, direcionados a comunidade da terceira idade. Os pressupostos teóricos e metodológicos que orientaram este artigo de cunho bibliográfico e documental, pautam-se em teóricos voltados à Educação e ao Ensino de Arte, com aproximações aos pensamentos freirianos. As atividades e observações de Estágio foram realizadas por 12 alunos/as estagiários/as junto a professora regente, com alunas da UNATI, que ocorreram nas tardes de quintas-feiras, das 13:30h às 15:30h. Nesta pesquisa, descrevemos levantamentos e observações intrínsecos às nossas intervenções, que se deram nos quatro primeiros dias de aulas, momento em que realizamos nossas regências e observações. Importante destacar que o curso completo, no entanto contemplou 18 quintasfeiras, com duas aulas de uma hora cada, totalizando duas horas por semana e 36 horas ao todo. Cada regência foi realizada por dois/duas estagiários/as, e envolveram também a participação de mais dois/duas estagiários/as observadores, a professora orientadora do Estágio Supervisionado, e uma turma de 6 discentes, que compreendiam a faixa etária da terceira idade. Como as aulas ocorreram em um contexto histórico de pandemia, onde devido a expansão do Covid-19 ocorreu o fechamento de comércios, espaços públicos e escolas, foi imprescindível a adaptação das TDIC- Tecnologia Digital de Informação e Comunicação, para que as aulas pudessem acontecer mesmo com a delimitação de espaços físicos. Neste sentido o curso aconteceu de forma remota e contou com uso do aplicativo digital Google Meet, que propiciou nosso encontro de forma segura, sem que precisássemos estar presentes em um ambiente físico. Embora esta configuração de ensino, observamos, dificultou a interação entre as pessoas envolvidas inclusive quando nos referimos a atividades práticas, que por sinal foram propostas em alguns momentos das aulas, ela também proporcionou uma aproximação entre pessoas de diferentes espaços geográficos que, pontuamos, ter sido uma troca importante de diferentes vivências e culturas. No que diz respeito à estrutura deste artigo, organizamos as discussões a partir de dois tópicos para além desta introdução. No primeiro deles, reunimos estudos bibliográficos para contextualizar a atuação da instituição UNATI junto à comunidade da terceira idade em diversos países ao longo dos anos de sua existência. No segundo tópico, antes de apresentar nossas considerações finais, levantamos nossas impressões, enquanto arte-educadoras/es, junto ao relato de nossas vivências com 6 discentes da terceira idade no Estágio Supervisionado. UNATI COMO PROPOSITORA DO CONHECIMENTO


Para que possamos entender um pouco do contexto acadêmico que aqui nos referimos, faremos nesta seção uma breve contextualização histórica sobre a UNATI, sua fundação, expansão e atuação até os dias de hoje. A UNATI, espaço em que aconteceu nossas intervenções, é uma instituição de ensino com sede na cidade de Maringá desde o ano de 2009, tendo como objetivo oferecer a pessoas acima de 55 anos de idade a possibilidade de desenvolver competências que gostariam de ter desenvolvido ao longo de suas vidas, e, até então, por alguma razão foram impossibilitadas. Já em uma visão panorâmica sobre as UnATIs em contexto nacional, de acordo com Meire Cachioni; Tiago Nascimento Ordonez; Samila Sathler Tavares Batistoni e Thaís Bento Lima Silva (p. 82, 2015) as Primeiras “Escolas Abertas à Terceira Idade” foram fundadas na década de 1980 no Brasil, mas teve significativa expansão na década de 1990. Sendo um programa educativo aberto à terceira idade as UnATIs segundo os/as autores/as apoiam-se sobre o conceito de “educação permanente” uma proposta da UNESCO com intenção de viabilizar o conhecimento em todas as etapas da vida. Importante frisar que o berço das UnATIs foi na França e a partir de lá se espalhou por todo mundo, proporcionando a milhões de idosos e idosas “[...] uma série de atividades intelectuais e culturais, que contribuem para um envelhecimento ativo e, consequentemente, para uma velhice bem-sucedida.” (CACHIONI; ORDONEZ; BATISTONI; SILVA, p.82, 2015). Grande parte das ações que seguem o modelo de UnATI no Brasil são extensões universitárias públicas e privadas, e segundo pesquisas no ano de 2004 já chegavam a 400 o número de programas espalhados em todo território brasileiro. Cachioni; Ordonez; Batistoni e Silva (2015) problematizam a formação dos professores atuantes nas UnATIs, questionando a necessidade de uma formação específica na área gerontológica, os/as autores/as levantam dados e relatos sobre a evasão dos alunos desses espaços educativos, tendo como justificativa a observação de que alguns dos professores não têm preparo, e utilizam de metodologias não apropriadas para terceira idade. No entanto neste artigo assim como em um outro publicado por Eloiza Amalia Bergo Sestito e Regina Lucia Mesti (2012) defendemos a ação de estagiários/as nesses espaços acadêmicos, pois segundo nossas considerações, identificamos a potencialidade das práticas educativas exercidas por estes docentes em formação, de acordo com seu campo de atuação, que nestes casos foi o ensino de Arte. O ensino de Arte se enquadra em um dentre os seis eixos temáticos que norteiam o programa, sendo eles o de processos e procedimentos comunicativos; saúde física e mental; direito e cidadania; humanidades; meio físico e social e arte e cultura. Devido ao atual contexto de pandemia, a educação encontra-se em um caos total,


porém mesmo com os obstáculos que impossibilitam a acessibilidade dos discentes aos cursos da UNATI, a instituição manteve aberta as inscrições e proposições de cursos via on-line. Notamos que, diante deste cenário, foram muitas as desistências, pois o acesso ao aplicativo de reuniões Google Meet e ao email institucional foi diversas vezes questionado pelos/as alunos/as, e a confusão com as ferramentas aconteceu em alguns momentos. Em um exercício de prevenção a possíveis dificuldades que os discentes poderiam encontrar ao utilizar dos meios digitais para participar das aulas, antecipamos a eles/elas tutoriais escritos e links de vídeos para que eles/elas tivessem mais facilidade ao lidar com as tecnologias. Mesmo com nosso esforço em ajudá-los/as a se adaptar com as mídias, dos 11 alunos/as inscritos no curso, apenas 8 das onze alunas/os inscritos participaram efetivamente das aulas. O meio digital que facilitou e possibilitou uma melhor interação com as discentes foi um grupo de WhatSapp onde as alunas postaram suas dúvidas, seus trabalhos, as/os professores/as estagiários/as disponibilizaram as apostilas das aulas realizadas, e os links de acesso às salas virtuais. Já o Google Classroom que era para ser o canal de acesso principal, só foi acessado por uma das alunas, enquanto as outras reclamaram não estar conseguindo entrar na conta de acesso, e tiveram problemas com suas senhas institucionais. Na intenção de atualizar como tem sido o contexto educativo nos cursos oferecidos à terceira idade no programa de ensino UnATI, na sequência discorremos sobre como foi para nós as experiência vivenciada com 8 alunas inscritas no curso “Estudo da Arte e seus contextos” oferecido como extensão universitária da UEM no ano de 2021. REGÊNCIA DE ENSINO COM ARTE CONTEMPORÂNEA A PARTIR DA ARTISTA MÔNICA NADOR Como um primeiro exercício de nos aproximarmos dos/as discentes, antes mesmo de abrirem as inscrições para o curso de Estudo da Arte e seus contextos da UnATI, elaboramos um vídeo por meio do qual nos apresentamos e explicamos um pouco do conteúdo que seria abordado no curso, material que foi fixado junto a página da UnATI, como um convite para o público se inscrever. Já no primeiro dia de aula, nos apresentamos novamente, e abrimos espaço para que cada uma das alunas compartilhassem conosco suas expectativas para com o curso, a partir das seguintes perguntas: o que você espera deste curso? O que te motivou a se inscrever neste curso? As respostas foram as mais variadas, como: o desejo de ampliar o repertório de vida pois pouco conhece sobre arte e para ela isso faz falta; a afinidade em admirar o que é belo; porque a arte pode transmitir para outras pessoas pensamentos belos; por não estar bem


mentalmente e precisar se ocupar fazendo coisas interessantes; porque a arte pode preencher o vazio, e para fazer novas amizades; para ter o que conversar com sua filha que fez curso de arte; e por gostar de conhecer diferentes tipos de expressões artísticas, já visitou quilombolas e caiçaras, gosta de ter contato com diferentes imagens e artefatos artísticos. Essas foram as respostas que as 8 discentes nos responderam diante das indagações. Mesmo sendo uma reunião por meio de aplicativo digital, foi possível que elas compartilhassem conosco suas respostas, no início notamos um pouco de dificuldade para abrirem seus microfones quando convocadas, mas de um modo geral todas conseguiram se expressar. A forma como conduzimos nossas intervenções também facilitou para que as discentes se sentissem à vontade para falar, pois notamos que ao fazer uma pergunta e aguardar que respondessem de forma aleatória não teve sucesso, por isso, seguimos convidando cada participante pelo nome, e assim todas aproveitaram seus lugares de fala sabendo que havia sido dado a elas individualmente um espaço para que se expressassem. Na sequência iniciamos nossa aula que tinha como tema “Arte contemporânea a partir da artista Mônica”. Levantamos o seguinte questionamento: O que é arte? não com intenção de responder esta pergunta mas de contextualizar alguns períodos, obras e artistas, expusemos para as discentes um breve contexto histórico sobre arte, dividido por alguns períodos. Em um segundo momento, adentrarmos à arte contemporânea, apresentando a artista brasileira Mônica Nador (1955----), tendo-a como referência na arte do estêncil e no trabalho social que realiza em um bairro da zona sul de São Paulo. Falamos um pouco sobre a arte no período da antiguidade, de momentos em que era vista como um meio de aproximação com o divino, expressava a relação da humanidade com o mundo transcendente, com forças invisíveis. Citamos como exemplo a Vênus de Willendorf (Figura 1), que é uma escultura feita de calcário e datada do ano de 25.000 a.c. medindo aproximadamente 11cm de altura. Por seu tamanho pequeno, historiadores apontam que elas tenham sido feitas, com intenção de serem usadas como estatueta, para ser carregada como um talismã. Acredita-se ainda que essa estatueta está relacionada com a fertilidade feminina, a abastança e com a divindade, a mãe terra. Historicamente a partir de bibliografias acadêmicas, as descrições sobre esses objetos apontam para o misticismo que os envolvia, como o de que colocando essa estatueta sobre a barriga de uma mulher grávida a ajudaria a ter um melhor parto. Figura 1: Vénus de Willendorf.


Disponível em: <<http://todaon.com.br/o-reducionismo-ocidentalizado-a-evolucao-da-obesidade-2/>>. Acesso em 30 junho de 2021.

Após esse período, que como considerado por historiadores, a arte existia para estabelecer comunicação com o divino, passamos para o período conhecido como Renascimento. Onde o homem começa a perceber o seu espaço no mundo e aplica isso na arte. A perspectiva na pintura é uma das formas de expressar esse novo pensamento, incluindo então, a profundidade espacial numa superfície plana. Como exemplo, levamos para a intervenção a obra A última ceia de Leonardo da Vinci (Figura 2). Apresentando a profundidade através das linhas imaginárias que se encontram no centro da obra, onde está a figura de Jesus. O ponto central desse quadro fica exatamente na cabeça de Jesus e podemos notar até mesmo uma área externa através da janela pintada ao fundo. Onde vemos o céu e algumas montanhas. Figura 2: Última Ceia de Leonardo Da Vinci.

Disponível em: << https://www.infoescola.com/pintura/a-ultima-ceia/> >. Acesso em 30 junho de 2021.

Outro exemplo que apresentamos na aula foi a escultura Moisés de Michellangelo


(1505 - 1545) (Figura 3), que também representa esse período por sua anatomia realista. Contorno dos músculos, tecidos, barba e cabelos cacheados entremeio aos dedos da escultura, que em uma das mãos segura as tábuas da lei. Na ocasião mantivemos um diálogo aberto, onde as alunas expressaram seus pontos de vista e suas dúvidas com relação às imagens. Figura 4: Moisés de Michelangelo (1505 - 1545).

Disponível em: << https://cenciturismo.com.br/o-moises-de-michelangelo/>>. Acesso em 30 junho de 2021.

Com outra obra também contextualizamos um pouco sobre o período Cubista. No cubismo o homem começou a analisar as relações visuais com o mundo através dos elementos triviais do cotidiano e utilizar as formas geométricas para representar figuras imagéticas. O artista espanhol Pablo Picasso foi pioneiro nessa arte, utilizando as formas geométricas em temas como palhaços, natureza, alegria, tristeza e a guerra. Como exemplo apresentamos a obra Guernica, (Figura 4), onde Picasso retrata os horrores da guerra, uma guerra que durou somente 3 horas, mas que foi suficiente para exterminar com a cidade de Guernica. Nessa obra vemos pessoas e animais em formas geométricas, aqui não se tinha mais a obrigação com as formas realistas, mas mesmo assim se podia ver a expressão de angústia, aflição, medo e horror através das visualidades da imagem. Figura 4: Guernica de Pablo Picasso.

Disponível em: << https://www.todamateria.com.br/guernica-de-pablo-picasso/>>. Acesso em 30 junho


de 2021.

Neste ponto, chegamos ao tema principal de nossa regência, que consistia em apresentar a arte contemporânea, utilizando de uma artista que trabalha com estêncil e tem suas criações voltadas à comunidade. Após essa breve contextualização de alguns períodos da história da arte, apresentamos para as alunas a artista contemporânea Mônica Nador e seu projeto de pinturas em muros, paredes e tecidos com o estêncil. Juntamente com o projeto social que organiza e direciona, o JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube), que acontece nesse mesmo bairro da zona sul de São Paulo. Mostramos uma exposição que aconteceu no pavilhão das culturas brasileiras no parque Ibirapuera (Figura 5). Que foi um trabalho de autoria compartilhada, que Mônica vem desenvolvendo em parceria com a comunidade do Jardim Miriam. A proposta era levar para a exposição o caráter de experimentação e fazer artístico. Onde cada visitante ao chegar na exposição podia ver os trabalhos sendo produzidos. Figura 5: Exposição Mônica Nador.

Disponível em: << http://www.lucianabritogaleria.com.br/news/127>>. Acesso em 30 de junho de 2021.

Explicamos para as discentes que as pessoas que participaram da exposição, entre eles, alguns do grupo JAMAC, escolhiam obras do acervo das culturas brasileiras para desenharem, depois serem transferidas para o estêncil e posteriormente carimbadas nas paredes do prédio ou em grandes tecidos pendurados no teto e expostos ali para os visitantes observarem. Demos exemplos de estêncil, o que é, como usá-lo e em quais suportes podemos usar. Ao apresentar a artista contemporânea, começamos a dialogar com as alunas, investigando se elas conheciam essa técnica, se já tinham escutado ou visto falar. Neste momento a troca de conhecimentos foi bem importante e interativa, pois algumas delas já haviam feito o uso da técnica em trabalhos manuais e até mesmo em aulas. Após esse diálogo trouxemos o questionamento: O que é arte? Primeiro compartilhamos o que é arte para nós e depois abrimos para que cada participante pudesse falar um pouco. Tivemos respostas como: “Arte é poder me expressar com minhas próprias mãos”. “Arte é uma memória do que a


pessoa passou no momento. Vem de dentro para fora, a gente tem que perceber da nossa maneira”. “Arte é a perpetualização de um objeto que eu crio”. Para finalizar nosso primeiro dia de aula, apresentamos às alunas uma proposta de atividade, onde pedimos que elas realizassem em suas casas um estêncil, a partir de uma memória de infância, um objeto afetivo, algo significativo para elas, fizessem um desenho e depois recortassem com estilete, no papel ou em uma placa de raio x. Posteriormente, desafiálas a transferir esse desenho através do stencil para um suporte que seria variado, de escolha de cada uma delas; podendo ser um tecido, uma caneca, um papel, etc. A respeito das características que propomos na atividade acima, salientamos também as possibilidades que a Arte Contemporânea confere à prática da arte, tendo em vista as possibilidades que oferece em relação ao toque, ao manuseio e à aproximação com o material e os(as) artistas. Sentimonos motivados por Luciana Gruppelli Loponte (2008, p.118) quando afirma que a “[...] arte é feita de possibilidade, de invenção, de criação, de ruptura, do imprevisível, do inesperado.”. Na segunda aula que aconteceu após uma semana, iniciamos nossa regência solicitando que as alunas apresentassem seus trabalhos feitos em casa, no entanto devido ao excesso de atividade e ao contexto de pandemia as discentes afirmaram não terem conseguido realizar a atividade proposta. Para nós não foi surpresa pois sabíamos que um exercício como esse pelo fato de envolver desenho, assim como vimos em um vídeo que Mônica Nador fala sobre o processo de criação com estêncil, poderia gerar resistência por parte das alunas em dizer que não sabem desenhar. Mesmo assim decidimos propor a atividade pois sabíamos da potência que seria esse trabalho, caso elas viessem a praticar, e que ele ajudaria no processo de aprendizagem da técnica. No entanto, nossa avaliação não tinha por base a realização da atividade, mas sim a participação nas aulas, e a observação de que elas entenderam a técnica e ampliaram seus repertórios a partir da artista contemporânea Mônica Nador. Solicitamos que elas nos mostrassem seus trabalhos com estêncil mesmo que não realizado nesta semana, pois na aula anterior perguntamos se elas já haviam utilizado esta técnica, e três delas nos responderam que sim. Compartilharam conosco ideias de suportes variados que já utilizaram e uma delas nos mostrou umas taças que ela havia feito no natal passado, onde a partir do estêncil ela fez um jateado fosco com figuras de estrelas e letras. Neste momento de trocas de saberes, consideramos o que Paulo Freire (1996) defende ser o “aprender” e “ensinar”, um momento de trocas, onde o discente se distancia de ser um depósito onde só recebe informações, e também pode compartilhar seus saberes trazendo contribuições significativas. Neste sentido, Freire (1996) destaca ser possível para o educando superar uma educação bancária, mas para isso é preciso exercer a força da “comparação, a


repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar.” (FREIRE, p.13.1996). Para finalizar nossa aula, como forma de nos apropriarmos desse ambiente de mídia virtual que muitas vezes não temos nas aulas presenciais, assistimos um vídeo da artista Mônica Nador, onde ela apresentou uma turma de alunas do JAMAC, mostrando trabalhos de mulheres que utilizaram da técnica do estêncil e gravaram tecidos com suas matrizes, e a partir desses tecidos estampados, foram feitos vestidos, o vídeo apresentou o programa do início ao fim, e como fechamento da oficina da artista realizou um desfile com as mulheres participantes do curso. Neste desfile, as alunas da oficina tiveram a oportunidade de vestirem roupas com os modelos escolhidos por cada uma elas, e ainda, as peças foram confeccionadas com os tecidos que elas mesmas estamparam através da técnica do estêncil. Neste momento todas ficaram encantadas com os resultados e com a forma que a Arte e a técnica do estêncil pode ser utilizada na vida daquelas mulheres. Perante o exposto, identificamos em nossa regência, que a Arte possibilita uma aproximação do conhecimento epistemológico ao contexto de vivências dos/as discentes, proporcionando o que Freire (1996) destaca ser o “pensar certo” e o “ensinar certo”, que segundo ele tem mais a ver com a troca que existe entre o sujeito e o objeto de estudo do que com a mera memorização do que se aprendeu. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como efeito de fechamento para este artigo, identificamos que é de grande importância o ensino da Arte em diferentes espaços educativos, direcionados para além dos espaços acadêmicos, como no caso da UNATI que se volta à comunidade, e à terceira idade. Descrever sobre as práticas educativas de estagiários/as de Artes Visuais e suas atuações na Universidade Aberta à Terceira Idade - UNATI na cidade de Maringá, tornou-se para nós um objetivo relevante. Tendo em vista que as experiências aqui descritas puderam acrescentar conhecimento e compor a identidade docente das/os estagiárias/os envolvidos; por incentivar e expandir possibilidades de ensino/aprendizagem para além dos espaços da academia; e no contexto da comunidade, possibilitou promover interações, de modo a ampliar repertórios imagético de forma a possibilitar diálogos sociais renovadores. Por fim, gostaríamos de pontuar que em nossa experiência de estágio não tivemos oportunidade de estar em espaços físicos vivenciando e aplicando as atividades de Arte junto aos discente, no entanto, este tipo de pesquisa tem sido inédito tanto quanto as regências, em momentos de pandemia, e esse exercício de docência nos parece interessante e convidativo


para outras investigações e pesquisas. REFERÊNCIAS CACHIONI, Meire; ORDONEZ, Tiago Nascimento; BATISTONI, Samila Sathler Tavares; SILVA,Thaís Bento Lima. Metodologias e Estratégias Pedagógicas utilizadas por Educadores de uma Universidade Aberta à Terceira Idade. Educ. Real. vol.40 no.1 Porto Alegre jan./mar. 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S2175-62362015000100081&lng=pt&tlng=pt> Acesso em 20 mar. 2021. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura). LOPONTE, Luciana Gruppelli. Arte e metáforas contemporâneas para se pensar a educação. Revista Brasileira de Educação, v. 13, n. 37, jan. /abr. Rio de Janeiro, 2008. SESTITO, Eloiza Amalia Bergo e MESTI, Regina Lucia. INTERAÇÕES NO ESTUDO DA PINTURA NA UNATI –Anais V CIPSI - Congresso Internacional de Psicologia UEM. CPISIUEM-2012. Disponível em: <http://www.eventos.uem.br/index.php/cipsi/2012/paper/view/441/476> Acesso em 20 mar. 2021.

NOTAS DE FIM 1. Regina Ridão Ribeiro de Paula (reginaridao@gmail.com) - Graduanda em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá - UEM, participa do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagem, o ARTEI. Temas afetos às áreas de Educação, Cultura Visual, Formação de Professores, Ensino de Arte e Educação Infantil. 2. Eloiza Amália Bergo Sestito (eloizaamalia@hotmail.com): Doutora em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Graduação em Educação Artística pela Universidade de Marília (1983); graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1984) Atualmente é aposentada pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Já atuou como professora na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul - UEMS e Faculdades Integradas de Amambai - FIAMA. Centro Universitário de Maringá - UNICESUMAR. Como professora Colaboradora do Departamento de Teoria e Prática da Educação - UEM. Atualmente é professora temporária no curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Sociologia e Artes, com docência em cursos superiores de Pedagogia, História e Tecnologia em Alimentos com a disciplina de Sociologia. Atuando também nos seguintes temas: arte- educação - teatro, artes visuais, arte e formação de professores.


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A (RE)EXISTÊNCIA TAPUIA: somos goitacazes, botocudos, aymorés e puris Rosana Paste Felipe Lacerda RESUMO A decolonização é pauta. Todo movimento para seguirmos na (re)escrita de nossa história é urgente e necessário. O corpo e o espírito, cansados de tantos anos colonialistas, se naturalizaram e nem sempre sentem os efeitos desse crime bárbaro. Este artigo versa sobre uma micro-história de nossos povos originários, ressignificando seu modo de vida e seus costumes na tentativa de (re)ver o que está consolidado: povo bárbaro, sem cultura, analfabeto, sem relações sociais, políticas, ambientais. O que mostramos neste recorte é exatamente o contrário: uma nação forte, com hábitos consolidados, firme em seus propósitos, estabelecida em seus lócus e que foi violentamente vilipendiada de seu território. Camadas sucessivas de agressões e descuido nos levam a perceber como até hoje esse movimento se repete, ao dialogarmos com a produção contemporânea da artista visual Felipe Lacerda.

Palavras-chave: povos originários; arte contemporânea; resistência; decolonização. ABSTRACT The decolonization is a social agenda. Every movement which keeps us (re)writing our history is urgent and necessary. The body and the spirit, tired of so many colonial years, have naturalized and not always feel the effects of this barbarian crime. This article’s approach is about our native people’s micro history, reframing their way of life and their costumes in the attempt of (re)visit what’s solidified: barbarian people, cultureless, illiterated, without social, political, environmental relations. What’s shown in this cutout is exactly the opposite: a strong nation, with solidified habits, steady on its purposes, established on it’s lócus and which have been violently taken away from their territory. Successive lays of aggressions and carelessness leads us to realize how until this day this movement repeats itself when we dialogue with contemporary production of visual artist Felipe Lacerda.

Keywords: native people; contemporary art; resistance; decolonization. (RE)EXISTIR – QUESTÃO DE VIDA Os portugueses saíram do seu Velho Continente em busca de terras virgens que pudessem deflorar e delas usurpar toda riqueza que encontrassem. E foi assim que em 22 de abril de 1500 aqui chegou Pedro Álvares Cabral. A falha histórica ainda predomina, visto que Vicente Yáñez Pinzón, um espanhol, teria aportado no Cabo de Santo Agostinho, hoje Pernambuco, em 26 de janeiro de 1500. São fatos históricos que devem ser (re)escritos, pois os portugueses não descobriram nada. Aqui chegaram e dizimaram uma nação repleta de comunidades e povos com seus costumes culturais, suas línguas, suas relações políticas, sociais, econômicas e ambientais. A história da Capitania do Espírito Santo é marcada pelo atraso econômico social de pelo menos 300 anos em relação às demais capitanias. Nossos estudos apontam que pesquisadores, historiadores, filósofos atribuem como um fator de esquecimento de nosso território. O ganho desse atraso foi que no século XIX o território do Espírito Santo mantinha uma “densa e exuberante floresta tropical que cobria 90% do atual território, com seus rios encachoeirados para o interior e habitat natural do indígena adverso [...]” (MOSÉ, 2009, p. 23). Assim, apesar de se seguir no estado uma política colonialista de catequização ou dizimação da população nativa, é fato histórico que alguns dos povos mais resistentes ao processo de

ocupação portuguesa foram desenhados no solo capixaba. É interessante


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observar que o caráter de resistência dos povos originais à invasão portuguesa não se dava apenas pelo ataque frontal colocado pelos historiadores colonialistas. Celeste Ciccarone, pesquisadora da presença guarani no litoral do Sudeste, cita o relato de Leonardo Werá Tupã, líder mbya: Quando os portugueses chegaram, os Guarani já estavam aqui no litoral, mas só que quando eles chegaram, os Guarani sabiam qual região que ia demorar mais para o branco explorar, que é o centro da terra. Quer dizer o centro dessa terra que é a região do Paraguai e Argentina. E como eles previam a maldade, a maldição essas coisas todas, aí então os mais velhos falavam: “está na hora da gente sair daqui” [...] (LADEIRA; TUPÃ, 2004, p. 52, apud CICCARONE, 2011, p. 142).

Podemos pensar que a resistência pelo confronto não foi a única forma de postergar esse domínio português. Nesse sentido, buscamos aqui apontar a (re)existência do Corpo Indígena e a (re)existência de seu território, mais especificamente na Capitania do Espírito Santo, entendendo que ambos fazem parte do mesmo corporganismo, atravessando o contexto com a produção da artista contemporânea Felipe Lacerda. Dados históricos mostram que a situação da Capitania do Espírito Santo teve particularidades em relação às outras capitanias do território brasileiro. Contextualizamos: a tomada do território costeiro atlântico pelos tupis ocorreu pouco antes da chegada dos portugueses. Os tapuias foram os primeiros habitantes do litoral brasileiro. A invasão dos tupis

sobre os tapuias unificou a faixa litorânea, e a língua tupi-guarani predominou,

facilitando o domínio dos portugueses, que rapidamente aprenderam essa língua, assim como os costumes e

hábitos, o que tornou possível a dominação. Enquanto isso, os tapuias

migraram para o interior do Brasil criando barreiras de proteção do território, dificultando a entrada de portugueses invasores e dos tupis domesticados por eles. Assim nos relata Viviane Mosé (2009, p. 40): A tupinização destas tribos permitiu a unificação do Brasil, à medida que facilitou o acesso português, obviamente que com várias distensões. Mas havia um pacto de boa vizinhança entre tupis e portugueses. Os que não eram tupis, a respeito deles circulavam os relatos mais assombrosos e imaginários: seriam os tapuias os mais ferozes, antropófagos e de organização mais primitiva.

O território que compreendia o sul da Bahia e a Capitania do Espírito Santo, incluindo o litoral, era habitado predominantemente pelos povos originários denominados tapuias, falantes da língua macro-jê e compostos pelas nações dos goitacazes, aymorés, botocudos e puris. Esse fato proporcionou que a população de povos originários naturais permanecesse em seus territórios, fazendo com que a Coroa de Portugal não investisse com tanto afinco na usurpação e destruição dos bens. Visível também é a deformação, o preconceito, que já naquela época foi disseminado pelos colonizadores criando uma divisão entre as nações aqui


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existentes. Disputas por territórios por meio de brigas, mortes, bancarrotas existiam entre eles, mas não da maneira desrespeitosa e voraz implantada pelos portugueses. Além desses fatos descritos, não podemos deixar de trazer à tona a figura de nosso donatário Vasco Fernandez Coutinho. Conta a história que em seu mandato ele preferiu se aproximar e ficar do lado dos povos originários, em vez de escravizá-los, e aprendeu com eles os costumes culturais, sociais, políticos, ambientais no que se refere a comida, bebidas, fumos, cultivo, ervas, pinturas corporais, entre tantos saberes existentes nas nações de nosso território, passados oralmente por gerações, como relataremos adiante. Devemos lembrar também que a maioria da tripulação que acompanhava as expedições era formada por pessoas não gratas em Portugal. Eram consideradas vadias, ciganas, heréticas, bruxas, ou seja, eram seres degredados que nada valiam para a sociedade do velho mundo. Não adentraremos esse viés histórico, pois também são fatos imbuídos de preconceitos perniciosos, que temos de (re)contar. Com essas premissas, fica muito claro que Coutinho estava certo em escolher ficar ao lado dos povos originários aqui existentes, e assim ele envelheceu pobre, viciado em fumo e desrespeitado pelos seus superiores. Mosé relata (2009, p. 37): [...] E, retrocedendo a 1535, buscamos compreender a chegada do colonizador e seu encontro com o elemento indígena. Daí extraímos fatos bastante interessantes como a conjunção de fatores desfavoráveis: um donatário quixotesco, sem pulso para punir, uma comitiva de homens formada por ex criminosos em sua maioria, e indígenas totalmente dispostos a não se deixar escravizar. Além disso os parcos recursos da empresa colonizadora, o que gerou constantes afastamentos do donatário.

Apesar dessa afirmativa de Mosé, há outras versões da ocupação da Capitania Hereditária do Espírito Santo que contestam essa passividade do invasor, ou sua ação dialogada com a população local. Kalna Mareto Teao (2008), por exemplo, aponta alguns conflitos de Vasco Coutinho com os povos originais, em especial na edificação de Vila Velha. Mas Teao também aponta na direção de nosso foco principal, a resistência, pois igualmente afirma que aqueles nativos contrários ao projeto colonial se refugiaram na Mata Atlântica, de onde faziam investidas contra os colonizadores. A autora reforça, portanto, nossa hipótese da resistência e da estruturação de uma ideia de (re)existir resistindo. Dando-se um salto histórico para o século XVIII, mais precisamente em 1710, vemos que foi proibida a construção de estradas para o interior da Capitania do Espírito Santo, que ligariam a Minas Gerais, de onde seria escoado o ouro. O Governador General do Estado do Brasil, D. Lourenço de Almeida deu ordens ao Capitão-Mor da Capitania do Espírito Santo, Francisco de Albuquerque Telles, em nome do El-Rei D. João V, “a fim de que fossem suspensos e não se continuassem os trabalhos, explorações e descobertas das minas de Ouro


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da Capitania e continuação de estradas para Minas Gerais” (DAEMON, 1879, apud MOSÉ, 2009, p. 146), consolidando a barreira verde e o paraíso existente nesse território. Mosé relata em seu livro que, na época, a Capitania não possuía vilas no interior, sendo o território ocupado pelos

nativos, e com pequenos povoados no litoral, o que não justificaria a

construção de estradas por não haver um dispositivo econômico que as sustentasse. Vale destacar que, entretanto, uma indústria rudimentar já se instaurara no Brasil neste século, em especial nas capitanias do Sudeste e do Nordeste brasileiros. No Espírito Santo, era destaque a produção têxtil. Entretanto, em 1785, um alvará de D. Maria I de Portugal proíbe qualquer atividade manufatureira no Brasil, sob a alegação de que isso afastaria os colonos das atividades de exploração dos recursos naturais e preciosos da Colônia a ser desbravada, com a pouca população existente (ALVARÁ, 2021). Fica claro que houve uma intencionalidade política, sejam quais forem os motivos desses atos, que finalizaram fragilizando alguns aspectos do que podemos chamar de desenvolvimento

no estado. Esses atos políticos

chegaram ao século XIX com o fomento da vinda de novos imigrantes europeus para o Espírito Santo, ampliando as etnias e as histórias que nos

complementam. Ampliando,

sobretudo, outros modos de existir no solo capixaba. Mas nosso foco neste texto centra-se nos povos originais. Temos muitas histórias para recontar que demonstram o quanto os colonizadores maltrataram e vilipendiaram nossos povos originários, humilhando-os, maltratando-os e causando-lhes medo e pânico – sentimentos estes que os portugueses acreditavam não serem sentidos pelos nossos nativos. Traremos esse assunto à frente, em diálogo com o trabalho de Felipe Lacerda. Mas, para este estudo, paramos aqui nossa breve reflexão sobre a necessidade de se redesenhar ou reescrever a história do nosso estado, em especial sobre o processo de ocupação pelos portugueses, com a certeza de que os povos originários da Capitania do Espírito Santo constituem o representante maior da resistência no solo brasileiro. Somos ainda hoje constituídos dessa bravura nativa e desse desejo de olhar, ouvir, preservar nossos costumes e tradições, sem sermos espelhos de grandes centros, mas sermos nosso próprio centro. (RE)EXISTIR – MODO DE VIDA A noção de paraíso incomodava os colonizadores naquele momento. Como “humanidade da mercadoria”, não admitiam uma nação que não fosse escrava do trabalho, do lucro, da acumulação de bens, do desejo de possuir o fogo só para si. A lógica mercantilista, que antecedeu a capitalista, demarcou o que seriam os valores sociais, culturais e políticos de


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um povo “civilizado”, e o que estivesse fora desse padrão era considerado menor, desqualificado e desprovido de civilização (ou mesmo de alma, como declarou a Igreja para justificar a escravidão negra). Usaram essas diretrizes para legalizar a invasão, a destruição e exploração da terra nova. Todavia, ao chegarem, se depararam com uma terra cujos nativos eram livres desse peso e viviam no frescor de suas matas em total harmonia e formando um corporganismo único, tão respeitoso a ponto de que, quando a terra estava cansada por conta de suas plantações, eles iam para outro território para que ela pudesse descansar e renovar seus microambientes. Por todo esse respeito, os nativos foram tachados pelos colonizadores de

preguiçosos. O nomadismo era parte das estratégias culturais,

econômicas, sociais, políticas, ambientais das nações aqui existentes. Assim relata Mosé (2009, p. 45): No novo continente reinava uma primavera eterna. O clima, que não era quente nem frio, propiciava o bem-estar do corpo e da alma. A pouca diferença entre as estações afastava os períodos ruins. Bosques frondosos possuíam frutos variados e saborosos. Prados eternamente verdes, campos floridos cortados por nascentes de água clara e límpida, onde os silvícolas mal conheciam a morte ou doença alguma. Tudo lembrava o Jardim do Éden. Os homens andavam nus e não conheciam a vergonha. Talvez ainda não tivessem comido da árvore do conhecimento.

Com certeza eles não haviam se contaminado pelo conhecimento arrebatador e mesquinho de um povo do Velho Continente, que carregava o peso da Culpa e do Pecado Original, de suas crenças monoteístas – outra camada destruidora de nossos nativos, que não vamos abordar aqui. O conhecimento dos povos originários era superior ao daquela humanidade: se adoeciam, tinham conhecimento das plantas que os curavam; suas crenças ligadas aos deuses da natureza constituíam o sagrado necessário para aliviar o mal do espírito e curar o corpo; se tinham frio, preparavam as peles dos animais para se cobrirem, e as mulheres teciam, a partir do fio de algodão natural, uma espécie de manta que chamavam de tipoi para se aquecerem; quando iam guerrear, se trancavam durante um tempo para não verem o pôr do sol, pois essa visão traz paz de espírito, e não deveriam sentir isso nesse momento. Para construção de suas casas, eram escolhidos locais onde havia rios e madeira de fácil acesso. Organizavam-se mutirões em que mulheres, homens e crianças participavam. Suas casas eram construídas de madeira e cobertas por uma espessa camada de folhas de palmeira, protegendo para que não chovesse dentro. Normalmente havia três entradas, uma em cada extremidade e uma ao meio da construção, numa noção perfeita de ventilação. Eram coletivas e internamente não havia subdivisões com paredes; cada núcleo familiar tinha sua demarcação, sem violar o direito do outro. As crianças eram cuidadas e educadas por todos


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os que ali habitavam. O fogo permanecia aceso dia e noite dentro da casa e dormia-se em inis, uma espécie de rede tecida com fios de algodão. Se essa descrição estivesse em outro contexto, podemos afirmar que não há nada mais contemporâneo que isso, hoje em 2021, e era assim em 1548 quando Hans Staden aqui aportou. Relata Staden (2019, p.140) que: São pessoas bonitas de corpo e de estrutura, tanto homens quanto mulheres, da mesma forma que as pessoas daqui, exceto que são bronzeados pelo sol, pois andam todos nus, jovens e velhos, e também não trazem nada nas partes pubianas. Mas desfiguram-se eles mesmos com a pintura. Não têm barba, pois extraem os pelos da barba com a raiz tão logo lhes crescem. Fazem furos no lábio inferior, nas bochechas e nas orelhas e neles penduram pedras. É sua ornamentação. Também ornam-se com pedras.

Assim igualmente se ornavam as mulheres. Seus corpos eram pintados, seus cabelos eram longos, diferentemente dos homens, que os cortavam. Não faziam furos nos lábios nem nas bochechas e somente na orelha penduravam ornamentos redondos que faziam a partir de caramujos do mar, que chamavam de nambipai. Mulheres e homens tinham seus nomes de nascimento a partir de pássaros, peixes e frutas. Os homens trocavam de nomes à medida que conquistavam territórios. As mulheres também o faziam de acordo com as conquistas de seu parceiro, ou seja, tinham liberdade de escolher como querem ser chamadas ao longo de suas vidas. E os nomes mudavam conforme o tempo passava. Conta Staden (2019, p. 151) que presenciou o nascimento de uma criança. Alguns dias após o nascimento, o pai reuniu os vizinhos para discutir qual nome seria dado. Após várias discussões, nada agradou ao pai. Este então escolheu dar o nome de um dos seus quatro avós, acreditando que dar o nome de um ancestral prosperaria a criança e a tornaria um guerreiro. Um de seus filhos chamou Coema, que na língua nativa significava “a manha”. Entre os povos originários não havia comércio nem dinheiro. O que de valor possuíam eram as penas de pássaros e pedras, que havia com abundância, para construir seus ornamentos. O que usavam na cabeça chamava-se acangatara, cujas cores variavam de acordo com a nação. Os ornamentos de braço, perna e tronco eram feitos com penas coladas diretamente ao corpo, com extração de uma substância que escorria das árvores. O enduape era um grande ornamento de pena que tinha a função de proteger o sexo dos homens e era utilizado quando guerreavam ou em festas. As pedras eram de cor azul ou verde, e os meninos da tribo recebiam ainda quando crianças. À medida que cresciam, os buracos eram aumentados, as pedras eram maiores e sempre polidas. Não estamos aqui romantizando a figura de nossos nativos; estamos recontando uma micro-história que nos interessa. Estamos defendendo que aqui estavam muito bem com suas ideologias, crenças, concepções políticas, ambientais, culturais e sociais e que o colonizador


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não os ouviu, não os viu, não aprendeu nada com eles. Ao contrário, dizimou-os. Estamos aqui defendendo o sentimento de medo e pavor que esses povos sentiram ao serem atacados e escravizados à força. Ao verem suas florestas, seus rios, seus pássaros, seus animais, seu território sendo invadidos e levados embora. E ainda não paramos de sofrer com isso. Entre muitos, o crime ambiental de Mariana em 2015, por exemplo, não teve punição e nosso Rio Doce sofre! Os pretos, pobres, gays... são atacados todos os dias, sem poder dar voz ao que sentem, assim como nossos ancestrais nativos. E é nesse lugar que trazemos o trabalho de Felipe Lacerda como diálogo contemporâneo das camadas profundas que reverberam e aniquilam nosso território. Elza Soares está gritando, vamos ouvir: “O meu país é meu lugar de fala”. A RETOMADA 2020 Eu sou Resistência. Foi no bairro em que eu nasci que aprendi todas as táticas para sobreviver. Aqui era uma fazenda, que foi invadida. E à medida que iam desapropriando os/as invasores/as, eles/as iam retornando novamente, num ato de insistência na volta, mesmo diante dos despejos consecutivos ao retorno à fazenda. Foi o deslocamento e a insistência na volta que deu a esse território o nome de Resistência. Aqui jaz uma fazenda. A retomada e a insistência na volta fizeram com que hoje esse bairro fosse povoado e construído mesmo com as ordens de despejos. E o que isso tem a ver com a minha vida? Com quem eu sou? Em quem tenho me transformado, trocando de pele, construindo movimentos sorrateiros por esses mundos? Eles têm um plano, que foi organizado desde os tempos coloniais e que de algum modo ainda está em plena execução. Sabemos que as armas estão apontadas sobre as nossas cabeças desde então, desde o início de tudo que foi tramado e rogado sobre nossas vidas. Estou exausta. Sinto as minhas pernas doerem, todo dia subo e desço a Av. Brasil, em direção ao pasto. Quando chego, parece que tudo volta, eu me lembro de tudo, até daquilo que não vivi. Os cavalos, os bois e as vacas vêm para me lembrar daquilo que eu não vivi. E ainda insistem na minha mortificação como o meu fim. O nosso fim. Eles sabem de onde viemos, sabem também que todos nós sabemos segredos e formas de aquendar iv nossas armas em nossas corpasv. Essa é a revolta deles, e sabem também que voltaremos para cobrar por todos os corações que nos foram retirados. Voltaremos com todas as pedras que foram atiradas sobre nós. Não, isso não é nem de longe uma profecia. É uma catástrofe. O plano deles não


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terminou, porque, à medida que nós vamos, voltamos com uma

legião a mais, como

serpentes aquáticas furiosas, com sede de retomada de poder e controle de

nossas

existências. Os fins de tarde têm sido um dos mais belos, o céu azul com rastros laranjas pelo céu. Decido voltar. A caminhada até onde habito é longa, e de lembrar que saltarei no pasto me arrepia. Sinto o ardor em meus ouvidos e tudo isso volta a me deixar mais cansada, as dores em minhas pernas se intensificam até a sola dos meus pés. Uma amiga sempre me indica o escalda-pés com folhas, mas por algum motivo nunca fiz. Cheguei. Volto a descer a Av. Brasil, sinto os meus olhos arderem pela fumaça do fogo, é uma prática comum e corriqueira das pessoas do bairro colocarem fogo no lixo acumulado ou para espantar os mosquitos que sempre nos atacam por volta das 18 horas. Sei como voltar. Sei como acender uma chama. O plano deles ainda está em curso, o objetivo segue o mesmo, mas preciso me lembrar da volta. O meu destino não é mais o mesmo. Preciso partir e lembrar do que me foi dito no pasto e das minhas longas caminhadas por Resistência. Estou indo. O caminho é longo e sei o que posso encontrar pela frente. O meu corpo não é mais o mesmo desde que decidi bombá-lo com uma química desconhecida, que à medida que aplico vai me transformando em outra. Sei que não vai ser fácil, por isso decidi aquendar uma arma embaixo da minha língua bifurcada. Parece-me que nessa caminhada tem apenas subida, o que me faz lembrar da Av. Brasil. Mas, ainda assim, não posso me esquecer da volta. Minhas pernas voltam a doer. Decidi me sentar embaixo de uma árvore de aroeira. O céu volta a ficar completamente azul com rastros laranjas. Lembro-me do fogo, e meus olhos voltam a arder. A noite está caindo. Decidi continuar minha caminhada. Dois rapazes de bicicleta se aproximam de mim dizendo que iriam acabar comigo e com as que se pareciam comigo. Intensifico meus passos à medida que eles vão se aproximando de mim. Volto a lembrar do plano colonial que segue em curso e das armas engatilhadas sobre nós. Em baixo de minha língua bifurcada está a aquendar uma arma, mas são dois contra uma. Eles estão se aproximando. Corro disparada a uma mata fechada que está próxima do meu alcance. Não conheço esse lugar. Sinto o cheiro da fumaça, meus olhos começam a


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arder. Decido traçar um plano de fuga me orientando pela fumaça que sobe sobre o céu estrelado. Já era noite. Consigo escapar. Deito sobre folhas secas próximo à chama. Um cavalo se aproxima e volto a lembrar daquilo que eu não vivi, mas não posso me esquecer do caminho da volta. Abro a minha bolsa e pego a minha química, bombo o meu corpo novamente com o veneno em que já tinha me viciado, dois minutos era o suficiente para envenenar o meu corpo. Caio no sono. Acordo com um barulho ensurdecedor de cobra cascavel. O que teria essa cobra a me ensinar? Decidi procurá-la, mas encontrei apenas as peles trocadas por ela. Já é manhã, continuo a minha caminhada. Parece-me que habito um espaço e tempo que não me pertencem, tudo parece estar seguindo o pleno fluxo das caçadas por nós. Estou habitando outro mundo. Escuto os fogos, volto a me lembrar do plano em curso, sei que estão vindo. Olho para o céu e os fogos de artifícios deixam rastros de fumaças que decido seguir em direção à minha caminhada. Parece-me que essa caminhada está me levando para outros mundos, porque este já não mais me cabe. Meus ouvidos voltam a arder e as dores em meus pés e pernas estão localizadas no calcanhar, não posso fazer das dores minha parada. Minhas dores se intensificam e eu mal posso parar para senti-las... Desejo acabar com o mundo da forma como nos foi dado e o conhecemos, as minhas dores são sobre o fim, mas não o nosso; algo se anuncia. Eu quero arruinar suas casas, assombrar suas noites, invadir os seus sonhos e destruir o que está em curso... A retomada e a insistência na volta me fazem caminhar. Caminho por mim e pelas que agora brilham no céu negro estrelado. Estou indo por vocês. Os rastros da fumaça que se desenhavam sobre os meus olhos se desfizeram no ar, e o que me guia agora são os meus sonhos. Esta noite eu preciso sonhar para não me perder. Meus olhos voltam a arder. A volta vai ser longa. Preciso caminhar e me lembrar da volta... (RE)VOLTA E para aqueles que chegam ao nosso território capixaba e não respeitam nossa identidade cultural, nossos ancestrais nativos, nossas crenças, costumes, nossa resistência, nossa (re)existência, gritamos: Debe Mara pá, xe remiu ram begué. Nde akanga juká aipotá


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kuriné. Xe anama poepika re xe aju. Nde roó xe mokaen serã kuarasy ar eyma riré. Decifrem, se forem capazes! REFERÊNCIAS ALVARÁ que proíbe as fábricas e manufaturas no Brasil. Arquivo Nacional, 11 mar. 2021. Disponível em: http://historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article& id=3674:alvaraque-proibe-as-fabricas-e-manufaturas-no-bra&catid=145&Itemid=286. Acesso em: 19 maio 2021. CICCARONE, Celeste. Um povo que caminha: notas sobre movimentações territoriais guarani em tempos históricos e neocoloniais. Dimensões, v. 26, p. 136-151, 2011. MOSÉ, Viviane. A resistência tapuia na capitania do Espírito Santo. Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 2009. PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os degredados no Brasil-colônia. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Tradução de Angel Bojadsen. Porto Alegre: L&PM, 2019. (Coleção L&PM Pocket, v. 674.) TEAO, Kalna Mareto. Formação de professores indígenas tupinikim e guarani mbya do Espírito Santo. Cadernos de Educação Escolar Indígena – Proesi, Barra do Bugres, v. 6, n. 1, p. 101-122, 2008. (Organizadores: Elias Januário e Fernando Selleri Silva.)

NOTAS DE FIM 1.

Tapuia é a palavra injuriosa utilizada para designar os índios que não falavam a língua tupi-guarani.

2.

Rosana Lucia Paste (rosanapaste@gmail.com) é graduada em Artes Plásticas Bacharelado (1992) pelo Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mestre em Educação (2010) e doutora em Educação (2017) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Ufes. É autora do livro eumuseu rosana paste (2014) e do Catálogo Rosana Paste (2004). Participou do Projeto Rumos Visuais do Itaú Cultural (1999- 2000) com exposição em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná. Participou de exposições coletivas em congressos de mosaico contemporâneo no Egito, Japão, Itália e Brasil (1994, 1996, 2000, 2020). Sua última exposição individual foi realizada na Galeria Em Parede Contemporânea Vitória (2017). É membro do Grupo de Pesquisa Criatividade Educação e Arte (GPCear), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes) e com sede no Centro de Artes da Ufes. É professora dos cursos de bacharelado e licenciatura em Artes Visuais do Centro de Artes da Ufes desde 1994. Site: https://rosanapaste.com.

3.

Felipe Lacerda (felipelacerda02@gmail.com) é artista visual e graduanda em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Engatilha pesquisas que giram em torno de sujeites cuja posição (de gênero, sexual e racial) social desobedece às premissas heterocentradas estruturadas pela lógica cisgênera, e das serpentes que bifurcam a língua nos processos de afirmação e desejo a vida.

4.

Mesmo que “guardar” ou “sumir com”.

5.

Optamos por escrever “corpas” em vez de “corpos” para, assim, referirmo-nos a pessoas cujas corporeidades confrontam os modos normativos de se representar no mundo.


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A ARTE ESCULPE O HOMEM: reflexões sobre imagem e condição humana Givandelson de Oliveira Aquino Andrei Venturini Martins RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo refletir sobre a arte em sua potência de transmitir uma mensagem avassaladora para o espectador, a ponto de transformá-lo. Pretende-se reconhecer o caráter educativo da arte e simultaneamente almeja-se refletir sobre o discurso dialógico entre imagem e espectador, além de analisar a questão da arte como constructo da condição humana. De modo sucinto apresenta uma reflexão sobre a imagem e como sua produção e leitura foi determinante para o desenvolvimento da humanidade. O estudo trata ainda da questão que se estabelece entre a imagem e a condição humana, sendo esta capaz de imprimir uma marca indelével em seu apreciador. Por fim, versa sobre a importância de se ter uma educação que contribua para a leitura efetiva da imagem. Tem como aporte teórico autores que refletem sobre os temas propostos e teve como percurso metodológico a exploração bibliográfica por meio de livros e artigos científicos que tratam do tema. Por fim, espera-se, oportunamente, divulgar os resultados dessa pesquisa em publicações científicas, seminários, simpósios e congressos da área. Palavras-chave: Arte, Educação, Imagem, Condição Humana.

ABSTRACT This research aims to think over the influence arts has in transmitting its message with the purpose of changing human beings. It is proposed to talk about the educational role as well as to think about the dialogue between image and bystanders and analyse the impact arts has on people. In short, it is about imaging, its result and how reading can determine human development as it marks positively all experiences they have. It talks about how important it is to have education which contributes to an effective image reading. The study and research are based on authors who talk about the subject in books, scientific articles through bibliography exploration. Eventually publishing and research results in scientific means, seminars, congresses are expected. Keywords: Arts, Education, Imaging, Human Beings.

INTRODUÇÃO A Arte3 e seu ensino têm suscitado calorosos debates nas últimas décadas. Há quem defenda sua presença no currículo escolar como algo imprescindível para formação de seres sensíveis, mas também há quem acredite que ela seja dispensável ao ensino. De qualquer forma, não sem muita luta no campo político e social, a arte tem se feito presente no ambiente escolar. E falar de Arte enquanto disciplina curricular é falar também de leitura de imagens e da cultura visual. Aprender a ler imagens e também interpretá-las enquanto fenômeno dialético é uma questão delicada na escola. Causa estranheza a frequência tímida das imagens nas aulas de Arte. Talvez por questões técnicas, elas pouco aparecem e quando se fazem presentes, as imagens são representadas nas minúsculas ilustrações dos livros, em fotocópias monocromáticas e, na melhor das hipóteses, em pranchas serigráficas muito distantes da imagem original. Entretanto, quais são as perspectivas do uso da imagem como forma de se propor uma educação estética? Como conceber uma prática educativa que, por meio da aproximação com a imagem, permita a compreensão crítica da cultura visual de maneira ampliada, tão presente na sociedade? É preciso analisar e questionar o já instituído,


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vislumbrando possibilidades para o entendimento do campo do conhecimento e da potência da visualidade e da cultura visual, de modo especial sobre a imagem e sua leitura, tendo como premissa o espaço aberto pela educação escolar. Parece evidente que a imagem cuidadosamente interpretada, alcança múltiplas dimensões na mediação do conhecimento contemporâneo. O professor responsável por essa mediação deve estar comprometido com a formação de leitores sensíveis à influência exercida pelas imagens, tendo em vista uma educação que objetive o entendimento e a interpretação crítica da visualidade e da cultura visual. Dessa forma, o estudo aqui presente é um convite à reflexão, articulando saberes e a possível crítica das narrativas investigativas em relação ao poder escultórico que a arte exerce sobre nós. Este tema envolve uma investigação sobre a arte e a condição humana, pensando em como a própria arte nos forja e nos esculpe quando entramos em contato com ela e como a mesma pode contribuir para a realização da nossa condição enquanto seres sensíveis, cientes de experiências de vida e dos próprios processos criativos. A pesquisa buscou compreender o que as imagens nos movem a ver, como entendemos a relação dialógica e transformadora presente na leitura de imagens, bem como o papel educativo da arte. O ponto de partida seguiu a investigação da Professora Ana Mae Barbosa, de modo especial, em sua obra A imagem no ensino da arte (Barbosa, 2012), que em suas pesquisas iniciadas na década de 1980, buscando uma metodologia pós-moderna para o ensino de Arte, desenvolveu a Abordagem Triangular, baseada no fazer, leitura da imagem, da obra ou do campo de sentido da Arte e contextualização. A Proposta Triangular configura-se como uma abordagem em processo, em uma mudança contínua, enraizada essencialmente no contexto, para o desenvolvimento da identidade cultural e da percepção, por isso mesmo é também uma proposta vívida, orgânica e pulsante. A apreciação da arte é uma ação inteligível que favorece a produção de sentido da imagem. Por sua vez, a produção de sentido intelectivo e afetiva dos diversos agentes que fazem parte dos procedimentos de comunicação social designado Arte é definida, e se não fosse assim, o que teríamos seria apenas uma política de controle do imaginário. Desta forma, nota-se que a maneira de ensinar ganha importância porque amplia a compreensão e o modo como os sujeitos se relacionam com a imagem. O Ensino de Arte é aqui posto como questão central para a compreensão do valor da imagem, oferecendo a este tema o destaque que ele merece. Vivemos em um mundo em que o contato com a obra de arte foi democratizado. Em nossos dias, a arte pode chegar até nós de diversas maneiras, seja pela tela da televisão,


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computador, celular, jornais impressos, outdoors, cartazes e tantos outros meios. Mas será que saímos ilesos desses encontros? Quando o primeiro homem, após o artista, entrou na caverna e se deparou com imagens impressas na parede, ele nunca mais foi o mesmo, pois aquela imagem imprimiu em sua mente uma outra imagem que o acompanharia pelo resto de seus dias. E desde aquela primeira experiência, até hoje, isso vem se repetindo com todo ser humano que se põe em contato com a arte. No Brasil, desde a década de 1980, a arte adentrou a sala de aula e passou a ser parte importante das aulas de Arte, isso graças aos estudos de Ana Mae Barbosa que culminaram na Abordagem Triangular: Defendo a Cultura visual e a Arte na escola, ambas contextualizadas socialmente, historicamente e vivencialmente. O pós-modernismo trouxe para a análise da arte as mesmas propostas de análise crítica usadas para as imagens de outros meios e categorias. (BARBOSA, 2010, p. 21).

A ideia defendida por Barbosa dialoga com o pensamento de vários autores contemporâneos como Manguel , que nos diz que: “Para o bem ou para o mal, toda obra de arte é acompanhada por sua apreciação crítica, a qual, por sua vez, dá origem à outras apreciações críticas” (MANGUEL, 2001, p. 21). Ambos os autores nos apontam um caminho do apreciador em direção à arte, pensamento esse que é recorrente no discurso contemporâneo, mas não mostram um caminho contrário, ou seja, da arte em direção a seu apreciador. Portanto, configura-se neste ponto o estado da questão deste trabalho. Será que, ao se deparar com uma obra de arte, o indivíduo torna-se suscetível a uma transformação tal que possa influir acerca de sua própria condição humana, evidenciando um caráter formativo da arte? Para complemento teórico sobre o problema em questão, analisaremos outros autores que tratem do tema e nos ajudem a pensar sobre a relação dialógica entre a obra de arte e o apreciador, considerando os sinais de mudança após tal encontro. Para fundamentar a investigação, era pertinente buscar as ideias de alguns pensadores acerca da imagem, entre eles podemos destacar Platão e Aristóteles. A pesquisa também trata da importância de um ensino de Arte que valorize a relação dialógica entre o objeto artístico e o apreciador. Para isso contou-se principalmente com os estudos de Ana Mae Barbosa sobre a visualidade e a cultura visual na escola. Outro ponto investigado trata-se da relação entre arte e condição humana. Neste quesito, tomou-se como pressuposto o pensamento de Pascal, Becker e Llosa. Avaliou-se a relevância do Ensino da Arte, e para isso a análise contou com as publicações dos autores, bem como artigos críticos que tratam do tema. Assim sendo, neste estudo buscou-se apresentar aos docentes do Brasil a importância de refletir sobre o Ensino da Arte destacando a educação do sensível, com o objetivo de fazê-lo repensar as didáticas e seus procedimentos metodológicos.


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Será a arte capaz de possuir uma mensagem tão contundente que possa atingir o homem naquilo que o determina, tendo as condições para influenciar sua sensibilidade? No embate entre a mensagem artística e as predisposições do espectador há que se considerar os seguintes passos: refletir sobre o discurso dialógico entre imagem e espectador; analisar a questão da arte e a condição humana; reconhecer o caráter educativo da arte. Portanto, para responder à pergunta acima esboçada, propôs-se a seguinte hipótese: ao tomar consciência de que a arte é capaz de provocar inquietações e mudanças em seu apreciador, é possível considerar que a imagem criada intencionalmente com o intuito de comunicar de modo sensível, é capaz de imprimir um caráter educativo na alma. Ao professor, cabe ter consciência da importância de propiciar encontros efetivos do educando com a arte, fazendo uso de imagens para a educação estética. Dito de outra forma, que ele entenda a força da arte no estabelecimento de representações simbólicas e estéticas na formação humana, uma vez que, a arte é uma das atividades que nos diferencia dos outros seres. Este trabalho se justifica enquanto pesquisa ao acenar para a questão da potencialidade do discurso artístico presente na própria obra, que é um discurso que vai além da intenção do artista e que é único para cada espectador, uma vez que imprime uma marca pessoal em cada indivíduo. Dessa forma, seu propósito se justifica por reafirmar a importância de se ensinar Arte através de imagens na Educação Básica. Tendo em vista o estudo das imagens do universo da arte, bem como de imagens da cultura visual, compreendemos em nossos dias ser necessário o entendimento do que vem a ser a imagem, da sua presença nas culturas e identidades para uma apreciação da imagem em sua afinidade com e na educação escolar em Arte. A pesquisa desenvolvida teve caráter exploratório, contudo a princípio foi considerado o percurso bibliográfico através de livros, teorias e discussões pelo método dedutivo com prevalência teórica. Foi dividida em três capítulos, sendo o primeiro, reflexões sobre a imagem; imagem e condição humana; e por fim, o aprender na perspectiva da Imagem. REFLEXÕES SOBRE A IMAGEM Falar de pensamento humano é falar sobretudo de imagens. A consciência humana está intimamente ligada à construção de imagens no seu intelecto. A capacidade de pensar, reconhecer e reproduzir formas, está na essência da espécie humana. Segundo Manguel, Aristóteles fundamenta que todo processo de pensamento requer imagens. “A alma nunca pensa sem uma imagem mental” (ARISTÓTELES apud MANGUEL, 2001, p. 21). Segundo essa concepção, a nossa construção intelectual tem a imagem como seu fundamento, tendo


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essa que assumir diferentes funções na nossa existência. Ainda nos primórdios da humanidade, o homem possivelmente se encantou com imagens. Há que se supor que as primeiras imagens tenham sua gênese na interação com a natureza. Ao observar as formas do mundo natural, esse primitivo não haveria de permanecer o mesmo. As imagens da natureza foram capazes de mudar a relação entre o ser humano e os fenômenos naturais. Isso aconteceu porque as imagens carregam a propriedade de intrigar, fascinar e convidar o espectador à interpretação e a senti-las. Segundo Fortes: “A representação da natureza através de imagens está na origem do próprio surgimento da cultura humana. Desde os primórdios, o homem se debate entre louvar e imitar a natureza ou dominála e sobrepor-se a ela” (FORTES, 2018, p. 2). Para o autor, o homem inicia sua jornada artística ora imitando a natureza com o propósito de aproximar-se dela, ora tentando dominála. Assim, ele retratava o mundo com suas produções imagéticas, mas também o modificava em sua visualidade. O registro que chegou até nossos dias foram as imagens gravadas nas paredes das cavernas. Essas certamente não foram as primeiras imagens criadas pelo homem, mas são a certidão de nascimento da arte. O homem depois de ser afetado pelas imagens da natureza, passa ele mesmo, a produzir suas próprias imagens. Feist (2003) cria uma bela narrativa para o surgimento da arte, quando nos conta: Pode ser que tudo isso tenha começado quando um primitivo faminto estava sentado no meio da caverna, pensando na vida e pensando em um belo pedaço de carne. E de repente imaginou que uma saliência ou mesmo uma mancha na parede parecia o animal que poderia lhe saciar a fome. Então se levantou, pegou um tição qualquer e completou a figura que a saliência ou mancha lhe sugeria. (FEIST, 2003, p. 17)

Uma transformação significativa acontece no instante em que o homem passa da contemplação passiva das formas da natureza para criar, ele mesmo, suas próprias formas. Para Martins (1998), a linguagem da arte é sobretudo invenção, criação e construção. É através da arte que o homem forma e transforma o que a natureza lhe oferece em algo significativo. O artista seria capaz de mudar a realidade quando produz. Mudar não somente a própria realidade, mas também das pessoas que venham a ter contato com ela. Podemos imaginar a reação do primeiro espectador quando viu a figura desenhada na parede da caverna pelo primeiro artista. Reconhecer naqueles traços as formas que ele já conhecia, possivelmente causou-lhe grande espanto. Algo semelhante deve ter ocorrido com aqueles que, centenas de milhares de anos depois, encontraram essas mesmas imagens escondidas nas ‘gavetas’ do tempo. Isso porque, segundo Martins (1998), a obra de arte não fica restrita unicamente às circunstâncias de sua produção. Nela podemos encontrar algo que é único e ao


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mesmo tempo universal. Na obra de arte, o artista brada sua voz, mas essa voz não se perde no ar. Ela encontra morada no espectador, que por sua vez, deixa-se habitar por ela. Os gregos foram os primeiros a se preocupar com o princípio da representação, expresso pelo naturalismo que a obra simulava, resultado da habilidade do artista. Esse processo se fundava no princípio de mimese, que significa imitação. Teixeira destaca, a partir da sua leitura da República de Platão, que “a arte, em todas as suas expressões [...] é uma mimesis da realidade. Ou seja, sob o ponto de vista ontológico, a arte não passa de uma imitação do mundo sensível” (TEIXEIRA, 1999, p. 74). Em um primeiro olhar, podemos dizer que a arte tem seu início com o artista querendo imitar a natureza, mas se olharmos com mais atenção, perceberemos que aquelas produções estão carregadas de significados advindos da mente do artista. Outro autor que trabalha o termo mimesis é Fortes (2018). Esse autor, indica que o conceito de mimesis pode ser adotado em dois sentidos diferentes. Em primeiro lugar, seria a do fato dos artistas imitarem a aparência dos objetos do mundo natural. Talvez este significado seja o mais conhecido, uma vez que marcou absolutamente a história da arte, levando-nos a crer que o grande artista é aquele que é capaz de retratar o mundo da forma mais fiel e verdadeira possível. Uma segunda concepção da atividade mimética seria, segundo o autor, aquela que acredita que o artista ao invés de imitar apenas a aparência da natureza, imitaria a sua própria força criadora. Da mesma forma que a natureza produz os seres do mundo, o artista produziria seus artefatos enchendo o ambiente de produtos feitos por ele. “Desta maneira, o homem produz não só imagens sobre o mundo, mas altera a própria forma como o mundo se apresenta para nossos olhos” (FORTES, 2018, p. 02), continua o autor. Aristóteles apresenta uma abordagem diferente de Platão em relação às imagens. Ele acreditava que a imagem era a representação mental do objeto real, sendo arquitetada por meio dos sentidos. Entendia a arte como sendo verdadeira, tanto do ponto de vista epistemológico como moral. Para o discípulo de Platão, a mimese é natural ao homem e não é apenas a imitação de coisas que já existem, mas pode ser também a imitação de coisas possíveis, assim a arte não seria só reprodução, mas invenção do real. Dessa maneira, Aristóteles define a Beleza objetivamente e realisticamente como resultante da harmonia das partes de um todo. Seja a imagem uma imitação das coisas, seja ela uma criação nova do artista, o nosso olhar sobre ela nos revela o seu poder de intercessão. A imagem desperta em nós lembranças, pensamentos, sensações, sentimentos que não conseguimos explicar. A imagem é sempre uma oportunidade de estabelecer relações, seja consigo mesmo, seja com o autor da obra, com outros apreciadores e com o mundo. Nesse sentido, a imagem se amplia como um fenômeno


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cultural e social com múltiplas abordagens, fazendo-se necessária tanto na leitura de obras de arte reconhecidas como tal, mas também na leitura de imagens corriqueiras. A imagem, por vezes se nos apresenta como um espelho, fazendo-nos refletir sobre que coisa é o mundo, que coisa é o homem, que coisas somos nós. É justamente sobre este revelar da arte que trataremos a seguir. IMAGEM E CONDIÇÃO HUMANA Como vimos, a capacidade de pensar, reconhecer e reproduzir formas, está na essência da espécie humana. O que pode acontecer com alguém que entra em contato com algum tipo de obra artística? É possível que sua reação seja se emocionar, rir, chorar, ter ojeriza, pensar… Mas por que isso ocorre? Para retratar o domínio que a imagem é capaz de exercer sobre nós, vamos apresentar dois exemplos. Conta a lenda que Michelangelo após concluir a sua escultura de “Moisés”4, uma das mais belas obras feitas pelo mestre italiano, teria passado por um momento de desvario diante da beleza da obra dando uma martelada no joelho da estátua, gritando: Per ché non parli? (Por que não falas?). Outro fato ocorreu com um professor de Arte conhecido nosso. Depois de anos mostrando para os alunos minúsculas reproduções nos livros ou em pranchas mal impressas, a obra “Caipira picando fumo” de Almeida Júnior 5, em uma visita à Pinacoteca do Estado de São Paulo, o professor se deparou com a obra original. Diante da monumentalidade do quadro, podendo perceber as pinceladas, o brilho, as cores e as formas demarcadas pelo artista, admirando in loco a beleza da tela, o visitante não foi capaz de segurar as lágrimas, chorando copiosamente. Poderíamos encher páginas e páginas com relatos de pessoas que tiveram variadas reações diante de uma imagem, mas esses exemplos são suficientes para ilustrar a força da arte sobre nós. Por que será que a arte nos comove? Talvez a resposta seja: porque somos humanos! A arte é uma criação humana feita para humanos. Mesmo que haja outros engenhos produzidos pelo homem que sigam essa lógica, a arte se sobrepõe porque é capaz de mostrar a vida de homens de todas as épocas sendo seres que pensam, criam, se relacionam, agem, trabalham, que sofrem e que buscam a felicidade. Assim, mesmo que uma obra artística seja fruto de uma determinada época, de costumes específicos, condicionada a recursos tecnológicos e científicos de seu tempo, tem o poder de transcendência para permanecer na história. Segundo Martins “A obra de arte não fica restrita apenas à época e data de sua produção, ela é intemporal porque nela encontramos parte de nós, daquilo que no artista é único e ao mesmo tempo universal” (MARTINS, 1998, p. 60). Por isso mesmo a arte nos permite compartilhar sentimentos, sendo ao mesmo tempo individual e plural, mostrando potencialidades e


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fragilidades, promovendo uma síntese do ser; permitindo compreender a existência humana na sua totalidade. A obra artística enquanto criação produzida pelo homem é capaz de revelar o próprio homem em seu poder criativo, sendo por sua vez, o próprio sujeito objetivado. Para Aranha: “a arte é um dos modos pelos quais o ser humano atribui sentido à realidade que o cerca, e uma forma de organização que transforma a experiência, o vivido, em objeto do conhecimento, sendo, portanto, simbólica” (ARANHA, 1998, p. 204). Essa capacidade de atribuir sentido à realidade falta aos animais. Conforme afirma Aranha, “a arte é um dos modos simbólicos de que o ser humano se utiliza para atribuir significado ao mundo, mostrando por meio de um objeto as possibilidades do real” (ARANHA, 1998, p. 205). E isso, só o ser humano é capaz de fazer. A criação artística se irrompe como uma necessidade para o homem conhecer sua condição humana e modificá-la. Pascal, em sua obra Pensamentos (PASCAL, 2005), apresenta a condição miserável do homem, entre o nada de onde saiu e o infinito que o envolve, não tendo condições de compreender seu princípio e nem o seu fim. A questão da arte estaria, dessa forma, intrinsecamente ligada à condição humana, traçando o jogo dialético do contraditório: finito e infinito; relativo e absoluto; imanente e transcendente; dizível e inefável. Segundo Martins “a grandeza do homem […] estaria na consciência de suas tragédias e vitórias, sendo capaz de expressá-las, tanto pela ciência, quanto pela arte e literatura” (MARTINS, 2018, p. 21). No clássico da literatura universal, O retrato de Dorian Gray (WILDE, 2012), Oscar Wilde apresenta a busca humana pela imortalidade. A metáfora de Wilde, apresenta a obra de arte como um meio de manter a eternidade do ser. A história retrata a busca absurda do homem pela eternidade. Uma obra de arte deve ser uma representação da existência do artista, dos seus sentimentos e pensamentos. Segundo Teixeira, o homem é um ser criativo e vive inventando formas de expor sua criatividade. Essa criatividade seria uma maneira de amadurecer e afirmar sua personalidade. Para ele “A arte é o patrimônio de estar vivo. Consiste numa necessidade pessoal e social, pois estabelece novas relações entre o indivíduo e o mundo que o cerca” (TEIXEIRA, 1999, p. 73). A arte que apresenta tais características, passará ao largo da fugacidade do mundo, e será capaz de sensibilizar o espectador, forjando nesse, marcas profundas e indeléveis. Obviamente que desde o momento em que o ser humano passou a produzir imagens, independente da natureza que lhes deu origem – visuais, corporais ou sonoras – elas assumiram diferentes funções em diferentes épocas, mas o que não se pode negar é que em determinadas culturas e momentos específicos, o homem buscou suprir seus


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imperativos socioculturais por meio da produção de imagens que fossem capazes de sensibilizar aos demais. Ainda hoje, o artista se configura como arauto das mensagens que não encontram maneiras imediatas de serem ditas. Segundo Manguel, “as imagens que formam o nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens e alegorias. Ou talvez sejam presenças vazias que contemplamos com o nosso desejo, questionamento e remorso […]. As imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos” (MANGUEL, 2001, p. 21). No mundo onde reina a busca hedonista pelo que é imediato, transitório e aparente, a arte precisa exercer o seu papel social, ou seja, mostrar ao homem que sua liberdade tem o peso de suas decisões; única forma de abrir outras possibilidades. Contudo, para que isso aconteça, é preciso treinar a sensibilidade do olhar, de modo que a imagem criada com propósito artístico, possa cumprir o seu desígnio de esculpir o homem. Seguindo esse caminho a arte, enquanto narrativa da condição humana, é também um espaço possível de educação. Justamente nesse ponto, um ensino de Arte que desperte os sentidos tenciona esta questão, como veremos na sequência. O APRENDER NA PERSPECTIVA DA IMAGEM O mundo é povoado de imagens de todos os tipos e nós, deste modo, lidamos com elas desde que nascemos. De acordo com Manguel, “estamos todos refletidos de algum modo nas numerosas e distintas imagens que nos rodeiam, uma vez que elas já são parte daquilo que somos” (MANGUEL, 2001, p. 20). Seja imagens feitas pela mão humana ou pela natureza, criadas por nós ou que adotamos como nossa, imagens físicas ou mentais, elas nos povoam e fazem de nós o que realmente somos, pois segundo o mesmo autor, “somos essencialmente criaturas de imagens, de figuras” (MANGUEL, 2001, p. 21). A imagem carrega consigo múltiplos sentidos que acabam por nos provocar e para dialogar com ela é preciso ter disponibilidade interna, mas além disso, é necessário que esse contato seja enriquecido. Como diz Manguel: “misteriosamente, toda imagem supõe que eu a veja” (MANGUEL, 2001, p. 27). E se a imagem supõe que a vejamos, supõe também que deixa em nós sua marca. Esse mesmo autor nos faz refletir sobre o poder que a imagem exerce sobre nós, quando nos diz que: Essencialmente, toda imagem nada mais é do que uma pincelada de cor, um naco de pedra, um efeito de luz na retina, que dispara a ilusão da descoberta ou da recordação do mesmo modo que nada mais somos do que uma multiplicidade de espirais infinitesimais em cujas moléculas – assim nos dizem – estão contidos cada um de nossos traços e tremores. De todo modo, tais reduções não oferecem explicações nem pistas sobre o que se constela em nossa mente quando vemos uma obra de arte que, implacavelmente, parece exigir uma reação, uma tradução, um aprendizado de algum tipo – e talvez, se tivermos sorte, uma pequena epifania. (MANGUEL, 2001, p. 316)


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Poderíamos completar essa afirmação com o que disse Jorge Coli: “a obra é um emissor, ela envia sinais que nós recebemos” (COLI, 1995, p. 73). Mais uma vez poderíamos apreender nessa relação entre obra e apreciador, o trabalho escultórico em quem mantêm contato com ela. Nesse sentido, poderíamos voltar o nosso olhar para um organismo social que se presta ao serviço de educar para a arte: a escola. Mas, será que a escola tem formado leitores de imagens? Antes de continuar com nossa reflexão, talvez seja importante fazer uma provocação: Por que arte na escola? Ou ainda: será que aquilo que se tem ensinado nas aulas de Arte é realmente arte? Um dos maiores imperativos da presença do ensino de Arte nas escolas, talvez resida na necessidade de promover a leitura do mundo e das imagens presentes nele. De acordo com Barbosa, “nosso mundo cotidiano está cada vez mais sendo dominado pela imagem […] temos que alfabetizar para a leitura da imagem” (BARBOSA, 2012, p. 36). A autora propõe que seja feita uma relação entre o que está sendo visto no aqui e agora com as imagens que fazem parte do acervo cultural da humanidade. Ela acredita que ensinar a leitura das obras de arte é preparar as pessoas para o entendimento das imagens, seja ela obra de arte, ou não. O tipo de leitura que é defendida por Ana Mae na Abordagem Triangular está enraizada no ideário freireano, ou seja, reivindica uma “leitura” como análise crítica que se articula ao contexto do leitor. Bredariolli explica que esse seria o caminho para o exercício e desenvolvimento de um olhar ativo sobre o mundo e para as imagens que o constituem” (BREDARIOLLI in BARBOSA, 2012, p. 35). O aluno torna-se, nesse sentido, leitor, intérprete e autor. A leitura e a apreciação das obras de arte como prática que deva estar presente nas salas de aula, tem sido uma luta frequente dos arte-educadores nas últimas décadas, quando a pesquisadora Ana Mae Barbosa desenvolveu uma proposta pós-moderna6 para o ensino de Arte que ficou conhecido como Abordagem Triangular. Essa proposta de ensino não pode e nem deve prescindir da presença da imagem na sala de aula. Como indica Rebouças, “a presença das imagens na educação escolar e a sua leitura é tão necessária quanto qualquer outro texto verbal” (REBOUÇAS in NUNES, 2012, p. 258). E a autora segue com seu pensamento: “educar é fazer ver além das aparências em que se encontram revestidos os discursos, o que se processa por meio da compreensão das relações produtoras de significado” (REBOUÇAS in NUNES, 2012, p. 258). A leitura de uma imagem implica que o leitor esteja preparado para travar um diálogo com ela, estabelecendo assim, uma relação dialógica entre ambos. Como sugere Schlichta “o trabalho de leitura de imagens tem por objetivo levar o


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aluno a interpretar, ou seja, elucidar os significados incorporados nas formas de representação, que incluem vários tipos de objetos, inclusive artísticos” (SCHLICHTA in NUNES, p. 293). A obra de arte deve ter como fim humanizar o homem. Não se pode permitir que a arte seja vulgarizada, reduzida a ornamento ou mero prazer, uma vez que é um modo todo próprio de assimilação da realidade social e humana que permite a humanização dos sentidos. A mesma autora ainda indica que “a apreciação dos objetos artísticos não é outra coisa senão torná-los nosso verdadeiramente” (SCHLICHTA in NUNES, p. 293). É apropriarse dele, deixar que ele interfira em nós, que deixe em nós sua marca. A obra deve falar por si, deve poder dialogar com quem a observa a partir dos signos presentes nela. As imagens nos invadem, fazendo surgir um olhar reverso, em uma situação em que vemos e somos vistos por ela. A invasão sofrida por nós, por parte da imagem, é o que Charréu apresenta como tônica ao avesso: Na tônica ao avesso (“somos vistos pelas imagens!”) descentra-nos do nosso lugar tradicional de “catadores” (colecionadores) de imagens, mudando uma direcionalidade de um só sentido, homem-imagem, para uma outra que ricocheteia em nós, passando a homem-imagem-homem, nas ações de construção de significado. Ao nos ser devolvido o nosso olhar, tornamo-nos também alvos de estratégias de sedução por parte da imagem que utilizam, como suporte, a experiência visual que é intensamente pré-determinada pelo lugar que os pés de cada um pisam. (CHARRÉU in OLIVEIRA, 2015, p. 176).

A imagem nos convida a sair do marasmo, a deixar o comodismo. Nos convida a ter uma experiência estética. Ao encontro com construções simbólicas, onde é possível distinguir poeticamente os códigos e sentidos do mundo das imagens responsáveis pela força criadora do ser humano. As reflexões propostas por Larrosa fundamentam uma análise do ato de leitura de imagem como experiência, discutindo seu valor na educação, para ele: A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2016, p. 25).

Diante do exposto, poderíamos dizer que uma educação para a imagem deve permitir um tempo para que esse encontro se efetive, que seja capaz de nos levar a ter uma verdadeira experiência com a imagem. Uma experiência que nos liberta de verdades enraizadas em nós, a ponto de deixarmos de ser o que vínhamos sendo em direção a outra coisa. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta de refletir sobre o poder escultórico que a imagem exerce sobre nós a partir


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de uma relação dialógica entre o observador e a imagem, trouxe à superfície a compreensão de diferentes padrões de conhecimento da necessidade de se valorizar a presença das imagens nos processos educativos. A imagem surge como matéria-prima na relação de conhecimento em tempos remotos, e se estabelece hoje como um modo de alterar as percepções do sujeito cognoscente, servindo como fundamento para novas relações do saber, lugar para a criação intuitiva. A imagem atua e intervém de forma direta nas relações de conhecimento, torna-se geradora de signos na formação de ideias para o conhecimento humano. Assim, a imagem está no alicerce da construção do saber. Podemos concluir que, hoje mais que nunca, se faz necessário um ensino de Arte que permita uma educação para a imagem. Na escola ainda pouco é feito no sentido de incorporar práticas pedagógicas derivadas do uso de imagem na sala de aula. É urgente encontrar maneiras de inserir a imagem no ensino, integrando a escola novos jeitos de promover o saber, onde a imagem se apresenta como forma, conteúdo e objeto indutor de conhecimento, como linguagem e constructo social-humano para o qual o aluno deve ser alfabetizado. Cabe à escola estar aberta para a presença da imagem no seu interior, encontrando ou criando formas didáticas de aproximação, leitura e aprendizagem . Pode ser que estejamos atravessando um limiar histórico de uma nova sensibilidade na relação com as imagens, análoga àquela que o homem passou de contemplador das imagens da natureza para ser, ele mesmo, criador de formas, ou na passagem da oralidade para a escrita. Outrossim, pode ser, sim que já tenha atravessado esse limiar sem que tenha se dado conta disso. Um fato é certo, estar diante de uma imagem é como estar diante de um espelho que nos diz, como Sócrates: “conhece-te a ti mesmo”. REFERÊNCIAS ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. MARTINS, Maria Helena Pires. Temas da filosofia. São Paulo: Moderna, 1998. ARISTÓTELES. Da alma. São Paulo: EDIPRO, 2011. BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 2012. __________. Ensino da Arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2014. __________; CUNHA, Fernanda Pereira (Org.). Abordagem Triangular no ensino das artes e cultura visual. São Paulo: Cortez, 2010. BREDARIOLLI, Rita. Choque e formação: sobre a origem de uma proposta para o Ensino de Arte. In: BARBO, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira da Cunha (Orgs.). A Abordagem Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais. São Paulo: Cortez, 2010.


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CHARRÉU, Leonardo. Sobre a necessidade permanente de (re)definir um campo de estudo quando nos referimos à cultura visual sob uma perspectiva pedagógica. In: OLIVEIRA, Marilda Oliveira de. (org) Arte educação e cultura. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2015. COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo, Brasiliense, 1995. FEIST, Hildegard. Pequena viagem pelo mundo da arte. São Paulo: Moderna, 2003 FORTES, Hugo. Problematizações acerca da imagem enquanto conhecimento da natureza. Prometeica: Revista de Filosofía y Ciencias, Mar Del Plata, n. 17, p. 7-15, 2018. Disponível em: < https://doi.org/10.24316/prometeica.v0i17.225 > DOI: 10.24316/prometeica.v0i17.225. Acesso em 12/11/2019. LARROSA: Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. MARTINS, Andrei Venturini. Do reino nefasto do amor-próprio: a origem do mal em Blaise Pascal. São Paulo: Filocalia, 2017. __________. Albert Camus: o pensador do absurdo. In: SILVA, Nilo César Batista da. MARTINS, Andrei Venturini. (Orgs). O que é o homem? Ensaios de antropologia filosófica. Curitiba: CRV, 2018. MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa; GUERRA, Maria Terezinha Telles. Didática do ensino da arte: poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998. MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. PLATÃO. A república. São Paulo: Martins Fontes, 2006. REBOUÇAS, Moema Lúcia Martins. Leitura de textos visuais na escola. In: NUNES, Ana Luiza Ruschel. (Org). Artes Visuais, Leitura de imagens e escola. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2012. SCHLICHTA, Consuelo Alcioni Borba Duarte. Ensino da arte e leitura da imagem: reflexões sobre o como fazer. In: NUNES, Ana Luiza Ruschel. (Org). Artes Visuais, Leitura de imagens e escola. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2012. TEIXEIRA, Evilázio. A educação do homem segundo Platão. São Paulo: Paulus, 1999. WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

NOTAS DE FIM 1.

Givandelson de Oliveira Aquino, mestrando em Educação pela UNITAU, possui especialização em Arte e Educação (FCE-2016); Docência do Ensino Superior (FCE-2016); Educação Musical (FCE-2017); Alfabetização e Letramento (INESP-2019); Docência da Educação Básica (IFSP2021). Graduado em Pedagogia (FECGS-2012); Educação Artística com habilitação artes cênicas (FASC-2004) e Filosofia (UniFAVENI, em curso). Tem experiência como coordenador pedagógico. Professor de Arte SEDUC/SP e da SEC de São José dos Campos - SP.

2.

Doutor em Filosofia. Professor no Instituto Federal de São Paulo.

3.

A palavra ‘arte’ grafada com letra minúscula, refere-se ao contexto geral, e quando grafada ‘Arte’ com letra maiúscula, refere-se a disciplina de Arte.

4.

Moisés. Michelangelo. Escultura em mármore, 1515. 235cm x 210cm. San Pedro in Vincoli – Roma. Caipira picando fumo. Almeida Júnior, óleo sobre tela. 202cm x 141cm. Pinacoteca do estado de São Paulo.

5.


43

6.

A pós-modernidade em arte/educação caracterizou-se pela entrada da imagem, sua decodificação e interpretações na sala de aula junto à já conquistada expressividade. BARBOSA, Ana Mae. (org) Ensino da arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2014.


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A BNCC E O ENSINO DE ARTES VISUAIS NO ENSINO MÉDIO: o que está em jogo? Samira da Costa Sten RESUMO Busca refletir, a partir da Base Nacional Comum Curricular, acerca da organização curricular no Ensino Médio, especificamente quanto ao ensino de Artes Visuais, componente disciplinar integrado à área de conhecimento I, intitulado Linguagens e suas tecnologias. Nesse sentido, com objetivo de compreender como os direitos e objetivos de aprendizagem, prescritos na BNCC, contemplam a Educação Estética de jovens e adolescentes matriculados no Ensino Médio, apresentamos sucinta reflexão sobre a urgência de uma educação críticosensível, que leve em conta a difusão da imagem na contemporaneidade e suas implicações na consolidação do imaginário social. Para tanto, em consonância com os pressupostos teóricos do filósofo Walter Benjamin (2015; 1994), concernente às alterações perceptivas e sensoriais sofridas pelo sujeito moderno e em diálogo com a fortuna crítica de Ana Mae Barbosa, apresenta-se este estudo de natureza bibliográfico-documental, com vistas a contribuir com as discussões acerca da formação inicial e continuada dos professores e professoras de Artes Visuais. Palavras-chave: Bncc; Ensino Médio; Ensino De Artes Visuais.

ABSTRACT It seeks to reflect, based on the Common National Curriculum Base, on the organization of the curriculum in High School, specifically regarding the teaching of Visual Arts, a disciplinary component integrated into the area of knowledge I, entitled Languages and their Technologies. In this sense, in order to understand how the rights and learning objectives, prescribed in the BNCC, contemplate the Aesthetic Education of young people and adolescents enrolled in High School, we present a succinct reflection on the urgency of a critical-sensitive education that takes into account the diffusion of the image in contemporaneity and its implications in the consolidation of the social imaginary. Therefore, in line with the theoretical assumptions of the philosopher Walter Benjamin (2015; 1994), concerning the perceptual and sensory changes suffered by the modern subject and in dialogue with the critical fortune of Ana Mae Barbosa, this bibliographical study is presented. documentary, with a view to contributing to discussions about the initial and continuing education of teachers of Visual Arts. Keyword: BNCC; HIGH SCHOOL; ART Teaching

INTRODUÇÃO Com intuito de produzir reflexões acerca do espaço destinado ao ensino de Arte no Ensino Médio, buscamos interlocução com a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), com vistas a compreender como esse documento garante o direito

prescrito na

Constituição Federal de 1988, em seu artigo 206, cuja previsão é que o ensino seja ministrado com base em princípios, do quais destacamos o inciso II, que alude a “[...] liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (BRASIL, 1988, [s.p.]). Ocupamo-nos, ainda, nesse texto, em conformidade à Resolução, nº4, de 17 de dezembro de 2018, que trata das prescrições quanto à organização curricular do Ensino Médio, apresentar apontamentos iniciais de como essa organização curricular, concernente ao ensino de Artes Visuais, visa garantir na BNCC, não o princípio constitucional que prediz a liberdade de aprender e ensinar arte, mas um estreitamento deste campo de conhecimento das humanidades, orquestrado por uma lógica neoliberal, que prediz uma racionalidade empresarial e da concorrência entre os sujeitos (DARDOT; LAVAL, 2016).


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Ressaltamos que não está fora de nosso horizonte de análise, a nova estrutura curricular do Ensino Médio que prescinde de disciplinas, organizado agora em áreas de conhecimento (BRASIL, 2018). Contudo, nossa análise será feita com base na concepção de que o conceito de linguagem não se reduz quando o estudamos em suas especificidades e campos de conhecimento, tal como aqui se pretende tratar especificamente o campo do ensino das Artes Visuais. De acordo com a lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2020), a Base Nacional Comum Curricular incluirá a obrigatoriedade de estudos e práticas de arte, além de educação física, sociologia e filosofia. Nota-se, de partida, uma lacuna nesta previsão, pois não se especifica o estudo destes campos de conhecimento nos três anos do Ensino Médio, tal qual, “[...] o componente Língua Portuguesa – tal como Matemática – deve ser oferecido nos três anos do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017)” (BRASIL, 2018, p. 487). Diante dessa omissão da BNCC, escolas particulares e públicas vêm optando por ofertar Arte em apenas um ano do Ensino Médio, prioritariamente, o 1º ano do Ensino Médio. Neste sentido, identificamos o primeiro estreitamento do ensino das Artes no Ensino Médio. Tal armadilha legislativa merece atenção, pois subtrair de sujeitos em formação um campo de conhecimento ligado às funções psicológicas superiores de criação e de imaginação não é só um prejuízo individual, mas a constituição de um fosso social, pois A concretização do ato de criar, responsável por todo o desenvolvimento tanto das ciências quanto das artes, depende de um complexo processo de experiências vividas, sentidas e percebidas que são captadas a partir das impressões com o mundo externo (VIGOTSKI apud RAMALHETE; STEN, 2021, p. 162).

Cumpre ressaltar ainda, que se estabeleceu na Base Nacional Comum Curricular não mais a organização do Ensino Médio em componentes curriculares, cuja

justificativa,

prevista na BNCC, é a exigência de se repensar a organização curricular, já que o Ensino Médio “[...] apresenta excesso de componentes curriculares e abordagens pedagógicas distantes das culturas juvenis do mundo do trabalho e das dinâmicas e questões sociais contemporâneas” (BRASIL, 2018, p. 466-467). Essa tendenciosa afirmação revela desapreço pelo trabalho pedagógico desenvolvido, nas últimas

décadas, por

professores e professoras. Assim, o que se nota é uma clara tentativa de se esvaziar os campos de conhecimento outrora organizados em componentes curriculares. À vista disso, pretendese aqui problematizar o que está em jogo na Base Nacional Comum Curricular para o ensino de Arte. Para tanto, além da introdução, apresenta-se

reflexão sobre aspectos da Base

Nacional Comum Curricular e o Ensino de Artes Visuais no Ensino Médio. Em seguida, discute-se a juventude e a educação dos sentidos, por fim, apresentam-se as considerações finais, em que afirmamos que o que está em jogo na BNCC é uma orquestrada política de estreitamento das Artes Visuais,

bem como de outros campos de conhecimento das


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humanidades, campos imprescindíveis à tomada de consciência e a participação ativa na vida social. A BNCC E O ENSINO DE ARTES VISUAIS NO ENSINO MÉDIO: UMA POLÍTICA DE ESTREITAMENTO DE UM CAMPO DE CONHECIMENTO Conforme artigo 35-A e 36 da LDB (BRASIL, 2020), a Base Nacional Comum Curricular definirá direitos e objetivos de aprendizagem para os alunos do Ensino Médio. Quanto ao currículo, a legislação define que será composto pela BNCC e por itinerários formativos, organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, os quais devem considerar o contexto local e a possibilidade do sistema de ensino (BRASIL, 2018). Isso posto, interessa-nos mais detidamente a área de Linguagens e suas tecnologias, bem como o artigo 4º, inciso III, da Resolução CNE/CP nº 4/2018, que trata das competências gerais, expressão dos direitos e objetivos de aprendizagem que prevê “valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural” (BRASIL, 2018, [s.p.]). Para melhor elucidação, apresentamos as três competências específicas à área de conhecimento I, intitulada Linguagens e suas tecnologias, que mais se aproximam dos objetivos didático-teóricos e metodológicos do ensino de Artes Visuais: a) Compreender o funcionamento das diferentes linguagens e práticas culturais (artísticas, culturais e verbais) e mobilizar esses conhecimentos na recepção e produção de discursos nos diferentes campos de atuação social e nas diversas mídias para ampliar as formas de participação social, o entendimento e as possibilidades de explicação e interpretação crítica da realidade e para continuar aprendendo. c) Utilizar diferentes linguagens (artísticas, culturais e verbais) para exercer com autonomia e colaboração, protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva, de forma crítica, ética e solidária defendendo pontos de vista que respeitem o outro e promovam os Direitos Humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável, em âmbito local, regional, nacional e global. f) Apreciar esteticamente as mais diversas produções artísticas e culturais, considerando suas características locais, regionais, nacionais e globais, e mobilizar seus conhecimentos sobre as linguagens artísticas para dar significado e (re)construir produções autorais individuais e coletivas, exercendo protagonismo de maneira crítica e criativa, com respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas (BRASIL, 2018, 490).

Vale destacar que nessa área de conhecimento estão prescritas sete competências. No entanto, nossa análise bibliográfica-documental prevê apenas as competências que fazem alusão semântica e conceitual ao campo das Artes Visuais. Esclarecemos que o ensino de Artes, prescrito na BNCC para o Ensino Fundamental, apresenta outras competências e direitos de aprendizagem, sobretudo, nas dimensões que tratam do conhecimento das Artes Visuais, do Teatro, da Dança e da Música. Entretanto, não se pretende apresentar um estudo


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comparativo de competências, objetivos de aprendizagem e dimensões entre os níveis fundamental e médio. Dito isso, o Ensino Médio é a etapa final da Educação Básica, constitui-se de um público predominantemente de adolescente e de jovens, cujos interesses e expectativas sociais apontam para a não homogeneidade desse público e, portanto, demanda, no ensino formal, que as múltiplas dimensões humanas sejam plenamente desenvolvidas e ampliadas nos mais variados campos de saber. Nesse sentido, o campo das Artes Visuais surge como lócus privilegiado de promoção de uma educação dos sentidos deste público, posto que nestes tempos de

constantes

mudanças sensoriais e perceptivas, esses jovens e adolescentes, não sofram da “[...] síndrome das „roupas do imperador‟” (DONDIS, 2015), ou seja, transformados em sujeitos passivos e, por isso, incapazes de intervir no mundo e, portanto, de produzirem alternativas de superação aos desequilíbrios sociais, pois A arte como linguagem aguçadora dos sentidos transmite significados que não podem ser transmitidos por meio de nenhum outro tipo de linguagem, tal como a discursiva ou a científica. Dentre as artes, as visuais, tendo a imagem como matéria prima, torna possível a visualização de quem somos, de onde estamos e de como sentimos (BARBOSA, 2010, p. 99).

À vista disso, nossa preocupação, quanto às competências apresentadas na BNCC para a área de Linguagem e suas tecnologias, aqui listadas, é não deixar claro, ao professor que desenvolverá diálogos didáticos-metodológicos com a BNCC, como promover, entre os educandos, essa capacidade de participação na vida social por meio do desenvolvimento da acuidade visual, a qual compreendemos como parte constituinte

de uma educação dos

sentidos. A questão que se coloca é como se organizará um trabalho educativo intencional, cujo objetivo seja o desenvolvimento da capacidade crítico-reflexiva do estudante, a fim de que se potencialize a recepção crítica das imagens bidimensionais, tridimensionais, fixas e não fixas, em todas as suas representações sociais (cinema, pintura, publicidade, fotografia, entre outros), já que refletir sobre como as imagens condicionam o imaginário social e como elas interferem diretamente na formação do gosto e preferências destes jovens, com implicações na construção da sua subjetividade, é um imperativo na contemporaneidade. Nesse sentido, elucida Dondis, Que vantagens traz para os que não são artistas o desenvolvimento de sua acuidade visual e de seu potencial de expressão? O primeiro e fundamental benefício está no desenvolvimento de critérios que ultrapassem a resposta natural e os gostos e preferências pessoais e condicionadas. Só os visualmente sofisticados podem elevar-se acimas dos modismos e fazer seus próprios juízos de valor sobre o que consideram apropriado e esteticamente agradável (DONDIS, 2015, p. 231).

As Artes Visuais, em contexto de educação formal, devem ser compreendidas como um campo de conhecimento expandido e em expansão, que dialoga e se interconecta com outros campos de conhecimento (BARBOSA, 2010). Portanto, não deve ser ensinada,


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exclusivamente, no âmbito da fruição, da contemplação vazia ou de uma produção manual, com vistas ao desenvolvimento de habilidades para execução de técnicas que respondem a uma lista de competências como encontramos na BNCC. Muito longe disso está o trabalho educativo na interface com o campo das Artes Visuais. Notavelmente, o ensino de Artes Visuais não prescinde da tomada de consciência, da ação responsiva e reflexiva que tem em seu horizonte a crítica das contradições sociais. Dessa maneira, é incongruente pensar um ensino de Artes Visuais que não contrarie a adaptação passiva do organismo ao meio (VIGOTSKI, 2010). Nessa perspectiva, confirmamos a concepção de sujeito histórico, que consome e produz cultura em suas relações cotidianas, em espaços-tempos dinâmicos, os quais recebem influências sociais, políticas, éticas e estéticas, cabendo à educação formal questionar e compreender como se formam os condicionantes sociais. Ressaltamos a prerrogativa da escola de lócus privilegiado de difusão tanto de manifestações culturais quanto do conhecimento desenvolvido pela humanidade, como herança dos homens aos homens, portanto, espaço da práxis. No entanto, na contramão disso, o que se nota, é que o discurso acolhido pela BNCC não é exatamente o de modificar as condições de exploração social, mas, com certo tom fatalista, o documento prescreve a complexidade do mundo e das relações sociais como incertas, restando apenas à adaptação dos indivíduos. Nesse cenário cada vez mais complexo, dinâmico e fluido, as incertezas relativas às mudanças no mundo do trabalho e nas relações sociais como um todo representam um grande desafio para a formulação de políticas e propostas de organização curriculares para a Educação Básica, em geral, e para o Ensino Médio, em particular (BRASIL, 2018, p. 464).

Certamente, vários são os caminhos possíveis à superação de todas as desigualdades e complexidades que acometem a humanidade. Nesse sentido, nossa aposta é pela educação, a qual entendemos como processos formativos amplos que se desenvolvem nos mais variados espaços-tempos de circulação dos sujeitos. A educação formal é essencial à transformação da ordem vigente de exploração, tratada na BNCC por meio dos eufemismos: “complexo, dinâmico e fluído”. Contra essa naturalização de uma sociedade complexa e, portanto, impossível de ser modificada, em que resta aos indivíduos somente sua adaptação passiva, a educação formal emerge como base para o desenvolvimento e consolidação da cidadania. Posto isso, a arte surge como um campo de conhecimento e nas palavras de Barbosa (2012), Arte não é um “babado cultural” ou algo que se possa dispensar ou

abrir mão a cada nova reforma

educacional. Não se prescinde da Arte, sobretudo, em espaços de educação formal, onde, precipuamente, desenvolvem-se as capacidades superiores de criação, imaginação, fantasia,


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memória, percepção entre outras, fundamentais ao desenvolvimento pleno do indivíduo (VIGOTSKI, 2009). Por isso, recebemos com desconfiança esse estreitamento do ensino das Artes Visuais na BNCC, pois essa integração do campo das linguagens não nos parece o melhor caminho para mitigar as incertezas de um fluido e complexo mundo. Sintomaticamente, nunca foi tão urgente ampliar os campos de saber, a fim de lutarmos contra as políticas neoliberais que asfixiam os direitos sociais. Portanto, retroceder à polivalência e estreitar campos de conhecimento com estatuto epistemológico como Artes Visuais, Teatro, Dança e Música, reduzindo-os em unidades de ensino é o que está em jogo neste momento. Portanto, é imprescindível consolidar, entre os professores e professoras, um ensino de Artes Visuais, disparador de perguntas, de respostas e de novos afetos que ajudem na busca por soluções às complexidades do mundo, que encaminhem à superação dos obstáculos e que invalidam práticas assépticas de ensino, que desconsideram as possibilidades de intervenção da Arte na realidade concreta do aluno. Para tanto, concepções teórico-metodológicas claras, que tratam das especificidades da educação visual à juventude é urgente, em uma sociedade, que cada dia mais circula e faz circular imagens. À vista disso, debruçar-se sobre a BNCC, de modo dialógico e dialético, com vistas a identificar lacunas e possíveis silêncios é nossa tarefa como professores desse campo de conhecimento. O campo das Artes Visuais, consensualmente, é hoje entendido como um campo de linguagens significativas, multi-trans-interculturais, simbólicas, digitais e

inclusivas

(BARBOSA, 2008; 2012; 2014). Portanto, é indispensável que o ensino de

Artes seja

orientado, sobretudo, para a educação visual, de modo que não incorramos

em uma

sociedade que, tão-somente, padeça de um automatismo social que controla de

forma

arbitrária o que vemos e os sentidos do que vemos. Sintomaticamente, é isso que está em jogo nestes tempos trevosos de

aprofundamento de políticas neoliberais responsáveis pelo

estreitamento de direitos sociais como a educação pública. A JUVENTUDE E A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS O filósofo alemão Walter Benjamin (2015), em sua análise sobre a modernidade, à luz da obra do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), analisou as mudanças sensíveis e perceptivas vividas pelos indivíduos, sobretudo, a partir do início do século XX. Suas concepções filosóficas erigiram-se pela constatação de que com o desenvolvimento da técnica não só novas formas de relações sociais se seguiram como se alterou a capacidade perceptiva desses sujeitos da modernidade. Benjamin (2015) alude à barbárie advinda da técnica, os modos mercantis de


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conceber a vida e registra, especificamente, que “As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades se caracterizam por um evidente predomínio da atividade do olhar sobre a do ouvido” (BENJAMIN, 2015, p.40, grifo nosso). Esse predomínio da atividade do olhar se intensificou no século XXI, pois na contemporaneidade a imagem se tornou o veículo mais rápido e eficiente não só de perpetuar o sistema social vigente, cujas relações sociais excludentes, garantem privilégios a poucos e a dominação social, por meio de novos modos de ver o mundo, na maioria das vezes vistas pelas lentes impositivas de práticas de consumo de mercadorias. Entretanto, na contramão disso, a educação formal deve assumir a dianteira, com a prática de uma educação humanizadora a contrapelo dessas lógicas de instrumentalização dos conteúdos e de dominação das subjetividades da juventude, público que ainda está em processo de consolidação sócio-psicológico. Desse modo, vislumbradas as condições excludentes de produção da vida no sistema capitalista, intentamos um ensino de Artes Visuais que contribua não com a massificação e homogeneização do pensamento, mas com a promoção de uma educação dos sentidos que permita a formação plena e integral de sujeitos sensíveis, que partilhem experiências comunicáveis e que possam apontar novas e outras formas de produção da existência (BENJAMIN, 1994). Se na BNCC o eixo principal para o Ensino Médio é o Projeto de Vida, cabendo à escola organizar suas práticas a partir desta dimensão da vida do estudante,

resta-nos

observar que um currículo ampliado que permita maior integração dos jovens com as artes, com a filosofia, com a sociologia e com o corpo por meio da educação física é a melhor alternativa para intensificar dimensões vitais ao desenvolvimento

humano, tais como

autonomia, protagonismo e autoria bem defendidos na BNCC, pois No Ensino Médio, o foco da área de Linguagens e suas Tecnologias está na ampliação da autonomia, do protagonismo e da autoria nas práticas de diferentes linguagens; na identificação e na crítica aos diferentes usos das linguagens, explicitando seu poder no estabelecimento de relações; na apreciação e na participação em diversas manifestações artísticas e culturais; e no uso criativo das diversas mídias (BRASIL, 2018, p. 473).

Pensar a dimensão da autonomia, estreitamente ligada às promessas iluministas de liberdades, igualdade e fraternidade, é certamente voltar à era das utopias e relembrar possibilidades de mudança na estrutura social, afinal era isso que estava em jogo no Iluminismo. Todavia, foi Benjamin (1994), no século XX, que observou um declínio da experiência, um enfraquecimento de experiências autênticas e vislumbrou um acúmulo de catástrofes advindas de uma história que se repete ad infinitum. Lamentavelmente, os traços discursivos deixados no texto da BNCC apontam para uma aproximação não da autonomia do sujeito, mas da sua adaptação ao vigente e, em consequência, da perda da experiência, pois o que se encontra é uma prescrição à resiliência


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e à flexibilidade identificada nas competências gerais para a Educação Básica, em que o estudante deve “Agir pessoal e coletivamente com autonomia,

responsabilidade,

flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários” (BRASIL, 2018, p. 12, grifo nosso). Notavelmente, é incongruente manter no mesmo campo semântico a ideia de autonomia e resiliência, pois o sujeito livre e autônomo que decide sua história e que luta para que o contínuo da história seja rompido, tal qual alude Benjamin (1994), não deve de modo algum se adaptar (lê-se flexível) às incertezas do mundo, tampouco deve

ser

submetido a todo tipo de exploração e suportar passivamente voltando à forma “original” como se prever na BNCC (BRASIL, 2018). Então, o que está em jogo? Ao que nos parece, estamos diante de uma orquestrada política neoliberal, que na aparência até pode se apresentar como moderna e inovadora para os jovens, mas basta um lance de dados dialético e vemos revelar, na essência, as peças contraditórias de um jogo perverso contra a plena formação cidadã, crítica e reflexiva dos estudantes do Ensino Médio. Ao lado dessas reflexões é que inserimos a importância de uma formação crítica e política do professor de Artes Visuais para que possa enfim como sujeito autônomo e livre questionar esses documentos que, à primeira vista, podem parecer caminhos mais amplos e abertos, mas se olhados pela lente da crítica, o que se vê são caminhos bem estreitos. PALAVRAS FINAIS Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas. Vladimir Maiakóvski

Ao pensarmos em como as pesquisas nos revelam o constante e ininterrupto estado de ameaça e de sítio imposto ao ensino de Artes Visuais na história da educação brasileira (BARBOSA, 2015), inevitavelmente, somos levados a pensar essa história com certa melancolia e obrigados a nos manter em estado de alerta para não recair em desânimo e em fatalismos imobilizadores. Mas, como o “mar da história é agitado”, somos também levados à lembrança de todas as conquistas deste campo de conhecimento. A relembrar, como fruto de muitas lutas,


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que a legislação educacional brasileira, apresenta a Arte como princípio em nossa república, como prática, como campo de estudo, como cultura, como expressão popular e regional, como componente curricular e como linguagem (BRASIL, 1888). Reconhecemos os ataques da recente tentativa de reforma do Ensino Médio, no ano de 2017, imposta pelo governo de Michel Temer e que foi, graças à organização rápida e eficiente de um coletivo de professores, alunos, associações e outros segmentos

da

sociedade, que o ensino de Artes permaneceu como componente curricular obrigatório na Educação Básica. Infelizmente, não há descanso nesta luta renhida, pois não é interesse dessa nova racionalidade empresarial de “pejotização” dos indivíduos a concorrência com uma educação crítica, sensível, portanto, humanizadora. Notadamente, como front, contra essa ordem social estranguladora do sensível, está o trabalho docente, articulado a ações planejadas e indissociáveis da prática social, que mantém em curso mudanças e transformações sociais. Nesse sentido, buscamos questionar essa política de estreitamento contra as Artes Visuais imposta na BNCC (BRASIL, 20218). Apresentar vias teórico metodológicas do ensino de Artes Visuais que aliada ao trabalho educativo intencional com imagens no Ensino Médio promova fraturas em um sistema de totalidades que concorre contra a humanidade. Destacamos que na contemporaneidade a educação do olhar e dos sentidos, com o pleno desenvolvimento da acuidade visual, permite ao aluno construir sua autonomia e cidadania. Todavia, estamos cônscios dos obstáculos que se interpõem cotidianamente contra os professores(as) de Artes Visuais. Obstáculos que, por vezes, nos impedem de acreditar que é possível alterar as condições de precarização do trabalho docente. No entanto, afirmamos que, apesar dos revezes, estamos certos de que o mar da história continua agitado, conforme nos alude o poema supracitado, o que nos sugere que é possível acreditar e lutar, por vias democráticas, pela qualidade da

formação inicial e

continuada dos professores e professoras de Artes Visuais, já que

confiamos que o

investimento em educação é a quilha que corta ondas agitadas de desânimo que se levantam contra o professor todos os dias. Por fim, este texto foi redigido durante uma grave crise sanitária mundial, especialmente, para o Brasil que experimenta recrudescimento da extrema direita, ataques constantes à ciência e uma onda de negacionismo que encontra força em fakenews disparadas a todo o momento em redes sociais e mídias digitais. Sentimos, na pele, a política de austeridade que confirma a presença do neoliberalismo nas ações

governamentais,

dilapidando os direitos sociais. Reconhecidamente, este é um tempo que exige enfrentamento e não resiliência ou flexibilidade.


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Cabe uma última reflexão, o que seria do povo brasileiro sem sua indignação, sem os gritos contra a política de morte ou se não pressionar o governo federal por vacinas para enfrentamento à Covid-19, toda essa luta nos dá conta de que não estamos alegres como disse o poeta, mas porque deveríamos entristecer, cabe a nós tomar a história nas mãos e resistir com e pela arte. REFERÊNCIAS BARBOSA, Ana Mae; AMARAL, Lilian (Orgs.) Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: Senac, 2008. ______. Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. 3. Ed. São Paulo: Cortez, 2010 ______. Inquietações e mudanças no ensino da Arte. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2012. ______. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 2014. ______. Redesenhando o desenho: educadores, políticas e história. São Paulo: Cortez, 2015. BRASIL, Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília: Ministério da Educação, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase. Acesso em: 26 nov. 2019. BRASIL, Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 nov. 2019. BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Ministério da Educação, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 15 jun. 2020. BRASIL. Resolução nº4, de 17 de dezembro de 2018. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia//asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/55640296. Acesso em: 08 dez. de 2019. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7º ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. DONDIS, Donis. A sintaxe da linguagem visual. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. 3º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015. ______. Escritos sobre mito e linguagem. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2013. MAIAKÓVSKI, Vladimir. Antologia poética. 6. ed. Tradução de Emilio C. Guerra. São Paulo: Max Limonad, 1987. RAMALHETE, Mariana Passos. STEN, Samira da Costa. Que fim levaram todas as cores? As imagens que uma política pública conta para nós. Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, v. 30, n. 62, p. 152-166, 30 jun. 2021.


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VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Martins Fontes, 2009. ______. Psicologia Pedagógica. Tradução: Paulo Bezerra. 3º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

NOTAS DE FIM 1.

Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Faced/UFBA). Leciona as disciplinas de Estágio Supervisionado em Artes Visuais e Metodologia do Ensino das Artes Visuais.


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A PRESENÇA FEMININA EM EXPOSIÇÃO: um olhar sobre instituições museais do sudeste brasileiro entre 2015 e 2019. Ananda Carvalho Larissa Megre Wanderley Cordeiro

RESUMO Este artigo propõe uma reflexão acerca dos procedimentos curatoriais e expositivos que vêm ocorrendo nos últimos anos em espaços museais com o intuito de dar a ver obras e artistas que anteriormente não eram incluídos. Para discutir esse contexto, estabelece diálogos com Renata Felinto, Andrea Fraser, Cecilia FajardoHill, Maura Reilly, Julia Halperin e Charlotte Burns, entre outras autoras. Na sequência, apresenta dados quantitativos sobre a presença feminina em exposições realizadas entre 2015 e 2019 em três instituições brasileiras: a Pinacoteca de São Paulo, o Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte - MG) e a Casa Porto das Artes Plásticas (Vitória - ES). O objetivo da discussão é analisar objetivamente exemplos pontuais a fim de obter uma visão mais clara do circuito da arte, espaço onde mudanças radicais são necessárias, mas nem sempre executadas com o mesmo ímpeto que são debatidas. Palavras-chave: Exposição; Artistas Mulheres; Curadoria; Procedimentos Decoloniais; Dados quantitativos.

ABSTRACT This article proposes a reflection upon curatorial and exhibiting procedures that have been occurring in the last few years in museums with the intent of giving visibility to works of art and artists that previously weren’t included. To discuss this matter, the present essay sets dialogues with Renata Felinto, Andrea Fraser, Cecilia Fajardo-Hill, Maura Reilly, Julia Halperin and Charlotte Burns, among other authors. In the following, it presents quantitative data on the female presence in exhibitions held between 2015 and 2019 in three brazilian institutions: the Pinacoteca de São Paulo, the Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte - MG) and the Casa Porto das Artes Plásticas (Vitória - ES). The goal of the discussion is to objectively analyse punctual examples in order to obtain a clearer vision of the art world, where radical changes are necessary, but not always executed with the same impetus as they are debated. Keywords: Exhibition; Women Artists; Curatorship; Decolonial Procedures; Quantitative data.

INTRODUÇÃO A partir de um giro decolonial em ascensão, com origens em trabalhos de acadêmicos e pensadores do “Sul Global” (MUÑIZ-REED, 2019, p. 5), o mundo da arte tem levantado debates acerca de suas limitações e raízes colonialistas. Seja nos livros, academias ou museus, pautas ativistas demandam espaços historicamente negados a grupos discriminados e rechaçados pela História da Arte “oficial”. Essas reivindicações são refletidas, por exemplo, nas instituições expositivas que mostram propostas curatoriais de objetivos pontuais para com a disparidade de gênero presente nos seus acervos e na bibliografia de arte mainstream. Como exemplos, é possível citar Histórias das mulheres, histórias feministas (MASP, 2019), Mulheres na Coleção MAR (Museu de Arte do Rio, 2018) e Mulheres Radicais: arte latinoamericana 1960-1985 (Pinacoteca de São Paulo, 2018). Essas mostras partem de um local de ausência na História da Arte, no qual não se encontra mulheres, salvo raras exceções. O projeto A História da _rte apresenta dados quantitativos e qualitativos sobre todos


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os artistas citados em 11 livros [como A História da Arte de Gombrich e Arte Moderna de Argan] frequentemente utilizados em cursos de graduação de Artes Visuais no Brasil. De acordo, com o projeto, dos 2.442 artistas citados, apenas 215 são mulheres e entre elas figura apenas uma brasileira, Tarsila do Amaral [AMARAL et. al., 2017]. (CARVALHO e CORDEIRO, 2020).

A desigualdade apresentada atravessa os espaços artísticos e se enraíza, inclusive, na figura do museu, temática abordada no trabalho As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? (2017) (Figura 1) do Guerrilla Girls. Após uma análise quantitativa das obras do Museu de Arte de São Paulo, o coletivo feminista de artistas constata que, enquanto 60% dos nus são protagonizados por mulheres, apenas 6% das obras em exibição são de autoria feminina (GUERRILLA, 2017). Figura 1: GUERRILLA Girls. As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? Português, 2017. 1 pôster. Reprodução de trabalho de arte.

Fonte: disponível em <https://www.sp-arte.com/noticias/as-guerrilla-girls-chegaram-exposicao-no-masp-fazretrospectiva-do-coletivo-feminista/>. Acesso em 23 mai. 2020.

Portanto, frente a um contexto de tamanhas disparidades, propostas de recuperação de histórias sistematicamente apagadas e de renovação de acervos se fazem essenciais. Para as mostras de Histórias das mulheres, histórias feministas (MASP, 2019), foram adquiridas 296 obras de artistas mulheres (VOGUE, 2020). Esses novos acréscimos ao acervo do MASP são descritos pela curadora Isabella Rjeille como “um passo histórico para o museu rumo a uma representação menos desigual na História da Arte em nosso acervo, conhecido principalmente pelas presenças brancas, masculinas e de origem europeia" (VOGUE, 2020). Outra prática de suma importância é a pesquisa histórica, que traz consigo o potencial de evidenciar narrativas que anteriormente não eram incluídas. Mulheres Radicais: arte latino-americana 1960-1985 (Pinacoteca de São Paulo, 2018) foi desenvolvida após uma pesquisa de sete anos (FAJARDO-HILL, 2017), na qual as curadoras Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta realizaram um mapeamento de artistas latinas ativas durante as décadas de 1960 e 1980, muitas vezes topando com nomes inéditos aos circuitos estabelecidos da arte.


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Sobre a motivação por trás da mostra, Cecilia Fajardo-Hill (2017, tradução nossa) diz: Como historiadoras de arte, você aborda as áreas do campo de estudo que, ao seu ver, estão em falta. No momento entre 1960 e 1985 - no mundo todo, não só na América Latina - as pessoas estavam experimentando com linguagens que se tornaram o que hoje é a arte contemporânea: videoarte, fotografia, arte conceitual e instalações. Não foi diferente para artistas latinas. Mas quando você olha para os livros, as mulheres não estão lá. A história que foi contada somente lida com homens. E é uma história errada. Quando pessoas, durante nossos quatro primeiros anos de pesquisa, disseram-nos que essa exposição não era relevante e era desnecessária, isso vem de uma perspectiva patriarcal na qual eles aceitam a história que temos como o status quo. E é muito desconfortável pensar que está tudo bem com essa história, especialmente quando você é um homem. Eu não estou bem com isso. Porque eu sei que deve haver mulheres. A pergunta de Linda Nochlin foi por que não havia grandes artistas mulheres. A nossa foi: onde estão as mulheres?

História da arte e práticas de exibição caminham, de certa forma, juntas, uma vez que ambas carregam discursos e narrativas (CARVALHO e CORDEIRO, 2020). Exposições se tornaram o meio pelo qual a arte, em sua maior parte, torna-se conhecida. [...] Exposições são o local primordial de trocas na política econômica da arte, onde significação é construída, mantida e ocasionalmente desconstruída. Parte exposição, parte evento sócio-histórico, parte dispositivo de estruturação, exposições - especialmente exibições de arte contemporânea - estabelecem e administram o significado cultural da arte (GREENBERG, FERGUSON, NAIRNE, 1996, p. 2, tradução nossa).

Ou seja, o valor artístico é construído pela relação do artista com os espaços institucionalizados e também através da imprensa, publicações acadêmicas e outras formas de dar a ver. Pode-se retomar também Andrea Fraser (2014), que considera a instituição como campo social, composta por artistas, críticos, curadores, etc.. A autora afirma que “o que é anunciado e percebido como arte é sempre já institucionalizado, simplesmente porque existe dentro da percepção dos participantes no campo da arte como arte; uma percepção não necessariamente estética mas fundamentalmente social em sua determinação” (Fraser, 2008, p.186). A questão, todavia, torna-se multifacetada quando nos viramos para seus enraizamentos. [...] há um sistema que legitima (ou não) quais obras são relevantes, quais obras podem ou devem ser expostas como comercializáveis, quais biografias agregam valor às obras, etc. Nesse “etc.” incluímos o poder de exibição dessas obras e as escritas que serão produzidas a partir delas. Quais artistas e consequentemente quais obras permanecem para a posteridade e representam parte de um conjunto de valores de um período histórico (SANTOS, 2019, p. 349).

Como trabalhar exposições inclusivas e/ou ativistas a partir de acervos desiguais e compostos por obras produzidas majoritariamente por artistas brancos e homens? Como compor um acervo mais igualitário quando a história apaga e abafa tantos nomes e corpos de obras, a ponto destes não chegarem a reconhecimento público? Renata Felinto, artista visual, pesquisadora e educadora que atua há 20 anos na área afirma que: O exercício de reflexão sobre esse pensar, fazer, escrever para além dos limites do que está impresso num livro, à venda numa galeria, exposto num museu é também o


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de identificar as falhas de uma sociedade na qual são poucas as pessoas que detinham e detêm o poder de protagonizar a história, pessoas que compunham e compõem segmentos que sequer eram coadjuvantes e sim figuração (SANTOS, 2019, p. 346).

É através dessa busca por “identificar”, apontada por Felinto, que curadores e historiadores arquitetam novas abordagens de trabalho e pesquisa para conseguirem transitar entre os dois campos e seus respectivos problemas e limitações. Apesar de um emergente interesse institucional de inclusão rondar as discussões do campo das artes, é necessária a produção de pesquisas quantitativas a fim de compreender os procedimentos

dos

espaços

expositivos.

Em

levantamento

de

dados

acerca

da

representatividade feminina em instituições estadunidenses, as autoras Julia Halperin e Charlotte Burns declaram: [...] poucos avanços foram feitos - mesmo que museus sinalizem publicamente que estão aceitando histórias alternativas e trabalhando para expandir o cânone. [...] Essas descobertas desafiam uma das narrativas mais convincentes a terem emergido do mundo da arte em anos recentes: a da mudança progressiva, com artistas, uma vez marginalizados, ganhando representação mais igualitária dentro das instituições de arte. Nossa pesquisa mostra que, pelo menos quando se trata de igualdade de gênero, essa história é um mito (BURNS e HALPERIN, 2019, tradução nossa).

Apesar do contexto geográfico divergente, a matéria citada acima aponta discussões pertinentes sobre as disparidades nos históricos de exposições e acervos de diversas instituições norte-americanas. Entre os problemas analisados, dois se destacam. O primeiro fala a respeito da relação direta entre museus e seu público, principalmente nos sistemas de doações de obras que refletem os valores dos doadores no próprio acervo. As autoras contabilizam em doações mais que o dobro de compras realizadas pelas instituições. Ademais, a diretora do Brooklyn Museum, Anne Pastermark, explica que a predileção por obras de artistas homens, por parte dos colecionadores que fazem as doações, fica evidenciada nas coleções, sobretudo em museus de menor porte e com orçamentos mais limitados (BURNS e HALPERIN, 2019). O segundo se trata da necessidade de auto validação por parte das instituições ao realizar grandes compras e exposições de artistas célebres (BURNS e HALPERIN, 2019). Como um selo de qualidade, o museu afirma sua tradição e consolida seu espaço no circuito da arte ao realizar programações com nomes clássicos. Esses nomes, como observado no trabalho A História da _rte, anteriormente citado, quase sempre são de homens, o que revela uma aposta por parte dos espaços museais em um público específico e pouco realista, posto que esses espaços não são frequentados apenas por homens brancos. A artista Andrea Fraser diz que estatísticas refletem um maior distanciamento da missão cívica dos museus, estando alguns desses mais interessados em um


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‘marketing massificado do gosto dos mais ricos e influentes colecionadores’ do que ‘na ideia de que precisamos educar o público e não atender aos gostos estabelecidos e ao espetáculo da fama ou do gênio’ (BURNS e HALPERIN, 2019, tradução nossa).

Em suma, como diz Helen Molesworth, ex-curadora chefe do Museum of Contemporary Art de Los Angeles, “O mundo da arte simplesmente não é o bastião progressista e liberal que imagina ser” (BURNS e HALPERIN, 2019, tradução nossa). A professora Julia Rocha (2019, p. 44) também propõe essa discussão: Em diálogo direto com o recorte que se documenta como o ato de historicizar a arte produzida, os museus resultam por ser a evidência desse processo excludente de documentação da história. Os museus contam a história de quem? Quem está representado em maior escala nas coleções museais? Os mesmos sujeitos que alcançaram as páginas dos livros de história. Contudo, em paralelo às discussões sobre decolonialidade que têm sido engendradas, as instituições museológicas têm tentado reverter o percurso de invisibilidade que construíram em suas trajetórias, revendo suas coleções em doses homeopáticas.

Assim sendo, como forma de instigar esse debate em contexto nacional e regional, este artigo apresenta dados coletados acerca da representatividade feminina em três museus de arte do sudeste do Brasil, sendo eles a Pinacoteca de São Paulo, o Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte) e a Casa Porto das Artes Plásticas (Vitória) representando, respectivamente, os estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. É necessário dizer que pretendia-se levantar informações de mais instituições, entretanto, devido ao atual cenário de pandemia, não foi possível fazê-lo. Os dados aqui apresentados foram coletados em 2020, momento no qual muitas delas aderiram ao trabalho remoto, dificultando e até, certas vezes, impossibilitando o acesso a informações. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, por exemplo, declarou não conseguir fornecer as listas pedidas no contexto do trabalho remoto, enquanto o Museu de Arte do Rio não respondeu aos emails. O mapeamento da presença de artistas mulheres foi organizado por meio de pesquisa em sites de instituições públicas brasileiras e em agendas culturais publicadas na imprensa. Dados que não estavam disponibilizados publicamente na internet foram solicitados por emails para os setores responsáveis das instituições. Assim, foram requisitadas as listas de artistas presentes em mostras realizadas entre os anos de 2015 e 2019 nos espaços citados no parágrafo anterior. A partir das listas, foram feitas contagens de cada uma das exposições, a fim de somar a quantidade total de artistas mulheres participantes. Foram criadas, em seguida, tabelas anuais que, enfim, geraram tabelas onde reúnem-se dados referentes ao intervalo de cinco anos de cada um dos museus. DADOS QUANTITATIVOS SOBRE A PRESENÇA FEMININA EM EXPOSIÇÕES


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A partir das reflexões teóricas e da metodologia descritas anteriormente, apresentamos as três instituições que cederam dados para a pesquisa relatada e analisada neste artigo. A Pinacoteca de São Paulo foi escolhida não só pelo seu histórico de tradição, com fundação em 1905, mas também pelo seu acervo diversificado que contempla obras do século XIX e também contemporâneas (PINACOTECA, [201-?]). Outro fator levado em conta foi a realização de duas grandes exposições voltadas para a atuação de mulheres artistas na história, sendo elas Mulheres artistas: as pioneiras (1880-1930) (2015) e Mulheres Radicais: arte latino-americana 1960-1985 (2018). Para o estado de Minas Gerais, o Museu de Arte da Pampulha foi objeto de análise, instituição essa de destaque para Belo Horizonte, não só pela arquitetura, mas também pelo acervo voltado à arte moderna e contemporânea do país. Criado nos anos 1950, o MAP, ao longo das décadas, construiu uma coleção cujas mais de 1.300 obras, majoritariamente, são provenientes da realização de salões municipais e nacionais, além de outras doações (MUSEU, 2010). Desde o início, o museu realizou mostras e premiações focadas em reconhecer jovens artistas, como a Bolsa Pampulha criada por Adriano Pedrosa em 2003, quando foi curador do Museu. Muitos artistas em início de carreira como Cinthia Marcelle, Marilá Dardot e Paulo Nazareth ganharam projeção a partir das exposições realizadas nesta residência (SELECT, 2019). Por fim, a Casa Porto das Artes Plásticas, representando o Espírito Santo, é uma instituição museológica de direito público, criada oficialmente em 2000 e vinculada à Secretaria Municipal de Cultura de Vitória. Desde sua criação, enfoca a produção de exposições e eventos no campo da arte contemporânea. Destaca-se, na programação de sua primeira década, o Salão do Mar, mostra anual que teve 8 edições, ganhando reconhecimento nacional ao propor vínculos com o espaço urbano. A sua coleção, de 277 itens, contém obras de artistas relevantes na construção do circuito da arte de Vitória e obras de artistas de renome nacional - como Tarsila do Amaral - doadas pelo Banco Central do Brasil e pelo Instituto Itaú Cultural. Entretanto, o museu não promove mostras permanentes e suas exposições são organizadas de modo temporário, sendo elas selecionadas "por meio de editais públicos e/ou solicitações de ocupação do espaço" (CARVALHO, 2020). A coleta de dados a ser apresentada, portanto, não busca representar um contexto nacional totalizante, devido a sua limitação quanto ao sudeste, tampouco fazer generalizações sobre estados com instituições variadas, uma vez que aqui tratamos de um museu por estado. O intuito da discussão é analisar objetivamente exemplos pontuais a fim de obter uma visão mais clara do assunto. Isso se faz essencial em um cenário onde mudanças radicais são


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necessárias, mas nem sempre executadas com o mesmo ímpeto que são debatidas. Com relação a pesquisas desse gênero, a diretora da DIA Art Foundation (Nova York) Jessica Morgan diz: “Não aceite a primeira história. Ou mesmo a segunda ou terceira. (...) É somente através de pesquisas consecutivas que você entenderá o que está olhando” (BURNS e HALPERIN, 2019, tradução nossa). Sob essa perspectiva, observa-se os dados levantados a partir das informações cedidas pelo Museu de Arte da Pampulha. Entre 2015 e 2019, foram realizadas 9 exposições, sendo 7 coletivas e 2 individuais. Exposições Pampulha)

Tabela 1: Representatividade feminina no Museu de Arte da Pampulha. Artistas (total) Artistas SPorcentagem (Museu de Arte da (mulheres) em Info de mulheres

Exposições 2015

53

16

0

30,18

Exposições 2016

37

13

0

35,13

Exposições 2017

110

34

0

30,9

Exposições 2018

15

4

0

26,66

Exposições 2019

11

6

0

54,54

73

0

32,3

TOTAL: Exposições 2015 a 2019

226 Fonte: dos autores.

Na tabela 1, acima, estão reunidos os dados referentes ao Museu de Arte da Pampulha (MAP). Antes de analisar os dados, é importante fazer uma ressalva sobre uma exposição: Telas Urbanas (2015) não fez parte da contagem por se focar em intervenções urbanas através do grafite. Não se trata de excluir esta linguagem do campo da arte. Mas, justifica-se a omissão pelo fato de que a lista de artistas era majoritariamente constituída por apelidos ou codinomes, expressados em palavras abstratas, o que impossibilita a busca por informações acerca de suas identidades on-line. Como é possível perceber nas contagens realizadas, a porcentagem de artistas mulheres se mantém estável por três anos, na margem de 30% a 35%, tendo uma queda em 2018, seguida por um aumento significativo no ano de 2019. A porcentagem total relativa ao período de cinco anos resulta em 32,3% de artistas mulheres em relação ao total de artistas. Um caso similar ao do Museu de Arte da Pampulha é o da Pinacoteca de São Paulo, apresentado na tabela 2 a seguir. Tabela 2: Representatividade feminina na Pinacoteca de São Paulo. Exposições (Pinacoteca de São Paulo)

Artistas (total) Artistas (mulheres) Sem info

Porcentagem de mulheres

25, Exposições 2015

139

35

0

17


62

11, Exposições 2016

242

29

4

98 23,

Exposições 2017

131

31

1

66 72,

Exposições 2018

189

137

0

48 23,

Exposições 2019

63

TOTAL: Exposições 2015 a 2019

15

0

8 32,

764

247

5

32

Fonte: dos autores.

De 2015 a 2019, a Pinacoteca realizou 80 exposições, sendo 49 individuais e 31 coletivas. Por conta do trabalho remoto durante a realização desta fase da pesquisa, a instituição não pôde informar dados de 5 mostras, o que representa 6,25% do total realizado. Mesmo assim, pode-se afirmar que a Pinacoteca possui dados insatisfatórios de representatividade feminina por todos os anos, com exceção de 2018, quando recebeu Mulheres Radicais: arte latino-americana 1960-1985 (2018), propiciando, desta forma, um melhor resultado. Entretanto, assim como no MAP, pode-se observar que apenas um ano de destaque para representatividade de gênero não é o suficiente para “compensar” um histórico de descaso para com essa problemática. Podemos explorar essa falha da Pinacoteca ao analisar também o histórico entre 2015 e 2019 com foco para as exposições individuais, mostrado abaixo (tabela 3).

Exposições individuais (Pinacoteca de São Paulo)

Tota Indivi Porce l de duais de ntagem de exposições mulheres mulheres

Exposições 2015

8

1

12,5 0%

Exposições 2016

5

1

20%

Exposições 2017

11

3

27,2 7%

Exposições 2018

10

6

60%

5

33,3 3%

16

32,6 5%

Exposições 2019 TOTAL: Exposições individuais 2015 a 2019

15 49

Tabela 3 . Representatividade feminina nas exposições individuais da Pinacoteca de São Paulo.


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Por conseguinte, constata-se que o problema se estende às exposições individuais, cuja atuação de artistas mulheres se limita a meros 32,65% do total de artistas. Uma instituição museal que exibiu resultados satisfatórios foi a Casa Porto das Artes Plásticas, representada na tabela 4 a seguir.

Artista Exposições (Casa Porto das Artes Plásticas)

s (total)

Ar S Porce tistas em ntagem (mulheres) Info mulheres

Exposições 2015

129

60

8

46,51

Exposições 2016

5

3

0

60

Exposições 2017

92

48

0

52,17

Exposições 2018

26

14

1

53,34

Exposições 2019

11

6

0

54,54

13

TOTAL: Exposições 2013 a 2019 263 1 9 49,8 Tabela 4 . Representatividade feminina nas exposições individuais da Casa Porto. A Casa Porto realizou 20 exposições entre 2015 e 2019, sendo 14 coletivas e 6 individuais. Para esta pesquisa, concentramos em mostras de artes visuais, excluindo proposições de outras áreas (como joalheria ou design), o que representa 10% do total. Desse modo, constata-se que a Casa Porto manteve sua participação de artistas mulheres em torno dos 50%, até mesmo ultrapassando esse valor na maior parte deste período de cinco anos, resultando numa representatividade de, aproximadamente, 50%, no total. CONSIDERAÇÕES FINAIS É preciso distanciar o olhar para perceber que o circuito das artes visuais ainda tem muito trabalho a fazer para se tornar mais inclusivo, conforme ficou evidente nos dados coletados no Museu de Arte da Pampulha, na Casa Porto das Artes Plásticas e na Pinacoteca de São Paulo. Também é necessário observar, aqui, a dificuldade que as instituições encontram para documentar suas exposições e criar um registro histórico desses eventos. Esta pesquisa encontrou obstáculos ao buscar informações de forma remota, ou seja, via internet. Esse problema manifesta-se de duas formas: primeiramente, pelo contexto um tanto quanto arcaico e precário dos espaços museais brasileiros, explicitado em levantamento de dados do TIC Cultura de 2018, ao apresentar que apenas 26% dos museus do Brasil possuem site próprio (CENTRO, 2018). Ou seja, o acesso a informações básicas já se torna complexo, dificultando o estudo sobre exposições e instituições museológicas brasileiras. Parte-se para a segunda


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manifestação: mesmo quando há um site próprio, este falha em oferecer dados e informações básicas como lista de artistas e obras exibidas. Para acessá-los, é preciso entrar em contato direto com o Museu que, ainda sim, muitas vezes, não contribui ou não consegue contribuir da forma desejada. O Museu de Arte da Pampulha não possui site próprio e, portanto, os dados aqui analisados foram angariados através de um ex-funcionário da instituição com ciência da mesma (percebe-se, nesse caso, que os dados já existem, o que falta é uma plataforma apropriada para os publicar). A Pinacoteca, devido ao seu grande porte, possui um arquivo com seus registros e documentos (catálogos, dossiês de exposições, releases, etc.), mas todos disponíveis apenas de forma física, sem qualquer tipo de digitalização ou acesso remoto. Foi necessário, após o preenchimento de um termo de responsabilidade, que uma funcionária fosse presencialmente recolher as informações requisitadas. Vale ressaltar, todavia, que mesmo assim não foi possível encontrar registros de todo o período solicitado. Dessa forma, apesar dos prováveis obstáculos e limitações encontrados em pesquisas como esta, é de suma importância que saiamos das inúmeras zonas de conforto que nos circundam para adentrar as áreas cinzentas, aquelas que apresentam mais dúvidas que certezas. Para que as instituições de arte caminhem em direção a um cenário de maior equilíbrio e diversidade, é essencial que todos se comprometam com um olhar atento para com práticas e discursos, desde as equipes curatoriais, os diversos setores que compõem o espaço expositivo até os visitantes periódicos. Maura Reilly, ao apresentar alarmantes dados sobre a desigualdade entre a quantidade de obras de artistas homens e mulheres nos acervos de museus e galerias, faz um chamado: [...] se esses números não inspiram vocês a entrar em ação, então não sei o que consegue fazer isso. Como está claro, ainda há muito trabalho a ser feito no mundo da arte. O que podemos fazer a respeito? Como podemos fazer com que aqueles que estão no poder soltem as rédeas? Quais são nossas escolhas - como artistas, curadores, acadêmicos, colecionadores e assim por diante - para garantir uma representação mais justa e igualitária no mundo da arte? (REILLY, 2018, p. 438).

Trata-se do que as instituições apresentam, assim como do que elas ignoram ou excluem. Não há processo de escolha imparcial. Não há discurso neutro. Assim sendo, é fundamental que posições sejam tomadas de forma clara e explícita, neste caso, assumindo o caráter feminista da fala. Uma prática curatorial contemporânea deve, antes de tudo, questionar. Questionar não só a instituição, mas também questionar a história e a si mesma. Vê-se a curadoria adentrar a história da arte e vice-versa, em um trabalho de resgate das histórias apagadas da história oficial, a que chegou aos livros, museus e universidades. Desse modo, este artigo indaga: de que forma Educação, Curadoria e História da Arte


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podem agir como agentes de transformação deste cenário? Ressalta-se a demanda de ressignificação da vivência da mulher e das demais minorias na arte, pois é dentro dos espaços expositivos que se dá visibilidade aos trabalhos que por séculos foram marginalizados e ignorados por uma crítica pouco interessada em qualquer obra que fosse de autoria feminina (SIMIONI, 2007). REFERÊNCIAS BURNS, Charlotte; HALPERIN, Julia. Museums Claim They’re Paying More Attention to Female Artists. That’s an Illusion. Artnet, 2019. Disponível em: <https://news.artnet.com/womens-place-in-the-artworld/womens-place-art-world-museums-1654714>. Acesso em: 20 jun. 2021. CALIRMAN, Claudia. O jogo de esconde-esconde: a aborTagem do feminismo na arte brasileira. IN: CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André; PEDROSA, Adriano. História das Mulheres, Histórias Feministas: Antologia. São Paulo: MASP, 2019. CARVALHO, Felipe. Casa Porto das Artes Plásticas: Plano Museológico 2020-2024. Vitória, ES, Secretaria Municipal de Cultura, 2020. Disponível em https://sistemas.vitoria.es.gov.br/docOficial/operacoes/exibirDocumento.cfm?cod=17210. Acesso em 25 jun. 2021. CARVALHO, Ananda; CORDEIRO, Larissa M. W. Práticas curatoriais em exposições de artistas mulheres no Brasil. Revista Porto Arte, v.25, n. 43, 2020. Disponível em: <https://www.seer.ufrgs.br/PortoArte/article/view/103625>. Acesso em 20 jun. 2021. CENTRO Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos equipamentos culturais brasileiros - TIC Cultura 2018. Dispoível em: <https://www.cetic.br/pt/tics/cultura/2018/geral/C3/>. Acesso em: 2 set. 2020. FAJARDO-HILL, Cecilia. “You Can’t Say It Doesn’t Exist”: A Curator on the Art of Latin American Women from 1960 to ’85. Entrevista com Cecilia Fajardo-Hill. Entrevistadora: Elisa Wouk Almino. Publicada em 5 dec 2017. HYPERALLERGIC, 2017. Disponível em: <https://hyperallergic.com/415046/cecilia-fajardo-hill-onradical-women-latin-american-art-hammer-museum/>. Acesso em: 20 jun. 2021. FRASER, Andrea. O que é Crítica Institucional?. In: Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ. Rio de Janeiro, Ano 15, número 24, dezembro 2014. ______. Da crítica às instituições a uma instituição da crítica. In: Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ. Rio de Janeiro, Ano 9, volume 2, número 13, dezembro 2008. GREENBERG, Reesa; FERGUSON, Bruce W.; NAIRNE, Sandy (ed.). Thinking about exhibitions. New York, USA: Routledge, 1996. GUERRILLA Girls. MASP?. 2017. 1 pôster. Reprodução de trabalho de arte disponível em <https://www.sparte.com/noticias/as-guerrilla-girls-chegaram-exposicao-no-masp-faz-retrospectiva-do-coletivo-feminista/>. Acesso em 23 mai. 2020. MUÑIZ-REED, Ivan. Pensamentos sobre práticas decoloniais no giro decolonial. In:______. Arte e Descolonização. 2019, São Paulo. Disponível em: <https://masp.org.br/uploads/temp/tempoaZHEcCANVB14Q4TP69c.pdf>. Acesso em 11 jun. 2021. MUSEU de Arte da Pampulha. Inventário - Museu de Arte da Pampulha. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2010. Disponível em < https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-degoverno/fundacao-municipal-de-cultura/2020/Invent%C3%A1rio%20-%20Museu%20de%20Arte%20da %20Pampulha.pdf >. Acesso em 25jun2021.


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NOTAS DE FIM 1.

Ananda Carvalho é professora adjunta no Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com apoio da Bolsa CNPq. Sua área de pesquisa concentra-se na arte contemporânea com ênfase em curadoria e processos de criação de exposições. É coordenadora do grupo de pesquisa Curadoria e Arte Contemporânea, do projeto de extensão Processos de Criação em Curadoria (UFES) e da Galeria de Arte e Pesquisa (GAP-UFES).

2.

Larissa Megre Wanderley Cordeiro é estudante do curso de graduação em Artes Visuais na UFES, bolsista CNPq (2020/21) e FAPES (2019/20) com pesquisas de iniciação científica nas áreas de Curadoria e História da Arte. Atualmente desenvolve o projeto "Curadoria contemporânea: revisões históricas e ativismos nos espaços expositivos". Integrante do projeto de extensão "Processos de Criação em Curadoria" e do grupo de pesquisa “Curadoria e Arte Contemporânea” na UFES.

3.

Este artigo apresenta resultados parciais de pesquisas PIBIC (realizadas com bolsas FAPES e CNPq) vinculadas ao projeto de pesquisa “Práticas de partilha: processos de criação artísticos-culturais” (Prppg/UFES).


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A TÉCNICA DE XILOGRAVURA NA ESCOLA PÚBLICA E A CONTRIBUIÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA DO LABORATÓRIO DE GRAVURA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO (UFES). Geisa Katiane da Silva. .Fernando Gómez Alvarez. RESUMO Este artigo tem por finalidade relatar e analisar a inserção da técnica de xilogravura na Escola Estadual Irmã Maria Horta alinhada à atividade de extensão dentro do projeto de pesquisa do Laboratório de gravura, intitulado Poéticas interdisciplinares em gravura, PRPPG número 9543/2019 do Professor Doutor Fernando Gómez, da Universidade Federal do Espírito Santo. Serão relatados os passos para a execução do projeto, desde a parte de preparação inicialmente teórica, preparação da prática artística, montagem do espaço até o momento em que fomos até a universidade fazer a impressão das xilogravuras. Pretende também trazer relatos da experiência dos alunos/alunas com essa técnica artística, visto que muitos dos estudantes não conheciam essa técnica e nunca tinham tido contato com as ferramentas utilizadas no processo de entalhar a madeira e imprimir. Palavras-chave: Xilogravura; arte-educação; atividade de extensão; escola pública.

RESUME This article aims to report and analyze the insertion of the woodcut technique in the Irmã Maria Horta State School aligned with the extension activity within the Engraving Laboratory's research project, entitled Interdisciplinary Poetics in Engraving, PRPPG number 9543/2019 by Professor Dr. Fernando Gómez, from the Federal University of Espírito Santo. The steps for carrying out the project will be reported, from the initial theoretical preparation part, preparation of the artistic practice, setting up the space until the moment we went to the university to print the woodcuts. It also intends to bring reports of the students'/students' experience with this artistic technique, since many of the students did not know this technique and had never had contact with the tools used in the process of carving wood and printing. Key-words: Woodcut; art education; extension activity; public school;

RESUMEN Este artículo tiene como objetivo informar y analizar la inserción de la técnica de la xilografía en la Escuela Estatal Irmã Maria Horta alineada con la actividad de extensión dentro del proyecto de investigación del Laboratorio de Grabado, titulado Poética interdisciplinaria en el grabado, PRPPG número 9543/2019 del profesor Dr. Fernando Gómez, de la Universidad Federal de Espírito Santo. Se informará de los pasos para la realización del proyecto, desde la parte de preparación inicialmente teórica, preparación de la práctica artística, acondicionamiento del espacio hasta el momento en que fuimos a la universidad a imprimir las xilografías. También se pretende traer relatos de la experiencia de los alumnos / alumnas con esta técnica artística, ya que muchos de los alumnos no conocían esta técnica y nunca habían tenido contacto con las herramientas utilizadas en el proceso de tallado en madera e impresión. Palabras-clave: Grabado en madera; arte educación; actividad de extensión; escuela pública;

INTRODUÇÃO Este artigo traz um relato de experiência vivenciado durante a inserção da técnica de xilogravura na Escola Estadual Irmã Maria Horta com estudantes do 3º ano do Ensino Médio. Trazendo os processos executados na escola e partindo para a experiência dos professores e alunos/alunas que foram até a universidade no laboratório de gravura para fazer a impressão de suas matrizes. A experiência de trabalhar com essa técnica na escola concomitantemente a uma atividade de pesquisa do Laboratório de gravura da UFES é enriquecedora, pois contribui para


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a formação da professora da educação básica, dos estudantes participantes e também dos envolvidos no projeto de pesquisa e extensão na universidade. Serão expostas as dificuldades, mas também soluções que a/o professor/a pode encontrar na escola para inserção desta técnica e o trabalho com ferramentas cortantes nesse ambiente, que demandam atenção da/o professor/a, mas ainda assim é um processo artístico pertinente para o ambiente escolar para adequar os conhecimentos teóricos e práticos que compõem o currículo da área de códigos e linguagens do Estado do Espírito Santo. Tal proposta tomou como principais referências os gravuristas Oswald Goeldi, Katsushika Hokusai, Albrecht Dürer e Hans Baldung, sem dispensar nomes não tão conhecidos, mas que reforçam que a xilogravura está presente em várias partes do Brasil e também no nosso Estado. O Laboratório de gravura da UFES é a referência de estudo da gravura no Estado e também no Brasil, esse deslocamento das/os alunas/os para a universidade deu-se além da utilização do espaço físico para finalizar a técnica com assessoramento técnico da equipe, mas também como um meio de aproximação das/os estudantes com o Centro de Artes da UFES, na ambição do despertar o interesse pelo conhecimento para além dos muros da escola e quem sabe os aproximar do futuro ambiente de estudo de técnicas artísticas. Nesse contexto, a xilogravura limitou-se ao emprego do MDF (Fibra de Media Densidade). Um meio de reprodução de imagens que atende à ansiedade de criar imagens rápidas, fundamentalmente pela facilidade de adquirir e de entalhar, tornando-o viável para o ambiente escolar. O ENSINO DA XILOGRAVURA NO ENSINO MÉDIO ALINHADA AO CURRÍCULO BÁSICO DA ESCOLA ESTADUAL O currículo Básico da Escola Estadual do Estado do Espírito Santo acredita que “as manifestações artísticas favorecem a aproximação da escola com a comunidade fazendo ver que o mundo, hoje visto como um espaço muitas vezes opaco, é composto de tantas coisas que, aquele que trabalha com educação, pode mediar a capacidade criativa e a sensibilidade de seus alunos, pois essas são competências fundamentais no mundo do trabalho atual” (Currículo Básico Escola Estadual, p.83) A base curricular do Estado contempla e defende a arte como conhecimento capaz de aproximar a escola da comunidade, observando que é um conhecimento composto de diversas formas de trabalhar a capacidade dos alunos, colaborando com o desempenho futuro dos estudantes na sociedade.


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Buscamos por meio do trabalho realizado abranger diversos objetivos presentes no currículo estadual, ampliando a linguagem artística para além da técnica. Um dos objetivos visa “Possibilitar a compreensão das diversas manifestações da Arte, suas múltiplas linguagens dos diferentes grupos sociais e étnicos e a interação com o patrimônio nacional e internacional, em sua dimensão socio-histórica”. Quando apresentamos uma nova técnica ampliamos o repertório dos estudantes de conhecimento prático e artístico, pois a partir da práxis conseguimos inserir um repertório imagético múltiplo por meio do alcance de artística de locais distintos. Outro objetivo da disciplina segundo o CBN é “Possibilitar a observação, a reflexão, a investigação e o estabelecimento de relações entre a Arte e a realidade”. Contemplamos esse objetivo por meio da mostra de imagens de artistas destacando os maiores gravadores da história, os alemães Albrecht Dürer e Hans Baldung, o gravurista japonês Katsushika Hokusai, Oswald Goeldi, dentre outros. Ressalto que foram trabalhados artístas locais como forma de aproximá-los com as produções capixabas e também conhecerem trabalhos produzidos no Laboratório de Gravura, reconhecendo o ambiente de finalização da técnica e os artistas que trabalharam naquele espaço. Proporcionar espaços/tempos de produções artísticas, individuais e/ou coletivas, nas linguagens artísticas (artes visuais, artes cênicas, música e dança) para refletir, analisar e compreender os diversos processos criativos advindos de diferentes suportes e materialidades.

Foram apresentadas as várias técnicas de gravuras existentes, quando possível priorizava mostrar vídeos com artísticas produzindo as técnicas (Anexo I), trazendo reflexões e debates sobre as técnicas e instigando os alunos para que buscassem no celular sobre a origem da prática, compartilhando com os colegas. Os eixos presentes da disciplina de artes norteiam o docente para o planejamento da sua aula da seguinte forma, contemplando os saberes sensíveis, estéticos – históricos e culturais, linguagens artísticas e seus diálogos, expressão/conteúdo e processos de criação. Desta forma, sustentamos que propor uma nova técnica artística possibilita que as/os adolescentes vivenciem novas experimentações e a partir delas possam construir reflexões sobre si mesmo e a sociedade em que está inserido. a Arte possibilita contato com o mundo e consigo mesmo. Permite que por meio dela, […] conheça e compreenda o contexto em que está inserida, bem como desenvolva conhecimentos artísticos, culturais e históricos. (SILVEIRA, 2011, p. 13).

Acrescentamos aqui com Duarte (2010) a arte pode consistir num precioso instrumento para a educação do sensível, levando-nos não apenas a descobrir formas até então inusitadas de sentir e perceber o mundo, como também desenvolvendo e acurando os nossos


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sentimentos e percepções acerca da realidade vivida. (p.23) O trabalho foi desenvolvido com alunos/as do 3º ano do Ensino Médio, sobre essa etapa da vida dos alunos sabemos que “é o momento de se testar pré-profissionalmente, é quando o jovem começa a se interrogar que carreira seguir ou, de forma imediatista, que vestibular fazer.” Machado (apud BARBOSA, 2002). No último ano da educação básica essas dúvidas e preocupações se intensificam, a arte nessa etapa consegue contribuir para “que o adolescente tenha a possibilidade de se apoderar do ser único que ele é, das sua s aptidões, sonhos, angústias e indagações; penso que isto ele pode conseguir se puder EXPRESSAR ou construir, de forma significativa, a reflexão sobre seu "assombrar-se de ser " Machado (apud. BARBOSA, 2001, p.44) Aproximar os estudantes do ambiente universitário além de contribuir para a sua formação cultural, também incentiva para que permaneçam com os estudos na vida adulta, abrindo o olhar para novas possibilidades para além da educação básica. a criação visual estimula a aprendizagem em história da arte e também a leitura de imagens, e é justamente durante esse processo que o aluno se expressa através do seu fazer toda uma visão de mundo, trazendo seu repertório, suas impressões sobre o mundo, as pessoas, expressando assim a sua própria história, ou seja, o processo criativo passa a ser encarado como interpretação e representação pessoal de vivências numa linguagem plástica (PILLAR E VIEIRA, 1992, p. 8).

Apresentar um novo processo de fazer arte é estimular o fazer artístico de maneiras diversas, buscando meios para que consigam além de ampliar o seu repertório artístico, que obtenham diversas maneiras despertar a criação e ativar novos olhares sobre si, o outro e o ambiente em que vive. DESENVOLVIMENTO É certo que é comum nos depararmos com a realidade das escolas públicas muito precárias no quesito estrutura e materiais escolares. A realidade da Escola Irmã Maria Horta não é diferente, mas as/os estudantes em sua maioria trabalham estagiando em alguma empresa, o que possibilita que tenham condições de comprar algum material solicitado pela professora. Sendo um dos maiores desafios da disciplina de artes o material para que seja aplicada diferentes técnicas artísticas na escola, a professora iniciou a proposta apresentando a técnica com imagens projetadas na sala, apresentando matriz de xilogravura e impressões feitas pela mesma. Destacamos aqui a mostra de imagens em seus diversos formatos e a importância dos olhares das/os envolvidas/os como forma de envolvê-los com a técnica a ser trabalhada em seus diversos


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Um outro desafio para inserção da técnica de xilogravura foi a precaução com o uso das goivas que são utilizadas para entalhe do MDF, pois o manuseio inadequado com essa ferramenta pode perfurar a mão. A direção da escola ficou ciente da técnica e do cuidado dobrado que a professora deveria ter com as/os alunas/os na etapa de entalhe. No intuito de prevenir possíveis acidentes foi explicada a técnica, o manuseio correto das ferramentas e modos de utilização seguros no ambiente escolar, exemplificando com a própria ferramenta para ser mais didática. Foi escolhida a cantina da escola como ambiente de trabalho, com mesas longas e que pudessem ter espaço entre eles. A prática do desenho já havia sido inserida antes de propor a técnica de xilogravura, facilitando o processo da imagem a ser gravada, que se deu a partir de desenhos desenvolvidos anteriormente. Figura 1: Alunos no processo de entalhe nos espaços alternativos da escola.

Usar espaços alternativos da escola contribuiu para que fosse um momento ímpar do dia da/o aluna/o, pois saia do ambiente “sala fechada” e passava a ter acesso a outros olhares sobre o ambiente escolar, não restrito apenas a um espaço, ampliando o seu contato com os outros colegas, professores e funcionárias curiosas que passavam por ali e queriam entender o que estavam fazendo.


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Segundo a aluna L.Z “foi uma proposta super nova pra aula de artes, porque muitos não viam sentido para aula e nem levava a sério e quando a professora trouxe essa ideia de aula apresentando a xilogravura pra minha turma, essa técnica antiga de entalhar madeira e assim transformando o desenho da madeira numa espécie de carimbo, foi super legal.” Aquele que tinha sua matriz de xilogravura finalizada, tinha a missão de auxiliar outras/os colegas para que pudéssemos ir juntos a UFES, entenderam que se tratava também de um trabalho coletivo para alcançar o objetivo final (impressão). O aluno J. S.S lembra que “sempre tive facilidade com artes, por isso fiz a minha matriz e ainda consegui ajudar meus amigos a terminarem os seus.” Figura 2: Alunas no processo de entalhe na escola.

Após as matrizes ter sido finalizadas fomos até o Laboratório de gravura para imprimilas. Esse foi um momento ímpar para os/as alunas/os, afirma a aluna L.Z “uma das melhores partes do trabalho todo, foi quando a professora nos convidou até a UFES (que pra muitos era um espaço novo, por nunca terem ido em uma Universidade Federal), e nos levou ao centro de artes para concluirmos o trabalho e transferir o nosso desenho na madeira para o papel através de uma impressão, lembro nitidamente de todos se divertiram muito e adorarem a experiência, com certeza uma lembrança de uma atividade única”.


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Figura 3: Impressão das matrizes da turma do 3ro ano na sala de gravura do DAV/CAR/UFES com auxílio da monitora da disciplina Thaísa Rezende e do professor Fernando Gómez.

Figura 4: As gravuras da turma secando nos varais da sala de gravura no DAV/CAR/ UFES.

Figura 5: Xilogravuras das/os estudantes já secas e prontas para serem entregues aos autores.

O aluno J.S.S. sempre mencionou nas aulas de artes o interesse em fazer cursar artes, depois de estar na universidade ele afirma que “aumentou minha vontade de cursar artes, estar nesse ambiente me trouxe muita felicidade e esperança de continuar os meus estudos fazendo o que eu gosto”. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Currículo Base da disciplina de artes no Estado é bastante amplo e nos permite trabalhar de maneiras diversas e enriquecedoras no ambiente escolar. A técnica de xilogravura por se tratar de uma prática que demanda vários processos, além da criação artística e descoberta de uma nova forma de fazer arte, permite que as/os envolvidas/os descubram formas de entalhe através das goivas e também como as/os colegas exploram a técnica. Dessa forma, criando novos olhares sobre si e sobre o outro. Ter a clareza da técnica e da sua importância é primordial para que a/o professor/a insista nessa prática, enxergando-a para além dos desafios, mas os resultados que podem ser


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alcançados pelas/os participantes. Através das falas das/dos participantes conseguimos perceber que a inserção da técnica de xilogravura foi enriquecedora para a formação dos mesmos, sendo significante desde o início da técnica até a impressão das matrizes na UFES, ambos apontaram além da prática executada a experiência de ir/estar na universidade como enriquecedora para finalização da técnica e pela vivência no ambiente de ensino superior para alunas/os do 3º ano do Ensino Médio. ANEXO I REFERÊNCIAS VIDEOGRÁFICAS Vídeo 1: Mariana Cunha Discacciati. Xilogravura: como fazer? In: https://www.youtube.com/watch? v=4p96AWO5Kgw Vídeo 2: Roberto Gyarfi. Impressão de Litogravura - Mestre Roberto Gyarfi; litogravura de Mireille Lerner. In: https://www.youtube.com/watch?v=WGaoK2pFiSM&t=423s Vídeo 3: Alexandre Ribeiro. Passo a passo da Serigrafia. In: https://www.youtube.com/watch?v=VbiT4do0pok Vídeo 4: Joanna Latka. Gravura: Técnicas de Água-Forte e Água-Tinta. In: https://www.youtube.com/watch? v=L3HdGf1IVCk&t=2s

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Ana Mae _ A importância da imagem no ensino da arte: Diferentes metodologias, in, A imagem no ensino da arte: Anos 80 e novos tempos, São Paulo Perspectiva, 1991 pp. 36-37. FELDMAN, E. B. Metodologia de trabalho. São Paulo: USP, 1993. SILVEIRA, Tatiana dos Santos. Curso de Metodologia do Ensino de Artes. Indaial: Uniasselvi, 2011 Espírito Santo (Estado). Secretaria da Educação Ensino médio: área de Linguagens e Códigos / Secretaria da Educação. – Vitória: SEDU, 2009. 132 p.; 26 cm. – (Currículo Básico Escola Estadual; v. 01).


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A TERCEIRA ONDA NOS ESTUDOS DA CRIATIVIDADE: a perspectiva de Vlad Petre Glaveanu sobre a psicologia cultural Maria Luiza Alcântara Milanezi UFES1 Profª Drª Stela Maris Sanmartin PPGA/UFES2 stelasanmartin@yahoo.com.br RESUMO Este trabalho tem como foco apresentar a percepção de Vlad Petre Glaveanu sobre uma nova abordagem teórica referente à terceira onda nos estudos da criatividade: a Psicologia Cultural. Os três paradigmas da criatividade são diferenciados e um deles, o paradigma We, juntamente com a pesquisa de Vygotsky sobre relações e interações nos contextos socioculturais, são a base da pesquisa para essa nova abordagem teórica. A criatividade e a cultura são apresentadas em três instâncias: opostos, sobrepostos e como a cultura está inserida no contexto social O modelo teórico da Criatividade Distribuída de Glaveanu é destrinchado a partir desse entendimento e comparado com o Modelo Sistêmico de Mihaly Csikszentmihalyi. Palavras-chave: Psicologia Cultural; Criatividade; Cultura; Sociocultural; Criatividade Distribuída.

ABSTRACT This paper focuses on presenting Vlad Petre Glaveanu's perception of a new theoretical approach regarding the third wave in the studies of creativity: Cultural Psychology. The three paradigms of creativity are differentiated and one of them, the We paradigm, together with Vygotsky's research on relationships and interactions in sociocultural contexts, are the basis of the research for this new theoretical approach. Creativity and culture are presented in three instances: opposites, overlapping and how culture is inserted in the social context. The theoretical model of Glaveanu's Distributed Creativity is unraveled from this understanding and compared with the Systemic Model of Mihaly Csikszentmihalyi. Keywords: Cultural Psychology; Creativity; Culture; Sociocultural; Distributed Creativity.

INTRODUÇÃO A Psicologia Cultural é um novo referencial teórico no campo da Psicologia da Criatividade e representa a terceira onda nos estudos acerca da criatividade. A primeira menção ao tema foi feita por Glavenau em Principles for a cultural psychology of creativity e em Paradigms in the study of creativity: Introducing the perspective of cultural psychology, artigos publicados em 2010. Os pesquisadores, com mais visibilidade, que se dedicam a esse tema são: Vlad Petre Glaveanu, Alex Gillespie e Jaan Valsiner. Neste trabalho pretendemos apresentar especificamente a produção de Vlad Petre Glaveanu (professor, pesquisador e doutor em Psicologia Social) por desenvolver em seu trabalho atual uma abordagem psicológica cultural da criatividade que considera o fenômeno como distribuído entre o eu, os outros, os artefatos


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novos e os existentes. A maioria dos modelos teóricos estão vinculados aos processos criativos que primeiramente acontecem no pensamento para depois se tornarem materiais e sociais. Diferentemente, no modelo teórico da Psicologia Cultural o processo começa na ação, a partir de relações e interações sociais e nunca de mentes isoladas, sendo o ato criativo uma forma de se relacionar com o mundo. De acordo com Vlad Petre Glaveanu e Mônica Souza NevesPereira (2020, p.154) “Essa concepção não é anti-individual, mas anti-individualismo; ela se contrapõe aos modelos essencialistas da criatividade (que buscam a ‘essência’ da criatividade no cérebro ou na mente, na personalidade, cognição ou motivação do indivíduo).” Investigar a abordagem do pesquisador Vlad Petre Glaveanu sobre a Psicologia Cultural da criatividade é essencial para que haja uma expansão e evolução neste novo tema dentro das pesquisas em criatividade. É um assunto que precisa de atenção não só para um desenvolvimento individual, mas para um desenvolvimento socialglobal, e por este motivo o autor foi escolhido para a discussão deste trabalho de graduação. A metodologia desta pesquisa qualitativa teórica se dá através, principalmente, do levantamento bibliográfico, tradução, estudos e fichamentos dos artigos, livros e tese fornecidas pelo próprio Glaveanu, em formato digital e outros disponíveis no site https://www.researchgate.net/, em seu perfil. Lives no Youtube e Instagram de pesquisadores na área, artigos e livros de outros autores referenciados por Glaveanu em suas publicações também fazem parte da pesquisa. Para abordar o tema da Psicologia Cultural da criatividade é essencial entender os três paradigmas da teoria sobre a criatividade: He (ele), I (eu) e We (nós), que serão apresentados inicialmente, a seguir o conceito de criatividade e de cultura serão expostos em três visões: opostos, sobrepostos e como a cultura está inserida no contexto social. Apresentaremos também a perspectiva da Teoria do Desenvolvimento de Lev Vygotsky sobre as relações e interações nos contextos socioculturais, base da pesquisa psicológica cultural. Como não há uma única psicologia cultural da criatividade e sim abordagens psicológicas baseadas em teorias socioculturais sobre a criatividade e para finalizar serão comparadas e evidenciadas as consonâncias e dissonâncias entre a Psicologia Cultural de Glaveanu e o Modelo Sistêmico da Criatividade de Mihaly Csikszentmihalyi, que possui uma abordagem de perspectiva mais social e interage com o paradigma We. 1.

TRÊS PARADIGMAS NOS ESTUDOS DA CRIATIVIDADE


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Como introdução ao tema da Psicologia Cultural da Criatividade é necessário conheceremos os três paradigmas ou três estágios paradigmáticos acerca das teorias e pesquisas em criatividade que serão apresentados neste capítulo. São eles o paradigma He: o gênio solitário, I: a pessoa criativa e We: em direção a uma psicologia social da criatividade. É importante entender que não se trata de três tipos de criatividade, mas abordagens acerca dos estudos sobre a capacidade humana de criar, o pensamento criativo e como ele acontece. Apesar de uma linha histórica estar implícita, é possível que certas atribuições dos paradigmas coexistam em um espaço-tempo distinto. 1.1 O PARADIGMA HE: O GÊNIO SOLITÁRIO Quando falamos de gênio, pensamos logo em homens que marcaram e mudaram a história da humanidade com uma invenção que nos fez substituir o fogo pela energia elétrica, a ideia que mudaria a forma de pensar a física ou um novo olhar sobre a arte. O paradigma He que traduzido para o português significa Ele (referência aos gênios do sexo masculino base de uma concepção de criatividade), assume a postura mais individualista dentre os outros dois paradigmas. Podemos levar em consideração as características de exclusividade e a desconexão desses indivíduos únicos com um ambiente sociocultural, que formam a ideia de criador solitário. De acordo com Glaveanu (Trad. livre da autora, 2012, p.24-25) “a criatividade vem dessa perspectiva “exclusivista” porque apenas poucos são escolhidos para ela (inicialmente por Deus, depois por sua biologia), e os poucos que o são, devem como pré-requisito, se destacar das massas por causa de suas capacidades.” Pessoas divinas que detinham todo o poder de criação, ou por um olhar científico, que determinava uma alta capacidade criativa através de sua biologia. Essa imagem patológica e inacessível que é criada neste paradigma, distância o criador da comunidade na qual está inserido, as representações que vemos em filmes e biografias de grandes gênios da história como o artista Van Gogh e o físico Einstein por exemplo, são de pessoas muitas vezes incompreendidas, reservadas e estranhas em comparação aos outros, um dos mitos da criatividade ou sobre a pessoa criativa. 1.2 O PARADIGMA I: A PESSOA CRIATIVA O paradigma I representa qualquer um de nós, pessoas que, com a condição humana, têm total capacidade de criação, o gênio solitário do paradigma He passa a ser uma pessoa comum e acessível. Este paradigma configura-se em um contexto sócio-político nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.


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Na presença da ameaça russa, a 'criatividade' não poderia mais ser deixada para as ocorrências casuais do gênio; nem poderia ser deixado no reino do totalmente misterioso e do intocável. Os homens deveriam ser capazes de fazer algo a respeito; a criatividade deve ser uma propriedade de muitos homens; tinha que ser algo identificável; tinha que estar sujeito aos efeitos dos esforços para ganhar mais. (Razik, 1970, p. 156 apud Glaveanu, 2012, p.26, Trad. livre).

De acordo com esse trecho da tese de doutorado do Vlad Glaveanu (2012), os homens americanos precisavam ser criativos em uma situação sócio-política do pós Segunda Guerra Mundial, a criatividade tinha que vir de todos, não apenas das pessoas enaltecidas como gênios. Apesar do termo ter sido substituído por palavras como talentoso e criativo, o indivíduo ainda é analisado como unidade e permanece no foco. 1.3 O PARADIGMA WE: EM DIREÇÃO A UMA PSICOLOGIA SOCIAL DA CRIATIVIDADE O paradigma We é o paradigma do nós, que nos faz pensar em uma criatividade colaborativa, está relacionado com as formas de co-criação e co-construção, ou seja, implica reunir diversas partes para obter um resultado satisfatório. Esse ato de colaboração de uma ideia formada em conjunto, traduzida para uma visão um pouco mais radical, indica que nós dificilmente criamos algo do nada, sem conhecimento sobre o que já foi criado antes por outras pessoas, ou sobre artefatos já existentes e que usamos com frequência, como lápis, papel, computador, livros, entre outros. O conjunto desses instrumentos com perspectivas e falas de outras pessoas que você ouviu ao longo da vida, e que ficaram na sua mente, fazem com que você crie algo novo. Então, ainda que não haja outras pessoas ao nosso redor, criamos com um auxílio externo e conhecimento existente. Csikszentmihalyi (1988) enfatizou repetidamente a natureza contextual e generativa da criatividade. Isso significa que a criatividade é explicitamente considerada inserida em um meio social e histórico e que todo ato de criação deve começar e se basear no conhecimento existente dentro de um "domínio". [...] devemos ir além da visão ptolomaica, colocando a pessoa no centro da criatividade em favor de um modelo copernicano. Este é também o objetivo do mais novo desenvolvimento dentro do paradigma do Nós: a psicologia cultural da criatividade. (Trad. livre Glaveanu, 2010, p.84).

2.

CRIATIVIDADE, CULTURA E SOCIEDADE Por muito tempo a cultura e a sociedade foram ignoradas como base formadora para a

nossa criatividade. Porém, a Psicologia Cultural defende que a criatividade é fruto da cultura e da sociedade, portanto não está separada delas. A criatividade surge a partir da cultura de uma sociedade e a criação é devolvida nela e para ela. 2.1

CRIATIVIDADE E CULTURA


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Os conceitos criatividade e cultura são social e historicamente discutidos, teóricos e pesquisadores ao longo dos anos deram inúmeras definições para ambos os termos. Alguns significados são habituais e comumente associados a eles, a criatividade associa-se a ideia de ser especialmente individual, atributo pessoal e único de cada ser, com talento e inteligência para criar. Enquanto para o termo cultura, associa-se a ideia do compartilhamento de artefatos entre membros de uma sociedade, a constituição de regras simbólicas, tradições, hábitos, arte e crenças de um povo. Em Principles for a Cultural Psychology of Creativity, Glaveanu comenta: Infelizmente, a visão tradicional da cultura e da criatividade favoreceu a ideia de uma separação implícita e artificial entre os indivíduos e a cultura e, portanto, imaginou que os indivíduos criativos enfrentariam a sociedade em vez de trabalhar dentro de uma determinada cultura. Como consequência, ao discutir a criatividade, a cultura foi ignorada (pelo individualista e às vezes até pela psicologia social da criatividade) ou "objetivada" (pela psicologia transcultural da criatividade). (Glaveanu, 2010, p.157, Trad. livre).

2.1.1

CRIATIVIDADE VERSUS CULTURA

Figura 1.

Fonte: Imagem das autoras.

Essa oposição entre Criatividade vs. Cultura cria uma forma muito exclusiva de olhar para criatividade, a ação criativa desafia a cultura quando a criatividade é usada para mudar as funções dela, e se você não conseguir mudá-la, talvez não tenha um potencial criativo suficiente. Para conseguir mudar a sociedade, você tem que ser radical e tem que ser diferente de todo o restante, então nesse sentido, há uma visão muito elitista e exclusiva do que significa criar e também a imposição de uma desconexão entre o criador e a sua comunidade no mundo, a cultura e o criador que detêm da criatividade têm que ficar ao lado ou de fora para ser criativo o bastante.


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Vlad Glaveanu, na palestra para Criabrasilis - Associação Brasileira de Criatividade e Inovação - em 4 de dezembro de 2020, compara essa visão de Criatividade vs. Cultura com a escultura “O Pensador” do artista Rodin. A escultura representa bem a visão da Criatividade vs. Cultura, que está diretamente relacionada com o paradigma He, uma figura distinta e isolada. Há uma separação entre o criador e o ambiente ao qual está inserido, requerendo apenas a mente e a pessoa, quando cabe apenas a ideia criativa, criar e transformar a cultura. 2.1.2 Criatividade e Cultura Figura 3.

Fonte: Imagem das autoras.

Nesta representação de Criatividade e Cultura, a conjunção ‘e’ já indica a aditividade de que uma é somada a outra. A criatividade permanece como um fenômeno individual, de propriedade pessoal, e está muito ligada ao psicológico, mas a cultura também se liga ao psicológico, então ela se torna um conjunto de valores e normas que influenciam e moldam a psicologia individual. A atividade criativa pode ser privada, algo que você faz sozinho e não envolve outras pessoas enquanto a cultura, pode ser algo público, em que a sua criatividade é exposta, e neste caso, se torna uma forma de expressão cultural. Então, de acordo com essa perspectiva, há lados da criatividade que não dependem totalmente da cultura, esta é chamada por Glaveanu de paradigma visual da criatividade, em que todos podem ser criativos, porque todos têm potencial criativo, mas o processo ainda é individualizado e concentrado apenas no mental psicológico. Podemos compartilhar a criatividade por meio dos objetos que criamos e compartilhamos com os outros, mas para sermos criativos muitas vezes precisamos estar sozinhos. Esta ainda é uma concepção que localiza a criatividade no indivíduo, ainda trata de quem somos e o que pensamos, e não das interações com o coletivo nos processos de criação. Como exemplo dessa visão de Criatividade e Cultura, existem vários escritórios de empresas que possuem ‘cabines’, as pessoas ficam em um mesmo ambiente, mas entre uma e


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outra há divisórias. Então, ao mesmo tempo em que a empresa propõe um espaço comum a ser compartilhado, o coletivo não interage, trabalha para um único fim, a empresa, e cada um exerce individualmente a sua função. Podemos relacionar também ao paradigma I, para a empresa funcionar, a criatividade precisa vir de todos e não apenas de quem está à frente. 2.1.3 CRIATIVIDADE COMO CULTURA

Figura 5.

Fonte: Imagem das autoras.

A visão de interdependência entre criatividade e cultura concebe a criatividade como um processo fundamentalmente cultural, e por outro lado, a cultura como um processo contínuo que tem sido desenvolvido através da história da humanidade, como espécie e como sociedade. É mais que um processo psicológico, se torna social e material, uma forma de agir e estar no mundo. Criar uma cultura própria, não significa conhecer museus e praças, ou valores e normas internalizadas pela sociedade, mas das nossas ações diárias, nosso modo de pensar e a maneira como nossa mente se estende para o mundo. Então, de acordo com essa visão, a criatividade usa a cultura para produzir cultura, que não é criada do nada, como no paradigma He. Mesmo que seja um produto dito como insignificante, ainda faz parte de um ambiente cultural, sua família, escola, igreja, shopping, etc. Cultura pessoal é a forma como nós nos apropriamos e compreendemos a cultura que nos rodeia. Nesta visão de co-criação, a criatividade é distribuída e é uma forma de participar da nossa cultura, assim temos a Criatividade como Cultura. Agências de publicidade e propaganda, como startups ou coletivos de arte são exemplos dessa visão de Criatividade como Cultura. Elas usam um ambiente de trabalho aberto, compartilhando espaços de trabalho para discutir ideias e pensamentos onde a criatividade compartilhada, a co-criação, gera ação criativa com resultados satisfatórios. Essa


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ideia formada em conjunto está diretamente relacionada com o paradigma We. 2.2. CRIATIVIDADE E SOCIEDADE Ao considerar as influências sócio culturais nos processos criativos, a Psicologia Cultural da Criatividade não poderia existir sem a pesquisa que Vygotsky deixou como legado, uma proposta sociogenética do fenômeno criativo em que a co construção do sujeito, contexto de desenvolvimento humano e cultura tornam a criatividade uma função psicológica. 2.2.1 TEORIA DO DESENVOLVIMENTO DE LEV VYGOTSKY É importante destacar que Vygotsky não defendia a criatividade como uma aptidão inata do ser humano ou sua relação com dons ou talentos criativos. Em uma leitura sociogenética do desenvolvimento humano, fica explícito que toda e qualquer função psicológica humana se desenvolve em um dado contexto histórico-cultural no qual o sujeito está inserido. (Neves-Pereira e Farias, 2020, p.122).

Todos nascemos com o necessário para o desenvolvimento de nossos processos psicológicos, incluindo o potencial criativo, mas isso não significa que todos desenvolvemos ao longo da vida. Isso só acontece com a inserção no domínio social, onde somos cercados por modelos culturais e processos de aprendizagem elaborados pela sociedade, e consequentemente conseguimos nos desenvolver e construir novos artefatos e modelos de sobrevivência. Por exemplo, se um sujeito crescesse isolado em um ambiente sem contato e convivência com outras pessoas, apenas com animais, provavelmente se comportaria e viveria como um animal, não desenvolveria nem mesmo a fala. [...] o processo de desenvolvimento da criatividade é regulado pelo contexto cultural ao qual pertence o sujeito agente do ato criativo. Sua expressão criativa individual reflete a influência do coletivo, da dimensão social, na qual ele, como agente, apenas exteriorizou o desejo, necessidade ou pensamento oriundo e emergente da cultura (Vygotsky, 1990, 2009). (Neves-Pereira e Farias, 2020, p.123)

A visão vygotskina valoriza todo o contexto sócio-histórico-cultural, não há sentido em buscar a criatividade no indivíduo que cria ou em seus produtos, pois ela não está nessas instâncias. A criatividade é vista como resultados de todas as interações ao longo da vida humana, sejam elas internas ou externas, desde o contato com o domínio social. Vygotsky considera a imaginação como uma função psicológica relacionada às emoções é importante para a criatividade, sendo associadas uma à outra. A Imaginação Criativa acontece quando há o encontro do pensamento e da imaginação, de forma orgânica, ao longo do desenvolvimento individual do sujeito que está inserido em um meio cultural. Ela é caracterizada por quatro aspectos principais: (1) a imaginação desenvolve-se na brincadeira de faz de conta da criança; (2) a


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imaginação torna-se uma função psicológica superior quando se associa aos processos de pensamento; (3) na adolescência, a imaginação criativa é caracterizada pela colaboração entre imaginação e pensamento conceitual e (4) a colaboração entre imaginação e pensamento conceitual amadurece na produção artística e científica do homem adulto (Smolucha,1992a; Vygotsky, 2009). (Neves-Pereira e Farias, 2020, p.126)

Através da imaginação, interpretamos de diversas formas a realidade em que vivemos, e cada pessoa possui experiências individuais, conforme cresce e se desenvolve como ser humano, elas se modificam. Essas interpretações imaginativas a partir do contato com o domínio social, geram novos significados individuais que são devolvidos para a cultura. 3.

O MODELO SISTÊMICO E A PSICOLOGIA CULTURAL Na sequência serão apresentados dois modelos teóricos: o Modelo Sistêmico de

Mihaly Csikszentmihalyi e o modelo da Criatividade Distribuída de Vlad Petre Glaveanu. Por serem modelos teóricos que veem a criatividade como um sistema dinâmico e se identificam com o paradigma We, existem semelhanças e diferenças importantes entre os dois que serão discorridas aqui para uma melhor compreensão do assunto.

3.1. MODELO SISTÊMICO DE MIHALY CSIKSZENTMIHALYI Mihaly Csikszentmihalyi nasceu em 1934 e cresceu na Europa diante da Segunda Guerra Mundial. Na sua infância e adolescência percebeu que poucos adultos que conhecia eram capazes de resistir às tragédias que a guerra trouxe para a vida deles. Quando a normalidade, a segurança e suas casas foram destruídas, não existia mais o sentimento de felicidade e de satisfação. O interesse em entender o que contribui para uma vida que vale a pena viver surgiu desse cenário. Começou a ler mais sobre psicologia e pesquisar sobre quais eram as raízes da felicidade. Uma parte importante desse processo foi pesquisar artistas e cientistas, e descobrir uma felicidade que está relacionada com a ação criativa. Quando se está envolvido em um processo de criar algo novo, não sobra atenção suficiente para monitorar seus problemas em casa, ou cansaço e fome. Como se sua existência fosse temporariamente suspensa por causa da sua alta concentração e o processo criativo simplesmente fluí. Csikszentmihalyi chama esse estado de flow experience, comum de acontecer quando fazemos

algo

que

realmente

gostamos.

O Modelo Sistêmico está relacionado com a percepção do autor de que para a sua própria existência, o ser humano necessita da criação, e que ela geralmente está ligada a coisas boas e interessantes na vida da pessoa, mas também a todos os estados emocionais humanos que Csikszentmihalyi queria compreender desde criança.


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Em resumo, a criatividade aparece para Csikszentmihalyi como um fenômeno legítimo e passível de investigação psicológica, que agrega outras questões, como a felicidade, a autorrealização e as emoções e sentimentos positivos sobre si mesmo e sobre a existência. Segundo o autor, a criatividade relaciona-se com o que nos interessa, o que nos motiva e que vale a pena. (Neves-Pereira e Fleith, 2020, p.90)

Para o autor, a criatividade origina-se em um sistema com três instâncias: pessoa, campo e domínio. A pessoa é o indivíduo responsável por ser o agente da criatividade, trazendo novidades para o domínio simbólico. O campo é a audiência formada por experts e especialistas, todas aquelas pessoas que entendem do assunto, que validam e inserem as inovações no domínio. O campo uma vez formado por especialistas, é a instância social que define o que é criativo ou não, em uma determinada área e dá a chancela de criativo a um produto, seja ele material ou simbólico. Há momentos, entretanto, em que o campo se engana, cometendo erros notórios, como bem retrata a história de Van Gogh, que teve sua obra ignorada por absoluta falta de condições das audiências em compreendê-la em seu tempo histórico. (Neves-Pereira e Fleith, 2020, p.98).

O domínio é a cultura em um contexto social que provê conhecimentos e regras simbólicas influenciando diretamente a pessoa (agente da criatividade). Cada uma das instâncias está ligada a outra, elas representam três momentos de um mesmo processo de criação, em que processos antigos que já foram introduzidos no domínio, como uma inovação, também interferem em uma nova criação, e essa repetição de ciclos que faz com que essas três instâncias sejam um fenômeno sistêmico e não individual. Criatividade passa a ter origem nos contextos sociais e deles depende para existir, sobreviver e modificar o mundo. Sai de cena a figura do sujeito genial e entra a figura do agente da criatividade, que atua tanto individualmente como em grupo e que não se destaca, em importância, nas origens da criatividade. (Neves-Pereira e Fleith, 2020, p.106).

3.2 PSICOLOGIA CULTURAL DA CRIATIVIDADE Com base nas relações e interações nos contextos socioculturais e na Teoria do Desenvolvimento de Lev Vygotsky, a Psicologia Cultural foi mencionada por primeira pelo Vlad Petre Glavenau em Principles for a cultural psychology of creativity e em Paradigms in the study of creativity: Introducing the perspective of cultural psychology, artigos publicados em 2010. Esses dois textos ofereceram um quadro tetrádico para o estudo da criatividade, que transcendeu o habitual foco nas pessoas e produtos isoladamente: surge o conceito de self, o outro e os artefatos como elementos impregnados de cultura (Glaveanu e Neves-Pereira, 2020, p.149). É desenvolvida uma abordagem psicológica cultural do fenômeno, aquela que considera a criatividade situada entre criadores, criações, públicos e um fundo complexo de normas e crenças. Uma estrutura tetrádica é, portanto, formulada tentando capturar a dinâmica entre si e o outro, "novo" e "velho" na produção criativa e, em particular a sua inter-relação através de processos de integração,


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externalização, internalização e interação social. (Glaveanu, 2012, p.3, Trad. Livre)

O modelo teórico da Psicologia Cultural difere dos modelos mentalistas e psicogenéticos, pois os psicólogos socioculturais defendem que a criatividade começa na ação e não no nosso pensamento, através das nossas relações e interações e nunca de uma mente isolada. Essa visão não exclui as ideias e pensamentos que uma mente individual pode ter, mas aplica esse contexto em uma rede cultural, tornando a criatividade distribuída entre pessoas, objetos, ambiente e tempo. Nessa perspectiva, com o objetivo de reescrever os quatro Ps da criatividade (pessoa, processo, produto e ambiente), modelo individualista proposto por Rhodes em 1961, Glaveanu propôs em 2013 o modelo dos cinco Às composto por: atores (1), audiência (2), ações criativas (3), artefatos (4) e affordances (5). Esse modelo considera o criador como um ator, ou agente, que faz parte de um campo social naturalmente. A ação criativa é realizada visando outras pessoas, que também fazem parte desse mesmo campo social (a audiência), então, quando um artefato é criado, ele é um produto dessa cultura, e a audiência pode usufruir deste novo artefato. Glaveanu defende que as affordances (recursos) disponíveis no ambiente, como por exemplo objetos, ferramentas e a tecnologia, que não eram aproveitados em outros modelos teóricos, permite que a nossa ação criativa gere transformações no mundo. A abordagem dos cinco As deve ser compreendida juntamente com a evolução do seu tempo irreversível. As affordances que impedem alguma forma de ação em um momento terminam sendo superadas, dando lugar a novas limitações materiais, que pedem novos tipos de ação criativa. (Glaveanu e Neves-Pereira, 2020, p.156-157) É importante que haja vários níveis de conhecimento e áreas entre os atores e a audiência, diferenças entre os artefatos novos, antigos e existentes. Mas para acontecer uma ação criativa que resulte em um bom artefato é preciso que as partes diferentes tenham alteridade de se colocar no lugar do outro para que as diferentes visões de mundo se complementam e aconteça uma cocriação. A psicologia cultural da criatividade propõe um novo vocabulário social e cultural para o processo criativo, nos termos de reposicionamento, assimilação de novas perspectivas e reflexividade. Essas noções implicam assimilar a posição e a perspectiva dos outros em meio à ação criativa, intercambiando ou movimentandose entre distintos pontos de vista e estando em condições de refletir a respeito dessas mudanças (isto é, de ver a própria posição a partir das posições de outras pessoas, e de entender a própria perspectiva assim como o faria outra pessoa). (Glaveanu e Neves-Pereira, 2020, p.159)

Então os atores nessa relação e interação com a audiência produzem por meio de diferentes formas de ação e cocriação os novos artefatos que se tornam parte de um amplo


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ambiente com seus recursos socioculturais. Glaveanu chama esse sistema de Criatividade Distribuída, em que há diferentes linhas de distribuição da ação criativa, um deles é a criatividade distribuída entre nós e os outros nas relações sociais. O segundo tem a ver com a materialidade, a criatividade tem um lado simbólico e um lado material, usamos sinais, informações, representações e ideias para criar, mas também usamos objetos concretos. E o terceiro que tem a ver com a temporalidade, temos que olhar para a criatividade e entender que ela evolui com o tempo, ela muda, assim como nós mudamos, uma brincadeira de criança nunca é igual a outra, pois depende do que ela está sentindo, observando e vivendo no momento, elas sempre fazem algo diferente, assumem várias posições, e dessa maneira desenvolvem perspectivas diferentes de mundo. Muito da nossa criatividade vem da capacidade de se mover entre diferentes posições (flexibilidade) e, as relações e o diálogo com os outros que possuem posições diferentes são importantes para entender o que e como ambas pessoas podem colaborar para gerar uma novidade. 3.3 CONSONÂNCIAS E DISSONÂNCIAS ENTRE O MODELO SISTÊMICO E O MODELO PROPOSTO POR GLAVEANU Dois modelos teóricos de diferentes pesquisadores foram apresentados anteriormente, o Modelo Sistêmico da Criatividade de Mihaly Csikszentmihalyi e a Criatividade Distribuída de Vlad Petre Glaveanu. Os dois modelos vêm a criatividade como sistema dinâmico e são abordagens que interagem com o paradigma We, apresentado no primeiro capítulo. Concordam que a criatividade existe no cotidiano, mas no Modelo Sistêmico a ideia precisa de uma validação do campo composto por experts para ser considerada criativa, já no modelo de Glaveanu, o artefato é criado para a audiência, o público que julga são pessoas comuns, com diferentes visões de mundo. Para Csikszentmihalyi é impossível ser criativo na infância, porque a criatividade só existe no momento em que o produto modifique a cultura. Já para Glaveanu e teóricos da terceira onda, as crianças fazem os primeiros usos de símbolos em brincadeiras lúdicas e interagem de diversas formas, quanto mais nós interagimos uns com os outros e utilizamos os recursos disponíveis, maior é o potencial de ação criativa. Porém, nenhum pesquisador que trabalhe com criatividade ignora a importância da infância e da adolescência para que a expressão criativa aflore com vigor na vida adulta. Isso pressupõe ou mesmo deixa pistas, de que há traços de criatividade na infância que, se preservados ou trabalhados adequadamente, podem mudar a história das crianças e seus contextos. (Neves-Pereira e Fleith, 2020, p. 104-105)

Ambas são teorias socioculturais, mas o modelo de Csikszentmihalyi pode ser


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considerado mais social do que cultural. A dimensão social é algo externo ao indivíduo, as vezes é o centro das experiências e as vezes não possui espaço. Enquanto no processo da psicologia cultural, a base da ação criativa, que faz tudo acontecer, são os recursos materiais e socioculturais, pois não há criatividade distribuída sem um campo social e cultural. As cinco instâncias citadas no modelo do Glaveanu se encontram durante o processo e o tempo é irreversível, marcado por acontecimentos históricos, sociais e culturais, com os agentes criativos se relacionando, interagindo, dialogando e tomando posições diversas para criar algo novo, o que torna esse modelo dissonante do Modelo Sistêmico. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho apresentou a estrutura tetrádica da criatividade formada por uma interdependência entre criador, criação, público e um ambiente sociocultural que Glaveanu propõe na Psicologia Cultural. Foi compreendido que a criatividade é um processo fundamentalmente cultural, um caso de interdependência entre criatividade e cultura. As tradições culturais e práticas sociais são partes essenciais da criatividade humana, desde sua manifestação cotidiana até algumas de suas realizações mais relevantes. Todos nós somos criativos (atores) e conseguimos produzir artefatos novos a partir do nosso conhecimento, prática, relações e interações sócio-culturais. É importante relacionar-se com o outro e praticar a alteridade, entender como ele pensa e o que vivencia para juntos criar uma novidade dentro da cultura. Os psicólogos culturais acreditam que a criatividade transforma o mundo e o fenômeno estudado pela Psicologia Cultural deve contribuir ativamente para isso, gerar conhecimentos que atuam diretamente no mundo real. Nesta abordagem não é mais possível estudar a criatividade como algo exclusivo do gênio, como interpretado pelo paradigma He. O tema tem natureza interdisciplinar e deve ser estudado por diversas áreas do conhecimento, com a realização de co construções e co-criações como apresentado pelo paradigma We, para que a pesquisa deste tema seja cada vez mais expandida e teorizada. REFERÊNCIAS ALENCAR, E. M. S.; FLEITCH, D. S. Contribuições teóricas recentes ao estudo da criatividade. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, v.19, n.1, p.1-8, 2013. ALENCAR, E. M. S. Um estudo de criatividade. Arq. Bras. Psic. Apl., Rio de Janeiro, v.26, n.2, p.59-68, 1974. CANCLINI, Nestor Garcia. A Socialização da Arte. São Paulo: Cultrix, 1980.


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GLAVEANU, V. P. Creativity and Culture: Towards a Cultural Psychology of Creativity in Folk Art. Tese (Doutorado em Filosofia) - The London School of Economics and Political Science, Londres, 2012. GLAVEANU, V. P. Creativity as a sociocultural act. Journal of Creative Behavior, v.49, n.3, p.165-180, 2015. GLAVEANU, V. P. Rewriting the language of creativity: The five A’s framework. Review of General Psychology, v.17, n.1, p. 69-81, 2013. GLAVEANU, V. P. Paradigms in the study of creativity: Introducing the perspective of cultural psychology. New Ideas in Psychology, v.28, n.1, p.79-93, 2010. GLAVEANU, V. P. Principles for a cultural psychology of creativity. Culture & Psychology, v.16, n.2, p.147-163, 2010. KNELLER, G. F. Arte e ciência da criatividade. São Paulo: Ibrasa, 1976. LUBART, T. Psicologia da criatividade. Porto Alegre: Artmed, 2007. NEVES-PEREIRA, M. S.; FLEITH, D. S. Teorias da Criatividade. Campinas SP: Alínea, 2020. OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1978. SANMARTIN, S. Criatividade e inovação na empresa: do potencial à ação criadora. São Paulo: Trevisan, 2012. GLAVEANU, V.P. Criatividade em uma perspectiva sociocultural. Eliana Farias e Solange Muglia Wechsler. Youtube: Criabrasilis, 2020. NOTAS DE FIM 1.

Maria Luiza Alcântara Milanezi é graduanda, desde 2016, em Bacharel em Artes Plásticas na Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista CNPQ de Iniciação Científica com o subprojeto de pesquisa “Paradigmas da Psicologia Cultural da Criatividade”. Artista muralista e ilustradora.

2.

Stela Maris Sanmartin é graduada em Licenciatura Plena em Educação Artística pela FAAP (1989), Máster em Criatividade pela Universidade de Santiago de Compostela (1999), Mestre em Artes pela Unicamp (2004) e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2013). Líder do Grupo de Pesquisa Criatividade, Educação e Arte, GPCEAr, financiado pela FAPES e cadastrado no (CNPq)www.dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3651130446369665. Pesquisadora em Criatividade, processos de criação e ensino de arte, é membro do Instituto Avançado de Criatividade Aplicada Total, IACAT e da Associação Brasileira de Criatividade e Inovação, Criabrasilis e do Comitê de Inovação da FAPES. Atualmente é professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Arte do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Autora dos livros “Criatividade e Inovação na empresa: do potencial à ação criadora” (2012), “Criatividade nos processos de coaching” (2013) e Intuição e Criatividade na tomada de decisões” (2017).


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ARTE CONTEMPORÂNEA EM JOGO - RELAÇÕES ENTRE PRÁTICAS EDUCATIVAS E PRODUÇÕES ARTÍSTICAS Clara Pitanga Rocha1 Julia Rocha2 RESUMO O presente texto traça paralelos entre a produção artística contemporânea e a arte/educação, assumindo o jogo como espaço de encontro entre os dois campos. Analisa-se a potencialidade da arte contemporânea na perspectiva participativa e relacional, pela proximidade com a vida cotidiana e pela identificação com a ação de jogar. A leitura dos paralelos entre a arte contemporânea e o jogo se dá por meio de três categorias: da participação, da ludicidade como elemento da obra e da interrupção do cotidiano, identificando trabalhos de Hélio Oiticica, Ronald Rael San Fratello e Virginia San Fratello e Gisela Motta e Leandro Lima, que se relacionam com cada uma das categorias. Ao final, como proposição do encontro com a educação, inclui-se a reflexão sobre um jogo elaborado por Pio Santana: o Território contemporâneo em jogo. Palavras-chave: jogo; arte contemporânea; participação; educação.

ABSTRACT The present text draws parallels among contemporary artistic production and art education, assuming the game as a meeting space between the two fields. It analyzes the contemporary art potentiality from a participatory and relational perspective, the proximity to everyday life and the identification with the playing action. The parallels among contemporary art and game occurs through three categories: participation, playfulness as an ludic element of the art work, and interruption of the daily life, identifying the art works by Hélio Oiticica, Ronald Rael San Fratello and Virginia San Fratello and Gisela Motta and Leandro Lima that relate to each of the categories. By the end, as a proposition of the meeting with education, it includes a reflection on a game that was developed by Pio Santana, named as “Território contemporâneo em jogo”. Key words: game; contemporary art; participation; education.

INTRODUÇÃO A produção artística contemporânea assume uma proximidade com a vida cotidiana e um diálogo com questões que tangenciam o campo, que a diferenciam do que se concebia como arte anteriormente. A distinção não diz respeito aos períodos em que as obras se desenvolvem, mas às próprias características delas. Assume-se essa perspectiva a partir da concepção de Heinich (2014, p. 373), que afirma que o que entendemos hoje como arte contemporânea “não é uma categoria meramente cronológica na história das artes visuais, mas um novo ‘paradigma’”, que propõe um conjunto de regras e de sistemas próprios do campo, que não, obrigatoriamente, correspondem ao recorte temporal. Parte desse "novo paradigma” sugerido por Heinich (2014) está na relação intrínseca entre o campo da arte e seus potenciais públicos. Em alguns exemplos de obras que conhecemos hoje identificam-se a relação direta com espectadores e o distanciando da produção contemporânea, da concepção de particularidade e das questões identitárias individuais, que anteriormente eram primordiais na prática artística. “A arte contemporânea exige que o artista ultrapasse os limites do senso comum, não da figuração clássica, como no caso da arte moderna, mas da própria noção de arte, inclusive a exigência moderna de um vínculo entre a obra e a interioridade do artista” (HEINICH, 2014, p. 376). A produção deixa


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de ser particular, unicamente ligada à vida do produtor, para dissertar sobre questões que representam problemáticas externas e amplificadas dos espectadores. Com essa proximidade maior entre os públicos e o sistema da arte, as questões da fruição, da interação e da participação se tornam possivelmente mais presentes. Conforme “Na arte contemporânea, a transgressão mais importante dos critérios comuns usados para definir a arte é que a obra já não consiste exclusivamente no objeto proposto pelo artista, mas em todo o conjunto de operações, ações, interpretações etc. provocadas por sua proposição” (HEINICH, 2014, p. 377), a reconfiguração do artista como propositor aproxima-o dos potenciais públicos, extraindo-os da posição da passividade e possibilitando a perspectiva da participação como parte inerente dos trabalhos. “Em outros termos, as obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista”, como sinaliza Bourriaud (2009, p. 18). O estreitamento na identificação é uma das características que aproxima espectadores das produções artísticas contemporâneas, mas existem também possibilidades de relações mais diretas. A noção de participação e de uma prática relacional reconfigura a percepção de construção e de leitura das obras, tornando-as, por vezes, incompletas ou inacabadas, sem a efetiva ativação dos sujeitos por elas atravessados. Essa perspectiva implica assumir que “A arte contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relações” (BOURRIAUD, 2009, p. 23), tomando como político o reposicionamento dos públicos, extraindo-os da passividade de uma fruição encerrada na leitura e na identificação de questões propostas pelos artistas. Aqui os espectadores se colocam como co autores, participantes ou, como se propõe nesse texto, como jogadores da dinâmica lançada a partir da obra. Observando as práticas artísticas contemporâneas, deveríamos falar mais em ‘formações’ do que ‘formas’: ao contrário de um objeto fechado em si mesmo graças a um estilo e a uma assinatura, a arte atual mostra que só existe forma no encontro fortuito, na relação dinâmica de uma proposição artística com outras formações, artísticas ou não. (BOURRIAUD, 2009, p. 29-30).

Como formações, propõem-se práticas que dependem das respostas do outro e que relacionem, como parte do trabalho, o improviso e as devolutivas engendradas no processo. A forma, por sua vez, é entendida como parte do que é proposto pelo artista, que deixa de ser o ponto central da obra, também se abre espaço para que a interlocução com os espectadores seja reconfigurada, assumindo, até mesmo, um papel de autoria por parte dos públicos. Ainda que essa seja uma característica de parte da produção contemporânea, a revisão do sistema da


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arte possibilita que essa dimensão da fruição e da leitura dos espectadores seja repensada pelos artistas de maneira mais difundida. A aproximação com o jogo se torna presente pelas características da participação, da ativação, do improviso e da coautoria. Tornando os espectadores peças-chave do processo de elaboração e existência das obras, assume-se uma esfera lúdica, na qual as regras do campo da arte passam a ser, inclusive, questionadas, deixando o trabalho aberto para a interferência dos participantes. Se o assunto for arte contemporânea [...] a noção das regras é um tema fértil. Por mais que a arte contemporânea busque uma aproximação com a vida cotidiana, também se distingue dela pelo seu funcionamento segundo regras específicas. Como num jogo, a arte opera em níveis simbólicos para aqueles que aceitam suas regras. A incompreensão que a arte contemporânea comumente suscita advém da incompreensão de suas regras por parte do público, mesmo que estas regras tenham intenções democráticas - como a quebra das regras anteriores e a extensão de seu campo de ação para além do tradicional alcance da arte moderna. O fato é que as regras pelas quais operam a arte contemporânea não são tão complexas, mas para muitos, pouco claras. Mas ainda assim, há parâmetros pelos quais ela se guia, e no trabalho de mediação cultural uma das questões centrais pode ser a compreensão de alguns destes parâmetros. (TEMBO, 2013, p. 35).

A reconfiguração das regras no processo de fruição e de participação dos públicos abre espaço para a identificação não somente das potenciais questões suscitadas pelos trabalhos, mas também para a relação assumida com uma prática que remonta às ações lúdicas desenvolvidas e desempenhadas na infância ou nas vivências coletivas comunitárias. A relação com o outro assume, portanto, uma identificação de um ordenamento da prática lúdica, considerando que “Todo jogo tem suas regras''. São estas que determinam aquilo que ‘vale’ dentro do mundo temporário por ele circunscrito” (HUIZINGA, 2008, p. 15). Essas regras são constantemente revisadas e anunciadas pelo campo da arte, pelo próprio artista ou, até mesmo, pelos públicos, possibilitando reforçar o caráter de obra aberta que se assume no encontro entre a arte contemporânea e o jogo. Assim, a dinâmica já não se organiza no ordenamento de um conjunto de regras unidirecionais, obra-espectador, mas se redimensiona na participação e na criação coletiva entre todos os sujeitos incluídos na experiência da obra. Essa ação coletiva possibilita vivenciar o caráter lúdico dos trabalhos, bem como relacionar-se conjuntamente. Tembo (2013, p. 36) diz que “No jogo, relacionamo-nos com o outro, muitas vezes por meio de dispositivos materiais que criam uma atmosfera lúdica”, e essa troca ativa percepções vivenciadas como exercícios educativos ou formativos realizados anteriormente. O jogo como metodologia relacional propõe uma ação conjunta que demanda a resposta do outro, a participação, a interlocução e a criação de um conjunto de regras; “No


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caso da arte, o jogo pode ser tomado como um dado imediato da experiência” (HUIZINGA, 2008, p. 164). Dentro do processo que envolve o jogo tem-se a experimentação como questão central da relação entre os sujeitos. Na dinâmica de desenvolvimento dos jogos, vive-se, portanto, um exercício de aprendizagem que não corresponde a um método pré-conhecido, colocando jogadores/espectadores numa ação processual e coletiva que se transforma no decorrer da prática. A relação com o jogo não está sempre entregue como característica primordial das obras, mas neste trabalho será analisada em três diferentes perspectivas: pela amplitude das narrativas da arte contemporânea e assunção das noções de participação; pela incorporação da ludicidade como elemento das obras; e pela possibilidade de imersão na vida cotidiana, gerando uma interrupção das ações automatizadas e repetitivas. AMPLITUDE DE NARRATIVAS NA ARTE CONTEMPORÂNEA E NOÇÃO DE PARTICIPAÇÃO Uma primeira possibilidade de leitura da relação entre arte contemporânea e jogo está justamente no fato de a participação vir se configurando como uma das potentes características de parte da produção dos artistas. A participação não só envolve conceber a obra como inacabada, sem a efetiva relação com os sujeitos, mas também a abertura de respostas possíveis quando a autoria deixa de ser concentrada na proposição do artista. No lugar de uma produção que se encerra no objeto em si, temos a construção de um processo baseado na relação entre os sujeitos. Atualmente, a arte expõe diversos modelos de possibilidades, uma delas é construída pela proximidade entre artista-obra-público, assumida como arte relacional. O caráter da relação interpessoal está muito presente na arte contemporânea, já que, ao levar a arte relacional em consideração, não é mais possível examiná-la como um espaço para ser circulado e meramente observado, mas a produção artística, agora, contempla a vivência da experiência e uma brecha para inúmeros debates (BOURRIAUD, 1998). No que tange à vivência e à participação, destacam-se como obras que marcam esse período de transição os Parangolés, de Hélio Oiticica, criados no fim dos anos 60, eram capas de vestir cobertas por materiais como fotos, cores e textos, que convidam o espectador para a efetiva participação. Fora do corpo, os parangolés eram somente materiais inertes, objetos montados sem completude. A construção da obra se dava no vestir, na interação dos materiais com o corpo, produzindo movimentos, danças, gestos e ações que a ativavam. A obra se completava ao pressupor a interação do público, e este era peça fundamental


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para que ela pudesse acontecer, ou seja, deixava de ser somente o espectador e passava a ser também o criador e o componente imprescindível do ato artístico. Nesse sentido, Hélio Oiticica tornou-se proponente de uma ação artística cuja realização era efetivada pelo público, que vestia os parangolés e se movimentava pelo ambiente como se fosse uma dança. Desse modo, o artista propositor considerou o público como também autor de sua obra ao dar-lhes o espaço de criação. Sobre esse trabalho, o artista comenta: “Se proponho algo à imaginação alheia, considero que haja, em cada indivíduo, um artista, um poder criador latente” (OITICICA, 1967, s/p). Figura 1: Parangolé P1, capa 1, 1964, Hélio Oiticica

Fonte: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66394/parangole-p1-capa-1

Assim, o jogo se caracterizou pela possibilidade de o público se envolver numa dinâmica a partir de uma primeira proposição, a do vestir, deixando em aberto as escolhas dos caminhos, que seriam traçados a partir da convocatória. Já a relação corpo-objeto e as diferentes respostas dos variados públicos, do deixar-se ativar a partir das proposições experimentais que o outro lançava na interlocução com o parangolé se configuraram como brincadeira. Essa perspectiva dialoga com Casal e Garcia (2015, p. 55), que consideram que “A arte é um jogo por si mesmo, um ato de experimentação e aprendizagem” (tradução das autoras). As noções de participação, vivência e experiência presentes na obra de Oiticica se relacionam com a ideia de jogo ao elevar o espectador como peça fundamental que produz e experimenta a própria obra, tal como ocorre nos jogos em que o jogador é quem movimenta e faz o jogo acontecer, pois, sem ele, o jogo não existiria enquanto ação, mas somente enquanto objeto ou ideia.


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Figura 2: Apropriação (Mesa de bilhar, d’aprés “O café outro de Van Gogh”), 1966, Hélio Oiticica.

Fonte: https://artebrasileiros.com.br/arte/pinacoteca-reve-e-atualiza-beuys-e-oiticica/.

Outro trabalho de Oiticica também envolveu jogo e participação, dessa vez de forma mais direta. Em Apropriação (Mesa de bilhar, d’aprés “O café outro de Van Gogh”), o artista inseriu uma convencional mesa de bilhar como parte da exposição Opinião 66, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. “Nesse contexto, a participação do espectador em seus trabalhos […] desdobra-se em muitas camadas” (COELHO, 2019, p. 61). A participação ocorreu a partir de um convite à ação coletiva, que se desdobrou a partir da jogada anterior. A respeito da obra, Oiticica (1966) diz: “Todos, inclusive eu, descobrem o jogo, ou seja, o elemento ‘prazer’ do jogo. Isto sim, é importante: a obra é prazer e como tal só pode ser livre (joga-se quando quer, ou se se sabem as regras do jogo etc.)”. A experiência sensorial recorrente dessa produção assumiu, na obra, um caráter de convite, porque, sem a participação dos públicos, aquela mesa em nada se diferiria de outra comumente encontrada em espaços de lazer. Oiticica (1966) pontua “Aqui o jogo, tal como é, é a obra: nem mais, nem menos”. Nesse caso, o objeto foi ativado pela participação do espectador, a quem cabia a liberdade de se relacionar com a obra pelo prazer de jogar. Assim, entende-se que “O que importa é se instalar no ato lúdico-existencial do jogo” (COELHO, 2019, p. 63), o que abre espaço para outra possível perspectiva de encontro entre o jogo e a arte contemporânea. A LUDICIDADE COMO ELEMENTO O convite para participação dentro do jogo da arte contemporânea, por vezes, conecta-


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se à perspectiva da interatividade não necessariamente pela relação direta com o artista, mas, na proximidade com outros espectadores. A interação, nesse sentido, passa a ser compreendida como um ato de brincar, como um convite ao jogo que não mais permite uma aproximação isolada, sendo inquirida uma interlocução que ressignifica a experiência junto ao trabalho artístico. Pensando especificamente na perspectiva de uma obra, a ludicidade como elemento pode ser vista, por exemplo, em Teeter-totter wall, de Ronald Rael San Fratello e Virginia San Fratello. Eles criaram uma instalação com gangorras na região da fronteira entre o México e os Estados Unidos, em 2019. A proposição do trabalho criou uma conexão, no espaço físico, em que as pessoas de cada um dos dois lados da fronteira pudessem transformar o muro a partir da interação com as gangorras. Nesse sentido, a linha fronteiriça representou a relação conflituosa entre os dois países, e as gangorras foram utilizadas como uma metáfora na qual ações eram realizadas nos dois lados, gerando consequência direta em ambos. Teeter-totter wall requereu, diretamente, a participação do público, assim como, alterou o espaço físico e interrompeu o cotidiano das pessoas que habitavam a região e por lá circulavam. Também criou um espaço de convivência que antes não existia. Sendo assim, a obra trouxe, a partir do elemento lúdico da gangorra, um diálogo potente sobre questões conflitantes, o que se relaciona com a noção de jogo, apresentada por Huizinga (2008), como uma ação de fuga da vida real, mas sem deixar de abrigar seriedade. Figura 3: Teeter-totter wall, 2019, de Ronald Rael San Fratello e Virginia San Fratello.

Fonte: https://www.rael-sanfratello.com/made/teetertotter-wall.


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Figura 4: Teeter-totter wal, 2019, de Ronald Rael San Fratello e Virginia San Fratello.

Fonte: https://www.rael-sanfratello.com/made/teetertotter-wall.

A relação estabelecida entre os participantes da obra foi pautada na brincadeira proporcionada pelos objetos simbólicos de lazer que configuram as gangorras, porém, nessa situação, essa relação não se limitou somente ao brincar, mas também ao ato de resistência, responsável por quebrar a barreira existente, que demarcava o espaço físico e geográfico e limita a livre passagem de pessoas e a interação entre elas. Ainda que, fisicamente, o muro continuasse presente, a instalação da gangorra ofereceu suporte e mecanismo de conexão e união entre os indivíduos ali presentes, rompendo com a impossibilidade do contato, transformando as pessoas em sujeitos que brincam e que fazem parte da ação política e de resistência, levantando a discussão acerca da temática do equilíbrio e da igualdade/desigualdade humana. Desse modo, o que difere as gangorras de Teeter-totter wal das demais existentes em parques e espaços de brincar é justamente a união entre ludicidade e brincadeira, atrelada ao discurso político presente nesse trabalho de arte, enquanto, nos parques e praças das cidades, o objetivo principal delas é o divertimento. INTERRUPÇÃO DO COTIDIANO Outra perspectiva que conecta o jogo e a arte contemporânea está na possibilidade de interrupção das ações automáticas e sequenciadas da vida cotidiana. O efeito lúdico e participativo da arte, nesse caso, gera uma pausa e um momento de reflexão sobre as ações que diariamente reproduzimos. Conforme o pensamento de Caillois (1958, p. 15) "As leis confusas e complicadas da vida cotidiana são substituídas, nesse espaço definido e durante esse tempo determinado, pelas regras definidas, arbitrárias, irrecusáveis, que é preciso aceitar


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como tais e que presidem ao correto desenrolar da partida”. Logo, para o autor, o jogo trocaria de lugar com o cotidiano porque o ato de jogar agruparia um conjunto de características como espaço, tempo e regras, que se diferiram e interromperam os acontecimentos que regem a vivência automatizada. A interrupção da vida cotidiana, comumente sugerida pelos trabalhos de arte, também se fricciona com a perspectiva do jogo, porque, para Huizinga (2008, p. 22), a instabilidade é a característica inerente que o caracteriza. O jogo tem, por natureza, um ambiente instável. A qualquer momento é possível à "vida quotidiana" reafirmar seus direitos, seja devido a um impacto exterior, que venha interromper o jogo, ou devido a uma quebra das regras, ou então do interior, devido ao afrouxamento do espírito do jogo, a uma desilusão, um desencanto.

Novamente, as regras retornam como ponto de conexão e desencontro entre jogo e arte contemporânea, adotando o improviso e a quebra do automatismo como parte inerente dos dois campos. Perspectiva também indicada por Casal e García (2015, p. 55), para os quais, o jogo interrompe o cotidiano, e suas regras podem ou não ser respeitadas: “Jogar é sentir vertigem, tensão, liberdade, se aproximar do desconhecido, respeitar regras ou criá-las, colaborar, se divertir, participar de uma realidade fictícia, imaginar o que não existe, estimular o pensamento” (tradução das autoras). Nesse sentido, o jogo também pode acarretar processos de criação a partir da vivência de realidade alternativa à vida cotidiana, assim como para Huizinga (1938), que afirma que o jogo é livre, é uma fuga da vida real, mas isso não impede que lhe seja atribuído um caráter sério. Trazemos, como outro exemplo de trabalho artístico que interfere no cotidiano, a obra Órgão de Gisela Motta e Leandro Lima, instalada em 2017 no Largo da Batata, em São Paulo. Esse trabalho consistiu em um órgão construído a partir de tubos de aço galvanizado feitos de escapamentos de carros. Conectadas aos tubos de escape estavam peças que eram ativadas por impulsos elétricos, gerando estímulos sonoros. O órgão realizou ruídos semelhantes aos de uma cidade repleta de automóveis, objetivando que o público que circulava pelo local se atentasse para essas questões. Sendo assim, o trabalho interferiu diretamente no espaço, o que culminou na interrupção da rotina diária daqueles que passaram pelo local e que foram atraídos pelo objeto e pela sua sonoridade, estabelecendo relação entre o espectador e a obra.


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Figura 5: Órgão, 2017, de Gisela Motta e Leandro Lima

Fonte: https://www.premiopipa.com/2018/03/esculturas-para-ouvir-ocupam-o-mube/

O trabalho dos artistas não somente gerou relação instalação-público, mas foi também o mecanismo que criou uma espacialidade, uma ponte entre espectador, obra e o espaço urbano em que o trabalho estava inserido, tornando essa localidade visível. Provavelmente, nas demais situações cotidianas, a circulação do público se daria indiferente ao espaço da praça, local de passagem; já, com a instalação da obra, a configuração espacial mudou, assim como a atitude das pessoas que caminhavam pela região, talvez mais atentas ao espaço devido à presença de tal objeto. Com Órgão podemos também pensar na possibilidade de identificação com a obra pelo espaço físico onde está instalada. Admite-se, portanto, que a interrupção do cotidiano pode estar no redimensionamento de elementos que compõem nossa vida diária e, também, na proposição de outras especialidades para as obras, adotando lugares fora do sistema da arte para instalações e montagens que gerem uma proposição de encontro com os públicos e que exceda as paredes de museus e galerias. Na reconfiguração do espaço, convencionalmente, adotado como âmbito da arte (ou na ampliação dos seus limites), propõem-se encontros casuais e interrupções de fluxos entre obras e públicos, o que pode ser, de início, um convite ao jogo. Esse regime de encontro casual intensivo, elevado à potência de uma regra absoluta de civilização, acabou criando práticas artísticas correspondentes, isto é, uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar juntos, o “encontro” entre observador e quadro, a elaboração coletiva do sentido. (BOURRIAUD, 2009, p. 21).

Essa “elaboração coletiva de sentido”, mencionada por Bourriaud (2009), igualmente está exposta no pensamento de Duchamp (1965), que afirma que o ato criador não é realizado somente pelo artista, mas também pelo público, que assume papel de autoria ao entrar em contato com a arte. Esse encontro indica diálogo entre a obra e o mundo externo e possibilita que o espectador adicione sentidos individuais e subjetivos às obras. Por fim, ao propor a instalação na espacialidade da praça, ou seja, localidade propícia


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para o encontro de situações cotidianas, o trabalho exerceu o papel de interromper o automatismo do dia a dia, assim como um jogo que prende a atenção daqueles que jogam, e criou o um diálogo entre os espectadores, suas subjetividades, os sentidos individuais deles, o trabalho de arte, o mundo externo e a obra. Da mesma maneira que o jogo estabelece relação e comunicação entre si e os jogadores, jogadores esses, que também têm suas subjetividades e que a partir delas, em conjunto com as regras do jogo, exploram-no e também lhe adicionam sentido. ARTE CONTEMPORÂNEA E JOGOS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO Diante das obras pensadas para dialogar com cada uma das categorias, compreende-se que a arte contemporânea também pode ser entendida como um mecanismo para inserção de princípios como a ludicidade e a participação nas práticas educativas, de modo a serem catalisadoras da aprendizagem. Pois foi a partir das percepções da arte como motivadora da experimentação que se passou a incluir os públicos como parte inerente das obras. Assim, a produção artística pode ser compreendida também como espaço de educação, porque, para além de incluir os públicos como parte dos trabalhos, ela também nos ajuda a pensar as relações entre professores e estudantes. Destarte, Consideramos a arte contemporânea uma ferramenta lúdica e pedagógica, que nos abre novas possibilidades didáticas para incorporar no âmbito educativo, seja formal ou informal, com a finalidade de provocar a aproximação com problemáticas e conceitualizações dos artistas do nosso tempo. (CASAL E GARCIA, 2015, P. 59). (tradução das autoras)

Pensando no encontro entre o campo do ensino da arte, a relação com jogo e a incorporação da arte contemporânea não somente como temática, mas também como metodologia, analisa-se a proposição do arte/educador Pio Santana, que criou o “Território contemporâneo em jogo”. Santana (2009, p. 90) utilizou o jogo como forma de incluir arte contemporânea em suas práticas docentes na educação básica e o propôs como um “mediador cultural e social” cujo

objetivo era levar os estudantes, ao longo do ato de jogar, a

descobrirem mais a respeito da arte, já que abrangeu e relacionou materiais, suportes, linguagens, temas e conceitos, e, ainda, possibilitou que os alunos participassem criando uma obra de arte diante de um sorteio mediado por dados. Os dados eram compostos de múltiplas faces, e a combinação das diferentes categorias sorteadas provocou os estudantes a criarem uma obra que relacionasse esses materiais, linguagens, temas e suportes artísticos contemporâneos (SANTANA, 2009). Imagem 6: Conjunto de 8 dados do Território contemporâneo em jogo


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Fonte: Santana (2009).

A abertura aos resultados múltiplos possibilitou que a ação lúdica estivesse não somente no sorteio e na prática de combinar os resultados, mas no desafio de articular esses recursos em um processo criador. Diante disso, o jogo desenvolvido por Santana abriu caminho para a utilização do lúdico no ensino da arte e fomentou a aprendizagem da arte contemporânea por meio da experimentação poética, promovendo a aproximação dos alunos, mencionada por Casal e García, com as práticas, as problemáticas e a conceitualização dos artistas contemporâneos. Portanto, também de acordo com as autoras, [...] o ensino da arte requer um tempo para experimentar, um tempo de estar, fazer, deixar que as coisas aconteçam, um ensino pausado onde a sequência de objetivos se baseie na aprendizagem significativa e não na imposição de uma programação preestabelecida. (CASAL; GARCÍA, 2015, p. 55) (tradução das autoras)

O jogo e seus artifícios lúdicos podem situar-se, no espaço de educação, como mecanismo para oportunizar essa experimentação e vivência a partir do “tempo de estar e fazer”, como no jogo de Santana (2009), no qual os objetivos de seu exercício promoveram as etapas da atuação dos alunos de maneira ativa naquilo que estava sendo discutido, o que suscitou a “aprendizagem significativa” destacada por Casal e García. A elaboração de processos em torno de uma combinação aleatória possibilita que os estudantes, mediados pelo professor, desenvolvam exercícios poéticos que se balizem na prática de artistas contemporâneos. Em vista disso, para além da dinâmica que envolve os sujeitos no ato de jogar, uma proposta que operacionalize o jogo como metodologia pode incorporar outros modos de relacionar os sujeitos com o processo de aprendizagem, implicando sua participação, porque “Desse modo um dos desafios como docentes está em flexibilizar por meio do jogo as normas estancadas e obsoletas da educação tradicional” (CASAL; GARCÍA, 2015, p. 55) (tradução das autoras). Assim sendo, o jogo pode ser visto como meio para propor alternativas de


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práticas que flexibilizam o padrão e as normas presentes no ensino tradicional. Logo, o docente tem o papel de mediador entre o jogo/metodologia e os alunos a fim de alcançar tal objetivo. No que se refere à presença do jogo como mecanismo educativo, há de se considerar que “O jogo é uma ferramenta educativa pouco habitual na formação dos professores, mas muito necessário, já que por meio do jogo o professor descobre como se identificar com seu aluno” (CASAL; GARCÍA, 2015, p. 59). Essa identificação também pode ser compreendida pelo pensamento de Tembo (2013), já que o autor o considera como um espaço de relação com o outro por mecanismos materiais que produzem o lúdico, realizando , assim, uma conexão entre os que jogam e o objeto jogo em si, portanto, a atividade de jogar e o desenrolar dela se constituem pelas ações daqueles que a praticam. Dessa forma, a prática educativa incorpora algumas características do jogo como os percursos e os caminhos, que dependem das escolhas de quem o joga, o que possibilita diferentes resultados, perspectivas e narrativas dentro de uma mesma partida. Essas possibilidades de narrativas/perspectivas tornam o jogo um dispositivo de proposição plural, de exploração, de tentativa e de criação, que auxilia o desenvolvimento de questões propostas na relação com a arte. Ao jogar, os públicos, ou alunos, exercitam essas características mencionadas sobre o jogo como metodologia e, por esse motivo, propor o jogar como um exercício educativo dentro da arte/educação pode proporcionar uma maneira de desenvolver os conteúdos de um jeito lúdico e conectado com a vivência cotidiana. REFERÊNCIAS BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 2001. CASAL, Cristina Varela; GARCÍA, Begoña Paz. Jogo e arte contemporânea: Estratégias didáticas lúdicas para educação artística. Revista Saber & educar: Perspectivas didáticas e metodológicas no ensino básico, vol. 20, p. 52-60, 2015. COELHO, Fred. O jogo e a máquina. In: VOLZ, Jochen; PITTA, Fernanda; ARANTES, Amanda (orgs.). Somos muit+s: experimentos sobre coletividade. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2019. DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory. A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1975. HEINICH, Nathalie. Práticas da arte contemporânea: Uma abordagem pragmática a um novo paradigma estético. Sociologia & antropologia, Rio de Janeiro, v. 04.02, p. 373- 390, 2014. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o Jogo como Elemento na Cultura. São Paulo: Perspectiva, 2008. OITICICA, Hélio. Parangolé Coletivo [atribuído]. Manuscrito. 08/07/1967. PHO 0106/67. OITICICA, Hélio. A participação no jogo, 1966. In: VOLZ, Jochen; PITTA, Fernanda; ARANTES, Amanda


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(orgs.). Somos muit+s: experimentos sobre coletividade. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2019. SANTANA, Pio. Território contemporâneo em jogo: uma proposta lúdica para o ensino da arte. Dissertação Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2009. TEMBO, Alberto Duvivier. A visita-jogo: uma alternativa às visitas mediadas em exposições. Dissertação (Pósgraduação em Educação Lúdica) - Instituto Superior de Ensino, Vera Cruz, São Paulo, 2013.

NOTAS DE FIM 1.

Clara Pitanga Rocha é estudante de Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atualmente faz parte do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES), com o objetivo de estudar os caminhos e as relações entre arte contemporânea e educação. Bolsista do Projeto de Extensão Interfaces do Ensino da Arte.

2.

Julia Rocha é Doutora em Educação Artística pela Universidade do Porto, Mestre em Artes e Educação pela Universidade Estadual Paulista e Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Atualmente é professora da Universidade Federal do Espírito Santo, coordenadora do Núcleo de Artes Visuais e Educação do Espírito Santo - NAVEES e do Grupo de Pesquisa Entre Educação e arte contemporânea (CE/UFES).


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ARTE E FEMINILIDADE COMPULSÓRIA: TECENDO PONTOS DE REFLEXÃO A PARTIR DA ANÁLISE DE EXPOSIÇÕES Raquel das Neves Coli1 Julia Rocha Pinto2 RESUMO O presente artigo explora relações entre o conceito de feminilidade e o campo da arte, analisando, principalmente, as exposições Mulheres Radicais: arte latino-americana, 1960-1985 (Pinacoteca de São Paulo, 2018) e História das Mulheres: artistas até 1900 e Histórias Feministas: artistas depois de 2000 (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 2019), que propuseram, a partir de propostas curatoriais feministas, apresentar produções que fogem do cânone da arte, como os trabalhos têxteis, colocando em debate a subjugação de determinadas obras em detrimentos de outras, possibilitando uma releitura mais plural da história da arte oficial e também propiciando realizar um contraponto com obras de artistas mulheres que não tratam de temas que seriam classificados como femininos. A leitura dos conceitos se dá a partir de Griselda Pollock (2019), Mariana Leme (2019) e Rozsika Parker (2019). Palavras-chave: Arte; feminilidade; produções têxteis; história da arte. ABSTRACT The present article explores relations of the concept of femininity and it's relationship with the art field, analyzing, primarily, works in the exhibitions Mulheres Radicais: arte latino-americana, 1960-1985 (Pinacoteca de São Paulo, 2018), História das Mulheres: artistas até 1900 e Histórias Feministas: artistas depois de 2000 (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 2019) that proposed, based on feminist curator proposals, presenting pieces that are out of the art canon such as textile works, opening the debate the subjection of certain works by others, allowing a more diverse rereading of the official art history and also providing the realization of a counterpoint with the work of female artists that don't deal with subjects that would be classified as feminine. The interpretation of the concepts is given by Griselda Pollock (2019), Mariana Leme (2019) and Rozsika Parker (2019). Keywords: Art; femininity; textile art; art history.

INTRODUÇÃO As construções sociais em torno da ideia do que é ser mulher geraram, ao longo da história da arte, uma série de determinações do que mulheres poderiam ou não realizar, incluindo desde ter acesso à educação até a classificarem seus trabalhos artísticos como menores e, simplesmente, “frutos de amor e/ou devoção ao lar”. Neste artigo, buscamos compreender como o conceito de feminilidade é atribuído, por vezes, de forma compulsória a obras de mulheres pelo sistema da arte. A análise ocorre a partir de três exposições: Mulheres Radicais: arte latino-americana, 1960-1985 e História das Mulheres: artistas até 1900 e Histórias Feministas: artistas depois de 2000, realizadas respectivamente na Pinacoteca de São Paulo e no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, entre 2018 e 2019. No decorrer da história, as mulheres foram relegadas ao ambiente doméstico, podendo somente transitar no mundo privado e íntimo e suas obras eram tidas como menores, visto que, os homens é que pertenciam às atividades na esfera pública. Consequentemente, as artes masculinas estavam ligadas ao público e eram entendidas como narrativa dominante do campo da arte. Mariana Leme3 (2019, p. 23) pontua que, desde os teóricos pioneiros como


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Leon Battista Alberti e Giorgio Vasari, observa-se essa associação: “esculturas monumentais, pinturas que narram fatos históricos e projetos arquitetônicos, obras simbolicamente masculinas e idealmente feitas por homens; e é neste momento que se estabelece o valor da autoria”. Assim, da mesma maneira como as mulheres foram inferiorizadas na sociedade pelas relações de dominância do sistema patriarcal, seus trabalhos artísticos também foram. Essa forma de classificação entre uma arte maior e outra menor perpassa essas questões político-econômicas e, como afirma Mariana (2019), se a diferenciação na denominação entre artista e artista mulher existe e faz uma obra ser mais valiosa que a outra simplesmente por conta do gênero, é preciso superá-la, pois ela resulta em problemas de distinção na entrada e na divulgação dessas obras no campo da arte. A PRODUÇÃO DE ARTISTAS MULHERES EM EXPOSIÇÕES Com o intuito de reverter o cenário assustador da invisibilidade de mulheres artistas, há algumas décadas estão sendo realizadas exposições que buscam trazer suas produções ao conhecimento do público. Mais recentemente, algumas dessas exposições foram: Histórias das mulheres: artistas até 1900 e Histórias feministas: artistas depois de 2000, realizada no Museu de arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) em 2019, e Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, realizada na Pinacoteca de São Paulo em 2018. O MASP já realizava, desde 2016, uma série de exposições e palestras em torno da ideia de história, que lhe permitiam explorar mais do que a história da arte e contribuíam para que ele alcançasse o objetivo de se tornar um museu mais plural. O conjunto de exposições foi resultado da reformulação do Museu desde 2014, quando Adriano Pedrosa assumiu a Direção Artística da instituição. Esse movimento resultou nas seguintes exposições ocorridas e previstas para ocorrer: Histórias da infância (2016); Histórias da sexualidade (2017); Histórias afro-atlânticas (2018); Histórias das mulheres, Histórias feministas (2019); Histórias da dança (2020); Histórias indígenas (2021) e Histórias do Brasil (2022). Nesse movimento recente, de olhar para as diversas pluralidades da história e buscar ser mais aberto e inclusivo, entre setembro de 2017 e fevereiro de 2018, o museu recebeu a exposição Guerrilla Girls: gráfica 1985 – 2017, que reunia cartazes produzidos pelo coletivo feminista homônimo da exposição. Um dos cartazes produzidos questionava: “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? Apenas 6% dos artistas do acervo são mulheres, mas 60% dos nus são femininos”. Assim, percebe-se que não só o programa de revisão das histórias parece ter impactado a instituição, o questionamento feito pelo coletivo também contribuiu para que isso acontecesse. A indagação gerou um esforço por


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parte do Museu para melhorar o cenário de desigualdade entre gêneros dentro da coleção, com a aquisição de obras de mulheres em seu acervo e a realização das exposições analisadas. Histórias das mulheres: artistas até 1900, exibida entre 23 de agosto e 17 de novembro de 2019, contou com curadoria de Julia Wilson, de Mariana Leme e de Lilia M. Schwarcz. É importante demarcar, nesse trabalho, o conjunto de mulheres curadoras. A exposição contou com pinturas, desenhos e tecidos feitos por mulheres até o século XIX, perpassando variados estilos da história da arte. A exposição foi organizada de forma cronológica, colocando em discussão a reflexão sobre valores masculinos versus femininos, e, também, a questão arte versus artesanato, que é pertinente para a presente reflexão, uma vez que a apresentação de trabalhos têxteis na exposição ajuda a repensar os valores atribuídos a obras por conta da diferença de gênero. Em diálogo com Histórias das mulheres, foi realizada, simultaneamente, a exposição Histórias feministas: artistas depois de 2000, com curadoria de Isabella Rjeille. A exposição reuniu artistas e coletivos feministas de um período diferente da primeira mostra, possibilitando, aos visitantes, um paralelismo entre as tipologias das produções das artistas presentes nas duas exposições. De acordo com Isabella (2019), mais do que resgatar e aprender com mulheres que foram apagadas da história da arte, a exposição buscava agir em torno da seguinte questão: “Como estabelecer diálogos, construir redes e ferramentas, abrir espaços para instaurar, fazer circular e produzir imaginários de transformação, anticoloniais e de despatriarcalização do mundo tal como o conhecemos?” (RJEILLE, 2019, p. 186). A partir desse questionamento, assume-se a urgência de transformar os discursos de instituições, de abrir espaços para diálogos e de realizar ações que mostrem como essa categorização, colocando algumas obras em posições inferiores a outras, é absurda. E, dessa forma, expor a necessidade de mudanças para vislumbrar um mundo outro, que não seja patriarcal e colonial. Foi também nesse sentido que atuou na exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, curada por Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta e realizada entre 18 de agosto e 19 de novembro de 2018 na Pinacoteca do Estado de São Paulo. A exposição apresentou artistas latino-americanas e mexicanas, que exploram e problematizam o corpo, o que permitiu levantar reflexões políticas. É relevante pontuar que, mesmo quando as artistas não pensavam em obras que abordassem temáticas do feminismo, as curadoras identificaram que essas questões estavam presentes. Para além do corpo e do feminismo, o período selecionado para a mostra também trouxe consigo questões referentes a governos ditatoriais, já que, nesse período, a maioria dos países latinos vivia um contexto ditatorial que marcava a produção artística e poética.


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Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985 foi organizada, por temática, com as seguintes sessões: Autorretrato, Paisagem do corpo, Performance do corpo, Mapeando o corpo, Resistência e medo, O poder das palavras, Feminismos, Lugares sociais e Eróticos. De acordo com a curadoria, a partir da espacialização por temas, foi possível criar diálogos entre as obras das artistas, e isso também foi feito no catálogo da mostra, que foi separado por regiões com o intuito de facilitar pesquisas futuras, demarcando, assim, a relevância dessas exposições para além do período em que foram realizadas e abarcando um público mais amplo, não somente os visitantes dos museus. As exposições trouxeram obras de diversas linguagens como pintura, performance, vídeo, desenhos e obras que estão fora dos cânones do campo da arte, os bordados por exemplo. Essa perspectiva dialoga com as discussões decolonial e feminista, realizando uma revisão não somente dos temas e sujeitos, mas também das linguagens da arte. CONSTRUÇÃO DA FEMINILIDADE COMO CONCEITO Diante da distinção entre papéis relacionados aos gêneros, as atividades artísticas desenvolvidas pelas mulheres, no âmbito doméstico, eram tidas como lazer. Algumas dessas atividades de lazer como o bordado, durante o século XVIII, promoviam certo destaque aos maridos dessas mulheres, sendo reconhecidos como provedores abastados. É o que assinala Rozsika Parker (2019, p. 103), que afirma que “[...] não trabalhar estava se tornando a marca da feminilidade. O bordado [...] era um perfeito atestado de fidalguia, dando provas de que um homem era capaz de sustentar uma mulher que se dedicava ao lazer”. Ainda de acordo com Rozsika (2019, p. 96), o bordado explicita como essa atividade estava ligada ao poder econômico de homens que podiam manter suas mulheres em casa, “O bordado remete não só ao lar, mas a um lar próspero, bem-colocado nas camadas mais altas da estrutura de classes”. É válido ressaltar que mulheres da classe trabalhadora nem eram consideradas mulheres, isso por circularem no espaço público, visto que este era destinado apenas aos homens. Como explica Griselda Pollock (2019, p. 131), estar em público significava a perda de virtude da mulher burguesa, sua moral estaria “suja”. Dessa maneira, manter mulheres em casa era sinônimo de poder econômico e também de dominação dos homens, já que as mulheres estavam totalmente submetidas às decisões deles. Essa realidade se evidenciava até mesmo nas produções e práticas de lazer permitidas para as mulheres, como no caso dos bordados. Geralmente, realizavam os cuidados do lar e da família e desenvolviam práticas concebidas como “femininas”, tais como pintar, tocar piano e bordar. Interessante demarcar


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que essa prática jamais seria considerada, naquele período, como arte, mas sim como desempenho de feminilidade, ao mesmo tempo em que homens que pintavam ou tocavam piano eram tidos como gênios. Como aponta Rozsika (2019, p. 98), “Quando mulheres bordam, isso não é visto como arte, mas inteiramente como expressão de feminilidade. E o que é mais crucial: é classificado como artesanato”. Além de terem, em comum, o fato de reunirem artistas e curadoras mulheres, as exposições analisadas foram capazes de criar reflexões sobre os lugares que os corpos dessas mulheres tiveram de ocupar na sociedade. Também é importante notar que esse local em comum “só artistas mulheres” não se pretende um espaço excludente, a mulher adotada aqui reúne uma diversidade de realidades do que é ser mulher dentro de determinadas classes, raças, sexualidades e/ou etnias. Dessa forma, as exposições incluíram uma diversidade de histórias de mulheres e de trabalhos que evidenciam essas intersecções. As exposições implicam pensar que o local determinado para as mulheres poderia estar tanto na esfera do que se espera(va) das pessoas do gênero feminino, obrigando-as a desenvolverem seus papéis sociais como esposas, mães, filhas — sempre um lugar relacionado à figura do masculino —, quanto no lugar que a arte canônica reservou a elas e a seus trabalhos até a contemporaneidade. Além das reflexões sobre feminino e masculino na arte, é interessante destacar que a exposição História das mulheres, como anteriormente citado, reuniu muitos trabalhos que fugiam da arte canônica, com a exposição de trabalhos feitos em tecidos — tanto com tramas quanto com bordados —, trazendo a reflexão sobre a diferenciação entre arte e artesanato. De acordo com Rozsika (2019, p. 98), essa diferenciação entre uma arte maior e uma menor está intrinsecamente relacionada a fatores econômicos e sociais, que destinam a arte tradicional (pintura e escultura) às classes privilegiadas, enquanto o artesanato é tido como próprio de classes trabalhadoras e/ou de mulheres que o fazem como “exercício de sua feminilidade”. Feminilidade é um termo atribuído às mulheres na história da arte, empregado também nas suas criações, como se tudo que uma artista mulher produzisse fosse fruto de uma feminilidade nata, entretanto, como expressou Simone de Beauvoir (2009, p. 293) “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, logo, a feminilidade é uma construção social, ensinada e aprendida pelas mulheres e completamente negada aos homens. Em oposição, não se atribui feminilidade a obras de homens que também trabalham com temas tidos como delicados. Para além das linguagens comumente associadas ao fazer feminino, também, é Figura 1 - A feira de cavalos colheita do feno, Rosa Bonheur, Óleo sobre tela, 85x50 cm séc. XIX. Fonte: Catálogo Exposição História das Mulheres: artistas até 1900 MASP.


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importante demarcar uma dominância do que era retratado, visto que, no decorrer da história, as temáticas relacionadas à feminilidade, por vezes, eram as únicas narrativas possibilitadas às mulheres. Uma artista mulher não trata apenas de questões ligadas ao seu gênero, à feminilidade e ao lar, entretanto, vemos muitas artistas que assim fizeram, pois era a única chance que tinham, o único ambiente que foram permitidas frequentar, as únicas histórias que lhes eram permitidas viver (considerando, evidentemente, uma determinada classe social). Ainda assim, como apresenta Matheus de Andrade (2019, p. 64), Rosa Bonheur foi uma artista mulher, que viveu durante o século XIX e se tornou conhecida por pintar animais, embora, nessa época, mulheres não pudessem frequentar escolas de arte, participar de feiras de gado e usar calças, visto que, essas eram atividades masculinas. Isso só foi possível porque ela conseguiu uma permissão do governo para frequentar fazendas e feiras de gado e vestir calças e botas. Se olharmos suas pinturas numa classificação de feminilidade versus masculinidade, muito provavelmente, elas seriam rotuladas como pinturas masculinas por conta do tema abordado. Sabe-se que a construção do que é feminino e masculino perpassa uma elaboração de papéis sociais, logo, essa feminilidade atribui encantamento, beleza, delicadeza e leveza como características intrínsecas das obras das mulheres. Na sociedade patriarcal, esse é um atributo descrito como essencialmente e exclusivamente feminino. Desta forma, o trabalho em tecidos realizado por mulheres em seus ambientes domésticos é sempre visto como forma de expressão de feminilidade, não levando em consideração, como aponta Rozsika (2019, p. 99), especificamente no caso do bordado, que “é uma prática cultural que envolve iconografia, estilo e função social”. Na produção artística contemporânea o bordado tem sido adotado como linguagem, mas noutra configuração da percepção do papel que ele ocupa dentro do campo ou da própria sociedade como um todo.


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Rozsika (2019, p. 104), ainda relata que, por conta da padronagem empregada, ele é desvalorizado, e acredita-se que quem borda preocupa-se apenas com questões estilísticas e técnicas, embora a autora mostra que é mais que isso: [...] as bordadeiras escolhiam seus próprios padrões, elegendo imagens que tivessem algum significado para elas. A imensa popularidade de algumas imagens em diferentes momentos indica que elas tinham uma importância especifica e uma ressonância poderosa nas mulheres que escolhiam bordá-las. [...] Aquilo que uma imagem exprime se relaciona com frequência às necessidades da classe da mulher, assim como à sua experiência como mulher naquele momento e também às principais questões das pinturas contemporâneas e da história do bordado. (PARKER, 2019, p. 104).

Ou seja, além da técnica empregada, o ato de bordar também revela significados, contextualiza a vida e a experiência de ser mulher em determinado momento. O ato de tecer é um ofício transmitido, habitualmente, entre gerações (na maioria das vezes entre mulheres, sendo difícil desassociar o tecer da feminilidade desejada pela sociedade), ele também demonstra, além das experiências vivenciadas por elas, a cultura de suas regiões. A respeito dos traços culturais que uma peça têxtil pode representar, em História das mulheres: artistas até 1900s são apresentados os pulkaris (figura 2), trajes cerimoniais indianos produzidos por e para mulheres. A mostra também apresentava tecidos andinos, tais como o manto chimu (figura 3), encontrados em templos e locais de prestígio, evidenciando as práticas e a valorização dessas peças na cultura local, visto que, a produção de tecidos em comunidades indígenas na região andina era também uma atividade partilhada por mulheres que transmitiam conhecimentos e códigos por mais de três mil anos, sendo evidências da cultura que existia antes da dominação europeia. Figura 2 - Phulkari, séc. XIX, fio de seda sobre tecido de algodão, 220,5x129,5 cm. Coleção Luisa Malgoni Strina.

Fonte: Catálogo Exposição História das Mulheres: artistas até 1900, MASP.


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Figura 3 - Manto Chimu, 1200-1430, lã, algodão e pigmento, 90x85 cm. Comodato MASP Landmann.

Fonte: Catálogo Exposição História das Mulheres: artistas até 1900, MASP.

O olhar para as produções manuais e textêis não foi exclusivo das proposições do MASP, na exposição Mulheres radicais, pudemos observar os trabalhos O risco do bordado (1981) e Ritual (1981), de Liliane Dardot, em que uma mulher aparece representada a partir de uma perspectiva vista de cima, sem o enquadramento da cabeça, sentada e realizando tarefas historicamente designadas a pessoas do gênero feminino, como bordar e preparar os alimentos. É interessante notar a ambiguidade do título da obra O risco do bordado (1981), e pensar: que riscos seriam esses? O título, claramente, é uma ironia entre o risco feito com a linha no bordado e o perigo. Mas, que perigo? Essas questões nos levam novamente à Rozsika (2019), ao bordado, as suas complexidades na vida da mulher e à ficção criada em cima dessa mulher misteriosa, que silenciosamente tece com calma o tecido, sendo vista numa postura submissa, inocente, em ato de amor ao lar. Figura 4 - O risco do bordado, Liliane Dardot, 1981, litogravura, 50.1×71.5 cm.


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Fonte: Catálogo Exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, Pinacoteca. Figura 5 - Ritual, Liliane Dardot, 1981, litogravura, 50.1×71.5 cm.

Fonte: Catálogo Exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, Pinacoteca.

Essa mulher definitivamente não oferece perigo à sociedade patriarcal, está numa posição quase que enclausurada em si com o bordado e seus pensamentos. Mas poderia ser esse o risco? O risco de uma arte que ajudou a manter as mulheres em casa? Ou seria o risco que oferece uma mulher refletindo sozinha, autônoma, tecendo seus riscos na vida? De toda forma, a manutenção da mulher em casa refletiu na sua maneira de produzir. A manutenção da figura feminina no espaço doméstico e a dominação da vida pública como cenário masculino, claramente, vão refletir no que produziram as mulheres ao longo da história. Como poderiam tratar de outros temas se a maior parte delas estava presa à casa? Nesse sentido, como demarca Eliane Pinheiro (2019), o impressionismo pode ter, de alguma maneira, facilitado para que algumas pintoras na França desenvolvessem seus trabalhos, já que o cotidiano é uma temática recorrente no estilo.


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Varandas, jardins privados e grandes janelas foram cenários frequentemente representados por artistas contemporâneas a Gobillard, que desejavam explorar os efeitos da luz ao ar livre, sem se expor aos olhares públicos, num tempo em que a presença feminina, em muitos espaços burgueses de lazer, ainda era vista com recriminação. (PINHEIRO, 2019, p. 92)

Assim, notamos como ainda era opressora a sociedade desse período em relação a mulheres transitando na vida pública e a suas poucas oportunidades de ter acesso ao desenvolvimento de suas habilidades. É importante assinalar e refletir que a sutileza e delicadeza das pinceladas impressionistas não são — ou não deveriam ser — atribuídas como características de feminilidade, visto que, ao olhar uma obra de Monet, veremos cotidiano e delicadeza e não seríamos capazes de dizer se é uma obra produzida por um homem ou por uma mulher, caso desconhecêssemos a autoria da obra. A exposição História das mulheres: artistas até 1900 apresenta algumas artistas identificadas nesse movimento como Mary Cassatt, Paule Gobillard, Eva Gonzalès e Berthe Morisot, o que nos leva a refletir sobre os espaços públicos permitidos ao gênero feminino no período e como isso reverbera em suas produções. Se, indiretamente, essas artistas denunciavam o lugar da mulher na sociedade pelos espaços que podiam frequentar e pintar, artistas feministas contemporâneas denunciam esses locais de maneira mais explícita. Ana Victoria Jiménez, na obra Cuaderno de tareas (Caderno de tarefas, 1978-81),

fotografa as mãos de uma colega da Universidad Nacional Autónoma de México, realizando atividades como passar, lavar e escrever à máquina. Essas atividades buscavam dignificar o trabalho do lar, tantas vezes designado como uma tarefa feminina e consequentemente inferior. O trabalho doméstico sempre foi visto como uma tarefa de valor menor, entretanto é de extrema importância, visto que inclui atividades importantes na rotina das pessoas. Figura 6 - Série Cuaderno de tareas, Ana Victoria Jiménez, 1978–81, fotografia, 16,5x25,4 cm. Fonte: Catálogo Exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, Pinacoteca.

Da mesma forma, Lourdes Grobet, em La Venus e La Briosa, da série La doble lucha


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(A luta dupla, 1981-2005), produziu imagens de uma mulher com máscara de luta livre em atos de cuidados, como cuidando de sua própria aparência e de um bebê, refletindo sobre a luta diária das mulheres por sobreviverem de forma digna. Considerando que os trabalhos domésticos como cuidar dos filhos, limpar a casa, cozinhar e passar roupas, tantas vezes, são designado às mulheres, muitas se veem numa luta dupla e diária entre trabalhar fora do lar e, ao chegar a casa, ter que realizá-los. Figura 07 - La Venus, Lourdes Grobet, série La doble lucha, 1981–2005, fotografia, 24x35.5 cm.

Fonte: Catálogo Exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, Pinacoteca. Figura 08 - La Briosa, Lourdes Grobet série La doble lucha, 1981–2005, fotografia, 35.5×24 cm.

Fonte: Catálogo Exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, Pinacoteca.

. Ainda no universo maternal, podemos refletir sobre o trabalho de Marcela Cantuária, Figura 9 - Maternidade compulsória, Marcela Cantuaria 2016, óleo e acrílica sobre tela, 153x220 cm. Fonte: Catálogo Exposição Histórias Feministas: artistas depois de 2000, MASP.


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Maternidade Compulsória (2016), no qual diversas figuras femininas aparecem representadas pela pintura. Enquanto duas mulheres com capas plásticas parecem asfixiar-se, uma segura a barriga como se estivesse grávida; no centro, um grupo aparece unido entre correntes; outra mulher, no canto inferior, reza e, no canto superior direito, uma mulher, junto a uma criança, aparece próxima de panelas. A obra parece retratar toda a agonia e dor da maternidade imposta às mulheres, o não direito ao aborto legal e seguro e suas consequências — tantas vezes fatais para muitas —, além disso, a figura, no canto direito superior, parece invocar a questão dos deveres domésticos, que sempre aparecem atrelados à figura das mulheres. Não bastasse a impossibilidade de decidir sobre a maternidade, a mulher ainda se vê violentada pela sociedade não apenas em julgamentos sobre seus papéis e deveres, mas também por meio de crimes sexuais ou de violência doméstica. CONSIDERAÇÕES DO PROCESSO DE MUDANÇA NO SISTEMA DA ARTE Retomando a provocação das Guerrilla Girls, percebe-se que o apagamento das mulheres na história da arte foi agravado pelo campo, ao não considerar seus trabalhos ou não lhes permitir serem artistas, passando pela dificuldade de acesso à educação artística, pela necessidade de largar seus trabalhos para se dedicar à família ou pela própria produção da história da arte, que as deixou, por tantos anos, como notas de rodapé ou sequer se esforçou para descobrir e contar suas histórias. As três exposições citadas têm um importante papel, ao exibirem as obras e as artistas mulheres. A apresentação e representação dessas artistas para o público em geral possibilitam a revisão da narrativa da história da arte, contando com os catálogos, as críticas e as pesquisas acadêmicas como forma de expandir o conhecimento sobre a existência dessas artistas e suas


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obras, influenciando na formação de novos artistas e pesquisadores do campo da arte. Dessa forma, percebe-se a importância das exposições ao apresentar as pesquisas sobre o assunto ao público, pois as instituições e suas documentações (catálogos, sites) podem aumentar a possibilidade de reconhecimento dessas artistas invisibilizadas na história da arte oficial. Iniciativas como essas têm sido empenhadas por outras instituições no Brasil e no mundo e se solidificam como novos nichos de mercado — porque o ato de recontar a história também está muito vinculado ao poderio de consumo por parte dos frequentadores desses espaços. Não restam dúvidas de que as iniciativas das instituições recaem também sobre o interesse mercadológico e neoliberal de ampliação não só das narrativas, mas também da pluralidade dos públicos e, consequentemente, do ganho financeiro. Durante muitos séculos o lugar e o papel das mulheres eram de reprodutoras e cuidadoras do lar e da família, tornando-as limitadas ao ambiente privado, enquanto os homens tinham acesso a todos os setores da sociedade. Dessa forma, mulheres não puderam frequentar escolas de arte e, consequentemente, seguir uma carreira artística, as que puderam realizar seus trabalhos, o fizeram retratando temas do cotidiano — tópico que se mostrava uma das únicas alternativas para elas — e tiveram suas obras taxadas de femininas, consideradas, em sua maioria, como uma atividade de lazer, de expressão de feminilidade. Em História das Mulheres: artistas até 1900 (MASP), observamos uma rara exceção com o caso de Rosa Bonheur, que contou com uma família que não era tão conservadora, conseguiu frequentar espaços que eram designados apenas aos homens e realizar seus trabalhos com temas que seriam classificados como “masculinos”, caso não se conhecesse a autoria deles. Contudo, essa não foi a realidade da maior parte das mulheres, que tiveram suas produções invisibilizadas. Como consequência da opressão do sistema da arte, a classificação de obras como menores em relação àquelas produzidas por artistas homens demonstra o valor que se atribui ao gênero da autoria e não ao trabalho em si. Como exemplificado anteriormente, se não soubéssemos que os trabalhos de Monet eram dele, será que não teriam sido classificados como obras femininas por serem tão delicados quanto de artistas mulheres do mesmo estilo? Iniciativas, como as exposições analisadas neste estudo, mostram-se de extrema valia para ampliar o repertório e levar ao conhecimento do público obras invisibilizadas e algumas tantas vezes retratadas como artesanato e não arte, bem como possibilita demarcar a importância da ampliação do espaço e da visibilidade da produção de artistas mulheres, tanto revisando as narrativas históricas, como propondo novas ações na contemporaneidade. Dessa maneira, as exposições ajudam a abrir fissuras para questionarmos valores atribuídos a


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determinadas obras em detrimento de outras por conta do gênero da autoria.

REFERÊNCIAS ANDRADE, Matheus de. Rosa Bonheur. In: LEME, Mariana; PEDROSA, Adriano; RJEILLE, Isabella; SCHWARCZ, Lilia M.; BRYAN-WILSON, Julia (orgs.). Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Histórias das mulheres, histórias feministas: Catálogo. São Paulo: MASP, 2019. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. FAJARDO-HILL, Cecília; GIUNTA, Andrea. Mulheres Radicais: Arte Latino Americana. Catálogo. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2018. LEME, Mariana; PEDROSA, Adriano; RJEILLE, Isabella; SCHWARCZ, Lilia M.;BRYAN-WILSON, Julia (org.). Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Histórias das mulheres, histórias feministas: Catálogo. São Paulo: MASP, 2019. PARKER, Rozsika. A criação da feminilidade. In: LEME, Mariana; PEDROSA, Adriano; RJEILLE, Isabella; SCHWARCZ, Lilia M.; BRYAN-WILSON, Julia (org.). Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Histórias das mulheres, histórias feministas: Catálogo. São Paulo: MASP, 2019. PINHEIRO, Eliane. Paule Gobillard. In: LEME, Mariana; PEDROSA, Adriano; RJEILLE, Isabella; SCHWARCZ, Lilia M.; BRYAN-WILSON, Julia (org.). Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Histórias das mulheres, histórias feministas: Catálogo. São Paulo: MASP, 2019 POLLOCK, Griselda. A modernidade e os espaços da feminilidade. In: LEME, Mariana; PEDROSA, Adriano; RJEILLE, Isabella; SCHWARCZ, Lilia M.; BRYAN-WILSON, Julia (org.). Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Histórias das mulheres, histórias feministas: Catálogo. São Paulo: MASP, 2019.

NOTAS DE FIM 1. Raquel das Neves Coli é professora de artes no ensino básico da rede municipal de Cachoeiro de Itapemirim - ES. Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Foi bolsista voluntária de Iniciação Científica com o sub-projeto “Pressupostos da estética de Bertolt Brecht segundo Gerd Bornheim” (2018-2019), integrando durante o período da pesquisa o grupo de pesquisa Crítica e experiência estética em Gerd Bornheim. Atualmente se interessa por história da arte e suas intersecções com a teoria feminista. Faz parte do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES). 2. Julia Rocha é Doutora em Educação Artística pela Universidade do Porto, Mestre em Artes e Educação pela Universidade Estadual Paulista e Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Professora da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do Núcleo de Artes Visuais e Educação do Espírito Santo - NAVEES e coordenadora do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES). Realiza pesquisa sobre o ensino da arte na contemporaneidade, mediação cultural, relações entre museus e escolas, avaliação de propostas educativas no campo das artes visuais e formação de professores. 3. Optou-se por tratar aqui as autoras por seus primeiros nomes a fim de dar ênfase no fato de que são obras escritas por mulheres, o que muitas vezes é invisibilizado pelo uso do último sobrenome (que geralmente é o do pai, perpetuando uma lógica patriarcal).


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BONECA DE PANO PRETA, NA ESCOLA: antirracismo e prática artística no ensino fundamental Cássia Macieira1

RESUMO O brinquedo boneca/o é um artefato lúdico que oferece múltiplas experiências na sala de aula, propiciando que artistas-educadores, por meio de critérios condutivos coerentes, apresentem suas especificidades estéticas: plástico-visual bidimensional e tridimensional; objeto de pesquisa processual por permitir o inacabamento e, consequentemente, experimentações livres. É também um objeto que permite a prática da fusão forma-conteúdo sem as discussões hierárquicas da não dicotomia; detém temática mnemônica (erros e repetições; repertórios) e potencial essência para gerar debates sobre gênero e antirracismo. Atesta-se ainda que a criação de bonecas/os aguça a percepção, favorece a expressividade e a imaginação, consolidando – mediante o avanço da autonomia –, a crítica, a autoria e o trabalho coletivo e colaborativo nas Artes. Palavras-chave: Arte-Educação; Brinquedos; Bonecas.

ABSTRACT The doll/the toy is a playful artifact that offers multiple experiences in the classroom, enabling artist-educators, through coherent conductive criteria, to present their aesthetic specificities: two-dimensional and threedimensional visual-plastic; object of procedural research for allowing unfinished business and, consequently, free experimentation. It is also an object that allows the practice of form-content fusion without the hierarchical discussions of non-dichotomy; it has a mnemonic theme (errors and repetitions; repertoires) and a potential essence to generate debates on gender and anti-racism. It is also attested that the creation of dolls sharpens perception, favors expressiveness and imagination, consolidating – through the advancement of autonomy – criticism, authorship and collective and collaborative work in the Arts. Keywords: Art Education, Toys, Dolls.

INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende abordar a criação de boneca/o como atividade artística na aula de Artes, visando desconstruir estigmas – de que, por exemplo, a criança do sexo masculino não deve exercer técnicas de costura e bordado – e comprovar que a prática é importante enquanto experimentação de formas, contextualização e representação do corpo e, claro, como propulsora do desenvolvimento de habilidades, tudo isso visando aos debates sobre gênero, antirracismo, elementos da percepção visual, sentidos, estudos de formas e cores. Portanto, o problema de pesquisa refere-se à discussão de que tal práxis não deve ser vista como elemento de recreação de meninas e, sim, como importante vivência artística, pois contempla diferentes noções: incremento da destreza manual, estudo de formas, cores, proporções, gênero, antirracismo, representação do corpo, representação de formas inanimadas, realismo e naturalismo. Esta pesquisa concentra-se na prática de criação de bonecas/os, no Ensino de Artes, no Ensino Fundamental. O estudo não abrange a Educação Infantil em virtude do uso de ferramentas pontiagudas como agulhas e alfinetes não ser adequado a crianças menores de 6 anos. A/o boneca/o pode ser explorada/o em sala de aula por artistas-educadores desde que adotem critérios condutivos coerentes e capazes de descortinar as inúmeras variáveis do


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brinquedo: objeto de pesquisa estética (plástico-visual bidimensional e tridimensional); objeto de pesquisa processual (permite o inacabamento e, por conseguinte, experimentações); formaconteúdo (não dicotômica; fusão); temática mnemônica (erros e repetições; repertórios) e potencial DESENVOLVIMENTO No Brasil, há bonecas artesanais que contracenam com as industrializadas, como, por exemplo, as bonecas de palha de milho, cujos registros são raros devido à própria efemeridade, e as bonecas de cerâmica Karajá. No caso da produção dessas bonecas pelas indígenas, a antropóloga Berta Ribeiro constatou certa descaracterização de sua função em decorrência do encantamento dos visitantes, etnólogos e outros às aldeias: antigamente as ceramistas Karajás faziam bonecas de barro por puro deleite para servirem de brinquedo às crianças; mais tarde o mercado fez com que renovassem essa arte e lhe dessem nova destinação. (RIBEIRO, 1983:19-20).

Em Bonecas Karajá: modelando inovações, transmitindo tradições, Campos (2007) apresenta uma profunda pesquisa sobre o processo de confecção das bonecas Ritxokó ou bonecas Karajás2, demonstrando este artefato como elemento socializador da infância Karajá. Segundo a autora, as crianças indígenas brincam tanto com as bonecas de cerâmica quanto as industriais, porém: Tendo em conta este corpus simbólico, agora se propõe observar as bonecas vestidas com trajes de orixás: percebem-se nelas a história e a memória do Brasil sob a perspectiva do negro. As bonecas de pano estão presentes no Museu Afro Brasil3, em São Paulo/SP, no registro virtual4 do Museu Nacional, no Rio de Janeiro/RJ, quando foi encomendada a “boneca de pano feita para apoio da Exposição de Etnologia Regional, inaugurada em 1949”5, e na Coleção Heloísa Alberto Torres, sob a guarda do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, conforme detalhamento abaixo: [...] objetos do Candomblé Nagô da Bahia [a coleção] formada pela antropóloga Heloísa Alberto Torres, então diretora do Museu Nacional, em 1940, e complementada em 1953. O candomblé nagô foi elaborado por africanos escravizados de língua yorubá trazidos para a Bahia. [...] duas bonecas vestidas à moda das mulheres da Bahia nos anos de 1940 e alguns ‘banquinhos de igreja’ que, no candomblé nagô, eram de uso das pessoas de menor hierarquia (a yalorixá ou mãe de santo, por exemplo, senta-se em uma grande cadeira). (SOARES, 2016:60).

É visível a assimetria de poder quando a representação de uma boneca negra é de pouca expressividade em lojas, nos ambientes familiares e nos museus, confirmando o processo de desterritorialização que as religiões africanas sofreram e ainda sofrem. Em A Mão do Povo Brasileiro, mostra temporária inaugural do Museu de Arte de São Paulo (MASP), em


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1969, encontrava-se um vasto panorama da cultura material do país, especialmente objetos de cultos religiosos afro-brasileiros: Nos registros fotográficos é possível identificar algumas figuras em gesso da umbanda e uma escultura em madeira representando a entidade do caboclo. Na nova montagem, ampliamos o núcleo religioso afro-brasileiro com um número maior de objetos e imagens de culto, reforçando a importância da presença negra e de seus desdobramentos estéticos e temáticos nos contextos sociais e culturais brasileiros. Na parede norte, em prateleiras, encontra-se um grupo de bonecas de pano que representam orixás do candomblé (Exu, Ogum, Oxóssi, Logun Edé, Xangô, Omolu, Oxumaré, Ossâim, Iansã, Oxum, Iemanjá, Nanã, Euá, Obá, Oxaguiã ou Oxalá Moço e Oxalufã ou Oxalá Velho), produzidas por Olga Cacciatore, que foi museóloga no Museu de Ingá, em Niterói. Embora o trabalho fosse executado por uma museóloga, sua produção nos pareceu bastante eloquente e dava conta da representação das entidades do candomblé de forma rigorosa e rica em detalhes e acabamentos. (TOLEDO, 2016:53).

Hoje, em formato de criação dinâmica, ou seja; com modo acessível de execução, as bonecas Abayomi, feitas de retalhos pretos e em diferentes locais do Brasil, são confeccionadas por mulheres negras a partir de dobras e entrelaçamentos de tiras: “as bonecas [são] símbolo de resistência [...] que significa ‘encontro precioso’, em Iorubá, uma das maiores etnias do continente africano cuja população habita parte da Nigéria, Benin, Togo e Costa do Marfim”6 .Sem dúvida, elas são agenciamentos pela afirmação das raízes da cultura brasileira e da política em prol das mulheres negras. O modo político de produção de bonecas afeta diretamente o modo de recepção das mesmas como artefatos fetichizados, na medida em que há “descontinuidade acentuada na partilha do conhecimento concernente a suas trajetórias de circulação” (APPADURAI, 2010:75). Transitam sob diferentes aspectos na cultura, e nem sempre o artesão tem a dimensão do caráter de exotismo que é dado a seus artefatos. A boneca de pano, como bem simbólico, dribla a racionalidade e o monopólio da indústria de brinquedos, viabilizando que a criança crie espaço e tempo, na infância, com vistas à imaginação, mesmo que a oferta e o consumo ainda não sejam expressivos. Na infância, a brincadeira é fonte de desenvolvimento e linguagem: o imbricamento entre o desejo da criança e a realidade objetiva é que proporciona o acesso ao lúdico, acionado pela imaginação. São as brincadeiras que abrem espaços para o jogo da linguagem com a imaginação, configurando-se como possibilidade de forjar novas formas de conceber a realidade social e cultural, além de servir como estrutura na construção de conhecimentos e valores. Os brinquedos ganham vida através da relação entre sujeito e objeto – única para cada indivíduo, fazendo referência ao seu contexto, história e cultura, entrelaçados pela linguagem. Assim, a criança recria a realidade através da utilização de sistemas simbólicos próprios.


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A teoria do branqueamento no Brasil, o esforço em vender a imagem do país como um território mestiço, sincrético e espetacular, a reivindicação da democracia racial visando ao apagamento histórico, o número de mortes de jovens negros registrado no Mapa da Violência2, tudo isto configura o contexto de um país que, ontem e hoje, comercializa mais bonecas brancas do que negras3. Se o mercado de brinquedos tivesse, há décadas, um histórico marcado por disponibilizar muitas e diferentes referências projetuais (estética), estimulando a diversidade, o pertencimento e valores identitários, as bonecas brancas seriam preteridas pelo consumidor 4

? Não seriam elas apenas mais uma referência estética para que as crianças se reconheçam

em diferentes contextos, sem as limitações impostas pelo mercado e a sociedade? Uma sociedade balizada predominantemente por bonecas brancas pressupõe diversos fatores, incluindo a reverberação do neocolonialismo; porém, tal constatação pode ser ingênua para os economistas que defendem uma teoria moralmente neutra do consumo. Percebe-se que muitas experiências estão marcadas por discursos e ações deturpadas em relação à cor, gênero e etnia. Em Relações étnico-raciais e educação infantil: ouvindo crianças e adultos, as educadoras, ao proporem o diálogo com os campos das relações étnicoraciais e da educação infantil, reforçam que “adotar a igualdade como princípio não significa a eliminação da diferença, mas o seu reconhecimento” (SOARES, 2017:25). Foi percebido pelas pesquisadoras que, no ambiente escolar, quando da escolha de livros e de brinquedos e do cuidado com os aspectos estéticos (cartazes escolares), ocorre prioritariamente a representação do grupo branco, e isso certamente “impede as crianças negras ou de outro grupo construírem o sentimento de pertença ao seu grupo étnico-racial” (SOARES, 2017:25). Especialmente em um país miscigenado, a repetição de qualquer boneca representando personagens heroínas louras como padrão de beleza leva ao desentendimento da criança sobre seu próprio corpo, confirmando novamente a urgência de se estimular o pertencimento e os valores identitários: “vivemos em uma nação em que uma sutil maioria da população é composta de pretos e de pardos (que, somados, constituem a categoria ‘negros’). Entre os demais, a maior parte são brancos miscigenados” 5. O fulcro da questão é que a primazia das bonecas brancas não permite que a criança tenha escolha, sobretudo diante de um contexto homogeneizado, impedindo, então, a percepção sobre a diferença, o que justifica a inserção desse assunto desde cedo na escola. Enfim, sobre o modo assimétrico de produção x recepção de bonecas/os brancas/os, é coerente reivindicar que a Lei nº 10.639/036 que estabelece a obrigatoriedade do ensino da


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história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e privadas do Ensino Fundamental e do Ensino Médio impacte no cotidiano familiar, nas comunidades e nas escolhas frente à dominação cultural. Que as políticas de ações afirmativas – na busca da equidade, capaz de “reverter a representação negativa dos negros para promover igualdade de oportunidades e para combater o preconceito e o racismo”7 – sejam premissas dos diferentes campos da educação. No Ensino Fundamental as crianças são mais autônomas e, assim, atividades com maior complexidade podem ser trabalhadas em sala de aula. Como consta no documento da BNCC, durante este período elas “estão vivendo mudanças importantes em seu processo de desenvolvimento que repercutem em suas relações consigo mesmas, com os outros e com o mundo” (BRASIL, 2017:54). Os alunos são motivados a levantar questionamentos tanto no contexto familiar quanto no âmbito social e cultural. Inclusive, prevê-se que avanços do pensamento criativo, lógico e crítico sejam estimulados pela elaboração de indagações e pela capacidade de avaliar respostas e interagir com diferentes produções culturais, possibilitando o alunado a ampliar a compreensão de si mesmo e do mundo. Sabe-se também que crianças e pré-adolescentes do Ensino Fundamental demandam um trabalho artístico que se organize em torno dos seus interesses e vivências. Com isso, torna-se importante observar que eles, nessa fase, estão sensíveis para apreender o mundo, expressar nele, articular pensamentos e reações sobre atuar nele – uma vez que eles estão vivenciando a consolidação das aprendizagens anteriores o que propicia ampliação de práticas estéticas. É nessa fase que também se ampliam a autonomia intelectual e os interesses pela vida social, propiciando a interação com o outro. Torna-se imperioso fortalecer a autonomia dos alunos, “oferecendo-lhes condições e ferramentas para acessar e interagir criticamente com diferentes conhecimentos e fontes de informação” (BRASIL, 2017:56). A linguagem da Arte é menos rígida, rica de práticas lúdicas (fácil adesão), capaz de minimizar ou findar o embaraço e a timidez, e de oferecer atividades mais próximas da realidade dos alunos fazendo com que vinculem a elas suas problemáticas, indagações e curiosidades sobre o mundo. É preciso atentar, contudo, para os anos finais do Ensino Fundamental, quando ocorre a transição entre infância e adolescência, caracterizada pelas grandes mudanças consequentes de transformações biológicas, psicológicas, sociais e emocionais. No relatório da BNCC, consta que: Nesse período de vida, como bem aponta o Parecer CNE/CEB nº 11/2010, ampliam-


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se os vínculos sociais e os laços afetivos, as possibilidades intelectuais e a capacidade de raciocínios mais abstratos. Os estudantes tornam-se mais capazes de ver e avaliar os fatos pelo ponto de vista do outro, exercendo a capacidade de descentração, ‘importante na construção da autonomia e na aquisição de valores morais e éticos’. (BRASIL, 2017:56).

Se nessa etapa alterações significativas acontecem no corpo, na voz, na identidade do sujeito, os educadores devem estabelecer exercícios que reflitam a nova percepção que têm de seus alunos, pois: [...] mudanças próprias dessa fase da vida implicam a compreensão do adolescente como sujeito em desenvolvimento, com singularidades e formações identitárias e culturais próprias, que demandam práticas escolares diferenciadas, capazes de contemplar suas necessidades e diferentes modos de inserção social. (BRASIL, 2010:56).

Tais mudanças, inclusive, são expressas nas vestimentas, nas gírias, confirmando o lugar afetuoso do educador ao compartilhar e propor vivências que prezem pelo “diálogo”, visando materializar as “formas próprias de expressão das culturas juvenis, cujos traços são mais visíveis, sobretudo, nas áreas urbanas mais densamente povoadas” (BRASIL, 2010:56). As habilidades manuais denotam ser performances antigas frente às interações típicas da era digital, responsáveis por transformações contundentes na sociedade contemporânea às quais o “simples” ato de bordar e tecer parece não oportunizar. Entretanto, a cultura digital vem comprovando que tanto as crianças quantos os jovens têm se engajado em causas sociais e se tornado protagonistas de suas próprias histórias – de forma ágil, porém viciante e isolada. Agenciar métodos artesanais intercalados ao léxico digital pode fomentar improvisos práticos, diálogos e interações, tudo em tempo real e com caráter presencial. A habilidade manual incentiva fazeres antiestresse, pressupõe momentos de experimentação e confronto com a técnica, habilita o jovem a se reconhecer apto para alguma atividade, privilegia ações temporais longas (evitando aquelas superficiais e imediatas) e enseja elaborações e soluções de problemas complexos. A habilidade manual ainda favorece a representação de ideias, sentimentos, dúvidas e o debate acerca do processo criativo – que se almeja balizado pelos direitos humanos e pensamentos democráticos –, desestruturando violências simbólicas como o bullying e respeitando as diferenças. Confeccionar uma/um boneca/o (prática artística) pode trazer àquela/e que cria contínuos prazeres, repletos de significados quando da representação e materialização, em um objeto têxtil, da infinita nuance dos desejos. A feitura da/o boneca/o como brinquedo, produto artesanal, objeto cênico, objeto artístico, artesania do afeto ou mesmo sem qualquer função prática é válida apenas pelo fato de portar significado lúdico.


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Iniciar a criação de uma/um boneca/o implica pensar sua forma, função e caracterização. Trata-se de um artefato ‘generoso’, pois é permitido nele projetar infinitas combinações para agradar ou desagradar, a ele atribuindo o escopo de que se aproxime das proporções da figura humana ou de um aspecto disforme. As ilimitadas intenções do criador produzirão diferentes sentimentos no receptor. Assim, pode ocorrer que esse “objeto”, quando estiver finalizado, venha/não venha a ser compreendido pelas singularidades que lhe foram aplicadas durante o processo criativo, tendo em vista a diversidade e o multiculturalismo que nos cercam. É que as preferências estéticas estão correlacionadas com a cultura. A afetividade, entre outros elementos, resulta da “disposição psíquica do indivíduo que, em busca de prazer, é provocado pela descarga de tensão”8. Entende-se que corpo humano está predisposto a afetar e ser afetado pelo mundo e tal sentimento aumenta (ou diminui) a capacidade de pensar e existir. Certamente, há relações e objetos que aumentam a capacidade de agir – afeto de alegria. Tal afeição leva o corpo a uma potência maior de ser e agir no mundo porque foi instaurado, aí, um sentimento de reconhecimento, de combinação: um bom encontro. Esse mesmo corpo também vivencia a tristeza e, assim, eventualmente vive diferentes ordens de encontros, convenientes ou inconvenientes. O corpo humano pode, portanto, ser afetado de incontáveis maneiras, mas os sentimentos e significados atribuídos aos objetos e estímulos estarão incondicionalmente associados. A criação de bonecas na sala de aula subentende o ato de costurar o qual invoca repetir o gesto ancestral de representar, transcriar, transfigurar, traduzir formas ou artefatos em significados poéticos e sensíveis. Para Canclini (2008:198), o produto artesanal é por si só um objeto de resistência porque “alguns setores creem encontrar nas culturas populares a última reserva das tradições, as quais poderiam ser julgadas como essências resistentes à globalização”. Cada ser humano aprende de forma singular, e por isso o tempo de aprendizado e da finalização de uma peça dependerá das inúmeras intenções e detalhes: costurá-la e bordá-la com pontos pequeninos, calmamente; bordar a vestimenta; fazer dedos das mãos e dos pés com dobraduras minúsculas etc. Idealmente, a criança ou o pré-adolescente deverá acessar todo o processo de criação da/o boneca/o, a começar pelo contato com tecidos disponíveis no mercado, incluindo as várias etapas pelas quais o material passou: o plantio do algodão; o descaroçamento da semente; sua transformação em fibras e fios (fiação); e a tecelagem. Nesta última etapa da fabricação de um tecido ainda se tem o beneficiamento – que corresponde ao alvejamento, desengomagem e mercerização – e o tingimento (durante o beneficiamento e o tingimento


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emprega-se o maior número de substâncias químicas). Com isso, os alunos ampliarão seu conhecimento sobre meio ambiente e verão que a indústria têxtil é uma ameaça constante ao solo devido ao despejo de resíduos sólidos poluentes e ao uso abusivo de água; por sua vez, este entendimento os torna responsáveis como consumidores-cidadãos. Diante do exposto, é vital que impere, em sala de aula e nos demais contextos, um comportamento politizado em prol do meio ambiente, aproveitando-se a criação artística de bonecas/os para discutir com os estudantes, por exemplo, de onde provêm nossas roupas e a importância da otimização de materiais. Da prática criativa certamente derivam improvisos e cada criador poderá decidir as alterações e subversões da/o própria/o boneca/o: se encurtará as pernas ou as prolongará; se fará o rosto de perfil ou frontal; criará ou não uma barriga; aumentará ou não os ombros; confeccionará a família inteira?; será boneca ou boneco? – além de experimentar diferentes formas de acabamento. A aula de criação de bonecas/os requer um trabalho artesanal e sempre haverá pequenas diferenças entre as peças, mesmo em se tratando dos artefatos produzidos pelo mesmo criador, e com domínio do fazer manual. É também o momento do diálogo em torno da hegemonia de bonecas/os brancas/os e rosas, fato recorrente na indústria e comércio de brinquedos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A/o boneca/o de pano, como bem simbólico da infância, dribla a racionalidade e o monopólio da indústria de brinquedos, e ao vislumbrarmos sua presença como prática artística na sala de aula poder-se-á que a criança e/ou pré-adolescente crie seu próprio objeto, e tenha a sua experiência imaginária individual. A/o boneca/o de pano, como brinquedo em sala de aula, pode ser fruto de uma prática artística que incorpore a ideia de que saberes, valores e generosidade também se dão pelos fazeres manuais. Afinal, no decurso da criação de uma/um boneca/o, provavelmente alguém precisará de uma tesoura emprestada ou ensinará o colega a enfiar a linha na agulha, afirmando a troca de saberes e sorrisos. “As noções de solidariedade, companheirismo, empatia, inclusão social, confiança e respeito aos limites do outro são adquiridas na infância por meio do brincar”9. As crianças sentem-se motivadas quando adquirem autonomia com os trabalhos manuais e está presente, aí, um dos aspectos mais importantes do aprendizado. Sendo assim, a criação de bonecas/os em sala de aula, de fato, testifica a identificação e o aprofundamento de diferentes temáticas, desde os de cunho antropológico e social (corpo, etnia, antirracismo, autoestima, infância etc.) àqueles ligadas à materialidade formal (cor,


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proporção, escala, objeto, produto etc.), permitindo, ainda, pensar sobre práticas similares da escola e de outros espaços culturais. A abordagem sobre o antirracismo sobretudo articula experiências relativas ao altruísmo, fomentando o respeito às diferenças. Portanto, a prática artística da criação de bonecas/os, na esfera das competências específicas da Arte para o Ensino Fundamental, assegura: “Experienciar a ludicidade, a percepção, a expressividade e a imaginação, ressignificando espaços da escola e de fora dela no âmbito da Arte; desenvolver a autonomia, a crítica, a autoria e o trabalho coletivo e colaborativo nas artes;[...]”10 . Nesse sentido, vislumbra-se que alunos passem a criar conexões, de modo crítico, entre os trabalhos artísticos escolares e a cultura, entre eles e o outro, servindo-se de expressividade e imaginação para perpetuar sua autonomia nas criações autorais e colaborativas. REFERÊNCIAS APPADURAI, Arjun. Introdução: mercadorias e a política de valor. In: A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Ed. UFF, 2008, p. 15-87. AZEVEDO, Fernando Antônio Gonçalves. Sobre a dramaticidade no ensino da Arte: em busca de um currículo reconstrutivista. In: PIMENTEL, Lúcia Gouvêa (Org.). Som, gesto, forma e cor: dimensões da arte e seu ensino. Belo Horizonte: C/Arte, 1995, p. 14-43. BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação: conflitos/acertos. 2 ed. São Paulo: Max Limonad, 1985. ______. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. BORGES, Adélia. Design + Artesanato: o caminho brasileiro. São Paulo: Terceiro Nome, 2011. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php? option=com_docman&view=download&alias=79601-anexo-texto-bncc-reexportado-pdf2&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 19 nov. 2020. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História Afro-Brasileira e Africana. Brasília: SECAD/ME, 2004. CAMPOS, Sandra M. C. de la Torre Lacerda. Bonecas Karajá: modelando inovações, transmitindo tradições. 2007. 153 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais – Antropologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008. ______. Culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983. CIRCULARTE EDUCAÇÃO. Explicando a BNCC: As linguagens da arte. 2021. (15m49s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HKFH8v9wt4c&ab_channel=CircularteEduca%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 20 fev. 2021. COELHO, Antonio L. (Org.) Conceitos-chave em Design. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/Novas Ideias, 2011. EDITORA MODERNA. A BNCC na prática #9 – Arte – Fabio Nogueira. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4iRHM-K9wyk&ab_channel=EditoraModerna>. Acesso em: 20 fev. 2021.


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FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007. HÉRNANDEZ, Fernando. A pesquisa baseada nas artes: propostas para repensar a pesquisa educativa. In: DIAS, Belidson; IRWIN, Rita L. (Orgs.) Pesquisa educacional baseada em Arte: a/r/tografia. Santa Maria: Ed. UFSM, 2013, p. 39-62. INSTITUTO ALANA. Criança e Consumo. Entrevistas. A importância do brincar. (Introdução). Disponível em: <http://criancaeconsumo.org.br>. Acesse Publicações: <http://criancaeconsumo.org.br/wpcontent/uploads/2014/02/Crian%C3%A7a-e-Consumo-Entrevistas-Vol-5.pdf LUCIDO, Gil Leonardo Aliprandi. Gestão ambiental têxtil. Rio de Janeiro: SENAI/CETIQT, 2005. (Apostila). MEC – Ministério da Educação. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php? option=com_docman&view=download&alias=10098-diretrizes-curriculares&Itemid=30192>. Acesso em: 21 mar. 2021. MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MURTA, Adelsin. Barangandão arco-íris: 36 brinquedos inventados por meninos. Belo Horizonte: Lapa, 1997. PELBART, Peter Pál. Vida Capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. PEDROSA, Adriano; TOLEDO, Tomás (Orgs.). A mão do povo brasileiro, 1969/2016. São Paulo: Masp Editora, 2016. PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2009. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Ed. USP, 2007. ______. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. SENNET, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009. Tradução de Álvaro Cabral e Cristiane Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. RIBEIRO, Berta G. O artesão tradicional e seu papel na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Nacional do Folclore. 1983. SOARES, Lucineide Nunes; SILVA, Santuza Amorim da. Relações étnico-raciais e educação infantil: ouvindo crianças e adultos. Belo Horizonte: Ed. UEMG, 2017. SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. Afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.

NOTAS DE FIM 1.

Artista Visual e Professora na UEMG Universidade do Estado de MG. Doutorado em Literatura Comparada: Literatura, outras Artes e Mídias UFMG (2010-14). Mestrado em Artes UFMG (1999.2001). Graduação em Artes Visuais UFMG: Bacharelado em Gravura (1990.1994), Bacharelado em Cinema de Animação (1996-98). Licenciatura em Letras UNIP Lagoa Santa MG (2010-2016). Licenciatura em Arte Educação [ 2019-2021/UNITAU]. Especialização em Antropologia Universidade Cândido Mendes (2017.2018). Membro do Grupo Intermídia UFMG .CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Artefatos Lúdicos CNPq. Membro da ATEBEMG Associação de Teatro de Bonecos de MG; Membro da ABTB Associação Brasileira de Teatro de Bonecos. Membro:UNIMA Union Internationale de la Marionnette.

2.

Nos registros fotográficos é possível identificar algumas figuras em gesso da umbanda e uma escultura em madeira representando a entidade do caboclo. Na nova montagem, ampliamos o núcleo religioso afro-brasileiro com um número maior de objetos e imagens de culto, reforçando a importância da presença negra e de seus desdobramentos estéticos e temáticos nos contextos sociais e culturais brasileiros. Na parede norte, em prateleiras, encontra-se um grupo de bonecas de pano que representam


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orixás do candomblé (Exu, Ogum, Oxóssi, Logun Edé, Xangô, Omolu, Oxumaré, Ossâim, Iansã, Oxum, Iemanjá, Nanã, Euá, Obá, Oxaguiã ou Oxalá Moço e Oxalufã ou Oxalá Velho), produzidas por Olga Cacciatore, que foi museóloga no Museu de Ingá, em Niterói. Embora o trabalho fosse executado por uma museóloga, sua produção nos pareceu bastante eloquente e dava conta da representação das entidades do candomblé de forma rigorosa e rica em detalhes e acabamentos. (TOLEDO, 2016:53). 3.

Disponível em: <http://www.museuafrobrasil.org.br>. “Há a certeza de que não se poderia contar essa história por uma visão oficial já escamoteadora, que insiste em minimizar a herança africana como matriz formadora de uma identidade nacional, ignorando uma saga de mais de cinco séculos de história e de dez milhões de africanos triturados na construção deste país. Da perspectiva do negro, este não é um processo exclusivo ao Brasil, pois sua presença, aqui como nas Américas, é indissociável da experiência de desenraizamento de milhões de seres humanos graças à escravidão.” Acesso em: 20 fev. 2018.

4.

Disponível em: <http://www.museunacional.ufrj.br/dir/exposicoes/etnologia/etn002.html>. Acesso em: 20 fev. 2018.

5.

Disponível em: <http://www.museunacional.ufrj.br/dir/exposicoes/etnologia/etn002.html>. Acesso em: 20 fev. 2018.

6.

Disponível em: <http://www.museunacional.ufrj.br/dir/exposicoes/etnologia/etn002.html>. Acesso em: 20 fev. 2018.

7.

Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/>. Acesso em: 20 fev. 2018.

8.

“[...] dos 1945 modelos de bonecas encontrados nos sites das fabricantes, apenas 131 são negras. Já entre as varejistas online, apenas 3% das bonecas disponíveis para compra são negras. A pior situação foi verificada no site das Lojas Americanas, em que, de 3.030 bonecas, apenas 18 eram negras. Já no site da Ri Happy foram encontrados 17 modelos negros entre 632 bonecas e, no Walmart, entre 835, 20 eram negras. FREITAS, Hindara. Apenas 3% das bonecas no mercado são negras, aponta estudo. Disponível em: <http://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,apenas-3-das-bonecas-nomercado-sao-negras-aponta-estudo,10000085868>. Acesso em: 20 fev. 2018.

9.

“[...] dos 1945 modelos de bonecas encontrados nos sites das fabricantes, apenas 131 são negras. Já entre as varejistas online, apenas 3% das bonecas disponíveis para compra são negras. A pior situação foi verificada no site das Lojas Americanas, em que, de 3.030 bonecas, apenas 18 eram negras. Já no site da Ri Happy foram encontrados 17 modelos negros entre 632 bonecas e, no Walmart, entre 835, 20 eram negras. FREITAS, Hindara. Apenas 3% das bonecas no mercado são negras, aponta estudo. Disponível em: <http://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,apenas-3-das-bonecas-nomercado-sao-negras-aponta-estudo,10000085868>. Acesso em: 20 fev. 2018.

10. Por que ensinar relações étnico-raciais e história da África nas salas de aula? Disponível em: <https://ensaiosdegenero.wordpress.com/2014/03/19/por-que-ensinar-relacoes-etnico-raciais-e-historiada-africa-nas-salas-de-aula/>. Acesso em: 21 fev. 2018. 11. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em 19 fev. 2020. 12. Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/assuntos/o-que-sao-acoes-afirmativas>. Acesso em: 17 jan 2021. 13. SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. Afeto, mídia e política. Petrópolis: Ed. Vozes, 2006, p. 29. 14. HENRIQUES, Isabella. In: INSTITUTO ALANA. Criança e Consumo. Entrevistas. A importância do brincar (Introdução). Disponível em: <Publicações: http://criancaeconsumo.org.br>. Acesso em: 28 fev. 2017. 15. “Experienciar a ludicidade, a percepção, a expressividade e a imaginação, ressignificando espaços da escola e de fora dela no âmbito da Arte; desenvolver a autonomia, a crítica, a autoria e o trabalho coletivo e colaborativo nas artes; identificar e apreciar formas distintas das artes visuais tradicionais e contemporâneas, cultivando a percepção, o imaginário, a capacidade de simbolizar e o repertório imagético; explorar e reconhecer elementos constitutivos das artes visuais (ponto, linha, forma, cor,


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espaço, movimento etc.); dialogar sobre sua criação e a dos colegas para alcançar sentidos plurais; reconhecer algumas categorias do sistema das artes visuais (museus, galerias, instituições, artistas, artesãos, curadores etc.


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CAVALO-MARINHO: CORPO, MEMÓRIA E ARTE Camylla Herculano de Barros Portela RESUMO O Cavalo-Marinho é uma manifestação cultural tradicional da Zona da Mata Norte de Pernambuco e agreste da Paraíba, que em sua estrutura multifacetada conecta teatro, música, dança e poesia à dois extratos básicos da sociedade canavieira: o dos escravizados – atualmente trabalhadores rurais – e dos senhores de engenho – atualmente usineiros e políticos, sendo sua prática um espaço de resistência e de recusa à ordem estabelecida. Histórias representadas que permitem a preservação e redefinição das identidades e memórias, que através da ironia e da brincadeira denotam questões presentes no cotidiano e no imaginário. O objetivo deste trabalho é olhar para o corpo desses artistas/trabalhadores e como o corpo através dessa manifestação contribui para manter viva a tradição e formação da sociedade. A tradição advinda de uma manifestação artística corporal ensina as gerações seguintes como é possível manter viva a história de seus ancestrais. Assim se faz tammbém necessário analisar a construção social a partir de vivências e experiências de pessoas subalternizadas, expressadas no folguedo e Patrimônio Vivo de Pernambuco: Cavalo-Marinho, visando os rastros de memória presentes na narrativa e no corpo dos seus representantes e a partindo dessa compreensão desenvolver conceitos como: corpo em arte e performance. Palavras-chave: Memória; Sociedade; Cavalo-Marinho; Corpo; Arte.

ABSTRACT Cavalo-Marinho is a traditional cultural manifestation of the Zona da Mata North of Pernambuco and the hinterland of Paraíba, which in its multifaceted structure connects theater, music, dance and poetry to two basic extracts of the sugarcane society: the enslaved - currently rural workers - and the mill owners - currently mill owners and politicians, being its practice a space of resistance and refusal to the established order. Represented stories that allow the preservation and redefinition of identities and memories, which through irony and play denote issues present in daily life and in the imaginary. The objective of this work is to look at the body of these artists/workers and how the body through this manifestation contributes to keep alive tradition and the formation of society. The tradition that comes from a body art manifestation teaches the next generations how it is possible to keep alive the history of their ancestors. Thus, it is also necessary to analyze the social construction from the experiences of subalternized people, expressed in the folklore and living heritage of Pernambuco: CavaloMarinho, seeking the traces of memory present in the narrative and in the body of its representatives and from this understanding to develop concepts such as: body in art and performance. Keywords: Memory; Society; Seahorse; Body; Art.

INTRODUÇÃO A fim de buscarmos vestígios e preencher lacunas dentro do campo de pesquisa em sociedade sobre a expressão sociocultural Cavalo-Marinho, com uma perspectiva

da

sociologia e da análise bioenergética, é que propomos este projeto. Possuímos o interesse em analisar a relação existente entre psicologia, sociologia, arte e corpo – o qual carrega em si memórias de uma formação social e identitária. Neste sentido a sociologia assume papel principal – por ser o Cavalo-Marinho para além de patrimônio imaterial de Pernambuco, uma forma de expressão que através do teatro de rua busca representar o cotidiano (presente e passado), real e imaginário, por meio de ritmo, tempo, música, poesia e movimentos corporais, carregando memórias de uma tradição nos corpos dos artistas. Usaremos como objeto de estudo o grupo Estrela de Ouro de Condado, fundado em 1979 e atualmente, é


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considerado patrimônio imaterial de Pernambuco carregando em sua história uma longa trajetória de vivências e experiências do período colonial, sendo possível perceber que, em sua maioria, são pessoas que trabalham, já trabalharam ou apresentam uma relação ancestral com a produção de cana-de-açúcar na região. O folguedo é em sua essência reflexo de um processo de adaptação e resistência dos escravizados submetidos à violenta realidade imposta pelo sistema colonial escravista. É necessário analisar a trajetória dentro desse brincante, principalmente pela historiografia do Cavalo-Marinho que se estrutura a partir da colheita de cana-de-açúcar – em que a maioria de seus integrantes eram negros, com descendência africana, que se instalaram no nordeste brasileiro desde o século XIX nos engenhos de cana-de-açúcar e tem com propósito de uma forte crítica dos trabalhadores desse contexto às relações sociais existentes na época, para além disso olhar por uma perspectiva de liberação de dores através da arte. Assim, é importante compreender o conceito de catarse quando pensamos sobre a forte capacidade de liberar tensões emocionais e renovação que a arte permite, sobretudo nesse importante folguedo popular do cenário artístico pernambucano, existe através da expressão artística uma capacidade de descargas de emoções e sentimentos e uma potencialidade para experimentar a liberdade. Para Maria Acserald (2013) o folguedo também pode ter sido uma maneira de aproximação e solidariedade entre os negros vindos de diferentes partes da África, com línguas e costumes diversos, através da manutenção de seus cantos e danças. Uma tradição cuja performance expressada tanto no corpo quanto na narrativa contam uma história de luta que vem arraigada desde o período colonial. Esse contexto revela para além de uma crítica social, uma reflexão sobre questões sociais, principalmente quando falamos de exclusão e preconceito, os quais percebemos resquícios até a atualidade. A analogia da sociedade na manifestação pode ser

percebida por meio de uma análise dos personagens que são

apresentados na narrativa, por exemplo, o Capitão Marinho como a figura do senhor do engenho, os negros como representação dos escravizados, os galantes e damas como a imagem elitista que frequentam as festas; o soldado como representante da lei, o boi como metáfora ao homem do campo. A apresentação dos personagem no brincante se forma por meio do corpo e é no corpo que se desencadeiam processos que caracterizam, que refletem experiências coletivas e subjetivas,

que revelam multiplas possibilidades de contar uma história, assim como

transportar uma tradição oral, para além dessa perspectiva perceber o corpo que monta essa história da sociedade e contribui para sua formação, consequentimente, em toda sua potência


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criativa e curativa. DESENVOLVIMENTO Este projeto abarca sociologia, psicologia (análise bioenergética e

psicanálise) e

cultura. Ele nasce da necessidade de compreender como a fragmentada narrativa de histórias de vida é composta de “rastros de memória” (Ricoeur, 2007) do povo pernambucano, que se expressa através da performance corporal e oral. A tradição do Cavalo Marinho que acontece desde a época colonial permanece viva através da tradição corpo-voz. A relação com arte e o corpo surge a partir de uma narrativa reflexiva, construída tendo como base os conceitos de corpo em arte, estética relacional, caráter, mito e o corpo enquanto

expressão dos sentimentos, compreendendo acima de tudo o processo de

transformar uma

possível consciência-corpo em corpo-consciência, conforme afirma o

filósofo, ensaísta e professor José Gil (2004) [...] a consciência torna-se “consciência do corpo”, os seus movimentos, enquanto movimentos de consciência adquirem as características dos movimentos corporais. Em suma, o corpo preenche a consciência com sua plasticidade e continuidade próprias. Forma-se assim, uma espécie de “corpo da consciência”: a imanência da consciência ao corpo emerge à superfície da consciência e constitui doravante o seu elemento essencial (Gil, 2004, 108).

Compreender a noção de uma consciência e de como essa consciência também pode ser corpórea é mergulhar nas ideias de Gerald Edelman (1992, 2004), que acredita que somente seres corporais podem experimentar a consciência como indivíduos. Para ele, a consciência é

essencialmente o resultado de funções corporais e da organização e

funcionamento do cérebro de cada indivíduo, logo um processo que pode ser manifestado também pelo corpo. A socialização do indivíduo com o meio é importante para que a consciência corpórea exista,

pois ela seria na perspectiva de Fritjof Capra (2001) um

fenômeno social. Na mesma linha de pensamento António Damásio (2000) afirma que além da consciência ser corpórea, ela surge somente por meio de um sentindo pessoal que emerge do corpo. A manifestação social de uma tradição seria, portanto a forma de trazer histórias pessoais e transgeracionais através de uma manifestação corporal, e, através desse suporte, toma-se consciência das memórias de

várias gerações. Desse modo, reforçamos a

complexidade da experiência consciente que se constrói por processos cognitivos tais como memória, percepção e emoção. Toda a linguagem corporal e verbal do folguedo do CavaloMarinho é repleta de simbolismo e a forma como a manifestação é construída permite representar hierarquias sociais, gerando uma teia de significados para a vida permitindo


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expressões de emoções, sensações e vivências, seja por meio do corpo ou da narrativa. O Cavalo-Marinho atualmente se enquadra como bem imaterial cultural de forma de expressão conforme estabelece o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e apresenta a versão regional do boi de terreiro que é exclusiva da Zona da Mata Norte de Pernambuco e agreste da Paraíba. Estudar a cultura popular é abrir possibilidades para quebrar conceitos e preconceitos, buscando entender os significados partilhados por grupos sociais em diferentes momentos históricos de uma mesma cultura através da memória que não se expressa apenas na fala. Nesse caso percebe-se também no corpo dos artistas, na representatividade dos arquétipos, no processo transgeracional e na representatividade ancestral, como é o caso de um dos personagens o Capitão-Marinho, que representa o arquétipo do político. É importante compreender como o corpo em todo seu movimento é capaz de se construir de sentidos e produzir cenas, entendendo como o corpo desses trabalhadores/artistas se forma a partir da construção de personas ou figuras de uma autorepresentação. Os sentidos que são existentes em cada expressão estão ligados a uma esfera cultural que é responsável por passar para cada signo um significante, um acordo social que parte da relação do homem com seu

corpo, sua expressividade e seus movimentos. Assim, a escolha da Análise

Bioenergética para compactuar com a sociologia e com a psicanálise nesse embasamento teórico, surge quando percebemos que essa abordagem que se fundou a partir das ideias do psicanalista Wilhelm Reich, na década de 1930, consiste basicamente em compreender o individuo como corpo, mente e espírito de forma que esses três pontos se entrelaçam e se influenciam mutuamente. Isso possibilita relacionar a energia corporal com as emoções, tornando-as mais conscientes.

A partir do momento que existe essa relação, a

comunicação/linguagem se desenvolve,

influenciada em três instâncias: autopercepção,

autoimagem e autoestima. Pensamos também no Cavalo-Marinho como um ritual que, ao enveredarmos nas idéias de Richard Schechner (2016, p. 52), compreendemos o conceito de rituais como memórias coletivas decodificadas em ações, que são manifestadas por esses corpos, aqui chamados de corpos-memória. Permite entender o quanto essas memórias são essenciais para dar sentido a

formação de uma identidade, como defendido pelo escritor venezuelano

Fernando Báez (2010, p.286), que acredita que as recordações compartilhadas costumam ser aglutinantes e são a base das memórias que permitem falar de uma história comum, neste caso, uma representatividade de uma tradição, não necessariamente algo estático, mas algo que ganha um movimento através de corpo-memória que armazena e permite reconhecer um


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universo repleto de mitos com conotações ancestrais. Cabe enveredar nas ideias de Walter Benjamin (2000, p. 120-121), que em sua obra O Narrador traz uma distinção entre “vivência” e “experiência”, sendo a segunda algo transgeracional. Para Sant’anna (2000, p. 50) cada corpo, longe de ser apenas constituído por leis fisiológicas, supostamente imutáveis, não escapa à história. Logo, o corpo é, acima de tudo, linguagem, é um sistema social pré-existente no ser humano que já era pontuado por Walter Benjamin em seus ensaios Sobre a linguagem em geral e Sobre a linguagem humana, quando afirma que “toda e qualquer comunicação de conteúdos é linguagem” (BENJAMIN, 1992, pág. 180). Ele não limita a comunicação apenas à palavra, mas a tudo que se compreende, assim, para ele “não há acontecimento ou coisa, seja na natureza animada, seja na inanimada que, de certa forma, não participe da linguagem, porque a todos é essencial a comunicação do seu conteúdo espiritual” (BENJAMIN, 1992, p.177). Partindo do entendimento que a linguagem é aquilo que comunica, seja um texto, um gesto ou uma obra de arte, percebemos que o corpo se torna, nesse sentido, mediador entre o mundo e as coisas. É pelo corpo que somos conduzidos à relação com o meio, colocando, desta forma, o estado de consciência como algo perceptivo, compreendendo a fusão do homem com o mundo como algo encarnado. A linguagem, as tradições e a oralidade, por exemplo, são formas de preservar a memória. Nesse caso, o corpo e a narrativa carregam memórias. Para nos aprofundarmos nas idéias de linguagem, de corpo e de vivências, cabe nos adentramos no conceito de pulsão formulado por Freud, onde podemos abarcar a idéia de um corpo pulsional que se manifesta através de uma rede de representações, tanto inconsciente quanto consciente. Diante dessa correspondência, podemos pensar ainda no corpo como um mediador entre sujeito/mundo interno e sujeito/mundo externo. Assim, o corpo pulsional pode ser entendido como um elemento de estruturação psíquica e, para além, como definido por Freud (1923), esse corpo também se firma como uma superfície que pode originar sensações internas e externas. Logo, possibilita inscrever nele histórias não apenas subjetivas, mas também as vivências do indivíduo, ou seja, sua troca com o mundo. Há de convir a necessidade de um aprofundamento no entendimento de imagem corporal como sendo uma forma de registro inconsciente. Para isso, as idéias de Dolto (1984) corroboram que, para além de um propósito fisiológico, há um teor emocional instaurado na estrutura corpo pela relação

simbólica com o outro, pela memória inconsciente do vivido relacional e pelo

psíquico arcaico. A cultura pernambucana é arraigada por elementos narrativos de representação de um


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corpo e de uma tradição que vive até hoje. Quando delimitamos o conceito de imagem corporal e esquema corporal, percebemos que o primeiro termo representa a importância de entender como as histórias e vivências de cada individuo se relacionam partindo de um inconsciente – algumas vezes se tornando pré-consciente quando está associado a linguagem. Assim, imagem corporal representa o lugar onde as pulsões são manifestas. O esquema corporal, por sua vez, é a potencialidade do sujeito em representar sua espécie, fazendo isso por meio de suas experiências e aprendizagens, e é independente da linguagem, se fazendo muito mais presente em uma representação sensível e motora. Assim, entendemos que a linguagem é a linha tênue entre imagem e esquema corporal e que é pela via da narrativa que a humanização se concretiza. Entendendo que a linguagem é formada de signos e símbolos lingüísticos, concluímos que a imagem corporal também é regida de forma simbólica, uma vez que ela se instaura pela linguagem. Entender o corpo sem desconsiderar a sua relação com o espaço, vivências e linguagem, foi uma das propostas de Pankow (1986), quando desenvolveu sobre o corpo vivido em comunicação com o espaço que se vive. Nesse sentindo, entende que o sujeito habita o corpo, logo sua dimensão existencial refere-se ao ser-no-mundo. Para que o corpo consiga se perceber nesse mundo, a linguagem se torna um caminho, uma vez que parte dela a possível relação com o outro. É através da comunicação que se torna possível o corpo articular a relação com o espaço, com o outro e consigo – essa comunicação pode se presentificar das mais diversas formas: oral, corporal, escrita, por exemplo. A partir daí o que era apenas simbólico começa a ganhar sentido na história do sujeito, é basicamente o código da comunicação entre o outro e si sendo reconhecido. Segundo Kofes (1985), corpo é acima de tudo uma expressão cultural, logo sua manifestação se forma de diferentes maneiras quando compreendemos as diferentes culturas. Assim, reforçamos as idéias de Damatta (1987) quando nos faz refletir sobre a quantidade de corpos frente às diferentes sociedades. Pensando não apenas no corpo como estrutura biológica, mas, como já trazia Roudinesco (2000, p. 9), o homem é livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico, ou seja, é um reflexo natureza/cultura/expressão. O corpo vivido é inundado por essas diversas formas de comunicação e o que era apenas simbólico começa a ganhar sentido na história do sujeito, na qual o código da comunicação entre o outro e si é reconhecido. A arte, em sua grande missão, não silencia, fala, grita. Nela a essência do sujeito se encontra e se reencontra. É nessa interface de dança, música, contos, poesia e teatro, que o homem e sua dimensão corporal mediam as demandas do mundo. Cada interpretação, cada ato, cada escrito, se torna uma grande vitrine do sujeito, de subjetividade, de experiência e de


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alma. Quando paramos para compreender o corpo como algo intrínseco ao sujeito, que habita uma força que pulsa e impulsiona a comunicar algo, entendemos que dentro de um processo que revelamos singularidades, marcas, memórias, detalhes e rastros. Assim, percebemos dentro desse processo uma conexão com uma multiplicidade de imagens e memórias que vivem e se comunicam por meio da manifestação Cavalo-Marinho e que podem ser estudadas por meio da psicologia e da sociologia, uma vez que, como campos híbridos permitem um diálogo entre os diferentes campos como ciência, a cultura e a história. O corpo aqui sendo reconhecido como comunicação, é um meio de produzir signos, e, ao mesmo tempo, um conjunto de signos que relaciona órgãos, sentidos e produz significados através das suas relações e conexões. Produz identidades e surge através dessa manifestação uma possibilidade de estudar, por um viés da Análise Bioenergética, o corpo desses artistas que carregam uma história não apenas individual, mas coletiva e em mais de oito horas de apresentação e com mais de setenta personagens, recriam memórias, mitos, vivências, expressam dores e dúvidas que são demonstradas no corpo e na voz, trazendo para o consciente essas experiências como prova de resistência cultural ou de preservação da memória coletiva de um grupo historicamente oprimido. Theodor W. Adorno nos apresenta a ideia que a palavra é o corpo do pensamento. Assim, compreender o corpo na palavra nos possibilita múltiplas direções. Através desse projeto

buscamos mostrar como o corpo narrado carrega memórias, que não apenas

armazenam conteúdos apreendidos, mas também representam a capacidade humana de narrar fatos, de ordenar o tempo e o espaço, dessa forma, desenvolvendo os processos de formação de uma sociedade. O corpo nessa perspectiva se torna mediador entre essa relação do mundo externo

com o mundo interno. Para Agostinho (1984, p. 274-275), a importância de

apreender para guardar na memória é inquestionável. (...) Luz, cores e formas dos corpos, através dos olhos, os diversos tipos de sons, os vários tipos de odores através do nariz, os sabores pela boca e através da sensibilidade de todo corpo, o que é duro ou mole, quente ou frio, liso ou áspero, pesado ou leve, e todas as sensações externas e internas. A memória armazena tudo isso em seus amplos recessos e em seus esconderijos secretos e inacessíveis, para ser reencontrado e chamado no momento oportuno. (AGOSTINHO, 1984, p. 274 - 275)

A relação corpo/memória vem sendo de grande importância na cultura oriental e ganhado grande espaço na cultura ocidental quando pensamos no processo de (re)conexão entre mente e corpo. O corpo que para Bergson não cria em sua essência as imagens do universo, mas de sensações que fazem parte de um fluxo continuo de ação, e a percepção da


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matéria que se fixa ao corpo. A memória tem finalidade de resgatar percepções vividas, recordando-as e adentrando nas idéias da análise bioenergética, entendemos que não temos um corpo, mas que nós somos um corpo e por tanto nossas memórias estão presas a ele e que são ensinadas a cada geração por uma prática advinda de uma tradição corpo-voz. CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscamos relacionar sociologia, arte e análise bioenergética ao corpo e as tradições como um objeto de memórias, compreendendo a experiência do corpo numa sociedade assim construída, norteado pela abordagem crítica, concluindo sobre a importância de investigar os conceitos de corpo, cultura e sociedade com base de dados na manifestação cultural do Cavalo-Marinho. O corpo representa um símbolo da própria estrutura da sociedade, ele muda, sofre alterações e de maneira infalível, faz parte dessa ordem simbólica da sociedade. Compreender como esse corpo que tem sido reconfigurado, regulado, mutilado, deformado e transformado, não deixando de significar algo e a bioenergética busca resgatar e aproximar significados para esse corpo. Por meio do Cavalo Marinho percebe-se uma tradição oral que apesar das mudanças sociais carregam no corpo de desses trabalhadores/artistas significado e expressam a formação de uma sociedade que vive e revive histórias. Foi importante compreender o impacto dessa manifestação na formação da sociedade através do folguedo popular que com aproximadamente 70 personagens contam a história de um recorte da sociedade, através de versos falados de forma poética, representa personagens reais em uma forma de expressão de sentimentos e dores daqueles que vivenciaram esses momentos. O enredo circula ao entorno de dois extratos básicos da sociedade canavieira: o dos escravos – atualmente trabalhadores rurais – e dos senhores de engenho – atualmente usineiros e políticos. O corpo, a fala, a expressividade mantêm viva rastro de memórias. Assim, esse projeto intenta valorizar as memórias, a tradição oral, a cultura e o corpo, não esquecendo que de forma geral, ainda há uma dificuldade em reconhecer saberes e memórias coletivas que circulam como definidoras de uma construção de uma identidade cultural. O corpo, que permanece mais de oito horas ativo, vivo e buscando essa expressão de um cultura expressa através da performance muito mais do que gestos, ele expressa rastros de uma sociedade que permanece viva, pulsante e que apesar das transformações culturais grita como forma de resistir principalmente através de uma geração que transmite para seus membros uma cultura através do fazer. REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Sto. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984


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BÁEZ, F. A História da destruição cultural da América Latina: a identidade cultural. São Paulo: Nova Fronteira, 2010. BENJAMIN, W. Oeuvres III. Paris: Gallimard, 2000. BERGSON, H. Memória e vida. Tradução Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CAPRA, F. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Editora Cultrix, 2002 DAMATTA, R. O corpo brasileiro. In. Strozenberg, I.(org). De corpo e alma. Rio de Janeiro, comunicação contemporânea, 1987 DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. Sao Paulo: Perspectiva, 1984. EDELMAN, G. Winder tha the sky: the phenomenal gift of consciousness. New Haven: Yale University Press, 2004 GIL, José. Movimento Total. O Corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004. HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffer. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. KOFES, S. E sobre o corpo, não é o próprio corpo que fala? In. Bruhns, H.T. (org). Conversando sobre o corpo. Campinas, Papirus, 1985 LOWEN, A. Bioenergética. São Paulo: Summus, 1982. PANKOW, G. O homem e sua psicose. Campinas, SP: Papirus, 1983. REICH, W. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1995 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007 ROUDINESCO, E. Por que a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zaha, 2000. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Descobrir o corpo: uma história sem fim. Educação e Realidade. Porto Alegre: FACED/UFRGS, v. 25, n.2, jul./ dez. 2000 SCHECHNER, Richard. Performance Studies: An Introduction. Routledge, 2002.

NOTAS DE FIM 1.

Notas e currículos dos/as autores/as: Graduada em Psicologia, Pós-graduada em Análise Bioenergética, Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Doutoranda em Memória Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio), desenvolve estudos voltados para as relações mnemônicas através do corpo em diversos campos de saberes, atualmente seus estudos são voltados para o patrimônio imaterial cultural, corpo, movimento feminista e negro dentro da manifestação cultural do Cavalo Marinho. Trabalha com autores voltados para memória e corpo como Halbwachs, Fanon, Lowen, Ricoeur.


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CORPO CRIADO E RECRIADO: a prática da dança com objetivos educacionais Isabele Fogaça de Almeida

RESUMO O presente artigo tem como objeto de estudo reflexões sobre corporeidade e a importância das práticas de dança, dentro da conjuntura das escolas de Educação Infantil, que são o contexto principal da vivência e reconhecimento do mundo de muitas crianças. Pensando em uma formação integral das crianças, que congregue o corpo, a mente e a cultura; e que considere suas diferenças e valorize os seus potenciais, trabalhar com a linguagem artística da dança nesta etapa se faz essencial. Essa linguagem faz a integração de todos os elementos que nos constituem – social, emocional, cultural, intelectual, cinestésico; de forma que quem a pratica, aprende sobre si e sobre os outros, e constitui-se enquanto um ser social que é recriado constantemente. Palavras-chave: Corporeidade; Dança infantil; Educação Infantil; Movimento.

RESUMEN Este artículo tiene como objeto de estudio reflexiones sobre la corporalidad y la importancia de las prácticas de la danza, en el contexto de las escuelas de Educación Infantil, que son el contexto principal de la experiencia y el reconocimiento del mundo de muchos niños. Pensando en una formación integral de los niños, que aúne cuerpo, mente y cultura; y que consideren sus diferencias y valoren sus potencialidades, trabajar con el lenguaje artístico de la danza en esta etapa es fundamental. Este lenguaje integra todos los elementos que nos constituyen: social, emocional, cultural, intelectual, cinestésico; para que quienes la practican, aprendan de sí mismos y de los demás, y se constituyan en un ser social que se recrea constantemente. Palabras llave: Corporalidad, Danza infantil, Educación Infantil, Movimiento.

INTRODUÇÃO Durante toda sua vida o homem/a mulher é um ser essencialmente corporal, pois é manifestamos nossos corporeidade está

através do corpo que

desejos, valores, culturas, etc. A diretamente ligada aos processos de

desenvolvimento do corpo, seja com aspectos fisiológicos, seja com a construção histórica, cultural e social da mente que reflete no corpo. Com o passar do tempo, novas teorias e percepções sobre o corpo/corpo e mente foram

constituídas. Uma teoria

desenvolvida é a Teoria-Histórico-Cultural, construída com base nos

estudos de pesquisadores tais como Vygotsky, Wallon,

Leontiev, Luria, entre outros, a qual trata os processos psíquicos e biológicos de forma integrada, o que nos permite compreender


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que os aspectos naturais estão entrelaçados com os aspectos culturais. Portanto, para essa abordagem, a formação do sujeito não é retida somente a si em aspectos genéticos, mas principalmente dentro das relações sociais que cercam esse indivíduo.

Na

medida em que essas relações estão estabelecidas, são passíveis de mudanças pelo agente político, fazendo então que sujeito e sociedade não possam ser analisados separadamente. Há padrões estéticos e comportamentais criados pela sociedade que incidem sobre os nossos corpos, que já existem antes mesmo de nós nascermos, e que nos influenciam conscientemente ou inconscientemente. E desde o processo de maturação, a criança se percebe e comunica-se com o mundo a sua volta, fazendo com que as informações recebidas sejam reproduzidas através do seu corpo, em todos os aspectos do movimento. Nessa linha de raciocínio “O corpo não se revela apenas enquanto componente de elementos orgânicos, mas também enquanto fato social, psicológico, cultural, religioso. Em qualquer realidade do mundo,

o corpo é socialmente

produzido” (BARBOSA, MATOS E COSTA, 2011, p. 28). Nanni (1998, p.8) aponta que é "imprescindível para que o ser humano se torne sujeito

de sua práxis no desvelar a sua

realidade histórica, através de sua corporeidade". Nesse sentido, podemos considerar a dança como um instrumento que o ser humano utiliza para se desenvolver pessoalmente e socialmente, pois por meio dela, ele pode estabelecer um canal de comunicação com o mundo ao seu redor. Tanto é, que a dança existe desde as civilizações mais remotas; está imbricada na

sociedade. Nanni (2003, p.7)

evidencia essa informação quando cita que: "As danças, em todas as épocas da história e/ou espaço geográfico, para todos os povos é representação de suas

manifestações, de seus


140

'estados de espírito', permeios de emoções, de expressão e comunicação do ser e de suas características culturais". Percebendo a importância do corpo em movimento carregado de significados, e considerando que a dança é uma linguagem que se expressa através do corpo, é necessário que a prática da dança composta por objetivos educacionais, seja iniciada na escola, principalmente nos primeiros anos. Quando pensamos no contato que as crianças têm no Ensino Infantil, com a arte e com a dança, quando têm, percebemos que precisamos refletir e planejar intencionalmente

esse contato com o corpo, e é

indispensável que o profissional da educação esteja preparado para explorar os conteúdos que englobam esse tema e inseri-los em sua prática pedagógica. Essa inserção crítica dos estudos de corporeidade, favorece a concepção da consciência

corporal, noções de espaço,

individualidade e coletividade, socialização, percepção do seu próprio ritmo e do outro, entre muitos outros fenômenos que podem ser descobertos. Com as novas políticas de acesso à Educação básica, e à Educação Infantil, a escola se torna o ambiente principal da vivência e reconhecimento de mundo da criança. Assim, nesse trabalho propõem-se levantar e relacionar reflexões sobre a importância dos estudos e práticas de dança, especialmente na infância; baseando-se na visão de que essa linguagem faz a integração de todos os elementos que nos constituem – social, emocional, cultural, intelectual, cinestésico; de forma que quem a pratica, aprende sobre si e sobre os outros, e constitui-se enquanto um ser social que é criado recriado constantemente. DESENVOLVIMENTO

A ESCOLA


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À escola foi delegada a função de formação das novas gerações em termos de acesso à cultura socialmente valorizada, de formação do cidadão e de constituição do sujeito social. (José Geraldo Silveira Bueno) A escola é uma instituição social que tem como função formar integralmente sujeitos a

partir da construção e da

socialização dos conhecimentos produzidos pela humanidade em determinado espaço de convivência entre pessoas. Por formação integral entende-se o desenvolvimento em diversas áreas- cultural, afetivo,

físico, social, político,

filosófico, profissional, entre outros. Nesse sentido, o sujeito é compreendido em sua totalidade; e é nessa totalidade, que este constrói o conhecimento e desenvolve potencialidades a partir da socialização na escola. Conforme afirma Libâneo (2005, p.117): [...] educação de qualidade é aquela mediante a qual a escola promove,

para todos, o domínio dos conhecimentos e o

desenvolvimento de

capacidades cognitivas e afetivas

indispensáveis ao atendimento de necessidades individuais e sociais dos alunos. Assim, a escola possui formas de organização, procedimentos e normas que transcendem a formalização da sua estrutura; elas são articuladas com os sujeitos sociais que a compõem. De forma contextualizada, a relação ensino-aprendizagem deve acontecer de maneira horizontal e

que todos os sujeitos

participantes socializem e construam junto, conhecimento. Para Paulo Freire uma das tarefas mais importantes é “propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se”, num sentido também integral, “como ser social e

histórico, como ser

pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de


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sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar” (1997, p.46). Entretanto, há também que se analisar o outro lado da moeda, de como essa instituição

tem atuado na sociedade. Para

Foucault (1987) a escola se tornou uma instituição de sequestro, onde não se aprende apenas a controlar o tempo dos indivíduos, mas a extrair o máximo de tempo e força de seus corpos. Desse modo, historicamente a instituição escolar detém a responsabilidade de higienizar o corpo, corrigi-lo e qualificá-lo dentro das lógicas vigentes do sistema (TIRIBA, 2008, p.4). É valido destacar que dentro de discursos generalizantes, todos somos iguais; contudo, é

perceptível a olho nu que nossas

marcas e subjetividades são completamente distintas, e a problemática logo se dá na falta de discussão das nossas diferenças. Na sala de aula, há crianças,

negras, brancas,

indígenas, portadores de necessidades especiais, LGBT, gordas, magras, etc. Não se pode distribuir uma mesma prática pedagógicaeducativa a todas. Por melhor que seja o planejamento e escolha de conteúdos, cada destinatário recebe de maneira diferente as informações; e entre essas recepções pode estar a de um sujeito que está sendo vítima de alguma marginalização perante sua identidade, o que o faz ter dificuldade na

compreensão e

construção de conhecimentos. Logo, uma formação que pense o corpo, a mente e a cultura, não tão somente rompe os padrões mortíferos e segregadores, mas auxilia na qualidade do ensino-aprendizagem, promovendo práticas de acolhida das diferenças e valorização dos sujeitos em sua potencialidade. Pode-se dizer, segundo Maturana e Valera que o aprendizado envolve a relação mútua de corpo e mente, aprendizagem não é mera reprodução, mas atividade que cria e necessita do envolvimento do organismo com o meio (GUIMARÃES, 2008. p. 27).


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A EDUCAÇÃO INFANTIL A educação infantil é uma etapa da educação que deve ser sempre tratada com

relevância, pois é um momento

determinante para toda formação que ocorrerá ao longo da vida; momento em que a criança se desenvolve como ser humano em seus aspectos mais diversos, tais como intelectual, emocional e motor; aspectos esses, que serão decisivos na forma como esse ser contribuirá com a sociedade. Integrando a Educação Básica desde 1996, a Lei de Bases e Diretrizes da Educação/LDB nº 9394/1996 estabelece que: Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem

como finalidade o desenvolvimento integral da

criança até seis anos de

idade, em seus aspectos, físico,

psicológico, intelectual e social, completando a ação da família e da comunidade. Essa etapa é de responsabilidade dos municípios, e é oferecida em creches para as crianças até três anos de idade, e em pré-escolas para as crianças de quatro e cinco anos¹. É uma etapa não obrigatória, mas só por integrar a Educação Básica, ser percebida como um processo educativo, e fazer parte das políticas de educação, já representa um grande avanço, pois historicamente a Educação Infantil foi caracterizada pelo caráter assistencialista, restrito a cuidados básicos com a criança. Nessa faixa etária, há uma forma extraordinária de pensar e sentir o mundo; as crianças fazem uso de diversas linguagens para expressarem os seus sentimentos, comunicarem seus pensamentos; e através dessa comunicação, criam e recriam a todo o momento uma construção simbólica carregada de significados que fará parte de sua realidade. Dessa perspectiva, não há uma essência humana, mas uma construção do

homem em sua permanente atividade de


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adaptação a um ambiente. Ao mesmo tempo em que a criança modifica seu meio, é modificada por ele. Em outras palavras, ao constituir seu meio, atribuindo-lhe a cada

momento

determinado significado, a criança é por ele constituída; adota formas culturais de ação que transformam sua maneira de expressar-se, pensar, agir e sentir. (OLIVEIRA, 2002, p. 126). Nesse sentido, é essencial que as instituições de Educação Infantil propiciem um espaço físico e social que se leve em consideração esses aspectos. Como é comum haver um interesse espontâneo das crianças a tudo que é proposto, esse fator viabiliza ao educador um

planejamento diversificado,

abrangendo todas as áreas de conhecimento, que aproxime as crianças do repertório cultural ao qual estão inseridos, possibilitando a construção e reconstrução das identidades das mesmas. Cada uma no seu tempo, do seu jeito, estão como esponjas absorvendo tudo o que a escola ensina, então esse deve ser um espaço de profissionais que não aprisionem e engessem as crianças; mas estimulem a curiosidade, ouçam, explorem o potencial de todas as formas de aprendizado, e respeite suas individualidades. Concordamos com Rubem Alves (2000, p. 166), quando ele afirma que: Enquanto a sociedade feliz não chega, que haja pelo menos fragmentos

de futuro em que a alegria é servida como

sacramento, para que as crianças aprendam que o mundo pode ser diferente. Que a escola, ela mesma, seja um fragmento do futuro...

A DANÇA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Ao pensarmos em um mundo melhor do que o que vivemos


145

atualmente, é bastante

comum depositarmos as nossas

esperanças nas gerações mais jovens. Janusz Korczak, em seu livro Quando eu voltar a ser criança conta a história de um professor adulto que sente saudades de quando era criança; e ganha a oportunidade de rejuvenescer. Essa oportunidade proporciona

ao antes Professor, e agora aluno, muitas

experiências e reflexões sobre o universo dos adultos e das crianças; do primeiro amor à tristeza de não se poder fazer o quer, ele percebe que as crianças também sofrem. Nesse livro, ele relata a seguinte reflexão no momento em que é criança: “As crianças são os homens do futuro. Quer dizer que eles existirão um dia, mas por enquanto é como se ainda não existissem. Ora, nós existimos: estamos vivos, sentimos, sofremos” (1981, p. 152). Essa reflexão é muito pertinente, pois realmente muitas vezes focamos mais no que as crianças farão no futuro, serão no futuro, e deixamos de perceber e entender o que elas são, e como elas estão no presente. E esse tipo de atitude é praticada por parte de adultos que podem ser de diversos círculos sociais da criança, como do núcleo familiar, da igreja, e também da escola, que muitas vezes é onde a criança passa boa parte do seu tempo. Muitas vezes os educadores tem o pensamento equivocado de que o saber é relacionado à idade, e pensam que como mais velhos e detentores do saber, devem depositar conhecimento nas crianças e impor suas visões de mundo, ignorando que as crianças também têm conhecimento, e têm as suas próprias visões de mundo, que são igualmente importantes. Nessa concepção de ensino não dialógica, hierarquizada, com o saber centralizado na

figura do professor, por serem

consideradas inferiores, as expressões dos alunos vão sendo podadas, corrigidas para que futuramente se adaptem ao


146

mercado de trabalho; de forma que são privilegiados valores intelectuais em detrimento dos valores corporais, há a preferência de uma higienização de corpos ao invés de uma prática educativa que explore o corpo inteiro, o que

inclui

cabeça e pescoço para baixo. Fux aponta que: Quando somos crianças necessitamos mover-nos porque movendo-nos expressamos nossa vontade de rir, de chorar ou de brincar. À medida que crescemos, nosso corpo, pelos tabus de uma civilização que corrompe nossa necessidade de expressão, perde cada vez mais o desejo de mobilização. (1983, p. 67) Depois de anos sofrendo “podas” de todos os lados, os adultos ficam com vergonha de fazer o que vem na cabeça, de se expressarem através do corpo, de brincar, de chorar. E vale lembrar que a escola está cheia de adultos que um dia já foram crianças que antes mesmo de falar, aprenderam a se comunicar através do corpo; porém cresceram dentro dessa cultura de silenciamento de corpos, e hoje reproduzem e ensinam as crianças a ficarem quietas, e passivas aos regimes disciplinares impostos. Seguindo essa perspectiva, não é de se espantar que a dança, que vai num sentido contrário a essa lógica, não faça parte do que é ensinado na escola. O corpo é a nossa primeira forma de comunicação e não é levado a sério. A dança é uma linguagem corporal e também por

esse motivo, não é valorizada. A

perspectiva da negação do corpo é cultural, aliás, o corpo é controlado, para que um dia se possa chegar ao controle da mente. Conforme Godoy (2010) na

escola infelizmente há

carência de iniciativas relacionadas à linguagem da dança. Ao integrar um projeto que tinha como objetivo entender como estava sendo desenvolvida a dança em escolas da rede municipal de ensino situadas em São José-SC, Elaine Lima apontou na sua dissertação de mestrado em Educação Física a


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partir dessa experiência, que as compreensões de dança ainda eram muito reduzidas: [...] os conteúdos e metodologias estavam, quase sempre, direcionados ao simples repasse de informações, seguindo um modelo tradicional de

organização das aulas, onde o

conhecimento está centralizado no/a professor/a. Este cenário limitado de compreensão e significação das possibilidades que a dança pode trazer para a educação e para a

formação das

pessoas que dançam, nos mostra a necessidade de realizar mais estudos na área da dança educativa, nos diversos níveis de ensino, no sentido de contribuirmos, cada vez mais para o saber e o fazer dos profissionais que trabalham com a dança numa perspectiva educativa (2009. p.17). Considerados todos esses elementos, fica evidente que ter a dança incorporada nas escolas, de forma planejada, consciente e tendo seu potencial enquanto linguagem explorado, ainda é um desafio na sociedade em que vivemos, e há um caminho que se percorrer até que isso se efetive. E esse artigo também é um esforço no sentido de estimular a inserção da dança no caminho do contexto escolar das crianças: [...] transformar a realidade parece uma tarefa utópica e distante das

mãos do educador. Mas, considerando que a

transformação faz parte da própria natureza humana, são os atos humanos, em sua peculiaridade,

que têm a força da

transformação. Pequenas ações, aparentemente frágeis, podem intervir na visão de mundo de cada um, realimentando, individual e coletivamente, a rede interativa capaz das grandes intervenções. Essa possibilidade amplia-se nas mãos docentes, no

cotidiano do educador comprometido com a formação

integral de seu aluno (MATTHES, 2010, p. 132). Pensando em uma formação integral das crianças, que congregue o corpo, a mente e a


148

cultura; e que considere suas diferenças e valorize os seus potenciais, trabalhar com a linguagem artística da dança na Educação Infantil, se faz essencial. A dança enquanto um processo

educacional contribui para o aprimoramento das

habilidades básicas do movimento, além de

favorecer a

criatividade. Ainda, enquanto experiência corporal possibilitará as crianças novas formas de expressão e comunicação, levandoos à descoberta da sua linguagem corporal e expressão dos sentimentos. É nesse sentido que Godoy et al, afirma que: O ensino de dança na escola pode dar subsídios ao aluno para melhor

compreender, desvelar, desconstruir, revelar e

transformar as relações que se estabelecem entre corpo, arte e sociedade, de forma a contribuir para que os alunos tomem consciência

de

suas

potencialidades,

aumentando

sua

capacidade de resposta e sua habilidade de comunicação. Seu objetivo englobaria a sensibilização e a conscientização tanto nas posturas, nas atitudes, nos gestos e nas ações cotidianas, quanto em suas necessidades de se expressar, comunicar, criar, compartilhar, interagir na sociedade em que vivemos (2010, p.39). Partindo desse pressuposto, percebe-se que o ensino da dança nas escolas tem um potencial gigantesco. Mas não é qualquer dança. Marques (2003, p.26) aponta que ”[...] ao contrário de uma visão histórica ingênua de que a dança não passa de ‘uns passinhos a mais ou a menos na vida das pessoas’, hoje não podemos mais ignorar o papel social, cultural e político do corpo em nossa sociedade. E, portanto da dança”. Sabemos que nem sempre o movimento do corpo na escola é visto com bons olhos, como uma linguagem não verbal. Muitas vezes

ele

é

reprimido

por

ser

percebido

como

um

comportamento de indisciplina e desatenção, que dificulta o controle dos professores. Nesse

sentido, Richter (2006)


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defende: [...] uma prática pedagógica que conceba a criança como um ser que

pertence a um contexto sócio-econômico-cultural,

possuidora de uma

história de vida e, que apresenta várias

dimensões (psicomotora, afetiva, cognitiva e social) a serem desenvolvidas e que, acima de tudo, são crianças. Por isso, na educação infantil, elas têm direito de se desenvolverem em um ambiente que valorize o mundo da fantasia, da brincadeira, do movimento, do lúdico, no qual muito se aprende (p. 34). A dança é uma linguagem que se expressa através do corpo, e consideramos aqui, este não como algo profano, mas como uma realidade biopsicossocial, que é expressão e fundamento de um sujeito que é corpo criado e incessantemente recriado através de suas vivências sociais cotidianas. É sobre este corpo, afetivo e simbólico, que a dança, inscreve suas marcas,

recriando-o, conforme aponta

Dantas (1999, p. 28): “quem dança transforma o seu próprio corpo, se molda e se remodela, se reconfigura”. No processo de aprendizagem da dança, o sujeito entra em contato com uma cultura

artística, histórica e socialmente

elaborada pela humanidade e reconhecida como sua herança às novas gerações. E também, no processo de apropriação dessa cultura, o sujeito participa de

forma ativa na produção das

significações que mediam as relações sociais aí encadeadas, sendo ao mesmo tempo reproduzidas e ressignificadas por eles. A dança, portanto, através do corpo e sua articulação entre o cultural e o biológico, proporciona a criança a aquisição de outras formas de conhecimento, tendo em vista que se transforma através do movimento, e essa transformação acarreta em mudanças subjetivas

naquele que dança. São essas

mudanças que possibilitam a produção de sentidos, novas formas de expressão e consequentemente contribui para que a


150

criança (re)invente de forma criativa suas formas de ser, viver e estar com os outros. Essa prática está diretamente relacionada ao processo de constituição dos sujeitos, à medida que são numa perspectiva histórica e social, e se constituem enquanto tal, a partir da sua relação com os outros (VYGOTSKY, 2000). A qualidade dessas relações é premissa para se ter

as relações que o sujeito

estabelece consigo mesmo, e nesse sentido, a dança, enquanto técnica do movimento do corpo, se insere nessa conjuntura como mediadora nesse processo: “[...] o corpo é o homem que se exterioriza, é o que me liga aos outros e ao mundo, é aquilo por meio de que eu me expresso e tomo consciência de mim mesmo” (GARAUDY, 1980, p. 181). Apesar de ser uma linguagem usada desde os primeiros seres humanos, no decurso da história a dança se tornou uma prática característica das classes mais altas da sociedade. Vieira (2007, p. 117) afirma que: A dança, como uma prática artística acadêmica, envolvendo uma técnica

sistematizada, uma codificação de passos ou

pesquisas sistematizadas de movimentos expressivos, construiuse historicamente como uma atividade das classes com maior poder aquisitivo, ou seja, uma prática até então afastada da escola, no entanto é papel da escola transformá-la num processo educativo que favoreça possibilidades e oportunidades do aluno de apreciar, contextualizar e vivenciar dança no espaço escolar. A dança está contemplada na legislação brasileira enquanto conteúdo escolar. Nos

Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCNs), ela está inserida tanto na área de Artes quanto na de Educação Física. Em ambas as áreas, “a dança pode vir a ocupar o seu devido lugar na escola: espaço de desenvolvimento da sensibilidade, do comportamento estético, que é ético e se efetiva corporalmente” (CONE; CONE, 2015, p.11).


151

Compreende-se que não é a intenção da escola usar a dança para profissionalizar

bailarinos e bailarinas, mas sim,

proporcionar as crianças o contato com a teoria e a vivência a cerca dos vários estilos de dança, para que assim, eles possam conhecê-la e agreguem essa linguagem a sua própria cultura, e explorem e reconstruam o sentido do seu próprio corpo. Cunha (1992, p.13) destaca a importância do processo de escolarização da dança: "Acreditamos que somente a escola, através do emprego de um trabalho consciente de dança, terá condições de fazer emergir e formar um indivíduo com conhecimento de suas verdadeiras

possibilidades corporais-

expressivas." Dessa forma, a escola tem a possibilidade de formar uma criança que olha para o seu corpo; se percebe enquanto sujeito, se gosta, percebe e sabe respeitar os seus limites e dos outros, saber valorizar o corpo do outro; e ainda desmistifica que a dança só pode ser ensinada por exímios bailarinos (as); e que só pode ser vivenciada por determinadas classes sociais, em determinados lugares especializados em dança, ou ainda, por determinado gênero sexual. Os objetivos educacionais da dança incluem sua vivência e conhecimento como uma forma de manifestação corporal e cultural da sociedade, nas quais se relacionam aspectos como musicalidade,

expressividade,

contextualização histórica,

criatividade,

imaginação,

entre outros. Ou seja, a dança

entendida como legado humano. (PEREIRA; HUNGER, 2019. p. 774) O uso da dança na escola pode trazer diversos benefícios para os sujeitos que a vivenciarem, entre eles estão à educação de um corpo cultural, crítico, criador, expressivo, sensível, observador, consciente, explorador, criativo, incorporado aos métodos do diversos

estilos de dança. Transformando, nesse sentido, as

relações que estes têm com a sociedade, com a dança e com o


152

corpo. O sucesso de uma experiência de aprendizagem da dança está em fazer escolhas de conteúdos pertinentes e adequados do ponto de vista do desenvolvimento e possuir paixão pelo ato de ensinar. O primeiro passo é decidir o que você deseja que seus alunos aprendam e quais benefícios

a oportunidade de participar dessa experiência

proporcionará a eles. O resultado final, quando bem esclarecido, deve servir de guia para a implementação

de

uma

seleção, o planejamento e a

experiência

de

aprendizagem

significativa para você e seus alunos. CONE; CONE, 2015, p.20). Levando em consideração esse passos, é possível que através da dança, os profissionais

da Educação Infantil criem uma

forma prazerosa de exercitar o corpo, explorem a descoberta de movimentos, estimulem a criatividade do pensamento infantil, promovam o reconhecimento das partes do corpo, instigue o movimento expressivo, explorem a noção de espaço com movimentos laterais, estimulem a noção temporal utilizando diferentes ritmos de acompanhamento musical. Mas para que isso se efetive, essa dança aplicada na Educação Infantil não pode se

resumir em buscar sua execução em

"festinhas comemorativas" da escola (VERDERI, 2000, p. 33); nem pode ser aquela que o professor vai a frete dos alunos, faz movimentos, e os alunos

devem copiar esses movimentos

exatamente como o professor está fazendo, caso contrário já são corrigidos. Nessa linha de raciocínio, Fernanda Almeida afirma que: [...] a dança para a educação infantil necessita estimular a descoberta, e

não a padronização; a improvisação, e não a

repetição de movimentos

previamente determinados. Uma

dança que não aprisione o movimento,

mas liberte a


153

imaginação, a criatividade e a expressão; que germine das ações básicas do cotidiano e suas combinações (andar, girar, saltar, parar, torcer, dobrar), almejando um conhecimento amplo das possibilidades de movimento, do espaço e da consciência corporal. E, por fim, que possibilite o brincar com o corpo, conhecer-se, conhecer o outro e o meio que o cerca. (2013, p. 34) Ela deve ser encarada como uma educação por meio da arte, e não como a arte do espetáculo esteticamente bonito aos olhos dos adultos (FERRARI, 2020). Nesse sentido de percepção o professor não pode ser aquele que decreta técnicas e conceitos; ele precisa assumir uma postura de mediação de conhecimento, que fomenta experiências através da dança, que

orienta os

alunos a usarem com criatividade do seu próprio corpo, para perceberem suas habilidades, limites, extensões, possibilidades e descobrirem novas formas de se expressarem e

se

comunicarem com o mundo. Dessa forma, através da dança, é possível ensinar o respeito entre as diferentes formas de expressões culturais; trabalhar a socialização com os demais colegas da turma, onde possam trocar experiências com o outro, aspecto relacionado com a aprendizagem do respeito e a convivência. Criando um momento que pode tornar-se também um momento de brincadeira, de

lazer e conhecimento e

empoderamento sobre o próprio corpo das crianças, a partir de um simples toque e reconhecimento de limitações, de espaço, etc. Isso faz da dança um instrumento

potencializador no

processo

significativo,

contempla

de

um

ensino-aprendizagem

que

efetivamente uma formação integral, de corpo

inteiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS


154

A partir da análise sobre a representação histórica, científica e subjetiva da dança, aliada

às teorias de desenvolvimento

humano, e de Corporeidade, percebe-se que o corpo é negado desde e principalmente na infância que é o período em que as crianças

estão

sendo

ensinadas

pelos

adultos

a

se

“comportarem” de acordo com a lógica e os interesses da sociedade. A escola é muitas vezes um dos espaços desse tipo de ensino, onde as crianças têm sua liberdade de expressão podadas a todo o momento, com séries, salas de aula, carteiras e seu posicionamento em filas, entre tantas outras formas que representam uma resposta a forma de controle dos adultos que um dia também foram crianças, e sofreram também tantas podas, que hoje infelizmente não enxergam como algo positivo e não aproveitam a expressão das crianças para formar uma sociedade coletiva, menos injusta, mais criativa, e melhor em todos os sentidos. Entende-se que enquanto uma linguagem artística de comunicação e expressão de sentimentos, o uso da dança na escola pode trazer diversos benefícios para os sujeitos que a vivenciarem, entre eles estão à educação de um corpo cultural, crítico, criador, expressivo,

sensível, observador, consciente,

explorador, criativo, incorporado aos métodos do diversos estilos de dança. Transformando, nesse sentido, as relações que estes têm com a sociedade, com a dança e com o corpo. A escola pode e deve ter outro caráter que não seja esse traduzido por Foucault, mas que seja empático com o tempo e a cultura alheia. O estudo do corpo, mente e cultura em suas interações, precisa perpassar os processos educativos. E pensar a dança e a arte sendo trabalhadas de maneira consciente nas aulas da Educação Infantil, de maneira macro, é entender que ali forma-se uma nova geração que precisa em cunho de


155

transformação, ser constituída e orientada para um novo valor de corpo e liberdade. Levando em consideração esse elementos, constata-se que existem inumeráveis possibilidades de trabalho por meio da dança, essa linguagem que ultrapassa as atividades

motoras

comuns, faz a integração de todos os elementos que nos constituem – social, emocional, cultural, intelectual, cinestésico; de forma que quem a pratica, aprende sobre si e sobre os outros, e constitui-se enquanto um ser social que é recriado constantemente. REFERÊNCIAS: ALMEIDA, F. de S. Que dança é essa?: uma proposta para a educação infantil. Dissertação de Mestrado em Artes. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Instituto de Artes. São Paulo, 2013. ALVES, R. A Alegria de Ensinar, São Paulo: Ars Poética, 1994. BARBOSA, M. R.; MATOS, P. M.; COSTA, M. E. Um olhar sobre o corpo: o corpo ontem e hoje. Psicologia & Sociedade, v. 23, n. 1, p. 24-34, 2011. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília, 1996. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. BUENO, J. G. S. Função social da escola e organização do trabalho pedagógico. Educar, n. 17, p. 101-110, 2001. CONE, T. P.; CONE, S. L. Ensinando dança para crianças. 3 ed. Barueri: Manole, 2015. CUNHA, M. Aprenda dançando, dance aprendendo. 2 ed. Porto Alegre: Luzatto,1992. DANTAS, M. Dança: o enigma do movimento. Porto Alegre: UFRGS, 1999. FERRARI, G. B. Por Que Dança na Escola? Disponível em: https://www.fefd.ufg.br/n/7944- por-que-danca-na-escola. Acesso em: 20 jun. 2020.


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NOTAS E CURRÍCULOS DOS/AS AUTORES/AS 1.

A emenda constitucional nº 11.274 de 6 de fevereiro de

2006, definiu ser responsabilidade do Ensino Fundamental a educação da criança de seis anos. Assim, a partir de então a Educação Infantil passou a atender crianças de zero a cinco anos de idade. 2.

Isabele Fogaça de Almeida é Mestra em História, Cultura e

Identidade pela UEPG. Graduada em Licenciatura em História pela UEPG (2017) e Segunda Licenciatura em Pedagogia pela UniSecal (2020); Especialista em Ensino da Filosofia pela UNIFCV (2019); Especialista em Ensino de Arte, História e Música pela UniBF (2020); Especialista em Docência no Ensino da

Dança pela UniBF (2020). Professora da Secretaria da

Educação e do Esporte do Paraná.


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DESENHO GEOMÉTRICO NAS AULAS DE ARTE: O CAMINHAR DE UM ESTUDANTE COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO ENSINO FUNDAMENTAL Uillian Trindade Oliveira1

RESUMO Este artigo aborda questões alusivas à arte na educação bem como discorre a respeito da importância da inclusão, tema tão discutido na contemporaneidade. Para tanto, o trabalho orientou-se no sentido de pesquisar informações atinentes à arte como processo, autodisciplina e procedimento de grande valor para questões inclusivas na escola, voltadas às pessoas com necessidades educativas especiais, notadamente àquelas com deficiência intelectual, objeto deste estudo, para que possam se desenvolver social e intelectualmente, em um ambiente propício ao desenvolvimento de suas potencialidades. O aporte teórico foi obtido em Attack (1995), Reily (1986), Read (1986), Lowenfeld e Brittian (1977) e Oliveira (2005). Com observações in loco, foram pesquisados o processo de desenvolvimento, nas aulas de Arte, de um estudante do 9º ano do Ensino Fundamental, o discurso da professora regente e a importância do desenho geométrico como conteúdo no componente curricular Arte. Palavras-chave: Arte. Deficiência Intelectual. Desenho geométrico.

ABSTRACT This article approaches issues regarding art in education as well as discussing the importance of inclusion, a topic so discussed in contemporary times. Therefore, the work was oriented towards researching information pertaining to art as a process, as self-discipline and as a procedure of great value for inclusive issues at school, aimed at people with special educational needs, notably those with intellectual disabilities, who are object of this study, so that they can develop socially and intellectually, in an environment conducive to the development of their potential. The theoretical support was obtained in Attack (1995), Reily (1986), Read (1986), Lowenfeld and Brittian (1977) and Oliveira (2005). With in loco observations, the research encompassed the development process, in Art classes, of a nineth-grade student at Elementary School, the form teacher's speech and the importance of geometric drawing as content in the Art curriculum component. Keywords: Art. Intellectual Disability. Geometric drawing.

INTRODUÇÃO A partir das observações feitas durante minhas atuações em sala de aula, percebi que as atividades gráficas das aulas de ensino formal se restringem ao treino de motricidade e coordenação motora fina nas técnicas de desenho, pintura e colagem, sem contemplar certas dimensões necessárias ao desenvolvimento de Pessoas com Necessidades Educativas Especiais (PNEE), como raciocínio, iniciativa, responsabilidade, cooperação, intuição, autoconhecimento, respeito, apreciação do próprio trabalho e do trabalho dos colegas. Attack (1995) pontua que a arte pode ajudar a desenvolver habilidades e capacidades, por exemplo, exercícios de pintura podem estimular a realização e o controle de movimentos específicos. Outra situação: a arte pode facilitar os pensamentos e a organização pessoal, e, se realizadas em grupo, as atividades podem ajudar o educando a desenvolver a cooperação e a comunicação com os outros. Além disso, a educação artística oferece oportunidades de o sujeito, em todos os


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estágios e idades, ver-se envolvido em uma atividade cujo objetivo é ele mesmo. Isso porque, nesse tipo de trabalho, não há competição, recompensa de outra pessoa ou mesmo um produto final em vista; o importante é o processo de descoberta de si mesmo. Uma atividade artística pode ser realizada por puro prazer ou pode ser um canal de exteriorização de emoções, o que significa um ganho e um enriquecimento para a própria vida. Nessa perspectiva, a pessoa é livre para descobrir e explorar, ocorrendo, assim, um aprendizado de extremo valor. Para as PNEE’s, as atividades artísticas oferecem oportunidades de intercâmbios social e de expressão de seu mundo psicológico com criatividade, estimulando não só o desenvolvimento da motricidade fina e a aprendizagem técnica, mas também da imaginação. É através da sua própria obra que essa pessoa descobre que existem muitas linguagens, que sentimentos e ideias podem ser expressos e comunicados por meio de linhas, formas, cores, e, ainda, que existe uma realidade interna e uma realidade externa. Reily (1986, p. 1) enumera que [...] A criança excepcional tem, muitas vezes, problemas de comunicação verbal, causado por dificuldades de recepção, de compreensão da informação recebida ou de emissão. A arte é um meio de comunicação não verbal e, através dela, a criança pode se expressar por este meio alternativo. Mesmo a criança excepcional que não apresente comprometimento na área da linguagem tem muitos sentimentos profundos para expressar, que são mais fáceis de [se] mostrar visualmente do que através da conversa, numa situação aberta, onde se sinta aceita, ela pode mostrar sua visão de mundo sem medo de crítica.

Conforme Pedrosa (1996), tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, em muitos hospitais, escolas, clínicas e oficinas onde se fazem experiências e observações dos impactos que as obras de arte podem exercer sobre as pessoas de qualquer faixa etária, com ou sem necessidades especiais, é possível perceber que, independentemente do fim para o qual foram criadas, elas produzem efeito benéfico. O mesmo autor ainda enfatiza que o objetivo principal de uma ocupação artística não está na produção de obras-primas nem mesmo na construção desta ou daquela obra particular, o relevante é o que a pessoa em contato com as obras ganha com tais atividades: na sua potencialidade, no controle dos sentimentos, no desenvolvimento harmônico dos sentidos, no despertar da sensibilidade, no equilíbrio interior das emoções. Nessa perspectiva, uma pessoa envolvida em uma mediação para aprender os meandros da modelagem, da pintura ou as técnicas para utilizar o pincel, a talha ou o buril tende a tornar-se alguém com mais sensibilidade do que era antes dessas experiências. Assim, cria-se no indivíduo um melhor aparelho de apreensão e recepção, mais preciso e controlado. Todos saem enriquecidos dessas ocupações gratuitas – sem os ditames do caráter hiperprodutivo que rege a contemporaneidade –, que proporcionam contato mais delicado e sutil com as coisas, os outros seres e o mundo.


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Nesse sentido, a partir da música, da poesia e das artes plásticas, podemos nos desenvolver melhor como seres humanos. Por isso, os profissionais da educação precisam inteirar-se das necessidades dos alunos com necessidades especiais, já que o conhecimento influenciará nas experiências que estes terão durante as aulas. Read (1986) defende que este é um método de educação cujo uso pode ser universal, pois está ao nosso alcance. O dom que pode ser incentivado por meio da música, da poesia e das artes plásticas não é uma aquisição superficial, mas a chave para o desenvolvimento de tantos saberes e comportamentos importantes para a vivência em coletividade. A esse respeito, o mesmo autor remonta a Platão, que, [...] em um de seus voos mais visionários [disse:] “ser conduzido por nosso instinto para o que quer que seja belo e benigno, de forma que nossos jovens, vivendo num ambiente integral, possam deleitar-se com o bom de qualquer paragem, do que decorrerá, como uma brisa que traz saúde de regiões felizes, algumas influências das realizações nobres constantemente se farão sentir sobre a vista e o ouvido desde a infância, e imperceptivelmente os conduzirá à afinidade e à harmonia com a beleza da razão, cuja impressão recebem” (READ, 1986, p. 30).

A repressão da imaginação e do sentimento na criança pode ser um dos principais problemas cognitivos ligados à predominância de modos lógicos e racionais de pensamento que violentam os princípios de graça, ritmo e justa proporção, implícitos na ordem do universo. Sendo assim, nossa função não é meramente de artistas e professores de Arte, mas de mestres e modelos formadores em geral. Reily (1986) tem se dedicado a estudar as diversidades, tendo as artes plásticas como um meio de expressão criativa. Assim, ao entrar no universo da escola, da arte, do ensino e da inclusão, considerando a arte um caminho para potencializar o desenvolvimento de PNEE’s, suas investigações constituem-se em norte importante para refletirmos sobre a principal pergunta desta investigação: como o ensino do desenho geométrico potencializa o desenvolvimento de PNEE’s, especificamente no caso das pessoas com deficiência intelectual (DI), no que diz respeito à inclusão escolar, buscando subsídios teóricos e empíricos, a fim de mostrar o quão significativa é a arte no percurso pessoal e escolar desse público. SOBRE A DEFICIÊNCIA INTELECTUAL A deficiência intelectual é compreendida como uma baixa resposta cognitiva a determinado parâmetro considerado representativo da normalidade dentro de uma dada sociedade, principalmente ao comportamento esperado em sua idade cronológica. Uma pessoa possui deficiência intelectual – e não deficiências intelectuais, no plural. Geralmente, possui dificuldade em compreender conteúdos abstratos ou metáforas, resolver problemas, argumentar, além de apresentar dependência em relação a outras pessoas. Em casos mais


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graves, pode haver dificuldades de convivência social, adaptação a novos ambientes e até mesmo cuidado com a higiene do próprio corpo (AMPUDIA, 2011). Várias causas podem levar à deficiência intelectual, como questões genéticas, em sua maioria, mas também complicações perinatais durante a formação do feto. Fatores sociais mais complexos também podem contribuir para a DI, por exemplo, a desnutrição ou ingestão de alimentos e água contaminada por metais pesados como cobre, mercúrio e chumbo. Esses fatores externos podem comprometer as complexas conexões neurais, levando ao desenvolvimento da deficiência intelectual, que pode ser leve (Quoeficiente de Inteligência – QI 50-69); moderado (QI 35-49); grave (QI 20-40) ou profundo (QI abaixo de 20), segundo a Classificação Internacional das Doenças (CID-10), da Organização Mundial da Saúde (OMS) (AMPUDIA, 2011). O conceito de deficiência intelectual não pode ser confundido com o de incapacidade, pois este denota um aspecto negativo do funcionamento da pessoa, resultante do ambiente físico inadequado ou inacessível, enquanto aquele traduz a ideia de condição – por exemplo, a incapacidade de uma pessoa com DI para entender explicações conceituais. Dessa forma, configura-se uma situação de desvantagem imposta às pessoas com limitações naqueles ambientes que não constituem barreiras para as aquelas que não possuem essas limitações. Ao longo da história, até mesmo no meio acadêmico, vários termos hoje considerados pejorativos foram utilizados para denominar as pessoas com DI. A DI já foi referida como deficiência mental, termo ainda utilizado no campo das ciências médicas, no qual se deram os primeiros estudos no início do século XIX. Na atualidade, o termo mais usado é deficiência intelectual, pois a palavra “intelectual” se refere especificamente ao funcionamento do intelecto, e não da mente como um todo. Outra razão para o uso da denominação deficiência intelectual é que assim se pode distinguir deficiência mental de transtorno mental, antes chamado de doença mental. Por serem parecidos, esses termos têm causado certa confusão, mas nem todas as pessoas com DI possuem transtorno mental. A expressão deficiência intelectual passou a ser oficialmente utilizada em 1995, quando a Organização das Nações Unidas, a The National Institute of Child Health and Human Development, The Joseph P. Kennedy, Jr. Foudation, e The 1995 Special Olympics World Games realizaram o “International Symposium on Intelectual Disabilty Programs, Policies and Planning for the Future” – em português, “Deficiência intelectual: programas, políticas e planejamentos para o futuro” –, em Nova Iorque. Em outubro de 2004, a Organização Pan-Americana da Saúde e a OMS realizaram um evento em Montreal, Canadá,


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no qual foi aprovada a Declaração de Montreal sobre Deficiência Intelectual. No âmbito desta pesquisa, a opção também é pelo uso do termo deficiência intelectual, por considerar que à medida que o movimento inclusivo ganha força, palavras e conceituações vão se modificando, com a finalidade de promover a valorização das pessoas e consequentemente reduzir os estigmas aos quais elas são sujeitas por sua condição. MÉTODO A pesquisa lança mão da abordagem qualitativa para analisar o caso de Cândido (nome fictício), de 14 anos, estudante do 9º ano do Ensino Fundamental em uma escola pública do município de Cariacica (ES). A princípio, foi feito um acompanhamento diário desse estudante nas aulas de Arte, durante três meses, levando-se em conta que “[...] na investigação qualitativa a fonte direta de dados é o ambiente natural" (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 47). Ao longo do período mencionado, foram observadas sua relação com os colegas, disposição no desenvolvimento dos trabalhos de Arte e socialização durante as atividades em grupo, com a finalidade de analisar a importância da arte e do desenho geométrico no desenvolvimento de pessoas com DI nas esferas individual e social. Posteriormente à etapa de observação, também foram realizadas entrevistas com a professora de Arte, buscando explorar a relação entre a arte, o ensino do desenho geométrico, o desenvolvimento do educando e a inclusão. ESTUDO DE CASO: OBSERVAÇÕES DE UM PROCESSO Cândido era um estudante de 14 anos de idade à época deste estudo. Cursava o 9º ano do Ensino Fundamental, sendo considerado por profissionais da gestão, professores e colegas da escola como calmo na maior parte do tempo. Paralelamente à escola regular, frequentava as atividades da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Cariacica-ES e fazia aulas de violão. Laudo médico arquivado na unidade escolar atestava deficiência intelectual leve. Usava remédios controlados em função de outros problemas de saúde. Também fazia acompanhamento com psicólogo. Quando ficava nervoso, sua família era chamada para acalmá-lo e apoiá-lo, fazendo-se bastante presente no seu processo educativo. Nas aulas de Arte, a professora priorizou trabalhar desenhos e padrões geométricos, influenciada por sua formação técnica em desenho e também por considerar que o tema desenvolve a concentração e a percepção visual dos alunos. Além disso, com a presença de Cândido em sua sala, entendia que trabalhar o assunto o ajudaria a desenvolver habilidades espaciais e analíticas, facilitando sua produção artística e a autossatisfação do aluno. Sua dificuldade de abstração poderia ser um empecilho para isso, se a abordagem fosse de livre


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expressão, considerou a docente. Cândido sempre preparava todo o seu material: apontava os lápis, separava o caderno de desenho, o esquadro e o transferidor. Algumas vezes, a professora o auxiliava. O estudante prestava muita atenção na explicação para fazer as atividades propostas e media cuidadosamente os centímetros com a régua. Na primeira aula, a professora apresentou-me à turma, dizendo aos alunos que em algumas aulas eu iria acompanhá-los, resumindo-se a dizer que eu era um estudante da Universidade Federal do Espírito Santo que estava fazendo uma pesquisa na escola sobre o ensino da Arte. Ressaltou que não era necessário que mudassem o seu comportamento, porque eu não estava ali para avaliá-los. Antes disso, eu e a professora tínhamos entrado em acordo de não dizer o que especificamente eu estava pesquisando, pois ela acreditava que, se eles soubessem, iriam mudar a forma de tratar Cândido. Disse, no entanto, que, no futuro, iríamos “abrir o jogo” com eles. Confesso que essa situação me incomodou no início, pois eu buscava zelar pela ética na pesquisa, mas também, pelo objetivo do estudo, não poderia mudar o cenário das observações. Nesse primeiro dia, a professora propositalmente pôs Cândido sentado ao meu lado, dando-me possibilidade de observá-lo melhor. Notei que ele era calado e atento ao trabalho dos colegas. Na maioria das vezes, conseguia acompanhar a elaboração dos desenhos no mesmo ritmo dos demais. Após a orientação da professora, a turma logo parou de conversar e todos se compenetraram em fazer as atividades. A maioria dos alunos perguntavam sobre como proceder, também porque era um desenho de perspectiva, com alguma complexidade, que, neste contexto, relacionava-se com o uso de uma variedade de utensílios (régua, transferidor, compasso, esquadro) e de elementos tridimensionais, além da exploração da perspectiva geométrica. Trata-se de uma abordagem que caminha em uma linha distinta ao que, atualmente, é apregoado nas aulas de Arte, em que o foco do trabalho recai sobre a livre expressão. A professora ressaltou que sua proposta de trabalho não se restringia ao desenho técnico. Ela também contextualizava artistas e movimentos artísticos na história da arte. Quando terminava seu trabalho, uma estudante vinha ajudar Cândido, que ouvia e observava atentamente as orientações da colega. Observei que, de forma geral, os alunos davam a Cândido um tratamento amigável. Na segunda aula, ao entrarmos na sala, Cândido se ofereceu para que eu sentasse em seu lugar. Mais uma vez, ele estava com todo o material em cima da sua carteira: esquadro,


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régua e caderno de desenho. A professora colou no quadro um desenho geométrico em forma de cilindro (Figura 1). Então, começou a desenhar também no quadro, a fim de que todos acompanhassem o passo a passo do desenho. Em certo momento, Cândido parou de desenhar, como se estivesse cansado ou à espera da professora para ajudá-lo. Toda a turma estava em silêncio, concentrada na realização da atividade. A professora voltou ao quadro para apresentar o passo seguinte; era hora de trabalhar com ângulos. Percebo que Cândido tenta fazer, mas espera a professora para lhe explicar novamente. Isso mostra que, na educação inclusiva, todos são capazes, cada um a seu tempo, como Cândido, que conseguia acompanhar a turma assim que nova etapa da elaboração do desenho se iniciava. Apesar de se tratar de um desenho técnico, envolvendo ângulos, centímetros, dimensões diferentes, Cândido o desenvolvia com relativa tranquilidade e com atenção, fazendo os desenhos com os esquadros. Algumas vezes, a professora o ajudava. Figura 1 – Desenho para ser estudado pelos alunos

Fonte: registro do autor.


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Figura 2 – Desenho feito por Cândido

Fonte: registro do autor.

O desenho exigia concentração e sua execução se estendeu por aproximadamente quatro aulas. Questionei-me como um desenho com aquele nível de complexidade era feito com tamanha dedicação por um aluno com DI. Isso me fez acreditar que todos são capazes e que a educação inclusiva tem aberto caminhos para dar oportunidades a essas pessoas. Durante as observações na escola, chamou-me atenção os vários cartazes sobre inclusão e educação especial. Isso porque, no período deste estudo, no município onde estava situada essa unidade, havia poucas escolas trabalhando a educação especial. Mas, na escola em que Cândido estudava, a modalidade parecia ser alvo de preocupações e do trabalho dos educadores, como observado na prática de sua professora. Na sexta aula, a professora conversava com alguns alunos, mostrando desenhos que haviam sido extraídos de um site espanhol sobre desenhos geométricos. Ela destacou que não era fácil fazê-los. Quando Cândido chegou, a professora pediu para que ele se sentasse perto de sua mesa, a fim de que eu pudesse acompanhá-lo melhor, o que também facilitava a ela orientá-lo. Cândido olhava os desenhos atento, tentando entendê-los, pois havia perdido a explicação do início da aula. A professora explicou para a turma que o padrão do desenho era no tamanho A3, destacando que se fizessem o desenho no tamanho A4, ficaria muito pequeno, sendo necessário ampliá-lo posteriormente. Orientou que usassem margem de 1 cm. Acrescentou ainda que os desenhos produzidos fariam parte de uma exposição. Os alunos teriam que ampliar o desenho. Uma aluna comentou: “É o escudo do Super-Homem!”, ao que a professora, sobre o mesmo desenho, bastante estruturalista, respondeu que este tinha ângulo de 30º, daí a associação que a menina fez com o personagem do desenho animado, o qual


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fazia parte de sua cultura visual. Após as orientações iniciais, a regente distribuiu os desenhos para que os alunos os observassem, fazendo uma leitura daquela imagem, considerando seus elementos como linha, plano, espaço, cor, para, depois, ampliarem. Cândido pegou o seu desenho e foi sentar-se distante da professora, aproximando-se de um colega com quem mostrava ter mais afinidade. A professora brincou comigo, numa tentativa de me tornar mais intimista com a turma, perguntando: “você não quer ajudá-lo, não? Você está aí à toa...” Ri e voltei a me concentrar na observação. Os alunos solicitavam a presença da professora constantemente. Nesta atividade, a professora acompanhou Cândido com mais atenção, ensinando-o a fazer a tarefa. Só depois disso ele começou a desenhar, demonstrando que esperava um estímulo. Embora a intenção não fosse analisar ou criticar o conteúdo aplicado pela professora, notei que os objetivos e metodologias mostravam-se pertinentes ao conteúdo trabalhado. Perguntei-lhe se faria algum trabalho de livre expressão com os estudantes, ao que ela respondeu positivamente, informando, no entanto, que, por aquelas semanas, prosseguiria com os desenhos geométricos. Na aula seguinte, a professora chegou à sala e começou a distribuir os desenhos que foram começados na aula anterior. Cândido conversava com os seus colegas. Nesse dia, a turma estava bem animada; uma aluna implicou com Cândido, afirmando que ele não teria feito tarefa. Com um semblante sério e de satisfação ele, então, mostrou seu desenho à colega. Toda a turma estava em silêncio. Bem naquele momento, a professora explicou que era hora de Cândido colorir o desenho que havia feito. Pediu que escolhesse as cores de que mais gostasse e, então, ele mostrou os lápis nas cores azul, vermelho e laranja, dando início ao trabalho (Figura 3). Figura 3 – Primeira tentativa de Cândido de colorir a proposta

Fonte: registro do autor.

Três alunas conversavam em tom de brincadeira; uma delas chama outra de “burra”, por conta de uma atividade que esta estaria fazendo com desleixo. Cândido também entrou na brincadeira. De sua cadeira, rindo, palpitou: “ela fez errado porque ela não cresce, ela tem um


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crescimento pequenez, tem que tomar remédio para crescer”. Enquanto estive observando as aulas, não percebi diferença no tratamento que os demais alunos dão a Cândido. Quando um aluno o chamou de “burro”, notei que, antes de ter relação com o fato de ele ser DI, tratava-se de um comportamento típico da adolescência. Sendo ele um adolescente, acaba incluído nessas “brincadeiras” e acaba repetindo esse comportamento com os colegas. Nesta ocasião, notei que Cândido não havia demonstrado estar ofendido com a fala do colega, o que se confirma quando ele implica com o tamanho da menina. Cândido não gostou do resultado da primeira tentativa de fazer o seu desenho geométrico, por isso, tratou de produzir outra versão. Analisando a versão anterior, a professora orientou que ele acertasse os detalhes que faltavam em seu desenho, pois aquele seria o último dia em que nele trabalhariam. Após a segunda tentativa, na qual incluiu esses acertos, usou apenas as cores verde e preto para colori-lo. Figura 4 – Desenho final da atividade proposta para Cândido

Fonte: registro do autor.

Décima aula, a professora introduziu um tema novo, geometria do mosaico. Neste dia, Cândido estava sentado ao fundo da sala. A regente demonstrou a atividade a ser feita desenhando algumas quadrículas no quadro (Figura 5). Explicou o conceito de geometria do mosaico, mas sublinhou que o aluno poderia fazer o desenho da forma que desejasse. Comentou, ainda, que este tipo de desenho é bastante utilizado pela indústria na fabricação de azulejos e mostrou vários exemplos já feitos por outros de seus alunos. Ao visualizar esses desenhos, uma aluna lembrou que “parece um tapete”.


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Figura 5 – Explicação da professora: geometria dos mosaicos

Fonte: registro do autor.

Após a explicação, a docente foi de mesa em mesa verificar como os estudantes estavam realizando a atividade. Ela pediu a Cândido que se sentasse próximo à sua mesa e então, mais uma vez, começou a ensinar-lhe a fazer a atividade. Cândido teve dificuldades, diante do que a professora lhe entregou um pedaço de papel milimetrado para facilitar o processo de elaborar seu desenho. No material, mostrou seus primeiros traços, ilustrados nas Figuras 6 e 7. Figuras 6 e 7 – Primeiros traços da criação de Cândido.

Fonte: registro do autor.

Os trabalhos mostram, pois, o nível de complexidade da produção em que Cândido estava inserido, a qual exigia paciência, disciplina, coordenação motora, organização e


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concentração. No decorrer do desenvolvimento das atividades de Cândido nas aulas de Arte, foi possível observar que a professora, pela abordagem utilizada, tinha uma atuação que poderíamos chamar de “ombro a ombro” com os alunos, visando a acompanhar os estudantes e evitar que eles se desviassem do processo de representação da perspectiva. Paralelamente à observação realizada na turma de Cândido, eu estava observando a mesma docente em uma turma de 5º ano, em que também havia uma aluna com DI – processo que, entretanto, não está relatado neste texto. Todavia, ressalto que, nessa outra turma, a docente trabalhava na perspectiva da abordagem triangular, de Ana Mae Barbosa, explorando a história da arte, leitura de imagens, em uma expressão mais livre. Conforme pontuou a professora, sua opção por uma abordagem que pode ser vista como mais tradicional na turma de Cândido (9º ano) decorre de seu entendimento de que, com isso, poderia deixar os alunos mais preparados para a dinâmica do Ensino Médio. Essa alternância entre abordagens mostra a sensibilidade da docente para o fato de que cada turma tem uma especificidade, o que requer do professor explorar uma variedade de conteúdos e metodologias, o que não representou dificuldades para a professora de Cândido, visto ser ela graduada em Arte e também ter estudado desenho técnico no Instituto Federal do Espírito Santo. Essa situação ressalta, portanto, a necessidade de um profissional com formação específica em Arte para lecionar essa disciplina. Conforme pontuou a docente, às vezes, ela recebe críticas de colegas, que consideram o desenho geométrico um conteúdo obsoleto, por não utilizar procedimentos metodológicos mais contemporâneos, como a Abordagem Triangular, proposta pela pensadora Ana Mae Barbosa, na qual se busca a contextualização histórica, o apreciar com leitura de imagens e o fazer artístico. A docente destacou conhecer tal proposta, mas frisou que gostava de diversificar suas metodologias de trabalho. Seu argumento é que o desenho geométrico é uma linguagem gráfica universal que potencializa o desenvolvimento da visão espacial, o raciocínio lógico, a organização e a criatividade quando o estudante pesquisa as interconexões gráficas, além de auxiliar na concretização dos conteúdos abstratos, principalmente com alunos com DI. A análise da docente vai ao encontro da afirmação de Oliveira (2005), para quem o desenho é uma interpretação das realidades geométrica, visual, emocional ou intelectual, feita por meio da representação gráfica. É uma linguagem que comunica uma ideia, uma imagem, um signo. Como vivemos em um mundo geometrizado, rodeado por diversas formas geométricas, tanto na natureza, como nas artes e na arquitetura, é importante explorar essa


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temática no currículo. Na avaliação de Marmo e Marmo (1994), o desenho na escola é o conteúdo curricular mais adequado para desenvolver nos estudantes hábitos de organização, cuidado com os instrumentos de trabalho, habilidade manual, autodisciplina e iniciativa. Os autores lembram, ainda, que o desenho geométrico ensina a linguagem gráfica, que é uma forma concisa, precisa e universal de comunicar e expressar ideias. Por isso, não trabalhá-lo com os estudantes torna-se um equívoco por parte do professor. Corroborando o pensamento de Kalter (1986), o ensino do desenho é essencial para potencializar as capacidades de planejar, projetar ou abstrair, estabelecendo, desse modo, uma relação contínua entre a percepção visual e o raciocínio espacial. Na própria natureza, há padrões geométricos com simetrias, eixos, espiral, equilíbrio e proporção, padrão e regularidade, harmonia e ordem. São exemplos disso os hexágonos regulares nas colmeias das abelhas, a simetria radial nas teias de aranhas e nas estrelas-domar, os fractais nos flocos de neve, girassóis, escamas de peixe. Alguns artistas, como Escher, Mondrian, Pablo Picasso e Athos Bulcão, também lançaram mão do desenho geométrico em suas obras. Por tudo isso, podemos concluir pela validade de se explorar esse tema com os alunos, tenham eles ou não deficiência intelectual. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES A proposta da professora com os alunos do 9º ano do Ensino Fundamental era trabalhar desenhos geométricos, sendo perceptível sua afinidade com o tema. De acordo com a docente, essas atividades influenciaram e muito o gosto de Cândido pela disciplina, pois, segundo ela, antes ele não demonstrava vontade em fazer atividades de livre expressão, talvez pela dificuldade de abstração. Durante o período das observações, Cândido esforçava-se em seguir as explicações e fazer as atividades usando réguas, esquadros, papéis milimetrados, compassos etc. Vygotsky (2001) aponta para o fator sociológico da arte. Para ele, por sua natureza, o homem pode desenvolver gostos e conceitos estéticos. Nesse viés, vivendo em uma dada sociedade, pertencendo a determinado povo ou classe social, o ser humano terá um gosto estético específico, visto que as condições que o cercam permitem que essa possibilidade se concretize. Assim, o homem recebe da natureza diversas impressões, porque a considera de diferentes pontos de vista. Vygotsky (2001) ainda enfatiza que o psiquismo do homem social é visto como subsolo comum de todas as ideologias de dada época, inclusive da arte. Dessa forma, reconhece-se que esta, no mais amplo sentido, é determinada e condicionada pelo


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psiquismo do homem social. Na atividade em que Cândido desenhava um cilindro utilizando seus materiais, constatou-se o quanto esse tipo de trabalho o fazia ficar compenetrado nas atividades. Talvez ele estivesse tentando implementar uma técnica que satisfizesse o seu sentimento de realização pessoal e de autoconfiança. Posteriormente, a professora propôs uma atividade de livre expressão a partir da concepção do geometrismo, o que oportunizou ao estudante criar seu próprio desenho geométrico. Lowenfeld e Brittian (1977) salientam que, na faixa etária de Cândido, a arte não deveria preparar o adolescente para uma profissão, mas para incentivar a evolução mental, estética e criadora do indivíduo, estimulando suas aptidões. Por essa razão, os trabalhos devem ter como finalidade a livre expressão individual. Nesse sentido, mesmo sendo uma proposta orientada pela professora, Cândido pôde exercitar sua criatividade. Aliás, naquele momento a prática artística proporcionou ao estudante ler a imagem, observar, experimentar, criar e se expressar, pois a regente não o coagiu, deixando-o livre para criar em formas e escolher as cores. O mais importante não era apresentar um produto final com as características x ou y, mas o processo de criar, o qual possibilitou o seu desenvolvimento. Reily (2004) mostra que o sujeito é constituído social e historicamente, dando sentido ao mundo por meio da linguagem, na qual está compreendida também a arte, o que se confirma no fato de que, conforme dados obtidos na observação, Cândido trabalhava melhor quando estava em grupo. O convívio com os colegas e a possibilidade de observar os trabalhos por eles elaborados o faziam sentir mais concentrado, e produzindo constantemente seus próprios desenhos. Em suas atividades artísticas, Cândido desenvolveu sua capacidade criadora e a fruição por meio das experiências sensoriais e perceptivas, com as quais se desenvolve uma crescente sensibilização à cor, à forma e ao espaço. Dessa forma, sendo mediado e estimulado nas aulas de Arte por meio do desenho geométrico, o estudante desenvolveu os sentidos pela socialização que a arte permite. Todas essas experiências são de grande valor para estudantes com DI, para a escola e também para a sociedade, na qual, sobretudo nos últimos anos, a luta pela inclusão e diversidade ganharam cada vez mais visibilidade. REFERÊNCIAS AMPUDIA, R. O que é deficiência intelectual? Revista Nova Escola, 2011. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/271/o-que-e-deficienciaintelectual#:~:text=Pessoas%20com%20defici %C3%AAncia%20intelectual%20ou,%2D%20como%2C%20por%20exemplo%2C%20as. Acesso em: 20 abr. 2021.


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NOTAS DE FIM 1.Artista visual, Professor Doutor da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob).


EDUCAÇÃO MUSICAL E EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ESCOLAS PÚBLICAS RURAIS DO ESPÍRITO SANTO Matheus Muri Paixão

RESUMO O presente artigo é fruto de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Licenciatura em Música, defendido junto à Universidade Federal do Espírito Santo em 2018, e que se tornou ponto de partida para que hoje esteja sendo realizada uma pesquisa de mestrado em Sociologia Política junto à Universidade Vila Velha. Tratou-se de uma investigação acerca da Educação Musical em escolas do campo em municípios capixabas. Tivemos como objetivo geral a tentativa de compreender como o direito ao ensino da música tem se efetivado em nosso estado. Os objetivos giraram em torno da análise do que é ensinado em quais condições e por quem. Tentamos identificar os sujeitos envolvidos nesses processos, assim como os recursos utilizados para tal ensino. Levamos em conta dimensões históricas e culturais do problema, mobilizadas no sentido de investigar a partir do estudo de caso, para o qual selecionamos algumas escolas em zonas rurais do Espírito Santo. No tocante ao lado mais propriamente técnico-instrumental da pesquisa, lançamos mão da observação; da entrevista com questões abertas aos profissionais do Ensino de Arte envolvidos, no que se refere mais especificamente à educação Musical. Os resultados evidenciam que a educação musical não acontece efetiva e sistematicamente nas escolas do campo dos municípios por nós investigadas. Sugere-se a necessidade, caso se deseje reverter essa situação, de se repensar a formatação das políticas públicas, especialmente no que diz respeito às condições de trabalho, à formação desse educador, e ao vínculo empregatício dos professores. Palavras-chave: Educação Musical; Educação do Campo; Estado do Espírito Santo.

ABSTRACT The present work, defended at the Federal University of Espírito Santo to obtain the Bachelor's degree in music, is the result of a research about music education in rural schools in Capixaba municipalities. The general objective was the attempt to understand an aspect of how the right to education is effective in our state, focusing, therefore, on musical education. The specific objectives revolved around the analysis of what is taught, why, for what, under which conditions, by whom. The research aimed in the identification of the subjects involved in these processes, as well as the resources used for such teaching, taking into account historical and cultural dimensions of the problem, mobilized to inform a case study, for which we selected some schools in rural areas of Espírito Santo. Regarding the technical-instrumental side of the research, we used participant observation, interview with open questions. The results show that music education does not happen effectively and systematically in the schools of the municipalities we investigated. It is suggested that, if this situation is to be reversed, it is necessary to rethink the formatting of public policies, especially with regard to working conditions and employment relationship of teachers. Keywords: Music Education; Countryside Education; Espírito Santo State.

INTRODUÇÃO


A aprovação da Lei nº 11.769 de 18 de agosto de 2008 alterou a Lei de Diretrizes e Bases 9.394 de 20 de dezembro de 1996, dispondo sobre a obrigatoriedade do ensino da música como conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular do Ensino de Artes nas escolas de educação básica. A partir daí, tal assunto é cada vez mais presente em encontros e produções escritas que tratam da atividade, tanto no âmbito pedagógico, quanto no musical, perpassando temáticas tais como a explicitação do valor da música na formação do estudante, as maneiras de ensinar conteúdos musicais, a inclusão da música no currículo escolar, chegando até a apresentação de atividades pedagógicas em livros didáticos de Artes, presentes nas nossas unidades de ensino. Tais discussões nos provocaram, enquanto graduandos, e agora graduado, em Música, e professor de Artes contratado por designação temporária para lecionar numa escola de Ensino Fundamental da rede estadual de educação, a unir esforços para que a educação musical não ocupe uma “posição periférica” (FREITAS, 2015) diante do cenário brasileiro educacional na atualidade. Dessa forma, se considerarmos o ensino da música para além do simples cumprimento de uma legislação, enquanto linguagem, vemos com Swanwick (2003) que a música tem seu valor essencial no desenvolvimento educacional, não devido a seus serviços ou a outras atividades, mas porque é uma forma de discurso, um meio a partir do “qual as ideias acerca de nós mesmos e dos outros são articuladas em formas sonoras”. (p. 18). Assim como esse autor, Oakeshot (1992) também reconhece a música como discurso, ao afirmar que é uma conversação se assemelhando totalmente com a linguagem. O aprendizado de música, enquanto um dos tão importantes componentes da esfera das artes, tem importância destacada em relação às ciências a ao aprendizado instrumental da língua portuguesa. Já a modalidade educação do campo foi instituída a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n. 9.394 de 1996, que, em seu artigo 28, aponta a necessidade dos sistemas de ensino se adequarem às singularidades dos modos de vida e região da população do campo, tendo como objetivo a garantia do acesso e direito à educação nas etapas da educação básica, articulada às formas mais variadas de atendimento, em conformidade com os contingentes da população do campo. (BRASIL, 2013, p. 159). Nessa mesma perspectiva, a escola, caso deste estudo, é um lugar que parece ter sua autonomia e, por isso, também se singulariza, ao mesmo tempo em que está interligada a um sistema escolar com suas normas e regras. Associamos aqui a temática da Educação do Campo à do Ensino da Música, partindo


do pressuposto de que a música faz parte da vida do ser humano e é capaz de trazer elementos importantes da vivência dos estudantes no campo. “A educação é capaz de nos transformar enquanto seres humanos, e, quando transformados, conseguimos em conjunto, em comunidade mudar o mundo que temos à nossa volta”. (FREIRE, 1987, apud BRASIL, 2016, p.220). DESENVOLVIMENTO Nossas perguntas giraram em torno de como se dá o ensino de Música em escolas públicas do campo no estado do Espírito Santo? Por quem estão sendo ensinados tais conteúdos? Como têm sido formados, inicial e continuamente, os professores que ministram tais conhecimentos? Como é a estrutura física para esse fim nas escolas? Quais são os instrumentos musicais disponíveis para esse ensino no campo? A política pública, tal como implementada atualmente, atende às expectativas relacionadas à educação musical, expostas na Introdução ao presente trabalho? A demanda por professores na educação do campo, na área de música, tem sido atendida? E como a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), única universidade federal e mais importante centro de ensino superior público no ES, tem se organizado para dela tomar conhecimento, e atendê-la? METODOLOGIA Em se tratando de Ciências Humanas, Bakhtin (2010) define o ser humano como um ser que se expressa de forma singular, o que faz de si objeto de estudo para o outro e para si mesmo. Assim sendo, para esse autor, não há como estudar o homem fora de seu contexto. Essa abordagem se associa à pesquisa qualitativa (BOGDAM; BIKLEN, 1994), de cunho sócio-histórico (FREITAS, 2018), através da produção de dados. Devido a isso, optamos por observar o espaço onde acontecem as ações desses sujeitos, por entender que “a fonte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal.” Diante do exposto, realizamos um estudo de caso (LÜDKE & ANDRÈ, 1986) em escolas rurais de Ensino Fundamental nos municípios do Espírito Santo, onde há forte presença de estudantes do campo, no intuito de enriquecer ainda mais nossos estudos, a partir da descrição, da observação participante, da entrevista aberta (realizada com os sujeitos envolvidos, desde funcionários das Secretarias Estadual e Municipais da Educação, até os profissionais que atuam nas escolas rurais: professores, diretores, além de estudantes finalizando o curso de Música na UFES em 2018, dentre outros). OBJETIVOS


Objetivo Geral Investigar como a educação musical acontece em escolas do campo no interior do estado do Espírito Santo. Objetivos Específicos ● Analisar o que é ensinado sobre essa área do conhecimento, por quê, para quê, quando, onde, por quem. ● Conhecer a formação e as condições de trabalho dos professores que ministram tais conhecimentos. ● Conhecer a estrutura física e os recursos instrumentais disponíveis para esse ensino. ● Analisar junto aos sujeitos desta investigação os desafios enfrentados por esses profissionais. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA O estudo a que procedemos é uma oportunidade para a promoção de uma série de problematizações acerca da temática em questão, uma vez que a Educação do Campo tem sido objeto de estudo em diversos níveis acadêmicos nas mais variadas áreas, mas, no que tange especificamente ao Ensino da Música em escolas rurais, encontramos pouquíssimos trabalhos. Fora do Brasil, encontramos a pesquisa de Isbell (2005), que, conforme relata Penna (2017), investigou os desafios vivenciados por professores de música na zona rural, onde, para darem suas aulas, tinham que executar tarefas como dirigir ônibus, preparar equipes esportivas, dentre muitas outras. Em nosso país, essa investigação foi realizada por Diniz (2004), com o objetivo de estudar práticas de mulheres que viviam num assentamento em Campo Florido (MG), analisando possibilidades de inclusão, no currículo do Ensino Fundamental, de seu tradicional repertório musical, fato que poderia contribuir para o fortalecimento da autoestima e da identidade cultural daquele grupo escolar, além de promover uma maior interação entre os estudantes daquela comunidade, assim como de suas famílias e profissionais de sua escola. A relevância do tema de nossa pesquisa se apoia na verificação, a partir das produções acadêmicas realizadas junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, que, no período compreendido entre 15/08/2008 até 05/09/2018, há uma lacuna em relação a estudos realizados sobre a educação musical voltada para a educação do campo. Essa constatação aponta a necessidade de que ajustemos nossas lupas nessa direção. O tema em questão também pode ser interessante para a área da educação, uma vez que, analisando as produções acadêmicas em nível de mestrado realizadas pelo Programa de


Pós-Graduação em Educação desta Universidade (PPGE), percebemos que, num período de treze anos (julho de 2004 a julho de 2018), das mais de 480 dissertações defendidas, apenas três abordaram o ensino de música, sendo que nenhuma delas tratou desse tema voltado para a realidade campesina. Tais lacunas e necessidades compuseram o quadro que nos impulsionou a realizar a presente pesquisa. DISCUSSÕES E ANÁLISES Nossa inserção em campo iniciou-se com visita à Secretaria Estadual de Educação (SEDU), onde acreditávamos poder realizar nossas primeiras entrevistas, no intuito de obter dados para mapearmos nossos próximos pontos de pesquisa, localizando as escolas rurais que oferecem Ensino de Música, além de conhecermos seus Projetos Político-Pedagógicos, para, a partir de então, definirmos em quais dessas unidades de ensino realizaríamos nossa pesquisa. Inicialmente, fomos muito bem acolhidos por uma funcionária da SEDU, em 24 de agosto de 2018. Ela nos apresentou, de maneira muito simpática, várias informações sobre a Educação do Campo, a partir de uma entrevista aberta. Ao perguntarmos sobre o ensino de música nas escolas campesinas, essa funcionária não tinha dados suficientes para nos responder. Diante de nossas perguntas, imediatamente nos apresentou livros didáticos de Arte para as séries iniciais do Ensino Fundamental (EF), especialmente elaborados para a Educação do Campo. Essa rápida associação feita pela funcionária entre o ensino de música e o livro didático é um possível indício de que esse é um importante, e por que não dizer, único, aporte teórico de que o professor que deverá ministrar tais conhecimentos dispõe por parte do governo do estado. Segundo ela, não havia, naquela ocasião, especificamente dentro da SEDU, um departamento responsável pela educação do campo. As situações relativas à Educação do Campo estavam sendo resolvidas junto a uma subgerência, para a qual nos encaminhou afirmando ser este o lugar onde poderíamos encontrar mais respostas sobre nosso assunto. Nessa subgerência fomos informados da não existência do ensino de música nas escolas do campo vinculadas à SEDU. Explicou que esse assunto é ministrado pelos professores de arte, conforme o “talento” desse profissional. Ao ser questionada sobre a legislação que torna obrigatório o ensino de música nas escolas, essa funcionária afirmou que tal legislação foi extinta, mesmo que contraargumentarem que isso não havia acontecido. A gerente em questão garantiu que todas as escolas têm professores de arte, mas essa informação é discordante em relação à prestada pela primeira funcionária que nos atendeu anteriormente, que afirmara que nas escolas


multisseriadas do campo não há esse profissional. Além desses primeiros e únicos contatos, a conversa neste segundo espaço não avançou muito. Diante desse impasse, decidimos visitar escolas sem nos prendermos ao vínculo com a SEDU, organizando nosso percurso. Partimos da Secretaria de Educação de Vitória, apenas para conhecermos a possibilidade de haver professores de música em salas de aula da capital do estado, para depois irmos a escolas do campo, nas cidades de Santa Teresa, Santa Maria de Jetibá, Itarana e Aracruz. Para iniciar nosso paralelo entre o ensino de música na cidade e no campo, obtivemos junto à Secretaria Municipal de Educação de Vitória (capital do nosso estado) os seguintes dados: nesta cidade, temos 16 professores de música atuando em Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEFs). Desse modo, na capital, das cinquenta e três EMEFs, quatorze delas contam com professores de música em seu quadro de profissionais, o que significa dizer que, em Vitória, 26% das escolas têm professores licenciados em Música . (Dados obtidos junto à Secretaria Municipal de Educação de Vitória / SEME, em 17 de setembro de 2018). Apesar de esse percentual ainda estar longe do ideal, fomos em busca de conhecer mais de perto o que acontece nas escolas do campo de nosso estado. Ao sairmos da capital em direção a regiões consideradas rurais, vimos uma realidade totalmente diferente daquela, uma vez que não encontramos nenhum professor formado em música nas escolas do campo por nós observadas, confirmando o que nos foi informado na SEDU. Fica difícil entender a lógica de um estado que oferece o curso de licenciatura em música através da Universidade Federal do Espírito Santo, desde o ano 2000, não ter em suas salas de aula tais profissionais atuando junto a nossos estudantes capixabas. Se há investimento na formação desses professores, não há como conceber a ideia de eles não estarem fazendo a diferença na vida desses estudantes. Desse modo, com vinte e um anos de curso, temos muitos professores capacitados e aptos para lecionar as aulas e projetos dentro das escolas deste estado. Tais constatações nos deixam o questionamento: para onde esses professores estão indo? Mesmo depois de oito anos tendo a oferta dessa graduação, as autoridades competentes, a partir da promulgação da Lei nº 11.769 de 18 de agosto de 2008, vetaram a possibilidade de o ensino de música ser ministrado por professores graduados em música, usando para isso a justificativa de que não havia número suficiente de profissionais aptos para tal atuação. Essa incoerência evidencia a necessidade de se repensarem as políticas públicas que envolvem tal ensino, inclusive a que se refere à implantação de tal lei.


Nas escolas estudadas, todas as professoras de artes entrevistadas, responsáveis teoricamente, pelo ensino de música, afirmaram ter mais segurança para atuar com as artes visuais, reconhecendo que a música é para elas mais difícil, devido à formação que receberam nos bancos da faculdade, e na formação em serviço, além de lamentar a falta dos recursos necessários para esse trabalho. Se para essas profissionais já se torna difícil ministrar tais conhecimentos, tal desafio pode ser ainda maior, uma vez que, algumas professoras que dão aula de artes se apresentaram como graduadas em outras áreas do conhecimento, tais como história e educação física. Situações como essas, mostram o descaso das políticas públicas em relação às peculiaridades que o ensino da área de artes, em especial, de música, exige. Outros depoimentos sugeriram que há conteúdos de música previstos no currículo, mas os professores realmente levam para suas salas de aula aqueles que dão conta de executar, geralmente os relativos às artes visuais, pois têm pouca ou nenhuma formação para ministrar conhecimentos musicais, tendo como única base as atividades propostas nos livros didáticos (fator já anunciado no primeiro contato realizado junto à funcionária na SEDU). Tais constatações nos levam a refletir sobre uma das falas de uma das pedagogas entrevistadas: “o livro didático não prepara ninguém para dar aula, seria necessário se investir na formação desse profissional”. Elas relataram que no diário de classe apenas se registram conteúdos de música como se estivessem sendo trabalhados, mas isso só se dá para constar, pois não há como acontecer efetivamente, devido ao não investimento nesta área do conhecimento por parte do governo, no que se refere à falta de profissionais formados para essa finalidade. Além desse quesito, outro entrave destacado foi a falta de recursos e de espaço físico reservados para esse ensino. Segundo muitos relatos, as condições de trabalho são insuficientes, não tendo quadra, biblioteca, sala de artes, e, em algumas escolas, tendo que dividir seu espaço com animais como bois e galinhas. Assim, as aulas eram planejadas pelas docentes para acontecerem dentro da sala, para uns trinta alunos por turma, atuando de manhã, à tarde e à noite. Segundo as entrevistadas, a música é muito importante para a população local, principalmente devido à cultura religiosa da grande maioria dos moradores do entorno das escolas estudadas. Foi relatado que os alunos vivenciam sua musicalidade nas comunidades, na igrejas, mas quando entram na escola suas experiências musicais têm que se calar. Quando raramente há apresentações musicais nessas escolas os estudantes músicos já sabem tocar porque aprenderam tal habilidade fora da escola, por investimento dos familiares ou das igrejas de que participavam. De acordo com uma das entrevistadas, os instrumentos ali


utilizados foram feitos de material reciclado, ou trazidos de casa. Todas as entrevistadas reconheceram a importância do ensino de música, dando destaque para a necessidade de políticas públicas que tenham como foco a formação dos professores e demais profissionais da educação voltada para o ensino dessa área do conhecimento, assim como em recursos e espaços físicos adequados para essa finalidade. Todas as respostas apresentadas pelas entrevistadas insinuaram que o ensino de música é importante, principalmente porque leva o estudante a aprender a ouvir e sentir a música, desenvolvendo sua criatividade e criticidade, além de desenvolver outras habilidades, citando como exemplo as envolvidas no processo de alfabetização. Elas falaram que a música perpassa todas as áreas do conhecimento, defendendo a possibilidade de haver aula de música na escola, uma vez que a música está em todo lugar, em especial na comunidade em que atua por meio da cultura e da religião local, assim como na aula de matemática, de português, dentre outras. Todas essas falas vão ao encontro do que nos lembra Swanwick (2003), “o que diferencia a música, a literatura e as demais artes das ciências é a força da conexão com as histórias culturais e pessoais.” (p.36). Por outro lado, cada arte tem suas especificidades técnicas, práticas, cognitivas, discursivas, mobilizando diferentes aspectos da personalidade de cada um, que são controlados com níveis variados de maestria segundo a formação de cada profissional atuante no ensino. É por isso que se coloca a importância de que cada arte seja tratada por profissionais especializados, ou seja, com formação adequada, nos diferentes níveis da educação básica. Nossas entrevistadas, com muito pesar, concluíram que seus alunos estão atrasados em relação aos da cidade grande, ou seja, que “os alunos do campo estão sempre atrasados, estão sempre perdendo”. Falta estrutura para isso, tanto na formação do professor, quanto no espaço físico e recursos materiais, o investimento público estava sendo feito apenas nos centros urbanos. Essa fala confirma que os dados encontrados nos documentos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) também se referem ao que acontece nas escolas do campo capixabas, valendo aqui destacar o elevado índice de analfabetismo; a distorção idade-série; a dificuldade do sistema educacional em manter a frequência dos alunos; a formação dos professores; a dificuldade do acesso à educação escolar; além da precária qualidade das condições físicas e funcionais das escolas campesinas. Uma pedagoga acredita que esse descaso se dá porque os pais da capital cobram mais seus direitos que os do campo. Outro depoimento vai de encontro a tal reflexão, pois, segundo outra pedagoga “os pais do campo cobram mais, pois conhecem bem de perto a realidade vivida na escola de seus filhos, mas o problema aqui é o pouco conhecimento da lei que


institui o ensino de música como obrigatório, não conhecem a LDB”. Tais prejuízos afetam em especial os jovens da zona rural, que muitas vezes desejam uma vida distante das terras de seus pais e familiares por não ver nelas uma condição mínima de satisfazer necessidades materiais e ideais. Os jovens que vivem nas áreas de assentamentos, quilombos ou em pequenos sítios são os que mais sofrem os efeitos da precariedade das condições de vida nestes locais. É uma parcela da sociedade que, repetindo os índices da juventude camponesa nacional, mais tarde nos bancos escolares, tem altos índices de reprovação, evasão, e dificilmente acessa os estudos de nível superior. Segundo De Castro (2009) “os processos de exclusão daqueles identificados como jovens são complexos e envolvem a intercessão de questões de classe social, gênero, raça, etnia, sexualidade” (p.185). São os jovens os mais atingidos pela ausência de alternativas de sobrevivência onde vivem. São eles também a parcela mais desejosa de migrar para outras cidades da região ou para a capital do estado, em busca de emprego e moradia. É a juventude, portanto, a parcela da população local que deve ser impactada prioritariamente. A SALA DE MÚSICA ESQUECIDA Deixamos os depoimentos das profissionais desta escola para serem discutidos separadamente, uma vez que aqui encontramos uma realidade completamente singular se comparada a todas as outras aqui estudadas. Aqui os depoimentos também apontaram para o não cumprimento das leis da educação, a exemplo do ensino de música. Diante desse e de outros relatos importantíssimos para esta pesquisa, para grande surpresa nossa, descobrimos a existência nesta escola de uma sala de música suficientemente equipada com violões, violas, violinos e piano, que, entretanto, não são utilizados, por falta de professor. Alguns professores da escola pedem para utilizar essa sala, mas não se pode deixar devido à falta de segurança, pois há o receio de que alguém leve embora algum desses instrumentos. Tais recursos são usados em alguns raríssimos eventos da escola, apenas pelos alunos que sabem tocá-los, que aprenderam de forma particular ou por meio de filantropias. Relataram que já foram dadas aulas de música naquela sala há muitos anos, mas que há várias gestões isso não mais acontece. Em alguns momentos um professor de História havia usado o piano em um projeto desenvolvido com o quarto, sexto e sétimo anos, e que, em algumas raras vezes, os instrumentos saíam dali para a casa da cultura local. Houve ainda um pedido dos profissionais dessa unidade de ensino que os instrumentos fossem retirados desse espaço para que a sala de aula fosse melhor aproveitada com outras disciplinas, pois, para além do desperdício de material riquíssimo, também há uma sala de aula inativa na escola. Depois de todos esses sérios relatos, fomos convidados para conhecer a


tal sala de música. Chegando lá, nos sentimos em um paraíso musical. Vimos que a sala possui um quadro pautado (recursos que não temos nem no departamento de música da UFES), vários violinos, material completo ainda embalado, cadernos pautados, flautas, tudo sem nenhum tipo de aproveitamento. Vimos que a escola tenta conservar tudo isso, mas percebemos que a poeira e o tempo estão corroendo aquelas preciosidades que poderiam estar servindo como instrumentos para promoção da apropriação de tantos e tão importantes conhecimentos. Ficamos estarrecidos dentro daquela sala de aula que a nós parecia um lugar fantasma, ou irreal, ou surreal, onde parecia que as pessoas, ou melhor, que a humanidade toda havia morrido e só sobraram os instrumentos, silenciados diante de tamanha falta de responsabilidade das autoridades locais. Sentimos toda a dor na própria pele o quanto nós, professores de música, sonhamos com um espaço daquele, de quanto nossos estudantes precisam de recursos como aqueles, que, pela falta de uso, pela ausência de autoridades competentes, tornou-se um pesadelo para toda a humanidade.

Figura 1: A “sala de aula esquecida”: quadro pautado para a escrita musical e o ensino da leitura. Foto de Matheus Muri Paixão – 22/11/2018.

Figura 2: A “sala de aula esquecida”: violino intacto, em desuso. Foto de Matheus Muri Paixão, em 18/11/2018.

Figura 3: A “sala de aula esquecida”: piano elétrico intacto, em desuso. Matheus Muri


Paixão, em 18/11/2018. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esperamos que a presente pesquisa tenha contribuído para dar visibilidade à Educação Musical na modalidade Educação do Campo em terras capixabas, uma vez que tal temática ainda é pouco pesquisada, tanto pela área de Educação, de Artes, quanto pela de Música. Por meio desse estudo, tivemos a intenção de destacar que a escola do campo é um espaço de educação básica que tem suas especificidades, que englobam questões territoriais, geográficas, sociais, políticas e culturais, que exigem maior comprometimento e responsabilidade por parte de nossos governantes. A partir da análise dos dados que aqui produzimos junto a professoras, pedagogas, diretoras, e demais profissionais da educação, buscamos evidenciar as particularidades da modalidade de ensino Educação do Campo, para, a partir daí, promover reflexões sobre sua relação com dimensões e processos que podem/devem envolver a inserção do ensino de música em uma escola do campo. Nossos estudos sugerem que é preciso defender a Educação Musical do Campo na escola pública, uma vez que sua garantia nos leva muito mais além do discurso do belo. Devese, pelo contrário, destacar que a música pode fortalecer a identidade, o protagonismo. Ela pode mediar um processo de luta contra a opressão da juventude camponesa por seus direitos mais essenciais. Cabe aqui, entretanto, pensar também mais amplamente, para além do emprego instrumentalizado da música, ou seja, de seu tratamento como meio para algum tipo de resultado social. Acontece que há uma razão de ser para que o aprendizado da música se constitua como um direito. Nesse sentido, ter garantido o direito ao aprendizado de música é condição para o desenvolvimento de personalidades mais ricas, que se apropriarão de uma parcela a mais da diversidade que caracteriza o ser humano em seu processo de autoconstituição. Os dados aqui produzidos, para além de afirmar certezas, deixam algumas dúvidas, que consideramos um novo ponto de partida. Seguem algumas delas. Quais são as reais perspectivas para o ensino de artes na educação pública, numa situação de desvalorização cada vez maior da formação humanística, e de consagração da orientação exclusiva das escolas para a formação destinada à inserção no mercado de trabalho? Se a formação é destinada à rápida inserção no mercado de trabalho, como a configuração deste mercado determina os conteúdos ministrados em sala? Quais são as mediações para que tais determinações aconteçam? O que é possível fazer imediatamente em relação às situações


relatadas? É possível enfrentá-las individualmente? Ou o enfrentamento deve ser coletivo? Nesse último caso, como fazê-lo? Essas dúvidas deixam indícios de por onde continuar nossa pesquisa na área da educação musical. Valendo aqui destacar que hoje desenvolvemos um novo projeto de pesquisa, voltando nossos olhares para o ensino de música no âmbito da sociologia política, com foco nas políticas públicas voltadas para essa finalidade. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14 ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. (Título original de arquivo, 1979, com a tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi a partir da edição francesa (Paris, Les Editions de Minuit, 1977). BOGDAM, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação Qualitativa em Educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Tradução de M. J. Alvarez, S. B. Santos e T. M. Batista. Portugal: Porto, 1994. BRASIL, Anderson Fabrício Andrade . Música e transformação social: ensino e aprendizado a partir da perspectiva do outro . In: SILVA, Cícero da; MIRANDA, Cássia Ferreira; AIRES, Helena Quirino Porto; OLIVEIRA, Ubiratan Francisco de. Educação do campo, artes e formação docente. 1ª. ed. Palmas-TO: EDUFT, 2016. v. 1500. 244p. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996.

_______. Lei n° 11.769, de 18 de agosto de 2008. Altera a lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica. Brasília, 2008. _____. Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica. Diretrizes operacionais para a educação básica. Censo Escolar. Brasília: MEC. SEB, DICEI, 2013.

_____.IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticasnovoportal/sociais/saude/9662-censo-demografico-2010.html. Acessado em 08 de outubro de 2018. Castro, E. G., Almeida, S. L. F; Vieira, L. C., Rodrigues, M. E. B. & Felix, C. (2007). Identificação e mapeamento preliminares das principais organizações de juventude rurais e sobre jovens rurais no Brasil, Rio de Janeiro: UFRRJ/NEAD/MDA/IICA, relatório de pesquisa. (Indisponível para divulgação). DINIZ, Mirza Maria Cury. “Em Cantando” professores/as e aluno/as: uma proposta de prática musical numa escola rural. 2004. 234 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Uberaba, Uberaba/MG, 2004. FREITAS, M. T. D. A. A abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa qualitativa. Cadernos de Pesquisa. São Paulo SP, n 116. p. 21 - 39, jul. 2002. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/n116/14397.pdf>.


Acesso em 30 de agosto de 2015.

FREITAS, Alexandre Siqueira de. O silêncio e a música. Blog “Questões Musicais”, Revista Piauí, 2015. Disponível em: Acesso em outubro de 2018. ISBELL, Daniel. Music education in rural areas: a few keys to success. Music EducatorsJournal, v. 92, n. 2, p. 30-34, 2005. LÜDK, M.; ANDRÉ, M. E. D.A. Pesquisa em Educação: Abordagens qualitativas. São Paulo. EPU, 1986.

MEC, PCN. Parâmetros Curriculares Nacionais: arte. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. MENDES, E. R. & PENNA, M. Educação musical em turmas multisseriadas de escolas rurais/do campo: uma pesquisa-ação. 2017. OAKESHOTT, Michael. Rationalism in Politics and Other Essays; Liberty Fund, Indianapolis, 1992, 556 pp. PENNA, Maura. Música(s) e seu ensino. Porto Alegre, RS.Editora Sulina, 2012. SOUZA, J. Educação musical e práticas sociais. Revista da ABEM, v. 12, n. 10, 2014. SWANWICK, Keith. Ensinando Música Musicalmente. Trad. Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo. Moderna, 2003.

NOTAS DE FIM 1.

Graduado do curso Licenciatura em Música, pela Universidade Federal do Espírito Santo. Possui PósGraduação em Didática do Ensino Superior pela Faculdade Capixaba da Serra. Leciona a disciplina de Artes na Rede Estadual de Ensino do Espírito Santo. Mestrando no programa de Pós-Graduação em Sociologia Política pela Universidade de Vila Velha.


EM BUSCA DE SONHOS EM UMA VIAGEM COM ARIANO SUASSUNA: encontro de professoras entre memórias, afetos e práticas escolares Sonia Maria de de Oliveira Ferreira Andréa Mendes Avona RESUMO O presente artigo tem como objetivo apresentar os projetos “Em busca de Sonhos” e “Uma viagem com Ariano Suassuna pela cultura e arte nordestina”, fazendo um paralelo entre as memórias afetivas dos alunos/crianças, dos seus sonhos e dos lugares em que estes sujeitos se deslocam e tem suas marcas. Estes foram premiados no XIX Prêmio Arte na Escola, em 2018, nas categorias de Educação Infantil e Ensino Fundamental 2. Buscamos discorrer sobre o envolvimento das crianças/alunos nas mediações e no afeto que move o professor nas práticas escolares. As tessituras desse encontro no percurso da semana da premiação trouxe ainda mais aprendizados e trocas sensíveis, o que corrobora para a ampliação dos conteúdos que envolvem a arte e o movimento no ambiente escolar com vistas ao ensino da arte. Vigotski ampara o conceito de medição nas interações e participação dos educandos a fim de qualificar o aprendizado destes, assim também como Freire (2018) com a pedagogia progressista, e Barbosa (2005,2008,2014) na abordagem triangular que nos trouxe resultados positivos em meio ao processo ensino-aprendizado através da experiência, das memórias e do afeto. Palavras-chave: Arte Educação; memórias; afetividade; experiência.

RESUMEN Este trabajo tiene como objetivo presentar los proyectos "En busca de los sueños" y "Un viaje con Ariano Suassuna a través de la cultura y el arte del noreste", haciendo un paralelo entre las memorias afectivas de los alumnos/niños, sus sueños y los lugares donde estos sujetos se mueven y dejan sus marcas. Estos han sido premiados en el XIX Premio Arte en la Escuela, en 2018, en las categorías de Educación Infantil y Primaria. Se busca dialogar sobre la participación de los niños/alumnos en las mediaciones y el afecto que mueve al profesor en las prácticas de la escuela. El entrelazamiento de este encuentro durante la semana del premio aportó aún más aprendizaje e intercambios sensibles, lo que permite la ampliación de los contenidos que implican el arte y el movimiento en el entorno de la escuela con vistas a la enseñanza del arte. Vigotiski (1999) apoya el concepto de medición en las interacciones y la participación de los estudiantes a fin de enriquecer su aprendizaje, así también Freire con la pedagogía progresista, y Barbosa (2005, 2008, 2013) en el abordaje triangular, lo cual nos brindó resultados muy positivos en el proceso de enseñanza y aprendizaje a través de la experiencia, las memorias y el afecto. Palabras Clave: Artes educación; memorias; afectividad; experiencia

INTRODUÇÃO “Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa Há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.” (Manoel de Barros) O discurso de Manoel de Barros sobre a importância das coisas relaciona a nossa trajetória como arte-educadoras, onde o afeto nos move nas trocas com nossos alunos/crianças, no encantamento que essas ações produzem em nós. Desse modo, destacamos como objetivo principal as práticas em artes a partir das experiências e das


memórias, de lugares e culturas diferentes, por duas professoras que tem algo em comum, o protagonismo do sujeito a quem se destina o conhecimento e a garra e encantamento pelo labor, nas formações e trocas com os pares. O percurso se deu como professoras de Artes, uma na Educação Infantil de Vitória/ES e a outra no Ensino Fundamental 2, em Santana de Parnaíba/SP. Ambas, buscando ampliar o olhar dos nossos alunos/crianças para o mundo, e ao mesmo tempo podendo refletir sobre si, sua história, seus anseios e como pertencentes a sociedade, cada um com sua história, memória e vivência. A Educação Infantil como primeira etapa da educação básica é o primeiro contato da criança com o ambiente escolar. Com isso, o professor deve estar atento e fundamentado para mediar de forma afetuosa, receptiva e com experiências que encantem e ampliem o desejo de aprender mais. Nesse percurso trilhado, a transição da infância na Educação Infantil para outra etapa da educação básica se dá de forma tranquila. E o aprendizado vai sendo ampliado, ainda mais com projetos uníssonos como os nossos, que nos uniu em um lugar de escuta e de trocas, mostrando nossos caminhos que acabaram se encontrando. Com isso, buscamos delinear nossa trajetória e nossos projetos se encontram nesse artigo. Temos como premissa a continuidade e esse olhar para a criança, mesmo quando já não chamam a professora de tia e são denominados alunos. O projeto “Em busca de sonhos”, foi elaborado num bairro de Vitória, com o objetivo de ouvir as crianças, saber o que elas desejam. A arte instigante e dialógica, trazendo à tona sentimentos e desejos futuros de crianças da periferia da cidade. A pergunta principal se deu a partir da própria história, que quando criança, morava em uma casa de madeira e tinha um sonho de morar numa casa de “tijolo”. Na roda de conversa com as crianças sobre os seus sonhos nasceu o título e o tema principal do projeto, pois uma criança também tinha o sonho de morar numa casa de tijolo, não queria carrinho ou outro brinquedo como as outras crianças, seu sonho era muito mais que algo relacionado à infância, mas à necessidade pessoal de conquista de uma vida melhor. Sair da escola para visitar exposições, conhecer artistas para além das imagens impressas, com o contato e diálogos diretos, e práticas que envolvem a experimentação foi o que norteou o trabalho, tendo a criança como participante, com vistas a sonhar, conhecer lugares e projetar seus sonhos e as experiências na memória. Relacionando a cultura, a experiência, a professora do Ensino Fundamental II de Santana de Parnaíba/SP buscou valorizar a história e memórias dos seus alunos. Essas práticas trazem a compreensão da identidade cultural, suas raízes, o lugar onde vivem e as memórias, levando a história e desejos de cada um. Busca em Ariano Suassuna a valorização do nordestino, visto que muitos dos seus alunos tinham ascesdência nordestina. Buscou o


reconhecimento dos elementos caracterizadores que hoje compõe a identidade brasileira nas suas dimensões artísticas e culturais. Entende que Suassuna fala de raízes e histórias que narram o ser que somos, e para ele “[...] nós somos um grande país. É isso que tento mostrar em tudo que faço e em tudo o que escrevo. Se o Brasil se portar como merece o nosso povo, nós ainda vamos iluminar o mundo.” (SUASSUNA, 2017). Assim, trilhamos do mesmo modo as práticas e mediações, onde os conteúdos da arte eram discutidos a partir da leitura de imagens, da fala do discente e das trocas estabelecidas para o aprendizado. Seja a obra da artista Angela Gomes que apresenta a imagem de um parque na cidade de Vitória com momentos de brincadeiras na infância, e as crianças tentam reconhecer aquele lugar de memória, onde as brincadeiras são constantes, como uma gravura que traz traços nordestinos, alinhando com a literatura de cordel. Ou o artista Richard Hoey, um estrangeiro que veio de Londres para fixar moradia em Vitória, que registra blocos portugueses do calçadão em suas obras com estilo contemporâneo, mostrando o caminho pelo qual estabeleceu na cidade, como sua terra está distante, e onde esse o levará. Trabalhar com formas geométricas e o conceito abstrato e subjetivo, ou os conceitos da tradição histórica familiar, passeando por lugares através da arte e da literatura, instiga as crianças e as faz pensar sobre os seus caminhos seguintes. Quem sabe surgirá uma artista ou um escritor, ou qualquer outro sonho que queiram sonhar e realizar. Esses registros de memórias e de encontros é que nos move como educadoras da arte. O encontro no Prêmio Arte Na Escola em São Paulo foi um turbilhão de emoções, pois percebemos afinidades nessa paixão de ensinar a arte e envolver emocionamente com nossos alunos/crianças e nossas práticas. A abordagem triangular nos fundamentou, levando em conta a leitura de imagem, a interpretação da obra e os fazeres artísticos, ainda mais envolvendo suas histórias, e a participação das famílias como suporte para que o trabalho pudesse ser realizado. As parcerias, a fundamentação e o afeto foram cruciais para que nosso projeto desse certo. Buscamos no percurso do prêmio ampliar ainda mais nossos conhecimentos e fundamentação para carregarmos em nossa bagagem numa semana de imersão cultural, unindo ideias, sonhos e mais afetos e isso nos trouxe até aqui para relatar essas experiências e, reafirmar a importância de trocas com os pares, sanando as angústias e aproveitando as experiências que deram certo para que possamos ampliar nossa rede e dando mais visibilidade e qualidade no ensino da arte. AS EXPERIÊNCIAS: EM BUSCA DE SONHOS E A VIAGEM COM SUASSUNA O objetivo é relatar as experiências em Artes com nossos alunos/crianças e a importância da formação com nossos pares, no encontro e nas tessituras na semana formativa. No decorrer das nossas práticas, buscamos elencar temas que traz o entendimento de que a


educação pode mover o mundo. Uma mediação amparada em estudos, pesquisas podem proporcionar ao educando uma “boniteza”, como diz Paulo Freire, no olhar. Fazer das aulas de Artes poesia, e se movimentar para trabalhar naquilo que acreditamos que trilha o caminho para uma educação de qualidade. Nos toca ouvir da artista Sandra Cintro no vídeo coletivo dos professores premiados em 2018 sobre os trabalhos desenvolvidos no Instituto Arte Na Escola. Ela discorre que “[...] é lindo pensar esse ser que vem pequenino para a escola e vai crescendo como um ser pleno, cheio de curiosidade e vontade de agir no mundo.” (CINTO, 2018). E assim, a criança tendo a oportunidade de vivenciar práticas e saberes que perpassam por suas histórias e sonhos. Sujeitos que têm história e memórias embutidas, trazidas do seu ciclo familiar, e que como seres únicos, mesmo que ainda pequenos, trazem essas vivências para o convivío com o outro. Cinto traz um dizer de suma importância que complementa nosso pensar que é “[...] a criança saber que ela está no mundo, pertence a esse mundo” (CINTO, 2018). E para nós como professoras de artes podermos permitir essa viagem e esse entendimento nas mediações das nossas aulas é um privilégio. Na educação infantil a busca daprofessora se move a partir dos diálogos com as crianças num Centro de Educação Infantil em Vitória. Seus sonhos projetados na infância renascem nas falas das crianças, e destas surge o insite para elaboração do projeto que se intitula “Em busca de sonhos”. Somos seres sociais, com histórias e memórias, e essas fazem parte de nós. No projeto o olhar pela cidade e seus encantos remonta cenas com as crianças, ampliando o olhar para a cidade em que vivem através de obras de Artes da artista Angela Gomes, que retrata em Naif o Parque Pedra da Cebola, com figuras que representam crianças brincando. A leitura de imagem fez parte do contexto dialogado com as crianças, fazendo a interpretação dos conteúdos imagéticos contidos na obra, bem como o que representava para cada uma delas. Além de Angela Gomes, outros artistas fizeram parte desse discurso, como Dayse Resende, que tem um trabalho artístico intitulado Geografia Afetiva, com pinturas de Pedras que fazem parte da paisagem de Vitória, e da própria história da artista, bem como a obra do artista inglês Richard Hoey. A experiência nas práticas artísticas foi muito além do fazer artístico, constituindo no encontro com o artista, nas visitas a espaços expositivos ou reconhecer pontos turísticos da cidade in loco, representando a obra viva, brincando as brincadeiras da obra e projetando seus sonhos numa tela com pincel e tinta. Foram experiências que demonstram o que Freire disse sobre o processo de aprender que “[...] é um processo que pode deflagar no aprendiz uma curiosidade crescente, que pode torná-lo mais e mais criador.” (FREIRE, 2004, p.24), como também proporcionar as crianças a conhecer lugares que possivelmente muitas delas não conheciam, seja nos passeios/visitas, como pela presença de um artista estrangeiro na escola, o que faz surgiu desejos de conhecer e se


colocarem naquele lugar de conquista e sonharem seus sonhos imagináveis e quisá possíveis, que ficarão na memória para algum momento da vida adulta. Nesses percursos, chegar ao ensino fundamental 2 eles já carregam essa bagagem de aprendizado, e sempre que forem há alguns dos lugares visitados, já que fazem parte da cidade em que vivem, lembrarão da professora de Artes que os levou ali quando eram crianças. São as histórias, vivências positivas na infância que marcam o sujeito e trazem boas lembranças. Assim, chegaram os alunos da professora de Santana de Parnaíba,em São Paulo. Muitos deles ascendentes de nordestinos que vieram para São Paulo para tentarem a sorte para uma vida melhor. Conhecer suas histórias, numa mala criada pela professora, trouxeram lembranças e um pertecimento de raízes que remonta as palavras de Freire que [...] quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 2004, p.23). O propósito do seu trabalho era “o propósito de aproximação entre cultura e arte, simultaneamente, família e sociedade.”(AVONA, 2018). Traz as obras de Ariano Suassuna com o Movimento Armorial Brasileiro, a xilogravura de J. Borges, a literatura de cordel e o teatro de mamulengos. Histórias das famílias retratadas na arte nordestina, reforçando as raízes culturais dos alunos Para as trocas de maneira efetiva, foi necessário saber escutar a fala do outro. O ser professor não é um ser superior, é preciso estar aberto para entender o que o outro traz das suas vivências e seus anseios. Freire aponta que “[...] o educador que escuta aprende a difícil lição de transformar seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, num fala com ele” (FREIRE, 2004, p.113). Quando paramos para escutar o educando, aprendemos a falar com ele. Ao trabalharmos com crianças, devemos dialogar como um sujeito que é, que advém de um grupo familiar, numa fala clara e numa escuta respeitosa, com trocas que traduzem o discurso da e na linguagem humana. São sujeitos que trazem bagagens históricas, e que o aprendizado se dá nessa troca. Freire revela que [...] escutar é […] algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada […] significa a disponilibidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro […] é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor se situar do ponto de vista das ideias.” (FREIRE, 2004, p. 119-120).

Para nossas práticas, Ana Mae Barbosa aporta com a abordagem triangular com a tríade “contextualização, apreciação/leitura de imagens e o fazer artístico”. A autora descreve em vários artigos que não é um método a ser seguido fielmente, mas como um parâmetro para as práticas em artes. Apesar de não termos trabalhado juntas, por estarmos em estados distintos, nossos caminhos se cruzaram e as escolhas dos autores basilares foram os mesmos para compormos nossos diálogos nos projetos vencedores. O que nos aproxima não foram


apenas as escolhas, mas a forma de dedicação, formação e pesquisa para montagem de um projeto e a busca para as práticas com os alunos/crianças respeitando suas identidades, desejos, com todo amor que temos por nossa profissão. Essa é a base para que um trabalho dê certo e os resultados possam ser positivos, alcançando o objetivo a que nos propomos. O envolvimento afetivo, a participação de colegas e das famílias fizeram toda a diferença em nossos projetos. A arte mediada pode ser a ponte das heranças culturais, o pertencimento como sujeitos de lugares e histórias. Por isso Barbosa foi uma das nossas bases referênciais. Ela descreveu que busca “[...] uma abordagem que torne a arte não só um instrumento do desenvolvimento das crianças, mas principalmente um componente de sua herança cultural” (2014, p. 04). O transbordamento das emoções é possível através da mediação do professor, pois “[...] a arte é social em nós, e,se o seu efeito se processa em um indivíduo isolado, isto não significa , de maneira nenhuma, que as raízes e essências sejam individuais […] o social existe até onde há apenas um homem e suas emoções pessoais” (VIGOTISKI, 2001, p. 315). Dialogar com os alunos/crianças, fazendo reflexões e leituras de mundo ascende os sentimentos. O processo do aprendizado é mais importante que o produto final. A arte vai muito além do fazer artístico, mas pode proporcionar esse transbordar das emoções, dos sentidos e sentimentos quando todos estão em sintonia e o professor está fundamento para esse propósito de ensinar. Vigotiski reforça que “[...] a arte é uma técnica social do sentimento, um instrumento da sociedade através do qual incorpora o ciclo da vida social os aspectos mais íntimos e pessoais do ser.”(VIGOTISKI, 2001,p. 315) Foram experiências entre professoras e alunos/crianças que marcaram momentos que ficarão na memória para todos que se envolveram. O ENCONTRO E AS TESSITURAS Partindo das experiências vividas, cada uma na sua cidade, na sua escola, em 2018 recebemos a notícia de que nossos trabalhos foram escolhidos. Partimos para São Paulo para uma semana de imersão e entrega do prêmio por categorias de ensino num evento especial. A emoção foi grande, em saber que nossas práticas foram aprovadas e serviriam de inspiração para outros professores. A semana começou com a troca de saberes, cada um advindo de um lugar com culturas e formas de trabalhar diferentes, pois cada ser é único, nessa troca percebemos que cada um dos cinco participantes tinham algo em comum: o amor por aquilo que fazem, a dedicação, mesmo com alguns dificultadores em aplicar o projeto, e a entrega que os participantes tiveram na aplicação. Esse primeiro encontro foi intenso, mágico e transformador. Como professores e professoras sonhadores(as), seguimos os princípios de


Freire que [...] não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino[...].ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.(FREIRE, 2004, p.29).

Cada projeto teve um dia de imersão dentro da temática escolhida e do segmento da educação básica, com todos participando da formação. Alinhando ao que disse Freire, foram momentos de pesquisa, conhecimento de campos ainda não vistos e experiências que nos tocaram e agregamos mais conhecimentos para que pudéssemos contar as novidades em nossas aulas. Os trabalhos desenvolvidos, transformados em um documentário, tiveram um artista convidado como comentarista, hipoteticamente um apadrinhamento das práticas realizadas. Por um mero acaso, a arte educadora Rosane Almeida, fundadora do Instituto Brincante, em São Paulo, comentou os trabalhos das professoras aqui citadas, por serem próximos em conteúdos sobre memórias, afetos e pertencimento de lugar. A mala da viagem da professora de Santana de Parnaíba se encheu de histórias vividas pelos familiares que também foram protagonistas nesse processo, o que desenvolveu traz relatos a partir da narrativa contada por familiares. As imagens como fonte história está no trabalho da professora de Vitória, onde a experiênica no parque Pedra da Cebola se confunde com a obra da artista trabalhada e dos lugares visitados que ficarão na memória. Esse encontro foi memorável, pois proporcionou conhecer o trabalho e os percursos percorridos de cada uma, tecendo conhecimentos e criando laços com o mesmo objetivo comum, qualificar as aulas de artes nos nossos espaços escolares e para quem se destina o conhecimento, nossos alunos/crianças. A semana foi intensa com visitas ao Espaço Brincante, numa experiência com uma ciranda, lembrando as brincadeiras da infância. A visita ao MASP com contato direto com obras histórias de artistas renomados. E a visita à exposição do artista chinês Ai Weiwei. Foi uma imersão cultural potente, com muito aprendizado, pesquisa e trocas. E depois de tanto afeto e reconhecimento, voltamos para nosso aconchego, como diz a música de Elba Ramalho […] trazendo na mala bastante saudades” e saberes que puderam ser compartilhados e ampliados para outros projetos com responsabilidade e a boniteza de ensinar o que nos propomos de forma intensa e amorosa. RESULTADOS Os projetos analisados trouxeram visibilidade aos lugares onde foram aplicados, e acima de tudo, reforça a importância do ensino da arte na escola. Com práticas envolventes, dando a voz para o aluno e a criança, podendo opinar o que querem aprender, instigados e ao mesmo tempo criando um laço de afeto que transborda nas falas nos documentários realizados


pelo Insituto Arte na Escola. Todas as práticas trouxeram o reconhecimento das professoras, bem como o protagonismo do educando que ao mesmo tempo em que aprende também ensina. As crianças da educação infantil ao final do projeto, conseguiram registrar seus sonhos em telas, alguns querem ser advogados, diretora de escola, policial, e muitos outros querem ser artistas ou professoras(es) de artes como a professora de artes deles. O envolvimento afetivo acaba tornando o ser professor de importância na vida da criança, e esse exemplo positivo se tornou possível a partir das experiências que o projeto proporcionou. Puderam ver que não é somente o espaço onde vivem ou o caminho da escola para casa e vice-versa, mas há um mundo lá fora a ser conquistado, e cada um pode sonhar. Viram a cidade a partir das obras de artes e fotografias, e nas visitas pela cidade (figuras 1 e 2) puderam fazer comparações. Dialogam com um artista estrangeiro (figura 3), alguns tiveram o sonho de viajar, pois mesmo sem terem estudado geografia ainda, sabiam que do outro do lado do mar (figura 4) tem um país chamado Inglaterra e uma cidade chamada Londres. Essas são pontas de icebergs que podem ampliar sonhos e conquistas futuras. Figura 1 - Descrição: Educação Infantil em frente ao Palácio Anchieta/ES.

Fonte: Disponível em <Flickr/artenaescola2018>. Figura 2 - Descrição: Educação Infantil. Professora e alunos no parque Pedra da Cebola.

Fonte: Disponível em <Flickr/artenaescola2018> .

Figura 3 - Educação Infantil.Professora e alunos em roda de conversa com o artista Richard Hoey.


Fonte: Disponível em <Flickr/artenaescola2018> Figura 4 - Educação Infantil. Professora com alunos, “vistas da cidade da Pedra da Cebola”para além mar.

Fonte: Disponível em <Flickr/artenaescola2018>.

Em Santana de Parnaíba, os alunos puderam ter seus familiares contando suas histórias no documentário, aprenderam sobre Suassuna e se encontraram com suas raízes. A cultura nordestina enfatizada os aproximou aos tempos vividos e o reconheceram do lugar de onde vieram seus familiares. A partir do Auto da Compadecida, escrito por Suassuna, abordou o contexto histórico da cultura, a mala cultural estava carregada de memórias que foram compartilhadas (figura 5). Trabalhou a linguagem teatral (figuras 6 e 7), o fazer artístico a literatura de cordel e o bumba-meu-boi (figura 8). Utilizou de diversas linguagens da arte. Levados pelos princípios de Ariano Suassuna, podem tornar-se atuantes em prol da cultura nacionalista e resgatar um histórico das tradições familiares e sociais. O momento final, em São Paulo (figuras 9, 10) selou esses projetos, que harmonizamse nos contextos de memória e afetividade, unindo professoras de lugares distintos com a mesma paixão pelo que fazem e de alguma forma poderem contribuir para o conhecimento através da arte. Acreditamos que é na e pela educação que podemos mudar o mundo. Nesse sentido a arte pode contribuir para uma melhor perceção ampliando o olhar para as coisas do mundo de forma crítica e sensível. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse encontro foi marcado por um tempo vivido entre história e memórias de estudantes e professoras apaixonadas pela pesquisa em infâncias e mediações que envolvem o


ensino da arte. Poder contextualizar com as crianças em um bairro com poder sócioeconômico baixo e levá-las a experiênciar paisagens, visitas a palácio, museus e conversas diretas com artistas foi de suma importância, marcando a infância no espaço escolar e fora dele. Assim como os alunos de Santana do Parnaíba se envolvendo nas histórias dos seus familiares, conhecendo suas raízes e identidades, formam sujeitos críticos, aprendendo a observar a sua própria história e do lugar em que vivem e/ou de onde vieram. Essas trocas só puderam ser apreciadas por terem sido escolhidas dentre tantos outros projetos enriquecedores que trazem experiências com o ensino da arte. Os momentos de formação e troca nos trouxe ainda mais incentivo e motivação para continuar nossas práticas, entendendo que esse é o caminho, com muita pesquisa, trocas, humildade de poder compartilhar o que se sabe e saber receber o conhecimento, significando e ressignificando conceitos, ideias. Não temos palavras para descrever o quanto foi importante ganhar esse prêmio, não só para nós professoras, mas para todos os envolvidos, em especial nossos alunos/crianças, que sem eles(as) nada disso teria sentido, pois trabalhar com amor e valorizar os encontros é que nos formam como seres humanos em constante evolução e transformação. Esperamos que nosso trabalho inspire outros professores a não temerem dar visibilidade aos seus trabalhos, pois educação compartilhada é para o mundo. Podemos transformar o mundo, e nossa crença é que essa transformação se dá pela educação. REFERÊNCIAS

AVONA, Andrea Mendes. Uma viagem com Ariano Suassuna pela cultura e arte nordestina. XIX Prêmio Arte na Escola. Instituto Arte na Escola. São Paulo, 2018. BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. 9.Ed. São Paulo: Perspectiva, 2014. ____________. Arte / Educação Contemporânea. São Paulo: Cortez, 2005. ____________.Inquietações e mudanças no Ensino da Arte. 4.Ed. São Paulo: Cortez, 2008. BARROS, José Lino de Souza. Sobre importância, de Manoel de Barros. Disponível em: <https://www.itatiaia.com.br/blog/jose-lino-souza-barros/sobre-importancias-de-manoel-de barros> 06/05/2013, rádio itatiaia. CINTO, Sandra. XIX Prêmio Arte na Escola. Instituto Arte na Escola, São Paulo. https://www.youtube.com/watch?v=uA6RUvr282E&list=PLI9-MpKoysq w4bWn55bEBQjNCwF45zqB FERREIRA, Sonia Maria de Oliveira. Em busca de sonhos. XIX Prêmio Arte na Escola. Instituto Arte na Escola. São Paulo, 2018. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004. MENESES, Sarah. O legado de Ariano Suassuna. ECOS: Jornal Laboratório Ecos, Edição I. FBV/DeVry. s.l, Disponível em http://issuu.com/ecosjornal. Acesso em: 15 mar. 2017. RAMALHO, Elba. De volta pro meu aconchego.Composição Dominguinhos e Nando Cordel. VIGOTSKI, Levy S. Psicologia da Arte. Tradução:Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


INTERCULTURALIDADE E ARTE PRIMITIVA PELA ARTE/EDUCAÇÃO EM MUSEUS E ESCOLAS Pedro Henrique Villi Cavallari1

RESUMO Artigo que se dedica uma leitura sobre a multiplicidade étnica brasileira frente a algumas das mais centrais políticas públicas para uma educação multicultural. Com o exemplo da diversidade linguística brasileira, é discutida a formação étnica e cultural brasileira frente a hegemonia ocidental, para descrever e exemplificar abordagens propositivas de educação multicultural. Explora-se, mais adiante, o papel dos museus e suas consequências para a arte contemporânea, a pensar o significado destas instituições para o conceito contemporâneo de arte, bem como a importância do museu para a arte/educação. Na sequência se constrói uma discussão teórica sobre a presença de arte não-Ocidental em centros civilizados, os problemas artísticos e etnológicos deste fato. Finalmente, erguer-se-á questão sobre o papel da arte primitiva nos museus e quais os caminhos para a interculturalidade nestes contextos educacionais. Assim se busca de traçar uma estratégia de união da atuação de arte/educadores em espaços de arte multiculturais, a valorizar abordagens educacionais multiculturais possíveis. Palavras-chave: Interculturalidade; Museu; Arte primitiva; Arte/Educação.

ABSTRACT Article dedicated to a reading of Brazilian ethnic multiplicity in the face of some of the most central public policies for multicultural education. Using the example of Brazilian linguistic diversity, the Brazilian ethnic and cultural formation in the face of Western hegemony is discussed, in order to describe and exemplify propositional approaches to multicultural education. The role of museums and their consequences for contemporary art is further explored, considering the meaning of these institutions for the contemporary concept of art, as well as the importance of the museum for art/ education. In the sequence, a theoretical discussion is built about the presence of non-Western art in civilized centers, the artistic and ethnological problems of this fact. Finally, the question will be raised about the role of primitive art in museums and what are the paths for interculturality in these educational contexts. Thus, an attempt is made to outline a strategy to unite the performance of art/educators in multicultural art spaces, to value possible multicultural educational approaches. Key-Words: Interculturality; Museum; Primitive art; Art/Education.

INTRODUÇÃO A presença de arte não-Ocidental em centros civilizados configura, para Price (2000) um problema cultural pois, segundo a autora, a crítica moderna não possui um consenso entre o que seriam objetos etnográficos ou obras de arte. A dinâmica entre museus etnológicos e artísticos é marcada por contradições de caráter ético, estético e também financeiro, questões que aproximaremos de uma problemática cultural própria do cotidiano escolar. O multiculturalismo intercultural é um conceito proposto por Candau (2008) e marca, para a autora, a abordagem ideal nas relações educacionais entre as culturas no meio (a escola) em que se encontram toda sorte de matrizes culturais. Os indivíduos que formam e são formados na escola trazem consigo suas genealogias culturais: matrizes inter-cambiantes que interagem. Trocas culturais acontecem a todo momento, visto que “não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa” (CANDAU, 2008, p. 13). Os alunos e alunas travam relações não apenas entre si, mas com professores, equipe


coordenadora, pessoas responsáveis pela limpeza e zeladoria do espaço escolar, familiares e comunidade envolvente. A imersão neste espaço não estará livre de confrontos e estranhamentos semelhantes à discussão sobre os espaços de arte. DESENVOLVIMENTO MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO NO BRASIL Mais além das diferenças trazidas por aqueles que compõem uma comunidade escolar está o propósito pelo qual se unem. Propósito de “caráter homogeneizador e monocultural” (CANDAU, 2008, p. 15) que a escola tem, que gera tensão e estranhamento, receita própria à evasão e ao fracasso escolar, vai na contramão dos objetivos de um modelo de educação para todos e todas. Formadora dos integrantes da sociedade civil, na escola estimula-se modos de ser e de agir específicos, de forma a diluir a heterogeneidade destes integrantes e, especialmente dos educandos, espera-se uma conduta completamente horizontal e homogênea. Esta fórmula também tem: organização hierárquica, alinhamento a normas e regras, sincronia de relógios, bem como o atendimento e cumprimento de um itinerário curricular. Muitas vezes aquilo que faz jus ao currículo escolar não faz o mesmo sentido para todos os educadores e educandos que, tacitamente aceitam o caráter institucional do currículo proposto por outras instâncias do debate público. O que se ensina na escola é, de algum modo, selecionado, mensurado e escolhido para compor a pauta dos mais diferentes componentes curriculares, em meio infinitude do conhecimento universal. No Brasil os chamados PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) engendram uma orientação importante para o funcionamento da educação escolar, de modo a compor um aparato de apoio à organização do currículo escolar pela segmentação de cada componente curricular, e por favorecer adequações pertinentes a cada etapa do ensino básico dentro dos mesmos. Este extenso documento elaborado pelo Ministério da Educação é de abrangência nacional, tem como objetivo principal a orientação dos educadores para fatores fundamentais que concernem a cada disciplina e abrangem tanto a rede de ensino público como a rede privada. Demarca-se como “instrumento útil no apoio às discussões pedagógicas da escola, na elaboração de projetos educativos, no planejamento das aulas, na reflexão sobre a prática educativa e na análise do material didático” (BRASIL, 1997, p. 4). No entanto este instrumento também age de modo a flexibilizar o conteúdo escolar de acordo com demandas locais e regionais: Por sua natureza aberta, configuram uma proposta flexível, a ser concretizada nas decisões regionais e locais sobre currículos e sobre programas de transformação da realidade educacional empreendidos pelas autoridades governamentais, pelas escolas e pelos professores. Não configuram, portanto, um modelo curricular homogêneo e


impositivo, que se sobreporia à competência político-executiva dos Estados e Municípios, à diversidade sociocultural das diferentes regiões do País ou à autonomia de professores e equipes pedagógicas (BRASIL, 1997, p. 10).

Já o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) redigida pelo Senado Federal dedica-se, especialmente em seus parágrafos segundo e quarto, ao desenvolvimento cultural e à valorização da pluralidade de matrizes culturais para a educação brasileira que, assim como lembra Darcy Ribeiro (1995) são, nevralgicamente três: indígena, europeia e africana. Com inúmeras ramificações e variações, no seio da civilização brasileira contemporânea não repousa simplesmente uma única matriz cultural. Por grande que possa ser o olhar complexo da genealogia cultural brasileira, a antropologia deste pesquisador atrai os olhos para mais perto de cada uma das raízes que darão origem a uma concepção de Brasil plural, ou Brasis: “Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos (Idem; p. 19). Mais recentemente a nova Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), segundo sua introdução2, tem a função de assegurar os direitos à aprendizagem e desenvolvimento, de modo consonante à Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996). O documento define um conjunto normativo do que, segundo o mesmo, seria essencial à aprendizagem no decorrer da educação básica, pautando cada componente curricular por objetos de aprendizagem (conteúdos) específicos, mas que tem, centralmente, diferentes competências, habilidades a serem desenvolvidos por cada disciplina. Esta base se apresenta como uma referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas escolares estaduais e municipais, caráter referencial em conformidade com a abertura e flexibilidade dos currículos, garantida pela LDB, pois o acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e grupos sociais, bem como seus saberes e cultura se implementa segundo o que é definido na LDB como parte diversificada (do currículo), a qual caberia às escolas a definição de especificidades ligadas aos aspectos culturais regionais de cada estabelecimento. Apesar da suposta valorização da diversidade presente no documento, este discurso enfraquece frente a concepção centralizada na matriz acadêmica europeia dos conhecimentos ali promulgados básicos, aos quais a pluralidade dos saberes multiétnicos brasileiros orbita, simplesmente, como complementar3. O saber acadêmico pareia, além do senso comum, as tradições multiétnicas brasileiras4, saberes populares que se sedimentam em meio as gerações que se contextuam local e regionalmente. É indispensável que a escola parta de uma base sólida de conhecimento


que lhe possibilite mirar objetivos também sólidos, mas o aspecto mais significativo da(s) cultura(s) brasileira(s) para esta solidez como objetivo epistemológico é a multiplicidade étnica. Darcy Ribeiro situa este aspecto e nos dá a pista para saber que No Brasil de índios e negros, a obra colonial de Portugal foi também radical. Seu produto verdadeiro [...] foi um povo-nação, aqui plasmado principalmente pela mestiçagem, que se multiplica prodigiosamente como uma morena humanidade em flor [...]. Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel ao seu povo. [...] Tudo nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos, super-homogêneos e solidários entre si, numa férrea união superarmada e a tudo predisposta a manter o povo gemendo e produzindo. Não o que querem e precisam, mas o que lhes mandam produzir, na forma que impõem, indiferentes a seu destino (RIBEIRO, 1995, p. 68-69).

Tomando como exemplo a diversidade sociolinguística podemos observar uma parcela da problemática da hegemonia cultural que nos sinaliza Ribeiro (Idem; ibidem) sobre a multiplicidade étnica original brasileira. Pagliaro, Azevedo e Santos (2005) consideram aproximadamente 180 línguas indígenas faladas (em 2005) pelas centenas de povos indígenas diferentes. Estas projetam lateralmente as tradições das inúmeras etnias indígenas brasileiras que conjugam a população indígena brasileira. Entretanto, por que falamos português? O aspecto plural das línguas (e culturas) indígenas inflige o mister de uma organização unitária de representação popular que carregasse consigo uma identidade linguística, por exemplo, de nível nacional, visto que, além de serem muitas as línguas, a sua própria organização demográfica se dá de maneira ramificada e geograficamente esparsa. A centralidade das terras indígenas (comunidades) atua como proeminente à preservação de tradições e ao avanço cultural de uma ou algumas etnias que comungam tradições linguísticas nuclearmente, mas a totalidade populacional, justamente por ser amplamente diversa caminha na contramão da unicidade visto que “a dinâmica demográfica de uma dada população resulta da confluência de uma multiplicidade de fatores históricos, antropológicos, sociais e econômicos [...] [e] em vista da sociodiversidade indígena no país [...] devemos nos pautar em dimensões plurais” (Idem; p. 11). Consequentemente à diáspora africana, línguas (culturas) de África têm raízes transplantadas para cá. Conforme Silvério (2010), também nos é necessário pensar a influência da atividade das línguas africanas advindas das etnias trazidas pelos homens e mulheres traficadas cativas para o Brasil ao longo de seus períodos colonial e imperial, com duas matrizes mais numerosas: Yorubás (ex: Nagôs, Ketus, Egbas), Bantos (ex: Bakongos, Mbundo, Ovimbundos, Bawoyo) entre muitos outros povos chamados islamizados. Contudo, não nos é possível medir contemporaneamente com exatidão inferências linguísticas dos idiomas variados e conjugados pelos referidos povos, tendo o impedimento de suas tradições


forçosamente se condicionado por sua captura e aliciamento. Esta diversidade linguística que não foi registrada na ocasião do processus escravista agora emerge em meio a expressões idiomáticas do Português Brasileiro. A virtude do desenvolvimento sócio histórico brasileiro em meio a mestiçagem que atravessa cinco séculos da qual nos lembra Ribeiro (1995) levou, não carente de conflitos, à fluidez – pela organicidade e transformação 5 idiomática histórica – e à fluência – pela execução e executabilidade – da língua portuguesa em toda a extensão geográfica brasileira, tanto que não se discute a efetividade desta língua oficial na formalidade administrativa ou para a educação escolar, problema pincelado acima. A Constituição Federal de 1988, nos mesmos artigo e parágrafo, normatiza a língua portuguesa como oficial ao ensino fundamental regular, bem como garante às “comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (BRASIL, 1988, Art 210, § 2º), ficando de fora do texto original as línguas de matriz africana. Todavia, este fato demarca um importante avanço nas políticas públicas de cunho educacional, um novo panorama de valorização da multiculturalidade brasileira, sinalizando talvez o início do fim daquela “interminável hegemonia” (RIBEIRO, 1995, p. 69), ao menos no campo dos direitos civis – que em realidade concreta está muito aquém disto. Neste mesmo sentido o artigo 215, determina ao Estado garantir a proteção às “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (Idem; 1988, Art 215, § 1º). Considerando a flexibilidade curricular marcada pelos PCN e LDB, estas garantias podem tornar a escola um instrumento de valorização das línguas, tradições e saberes advindos das muitas matrizes étnicas aqui presentes e talvez não mais promova a imposição de valores – de uma certa cultura/uma cultura certa – ou mesmo a integração à sociedade envolvente. Ainda que homogeneizadora a escola, respaldada assim, nos permite campear possível o desafio do multiculturalismo intercultural. ABORDAGENS MULTICULTURAIS Candau considera a partir de Forquin (1993 apud CANDAU, 2008, p. 14-15) que da chamada “cultura escolar” são próprias a generalização e a universalização do conhecimento, de modo a supervalorizar o saber acadêmico científico ocidental, por exemplo. Este é o quadro posto ao estranhamento: saber acadêmico – com ensino formalmente garantido pelo currículo – versus diversidade etnocultural local, regional e global, de aplicabilidade aberta e facultativa. O quadro crítico se alarga quando considerada a introdução cada vez mais presente de tecnologias computacionais/comunicacionais em sala de aula. Sob o risco de se distanciar cada vez mais dos universos simbólicos das crianças e jovens, à escola urge não


ignorar a multiplicidade cultural a permanecer na homogenia da cultura escolar, mas buscar proximidade com os indivíduos e grupos dos quais são componentes: várias culturas na escola contrastam com uma cultura escolar institucional e oficial, pautada pelo saber acadêmico de matriz europeia. Em meio ao choque cultural, como aproximar? A autora sinaliza diferentes tipos de multiculturalismos (no plural pela polissemia do termo). Prioritariamente se põe a diferença entre uma abordagem descritiva – por meio da qual se busca notar as diferenças entre culturas distintas pela descrição e compreensão da construção de cada contexto – e a propositiva – pela qual promovem-se mudanças culturais, modos de agir componentes de um projeto político-cultural, uma intervenção que transforma a dinâmica social. Trabalhar nesta segunda abordagem tem sérias consequências às relações culturais de uma sociedade pois esta categoria de ações é similar a “conceber políticas públicas na perspectiva da radicalização da democracia, assim como de construir estratégias pedagógicas” (Idem; 2008, p. 20). A autora indica um grande número de tipos de abordagens propositivas multiculturais e destaca três: assimilacionista, diferencialista e intercultural. Para o chamado multiculturalismo assimilacionista há uma hegemonia social considerada normal que deverá dissolver os grupos socioculturais marginalizados, de modo a integrá-los “aos valores, mentalidades, conhecimentos socialmente valorizados pela cultura hegemônica” (Idem; 2008, p. 20-21). No assimilacionismo está a resposta de “porque falamos Português”, já que o processo colonizatório basicamente se pauta na dissolução da pluralidade cultural pela escravização e eliminação física dos atores culturais originários da colônia, supostamente inferiores. Minorias se curvando à maioria, como se ainda hoje os mais de 240 povos indígenas falantes de mais de 180 línguas no Brasil devessem abandonar a fala, o estudo e a continuidade destas línguas, tradições, arte, religiosidade e costumes para integralmente envolverem-se pela civilização. O perfeito projeto da “‘cultura comum’, a cultura hegemônica” (Idem; ibidem). Já a concepção diferencialista propõe colocar em evidência as diferenças com base no reconhecimento das mesmas, o que deverá acontecer em espaços próprios à expressividade com liberdade aos aspectos que demarquem tais diferenças. Criticada por supostamente formar uma visão estática e essencialista da formação de identidades culturais, privilegia a homogeneização cultural institucionalizante. Um exemplo seriam sociedades coloniais e clubes de artes e costumes, nos quais seria possível produzir e exibir tradições artísticas diversificadas. A autora também cita bairros, igrejas, escolas e associações como instituições a promover este modelo multicultural que “Na prática, em muitas sociedades atuais terminou-se por favorecer a criação de verdadeiros apartheid socioculturais” (Idem; 2008, p. 22), pelos


quais se erguem barreiras, muitas vezes fundamentadas em fatores genealógicos e raciais. A terceira abordagem chama-se interculturalidade e é também conhecida como multiculturalismo intercultural. É, do ponto de vista da autora, o melhor caminho a se tomar frente ao presente quadro crítico da sociedade multicultural. Aquela aproximação que a escola deveria promover e que questionamos anteriormente como deveria acontecer, nesta perspectiva, poderia configurar-se pela “promoção deliberada da inter-relação entre diferentes grupos culturais” visto que estes estão “em contínuo processo de elaboração, de construção e reconstrução. [...] cada cultura tem suas raízes, mas estas são históricas e dinâmicas” (Idem; ibidem). Deste modo não há intenção, por parte alguma, de sobrepor, absorver, colonizar ou impor seus valores à outra, mas o que há é uma educação para a negociação cultural, em face da evidente assimetria de poder entre os diferentes grupos que se avizinham. Há abertura e gratuidade ao conceber o diferente como par. Entre os objetivos da interculturalidade está o intercâmbio de saberes, que pode dar fruto ao desenvolvimento de todos os envolvidos na dinâmica. Esta abordagem, mais recentemente em voga, choca-se contra a história da colonização das Américas, com a história do Brasil, com a escravidão, processos que favoreceram hegemonicamente a cultura europeia. Candau concorda com Ribeiro (1995) no que diz respeito à formação histórica latino-americana: [...] é um continente construído com uma base multicultural muito forte, onde as relações interétnicas têm sido uma constante através de toda sua história, uma história dolorosa e trágica principalmente no que diz respeito aos grupos indígenas e afro-decendentes. A nossa formação histórica está marcada pela eliminação física do “outro” ou por sua escravização. Os processos de negação do “outro” também se dão no plano das representações e no imaginário social (CANDAU, 2008, p. 17).

Historicamente a supressão cultural pelo impedimento de língua, arte, religiosidade, costumes e tradições fez parte da formação latino-americana e brasileira. Atualmente a pluralidade cultural é cerceada não apenas pela escola mas por demais instituições educacionais como os museus etnográficos e de arte pela presença de produções artísticas das mais variadas culturas, enquanto questões são colocadas para o multiculturalismo em nível global, de modo a que discussões e polêmicas não estarão distantes, quanto mais em contextos como o latino-americano, formado sobre o sangue derramado em meio ao choque cultural de tipo mais violento. Aqui se destaca “necessidade de construir [...] práticas em que a questão da diferença e do multiculturalismo se façam cada vez mais presentes” (CANDAU, 2008, p. 15) em todos os espaços em que se fomente culturas, pois o rastro do colonialismo demarca uma marginalização não apenas cultural, mas consoante à socioeconômica 6 . Mesmo com a assunção do multiculturalismo intercultural problemas surgem no incurso. Atos legislativos e


executivos vem recentemente se formando, a valorizar cada vez mais a interculturalidade, como o destaque da “heterogeneidade notável em sua [do Brasil] composição populacional” (Parâmetros Curriculares Nacionais, vol. 10: 22 apud CANDAU, 2008, p. 18), por exemplo. Todavia, a autora afirma que, apesar de esta ser uma inclinação recente de vários países latino-americanos, ainda não se chegou a um ponto comum de entendimento sobre as implicações pedagógicas multiculturais. Com base nisto, forma-se aqui a “tarefa complexa e desafiante” (Idem; 2008, p. 24) da interculturalidade que tem estranhamento e diversidade como características de primeira ordem. MUSEU, ARTE E EDUCAÇÃO Para alguns aficionados e estudiosos o museu de arte configura um ponto de referência que vai além de um repositório de obras. É também um espectro do qual emanam forças que, aparentemente, sustentam ou convalidam significados estéticos para dentro de significados artísticos. Se houvesse esta dicotomia (estético/artístico) é como se este locus desvelasse lado artístico do objeto independentemente das bases estéticas, sua materialidade, seus significados. Estar no interior do Cubo Branco é como o batismo no sagrado da arte. O’Doherty (1999) desenvolve uma ampla discussão a respeito do significado dos espaços expositivos de arte, como museus e galerias. O verbete Cubo Branco (Inglês: White Cube) refere ironicamente a forma do Museu7 como um prédio branco no qual o teto se tornou a fonte de luz principal, o chão é de madeira polida e as janelas tapadas como tentativa de se criar um espaço estéril e neutralizador de influências externas, entendidas como ruídos interferentes às obras que ali repousam perfeitamente alinhadas à altura dos olhos do observador. Pouquíssimo mobiliário se faz presente, apenas o estritamente necessário, como uma pequena mesa ou um pedestal. O’Doherty coloca, em meio ao seu jogo textual, uma referência à forma do templo religioso que resguarda o espaço sagrado da profanidade e da passagem do tempo (atemporal = eterno). Como expressão da contemporaneidade tecnológica há um deslocamento no sentido do museu. O conceito de arte horizontal – uma arte que possa ser fruída de igual para igual entre público e autor, democraticamente consumida por todos e todas – parecem não ter mais o mesmo valor, sofrem uma mudança e, agora que segue perspectivada na espaçonave que parte para o infinito, seu significado se instaura por estar em um lugar prodigioso e funcionário de guardar a obra de arte concebida neste tempo. O museu (ou a galeria) de arte parece, segundo o autor, tomar para si o valor da arte. Contexto que se torna conteúdo perante o Modernismo tardio irrefletido numa hiper conceituação do objeto. Para tanto este contexto deverá se parecer, como define O’Doherty, com o seguinte [tradução


livre]: Vem à mente uma imagem de um espaço branco, ideal que, mais que uma simples figura, poderá ser o arquétipo artístico do século vinte; ilumina a si mesmo através do processo histórico inevitável e normalmente ligado à arte que contém. A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os aspectos que interferem no fato desta ser “arte”. A obra é isolada de tudo aquilo que poderia distrair sua avaliação em si mesma. Isto dá ao espaço uma presença própria de outros espaços onde convenções preservam-se pela repetição de um sistema de valores fechado. Algo da santidade da igreja, a formalidade do tribunal, a mística experimental do laboratório junta-se ao design chic para produzir uma câmara estética única. (O’DOHERTY, 1999, p. 14)

Sem sombras, branco e limpo, o Museu de arte que se pretende neutro revela uma contradição em si mesmo, pois configura uma ideologia do espaço, o espaço ideal para o repouso iluminado da obra idealmente escolhida, componente de uma arte também ideal, perfeitamente alinhada aos parâmetros estéticos circunscritos pela modernidade através do Modernismo. Deste modo este Museu pode se chamar pós-Modernista, donde ocorre um alargamento das formas artísticas clássicas da pintura e da escultura para dentro da instalação, das assemblages e da arte conceitual8 .Conforme O’Doherty (1999), ao projetar a esterilidade formal a galeria perfeita suspende a obra em um [tradução livre] “limbo entre a oficina e a sala de estar” (1999, p. 76) de modo que, ao mesmo tempo, vá criar campos de força perceptivos e apaziguar qualquer hostilidade espacial, enquanto as convenções dos dois espaços transformam o presente em território neutro. Os olhos são chamados à obra que se encontra tão perfeitamente localizada no espaço da galeria que praticamente é obrigatoriamente focalizada: magnetismo visual. Mas O Museu emite uma mensagem silenciosa que superpõe o desejo burguês de possuir a coisa exposta. Para o autor é difícil escapar da conclusão que o Museu consuma perfeitamente os valores da burguesia. A origem do museu de arte está atada a eles. Para Malraux (1988) o século XIX foi crucial para a formação dos museus, ou nas palavras do autor o “século XIX viveu às custas deles” (p. 9). Segundo o mesmo, antes deste período, as artes como a pintura ou a escultura eram representações do Mundo que tinham uma relação mais íntima com as coisas que existiam – ou que não existiam –, relação desdobrada pela religião, pela decoração, pela semelhança, pela imaginação ou pela posse; antes de serem simplesmente obras de arte. O Museu suprimiu das obras de arte sua função, o que levou a sociedade ocidental a conceber a razão de ser de sua arte simplesmente como imagem das coisas pois aquele “[Museu] separa a obra do mundo ‘profano’ e aproxima-a das obras opostas ou rivais. Ele é uma confrontação de metamorfoses” (Idem; 1988, p. 10) Com o surgimento do Modernismo o quadro se modificou. A profusão de estilos e o crescimento exponencial do mercado de arte solidificou as bases desta instituição como o entreposto de


um novo conceito de arte que se põe de pé. O Museu que vemos hoje é uma consequência do movimento modernista que, em seu advento emplacava uma crítica à cena artística tradicionalizada pelos museus clássicos e, ao passo que foi integrado ao imaginário histórico da arte, tacitamente se transformara em tradição difundida no passar do tempo por estas instituições. “O conflito que a [arte modernista] opôs ao museu do seu nascimento esclarecese quando se entra no passado” (1988, p. 61). O grande leque que compõe a tradição artística, as obras do passado que emplacam a fama e aclamam público aos museus é chamada por Malraux (1988) de Museu imaginário. Após a invenção da fotografia, com o surgimento dos álbuns e catálogos de arte surge também um tipo de universo artístico oficial imaginário, parte composto pelo conteúdo do Museu, parte feito do que se imagina que sejam as obras de arte, no momento em que entram para a história. Não é ao recusarem a história que as obras que entram para o museu imaginário, como as obras clássicas entravam para coleções; elas mantinham, aí, com a história, uma união complexa que, por vezes, se rompia, porque a metamorfose, se acontece dar vida à história, não a atinge como às obras de arte. E se conhecêssemos outras civilizações diferentes daquelas que constituíram a tradição europeia, os nossos conhecimentos modificariam menos a nossa perspectiva do que as obras tocariam a nossa sensibilidade (1988, p. 123).

No mesmo momento em que adentra o museu imaginário uma obra de arte (re)funda-o por sua metamorfose. Modifica o que se espera ver no museu, nos levando a uma gênese sempre nova para nosso convívio com a arte que não cessa de se intelectualizar. “O museu impõe um estado de interrogação relativamente a cada uma das expressões do Mundo nele reunidas [...]” (Malraux, 1988, p. 11) e não nos deixa escolha em renovar nossas expectativas já que ninguém controla em si este imaginário. Todavia, na medida em que uma expressão viva de arte se torna história nada garante sua entrada no museu, movido pelas mesmas forças que movem a história. Assim, nossa relação com o museu imaginário não se define por valores extrínsecos, mas imposta pelos museus reais. Contudo, há uma importante relação educativa a se construir pelos museus. Ana Mae Barbosa (2010), ao considerar a importância da arte/educação para uma educação estética da sociedade, tanto como parte do currículo escolar, quanto em contextos não formais de educação, como museus e galerias – um fim em dois meios – aborda o papel dos espaços expositivos como estratégias para a efetividade da pedagogia artística. Enquanto se promove a presença do educando no ponto de encontro entre artista e público, coexistir com este público é fazer parte dele, de modo a atuar como participante do jogo de relações locais e presenciais onde repousam objetos cheios de significado. Entretanto ainda carece


muito de programas educacionais de qualidade. Este trabalho educativo não compete a qualquer profissional destas instituições. A formação específica de profissionais da arte/educação para atuar no interior dos museus se põe pois ainda que tenham “o mesmo objetivo: alcançar a melhor organização estética para as exposições, tornando-as, o máximo possível, acessíveis ao público [...], qualidade estética e acessibilidade são os princípios que diferenciam o trabalho do arte/educador e do curador” (p. 92). A autora faz um levantamento da história da arte/educação nos museus, pontuando sua recente origem nos Estados Unidos e como veio a chegar ao Brasil. Sem embargo, a arte/educação nos museus é um desafio pois, em sua maioria, configura um apêndice ou simples recreação. Contudo, interpretar uma exposição é um processo tão complexo e dialético quanto interpretar um quadro ou uma escultura. Ao arte/educador compete ajudar o público a encontrar seu caminho interpretativo e não impor a intenção do curador, da mesma maneira que a atitude de adivinhar a intencionalidade do artista foi derrogada pela priorização da leitura do objeto estético por ele produzido. As atividades do arte/educador e do curador são complementares (Idem; 2010, p. 92-93).

Significa que são da mesma maneira necessárias a presença de um curador e de um arte/educador para o museu quando se preza pela boa qualidade da experiência estética do público. Talvez, quando a perspectiva é multicultural ou quando há um quadro de diversidade cultural envolvido em uma exposição, esta estratégia se faça estritamente necessária. A julgar pelo contexto geral do Museu que nos caracterizam O’Doherty (1999) e Malraux (1988), se a abordagem é intercultural, o papel do arte/educador, como mediador de conflitos focado no público e na obra, se faz imprescindível a esta instituição, de modo a atuar no entrecruzamento dos significados históricos do Museu e do potencial educacional intercultural do museu atual. ARTE PRIMITIVA E CENTROS CIVILIZADOS IMAGINÁRIO PRIMITIVO E IMAGINÁRIO CIVILIZADO

MULTICULTURAIS:

Sally Price (2000) compõe, por meio de uma vasta documentação, um dossiê da dinâmica entre etnografia e arte. Inicia sua reflexão pondo em questão o título de sua obra Arte primitiva em centros civilizados, em vista das críticas ao termo primitivo, por ser, para alguns autores, confuso e inexato, sob outros argumentos, gerar mal-estar e até mesmo porque “não está mais na moda” (HUYGHE apud PRICE, 2000, p. 19). O termo nasce no evolucionismo cultural, a remontar as origens da ciência antropológica e tem seu uso definido por Price a partir de citações literárias de outros antropólogos e algumas colocações que beiram sarcasmo e acidez como [arte primitiva é]: “A arte dos povos com idiomas normalmente não ensinados nas universidades”; “Qualquer tradição artística de data posterior


à Idade Média para qual os museus indicam as datas dos objetos expostos em séculos e não em anos”; “Qualquer tradição artística na qual o objeto, ao ser retirado do seu ambiente cultural de origem, tem seu valor de mercado automaticamente inflacionado, alcançando um preço dez ou mais vezes maior” (Idem; ibidem). A autora, então, conclui por adotar os termos arte Ocidental e não-Ocidental para marcar a diferença. São então tomadas sob a alcunha primitivas, artes produzidas em contextos não-Ocidentais (de tradição não europeia), não obstante, a problematizar o termo. A autora propõe que a dicotomia arte/etnografia é demarcada, excepcionalmente, pelo aspecto econômico que resultaria do simbolismo institucional próprio dos museus e galerias de arte. A arte primitiva em centros civilizados apresenta de maneiras diferentes a depender de seu contexto de exibição. Quando compõe o acervo de museus antropológicos justifica-se simplesmente por emblema de diversidade cultural desprovida de qualidade estética. Segundo a autora No caso da maioria das exposições que apresentam objetos como etnografia, informações a respeito de funções técnicas, sociais e religiosas são elaboradas, apagando assim a noção de que a qualidade estética do objeto possa “falar por si” – ou antes, apagando toda noção de que o objeto possua qualquer qualidade estética que mereça ser transmitida. Nesta forma de apresentação o observador é convidado a elaborar uma compreensão do objeto com base na sua etiqueta, em lugar de reagir a ele através de uma absorção sensório-emocional das suas qualidades plásticas (Idem; 2000, p. 122).

Enquanto permanece no museu antropológico – longe daquele Museu descrito por O’Doherty (1999) – o objeto etnográfico é “explicado através de um texto extenso que objetiva iniciar o público no esoterismo de sua produção” (PRICE; 2000, p. 122), como se não possuísse autonomia estética alguma. Mas de algum modo se faz necessário adentrar seu imaginário no percalço de um sentido, talvez originário. Contextualizar e conceituar o objeto por sua etiqueta oferece aqui as mínimas bases catalogais para uma obsessão arquivista que preza pela objetividade quase científica do significado cultural da peça. Puro historicismo fetichista. Não obstante, quando selecionada para exibição em um museu de arte a obra passa a contar com aporte totalmente diferente, já que agora faz parte do imaginário da arte ocidental e está envolto pela eminência do Museu. “Seu valor financeiro cresce, sua apresentação espacial torna-se mais privilegiada (ou seja, diminui a quantidade desordenada de peças competindo por espaço), e quase todas a informações didáticas desaparecem” (Idem; ibidem) pois agora o aval curatorial ocidental falou mais alto que sua mensagem estética, ou melhor, fez com que ela milagrosamente se revelasse, porque convalidou-se quando deu entrada no Cubo. O valor estético da arte primitiva é continuamente posto em questão por esta sorte de transições, que estariam fazendo jus à divulgação destas artes, ou então dando espaço para sua


exibição. Uma contradição, pela maneira como se inscreve no cenário museológico. As instituições museológicas, vale lembrar, são amplamente geridas pelo setor acadêmico, ligadas a universidades, ao Estado ou ao setor privado. Fora de seus contextos originais, artes primitivas estarão destarte nas mãos de acadêmicos(as), sujeitas aos estranhamentos dos multiculturalismos. A arte primitiva põe em evidência a diversidade cultural ao trazer aspectos variados de culturas diversas para o centro da discussão sobre o conceito de arte. Seja como expressão ou como exaltação do belo, a produção primitiva é uma composição, uma configuração, forma que chama a atenção tanto de antropólogos quanto de curadores, bem como de um certo público. Há homologias formais entre o ídolo e a escultura, a pintura corporal e as artes gráficas, indumentária e moda, para não falar das similitudes dos rituais performáticos para com as danças modernas. A discussão conceitual que se alarga quando entram em cena utensílios e objetos providos de função prática: design? O apelo é livre e certamente passa pela referencialidade estética como, por exemplo, nas artes primitivistas que permearam o Modernismo9. Price lembra que “existe uma linha raciocínio segundo a qual objetos de produção Primitiva não constituem objetos de arte até que conhecedores Ocidentais estabeleçam seu mérito artístico” (2000, p. 102-103). Simplesmente pela necessidade que “estabeleçam seu mérito”, não sendo este concebido por excelência demarca-se, para nós, algo próximo da concepção multicultural assimilacionista definida por Candau (2008), que subordina uma cultura à outra. Enquanto atração (entretenimento) dentro do invólucro institucional e conteúdo dos catálogos de exposição não é mais pedaço de madeira, pedra ou metal que repousa na prateleira abarrotada do museu etnográfico. Quanto menos ídolo, arma ou utensílio. Foi absorta no universo imaginário, tornou-se erudita, Arte com A maiúsculo 10. E tão somente pôde pela autoafirmação da cultura hegemônica, aquela de maior relevância, tornou-se parte do círculo artístico. Agora inserido no Museu imaginário o objeto primitivo confunde-se com arte pelo propósito contextual do Museu que se mostra, explicitamente, a insuflar significado artístico no conteúdo da arte primitiva, infundindo-a no interior do complexo institucional, o Cubo branco, assim como para O’Doherty (1999). Também se explicita o pano de fundo destas relações, notadamente financeiro, seja pela valorização monetária da peça, índice do Museu, notabilidade da exposição, e até mesmo pelo currículo do curador. [...] os membros do mundo Ocidental são aqueles que, mais uma vez, por seu acesso à riqueza material e à comunicação, estão, nas últimas décadas do século XX, assumindo a responsabilidade de determinar a natureza da produção artística em praticamente todos os cantos do mundo. Em resumo, os Ocidentais assumiram [em nota: presumem] a responsabilidade da definição, conservação, interpretação,


comercialização e existência futura das artes mundiais (PRICE, 2000, p. 103).

A intentada cultura hegemônica ocidental, conforme Perry (Idem) não deixa espaço nem mesmo para a autodeterminação artística dos grupos não-Ocidentais em meio aos círculos artísticos no interior dos centros civilizados. Quando não blindada pelo distanciamento histórico ou por falso proselitismo de inclusão étnica marginal, só resta à instituição aproximar-se das culturas originárias, trazê-las para o centro da discussão e darlhes voz, empoderar os indivíduos que possam falar de sua propriedade cultural, tonalizando simultaneamente uma etnologia legítima e uma arte significante. Neste sentido se dará uma pedagogia cultural junto ao público desta arte, do qual não se esperará fetichismo. Não há espaço para generalidades ou essencialismos teóricos quando o assunto é o conflito na base da arte/educação no interior das escolas e espaços de arte. A caminho da interculturalidade, assim como se faz necessário “construir [...] práticas em que a questão da diferença e do multiculturalismo se façam cada vez mais presentes” (CANDAU, 2008, p. 15) urge darmos o primeiro passo identificando a puerilidade de uma cultura artística museológica que se crê multicultural mas está ainda despreparada para ver sua própria face homogeneizadora e assimilatória. ARTE PRIMITIVA E INTERCULTURALIDADE Seio de uma sociedade multicultural, da diversidade étnica do Brasil, resulta uma diversidade artística: arte indígena e afro-brasileira. Qual é o lugar da arte primitiva nos museus brasileiros? A solução estrita desta questão é, com certeza, um projeto demasiado amplo para a textualidade aqui presente, mas não podemos confundir os objetos com nossos objetivos. Levantamos aqui nossos objetos: alguns aspectos da organização cultural escolar, museológica e de etnologia. O ponto de confluência é a presença da multiculturalidade nos espaços de arte que são a escola, museus, galerias, não distante bibliotecas, praças ou toda esfera pública na qual se possa constituir interculturalidade já que “O conceito de interculturalidade é central à (re)construção de um pensamento crítico-outro – um pensamento crítico de/a partir de outro” (WALSH, 2005, p. 25 apud CANDAU, 2008, p. 24). A presença do arte/educador como mediador de relações étnicas nestes contextos deverá suplementar a promoção da visão intercultural. O trabalho educativo, seja na escola ou no museu, não estará isento de enfrentar vários problemas políticos, técnicos e estéticos, assim como o Victoria and Albert Museum até se tornar “um dos três melhores programas de arte/educação em museu na Europa” (BARBOSA, 2010, p. 93). Barbosa ao descrever a história da arte/educação nos museus do Brasil e do


mundo mostra, tanto que este é um processo a se desenvolver, quanto que é um trabalho possível. Unir ações afirmativas socioculturais interculturais, que deverão se estender a onde há diversidade, com a formação especializada do arte/educador para a mediação das exposições de arte primitiva parece uma estratégia plausível, mas deixará o relevante e complexo questionamento de quais as suas consequências para a educação intercultural. METODOLOGIA A metodologia utilizada para a produção do presente texto configurou-se por pesquisa bibliográfica analítica, por meio da qual buscamos explicitar alguns conceitos sobre educação, arte e etnologia. A natureza qualitativa da pesquisa permeou a apreciação dos conceitos e partes consideradas chaves na obra de cada autor utilizado como referência, de modo a construir uma dinâmica teórica entre as abordagens descritiva e explicativa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com objetivo de sinalizar problemáticas educacionais e traçar objetivos teóricopráticos com a finalidade de auxiliar estudiosos, arte/educadores e professores de humanidades para uma abordagem multicultural intercultural, encerramos este artigo esperando contribuir para uma maior compreensão das origens e consequências didáticopedagógicas dos entrechoques que permeiam a presença da arte primitiva em centros civilizados. Em meio a uma tão rica e numerosa pluralidade cultural como a brasileira que, por determinações legais a partir da década de 1980, impreterivelmente, fazem parte do itinerário formativo de educadores e educandos a nível nacional, o papel de arte/educadores se demarca cada vez mais imprescindível para atingirmos o mirado multiculturalismo intercultural. REFERÊNCIAS BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A Imagem no ensino da arte. São Paulo-SP: Perspectiva, 2010. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Emenda Constitucional número 91 de 2016. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm > Acesso em: 05/01/2019. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de dezembro de 1996. BRASIL. Introdução da Base Nacional Comum Curricular. In.: BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/#introducao >. Acesso em: 30/06/2021. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília-DF, 2018. BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental – Brasília-DF: MEC/SEF, 1997.


CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. IN.: CANDAU, Vera Maria & MOREIRA; Antônio Flávio Barbosa (orgs.). Multiculturalismo: Diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008. GOMBRICH, Ernst Hans. História da arte. Rio de Janeiro-RJ: LTC, 2000. INSTITUTO Socioambiental. Povos indígenas do Brasil: quantos são?. Disponível em < https://pib.socioambiental.org/pt/Quantos_s%C3%A3o%3F >. Acesso em: 03/01/2019. MALRAUX, André. As vozes do silêncio: Volume I: O museu imaginário; As metamorfoses de Apolo. LisboaPortugal: Livros do Brasil, 1988 O’DOHERTY, Brian. Inside the White Cube: the ideology of the gallery space. San Francisco-USA: Lapis Press, 1999. PAGLIARO, H., AZEVEDO, M. M., & SANTOS, R. V. Demografia dos Povos Indígenas no Brasil: um panorama crítico. IN: PAGLIARO, H., AZEVEDO, M. M., & SANTOS, R. V. (orgs). Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro-RJ: Editora FIOCRUZ, 2005. FRASCINA, Francis; HARRISON, Charles; PERRY, Gill. Arte moderna - práticas e debates: Primitivismo, Cubismo e Abstração. São Paulo-SP: Cosac & Naify, 1999. PRICE, Sally. Arte Primitiva em Centros Civilizados. Rio de Janeiro-RJ: Editora UFRJ, 2000. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: formação do sentido de Brasil. Segunda edição. São Paulo-SP: Companhia das Letras, 1995. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo-SP: Cultrix, 1995. SILVÉRIO, V. R. (Coord.). História geral da África, III: África do século VII ao XI. Editado por Mohammed El Fasi. Brasília-DF: UNESCO, 2010.

NOTAS DE FIM 1. Mestrando em Artes Visuais pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina. Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena pelo Centro Universitário Internacional. Graduado em Artes visuais – Licenciatura pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail: ph.cavallari@yahoo.com

2. BRASIL. Introdução da Base Nacional Comum Curricular. In.: BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/#introducao >. Acesso em: 30/06/2021.

3. O debate continuado sobre a BNCC é mister, não somente devido a sua recente concepção, mas por mencionar a valorização da diversidade cultural, vetor de constante transformação via interculturalidade destacada neste texto.

4. De acordo com o Instituto Socioambiental (2018) a população indígena brasileira tem crescido constantemente desde os anos 1980, ao ter se revertido a curva populacional o que contrariou a expectativa anterior sobre a inevitabilidade de extinção indígena. Este instituto lista mais de 255 povos indígenas no Brasil. Sem embargo, o censo de 2010 do IBGE registrou 896.917 pessoas indígenas em forma de mais de 240 povos, o que representou aproximadamente 0,47% da população brasileira na ocasião.

5. De acordo com o Instituto Socioambiental (2018) a população indígena brasileira tem crescido constantemente desde os anos 1980, ao ter se revertido a curva populacional o que contrariou a expectativa anterior sobre a inevitabilidade de extinção indígena. Este instituto lista mais de 255 povos indígenas no Brasil. Sem embargo, o censo de 2010 do IBGE registrou 896.917 pessoas indígenas em forma de mais de 240 povos, o que representou aproximadamente 0,47% da população brasileira na


ocasião.

6. “A problemática multicultural nos coloca de modo privilegiado diante dos sujeitos históricos que foram massacrados, que souberam resistir e continuam hoje afirmando suas identidades e lutando por seus direitos de cidadania plena na nossa sociedade, enfrentando relações de poder assimétricas, de subordinação e exclusão” (CANDAU, 2008, p. 17).

7. Para referir a alegoria do Cubo branco como instituição de arte contemporânea grafaremos Museu com M maiúsculo.

8. Para definição mais detalhada sobre o desenvolvimento histórico das linguagens artísticas contemporâneas ver ARTE Contemporânea. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo354/arte-contemporanea>. Acesso em: 07 de jan. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

9. Gill Perry (1999) argumenta sobre influências primitiva em alguns estilos do Modernismo, por excelência o Cubismo ao aplicar, por exemplo, à pintura e à escultura formas inspiradas em máscaras africanas e na estatuária nativo-americana. PERRY, Gil O primitivismo e o moderno IN: Arte moderna práticas e debates: Primitivismo, Cubismo e Abstração. FRASCINA, Francis; HARRISON, Charles; PERRY, Gill. São Paulo-SP: Cosac & Naify, 1999. Price (2000) também analisa o primitivismo de Picasso e chega a pontua-lo como “algum tipo de imitação artística” (p. 137).

10. Sobre o fetiche da Arte com A maiúsculo ver o ensaio de GOMBRICH, Ernst Hans. Sobre Artes e Artistas IN: GOMBRICH, Ernst Hans. História da arte. Rio de Janeiro-RJ: LTC, 2000.


MATERIAL EDUCATIVO EM ARTE PARA CRIANÇAS Laysa Sena da Silva Margarete Sacht Góes

RESUMO Ao produzirem materiais educativos, os Arte/Educadores tornam mais potente sua atuação no âmbito escolar e propiciam variadas experiências estéticas e de aprendizagem aos educandos. Assim, esta pesquisa tem como objetivo analisar o impacto educacional e o discurso sobre os materiais educativos/objetos propositores elaborados e utilizados por Arte/Educadores que contribuem para os processos de ensino aprendizagem das crianças. A metodologia adotada foi o estudo de caso e, por meio das narrativas de professoras de Arte, busca refletir sobre os objetos propositores/materiais educativos criados por elas, e como eles contribuem para o processo de ensino e aprendizagem das crianças. Fundamenta-se teoricamente em Hofstaetter (2017), Martins e Picosque (2012), Utuari (2012) e Vygotski (1896-1934), a partir da leitura de Rego (2014). Finaliza inferindo que o ensino de Arte é potencializado quando o educador supera o caráter tradicional da arte e se propõe a criar/ produzir materiais educativos e a realizar ações mediadoras convidando as crianças para um trajeto interativo, criativo, inventivo e colaborativo. Palavras-chave: Arte; Material educativo; Mediação; Ensino-aprendizagem; Criança.

ABSTRACT By producing educational materials, Art/Educators make their performance in the school environment more powerful and provide students with varied aesthetic and learning experiences. Thus, this research aims to analyze the educational impact and discourse on educational materials/objects designed and used by Art/Educators that contribute to children's teaching and learning processes. The methodology adopted was the case study and, through the narratives of Art teachers, it seeks to reflect on the proposing objects/educational materials created by them, and how they contribute to the children's teaching and learning process. It is theoretically based on Hofstaetter (2017), Martins and Picosque (2012), Utuari (2012) and Vygotski (1896-1934), from the reading of Rego (2014). It ends up inferring that the teaching of Art is enhanced when the educator overcomes the traditional character of art and proposes to create/produce educational materials and carry out mediating actions, inviting children to an interactive, creative, inventive and collaborative path. Keywords: Art; Educational material; Mediation; Teaching-learning; Kid

INTRODUÇÃO A produção de materiais educativos pelos professores Arte/Educadores constitui-se em uma ação poética, ao proporcionar experiências estéticas, estéticas e de aprendizagem para as crianças. Para Hofstaetter (2017), faz-se necessário transpor concepções de ensinoaprendizagem construídas historicamente para conseguir criar propostas de aprendizagem mediadas por objetos propositores, aqui compreendidos como materiais educativos, para serem utilizados dentro e fora das salas de aula. Segundo essa autora, esses materiais ativam a poética do pensamento utópico e assim, professores e professoras tornam mais potentes sua atuação quando proporcionam experiências estéticas por meio deles, fazendo emergir a potência da criação artística, que é uma força capaz de modificar formas de pensar e de agir nas crianças. A elaboração de objetos propositores para o ensino em Artes Visuais possibilita


ultrapassar concepções historicamente fixadas e apresentar outras alternativas para o cotidiano escolar. Os sujeitos envolvidos e os materiais de trabalho têm o mesmo grau de importância, mas, para isso ocorrer, é preciso, antes de tudo, refletir sobre quem produz esses materiais, para quem eles são produzidos e em quais contextos. Nesse sentido, temos como objetivo analisar o impacto educacional e o discurso sobre os materiais educativos/objetos propostos elaborados e utilizados por Arte/Educadores que contribuem para os processos de ensino aprendizagem das crianças. Assim, objetivamos, inicialmente, realizar uma discussão sobre a perspectiva histórico-cultural a partir das concepções de Vygotski (1896-1934), por meio da leitura de Rêgo (2014), pois essa abordagem teórica é que sustentará nossas discussões, e também em Hofstaetter (2017), Martins e Picosque (2012) e Utuari (2012). Posteriormente, analisaremos as narrativas de professoras de Arte e como elas utilizam os materiais educativos criados por elas no processo de ensino e aprendizagem das crianças. Por fim, trazemos nossas considerações finais inferindo que o ensino de Arte é potencializado quando o/a educador/a supera o caráter tradicional da arte e se propõe a criar/ produzir materiais educativos e a realizar ações mediadoras convidando as crianças para um trajeto interativo, criativo, inventivo e colaborativo. O PROFESSOR PROPOSITOR E OS MATERIAIS EDUCATIVOS O professor de Artes pode proporcionar experiências artísticas de aprendizagem no ensino das Artes Visuais que são de extrema importância e “[...] envolvem tanto aquela ou aquele que as propõe, quanto os sujeitos que nela irão interagir para, por sua vez, proporem as suas invenções [...]” (HOFSTAETTER, 2017, p. 2079). Nesse contexto, o conceito de professor-propositor que iremos adotar é o que tem sido utilizado por Mirian Celeste Martins e Gisa Picosque (2012), pois segundo as autoras esse conceito nasce inspirado no conceito de “artista-propositor”, [...] criado por Lygia Clark e Hélio Oiticica e pretende descolar o professor do olhar executor, vendo-o como aquele que propõe a experiência com problematizações e escolhas, gerando ‘estados de invenção’ (MARTINS; PICOSQUE, 2012, p. 75).

Então, a concepção de professor/a propositor/a ultrapassa o conceito de professor/a tradicional, pois ele/a passa a ser visto como um pesquisador/a, um mediador/a e provocador/a, que objetiva elaborar materiais educativos que possibilitam uma aprendizagem mútua, em uma perspectiva horizontalizada, na qual todos aprendem e ensinam. Essa compreensão vai ao encontro das proposições de Utuari (2012, p. 54-55) ao inferir que o/a


professor/a: [...] é aquele que está entre, que conduz uma conversa, que provoca olhares, pensamentos, que promove encontros entre arte e os alunos. O professor curador seleciona, pensa possíveis conceitos a serem explorados com os alunos. A união da ação mediadora e da linha curatorial pode ativar culturalmente uma obra de arte [...]

Coadunamos com Utuari (2012), pois estudar sobre a curadoria educativa possibilita compreender que a invenção perpassa pelas escolhas e pela maneira de provocar experiência. Importante destacarmos que “[...] a palavra curadoria tem origem epistemológica na expressão que vem do latim curator, que significa tutor, ou seja, aquele que tem uma administração a seu cuidado, sob sua responsabilidade [...]” (MARTINS; PICOSQUE, 2012, p. 63). No âmbito escolar, o/a professor/a busca se apropriar de técnicas e de informações que contribuam para a sua pesquisa e curadoria educativa, tendo em vista que são aspectos de suma importância na sua formação, bem como compreender os fundamentos da linguagem visual e conhecer o grupo dos educandos que está a sua frente. Por meio da pesquisa e da mediação, o/a professor/a proporciona experiências estéticas capazes de provocar um encontro sensível entre a arte e os discentes, pois fornece informações relevantes para ajudar na compreensão, suscitando inúmeras interpretações e produção de sentidos junto às crianças. Segundo Martins e Picosque (2012) a nutrição estética proporciona ao educador uma ampliação da sua própria formação e, também, o abastecimento dos sentidos dos educandos, quando ele — ao planejar suas aulas — pesquisa, estuda e reflete para, assim, oferecer objetos culturais e experiências significativas para os estudantes. Compreendemos, então, a importância do cuidado com a qualidade estética e reflexiva dos materiais selecionados e criados pelos/as professores/as para serem oferecidos aos discentes. Entendemos que o/a educador/a pode, por meio da sua mediação, potencializar o ensino de arte, quando chama a atenção dos educandos para as imagens e obras de arte, bem como objetos e imagens do cotidiano, da cultura visual na elaboração dos materiais educativos. O professor propositor não vai “ministrar aulas”, mas irá percorrer caminhos de aprendizagem com os educandos. Assim como vai elaborar materiais para que eles possam participar do processo de aprendizagem, de maneira “[...] que realizem a mediação entre arte, cultura e conhecimentos [...]” (HOFSTAETTER et al, 2018, p. 3) e que ele também vivencie experiências com arte, para conseguir acompanhar e indicar esses trajetos junto aos


estudantes. Assim, no âmbito escolar tanto “[...] os objetos propositores como mediação lúdica se oferecem de modo didático, impulsionando a sua utilização, recriação, transformação e novas invenções” (MARTINS; PICOSQUE, 2012, p.78). MATERIAIS EDUCATIVOS: MEDIAÇÃO E LUDICIDADE No presente trabalho, adotamos a perspectiva Histórico-Cultural, cujo principal representante é Lev Semenovich Vygostki (1896-1934). Objetivamos, com base nessa linha teórica, analisar o impacto educacional e o discurso sobre os materiais educativos elaborados e utilizados por Arte/Educadores que contribuem para os processos de ensino aprendizagem das crianças. A perspectiva histórico-cultural, tendo como base os princípios do materialismo histórico-dialético, se dedica a compreender o ser humano pelo viés da dimensão histórica, constituída pelas relações sociais ao longo da história da humanidade e pela concepção de cultura que, estão intimamente ligadas às práticas sociais do trabalho humano. Vygotski (1989) enfatizou que a compreensão da cultura é muito importante no processo de desenvolvimento psicológico humano. Por essa razão, empenhou-se em estudar as relações que se estabelecem entre cultura, desenvolvimento e aprendizagem, inferindo que o ensino é bom quando auxilia o educando a sair de um nível de desenvolvimento no qual consegue realizar as atividades em um nível de desenvolvimento menor (sozinho) para um nível de desenvolvimento mais complexo (mas com a ajuda de um outro mais experiente). Assim, ensinar, para Vygotski (1989), é propiciar aos educandos a apropriação dos aspectos culturais produzidos e acumulados na história da humanidade e nesse contexto o ensino da arte contribui para a apropriação desse patrimônio cultural. O encontro da arte e a cultura proporcionada por meio das experiências e vivências das crianças nos espaços educativos são fundamentais para esse processo, entretanto, é preciso considerar sempre os contextos econômicos, geográficos e socioculturais, pois o processo de aprendizagem das crianças começa antes da ida à escola. Para Vygotski (1989), a escola tem um papel fundamental, pois oportuniza a apropriação dos conhecimentos histórico-culturais, ampliando as questões do cotidiano das crianças. Segundo Rego (2014), Vygotski (1989) constatou que não era apenas o ensino sistemático que expandia a área da zona de desenvolvimento proximal. Para ele, o brinquedo também é uma considerável fonte de desenvolvimento. Embora o brinquedo não seja um elemento preponderante na infância, desempenha uma imensa influência no desenvolvimento


da criança. “[...] O termo ‘brinquedo’, empregado por Vygotsky num sentido amplo, se refere principalmente à atividade, ao ato de brincar” (REGO, 2014, p.80). Martins e Picosque evidenciam que (2012, p.80) “[...] Embora Vygotski utilize palavras diferentes para dizer jogo, brincadeira e/ou faz de contas e brinquedo, todas essas manifestações têm em comum o que é a essência do jogo: as regras[...]”. O professor pode criar brinquedos/jogos lúdicos para a mediação, com a finalidade de aumentar o contato e provocar experiências com as diferentes linguagens artísticas, pois o jogo e a arte possuem a capacidade de provocar e encantar profundamente [...] Operando com conceitos, subjetividades, sensorialidades, os jogos podem colocar desafios de quem se propõe a mediar Arte e público e a criar jogos como objetos propositores de uma lúdica mediação (MARTINS; PICOSQUE, 2012, p. 82).

Coadunamos com Martins e Picosque (2012), pois no ensino das Artes Visuais, os materiais educativos criados por Arte/Educadores proporcionam experiências estéticas e potencializam uma aprendizagem repleta de afetos. Ademais, oportunizam momentos de mediação colaborando para o processo de ensino e aprendizagem dos educandos de maneira lúdica e dialógica. Para a criança poder ter acesso ao patrimônio material e simbólico da humanidade, ela precisa da mediação “do outro” mais experiente, daí a importância do/a professor/a estar ao lado das crianças, dialogando com elas e proporcionando o contato com materiais educativos. MATERIAL EDUCATIVO EM ARTE PARA CRIANÇAS Com o objetivo analisar o impacto educacional e o discurso sobre os materiais educativos/objetos propositores elaborados e utilizados por Arte/Educadores que contribuem para os processos de ensino aprendizagem das crianças, realizamos um estudo de caso que nos possibilitou compreender diferentes e diversas questões que envolveram e que envolvem a produção de materiais educativos em arte para crianças. Nesse sentido, organizamos nosso percurso metodológico por meio de entrevistas escritas, haja vista que o contexto da pandemia Covid 19 nos impediu de ter uma aproximação com as professoras para entrevistá-las pessoalmente. Assim, formulamos perguntas mais estruturadas, mas deixando espaços para uma organização mais flexível em algumas questões. Elaboramos no Google Forms um questionário com 8 perguntas e enviamos para as seis professoras de Arte que aceitaram participar da pesquisa. Cada professora recebeu um link do questionário para acessar e responder as perguntas, assim por meio das narrativas das professoras de arte, analisamos os materiais educativos que elas produziram.


Nesse questionário elas se identificaram nominalmente, todavia, seus nomes serão suprimidos e faremos as identificações diferenciadas por números: Professora 1, Professora 2, Professora 3, Professora 4, Professora 5 e Professora 6. Selecionamos algumas respostas consideradas potentes para refletirmos sobre a elaboração e criação de materiais educativos para crianças no contexto escolar. A primeira pergunta do questionário é referente ao tipo de instituição de ensino em que trabalhavam. Três delas lecionam em escolas públicas, duas em escolas particulares e uma nos dois tipos. Na segunda questão, perguntamos se, em suas aulas, elas utilizavam materiais educativos direcionados para o ensino da Arte. Todas as docentes disseram que utilizavam materiais educativos, apenas uma falou que os utiliza raramente, pois tem livro didático e cria suas próprias tarefas e projetos e, ainda, que na escola particular, é necessário seguir um conteúdo programático. Diante desse fato, ressaltamos que ainda é pequeno o número de instituições educacionais que incentivam e estimulam o/a educador/a no sentindo de elaborar seus próprios materiais educativos voltados para o ensino da Arte, com liberdade para criar e inventar. É importante destacar algumas respostas como as das Professoras 2, 3 e 4: [...] sim, o papel dos materiais de trabalho, ou materiais didáticos educativos, assumem uma posição central nos processos de aprendizagem. Através de um bom material, criado especificamente para este fim, se tornará possível uma relação mais participativa e interativa do aprendiz com o campo de conhecimentos. Os objetos propositores são, portanto, objetos que realizam a função de mediação entre os sujeitos, o meio e os conhecimentos, incluindo a imaginação, a fantasia e a capacidade inventiva de cada um (PROFESSORA 2, ENTREVISTA REALIZADA EM 04/10/2020).

Concordamos com a Professora 2 sobre a importância dos materiais educativos, pois eles proporcionam uma mediação potente com ludicidade, criatividade e interação. Já a Professora 3, respondeu à segunda questão da seguinte forma: [...] Sim, pois amplia e facilita a visão do aluno no ensino prático e teórico no ensino das artes (PROFESSORA 3, ENTREVISTA REALIZADA EM 12/10/2020).

As narrativas das professoras sobre os materiais educativos vão ao encontro com que diz Hofstaetter (2016), que evidencia que esses materiais alcançam um lugar de centralidade nos processos de ensino-aprendizagem, pois propiciam uma maior participação e interação dos educandos com os conhecimentos. A criação de materiais educativos para o ensino de arte requer que o professor sinta o desejo e o interesse em propor percursos de aprendizagem significativos, proporcionando aos educandos, o acesso aos conhecimentos de forma lúdica, diferenciada e significativa.


Nesse contexto, o/a professor/a propositor/a assume o papel de curador/a e mediador/a dos acervos artísticos com que as crianças entrarão em contato.

A maneira como o/a

educador/a pensa e compreende o ensino, a arte e a docência se referem a sua poética, bem como ao processo de produção dos materiais educativos e às mediações que ele irá propor para os educandos. Ainda na segunda questão, a Professora 4 nos deu a seguinte resposta: [...] Muito raro, tenho livro didático e crio minha próprias tarefas e projetos. Na escola particular tenho que seguir um conteúdo programático (PROFESSORA 4, ENTREVISTA REALIZADA EM 23/10/2020).

Percebemos que algumas instituições possuem um currículo engessado, padronizando e limitando o ato criativo do/a docente e dos discentes. Nesse contexto, é importante o/a educador/a fazer uma reflexão crítica a respeito do livro didático, ponderando suas potencialidades e limitações. Essa atitude provoca a abertura de brechas para se pensar as contribuições que os materiais educativos podem trazer para o processo de ensinoaprendizagem. Na terceira questão, perguntadas se elaboram/criam materiais educativos para ensinar arte, todas disseram que sim. Para pensar e dialogar sobre a criação e elaboração de objetos propositores, selecionamos a resposta da Professora 1, que produziu diferentes materiais para trabalhar com o artista Gustavo Rosa, dentre eles, um jogo de dados, uma amarelinha (Figura 1) e um vídeo sobre o artista, que foi disponibilizado em seu canal no youtube e que culminou em atividades de pintura a partir da poética do artista (Figuras 2 e 3): Figura 1: Jogo de dados.

Fonte: das autoras. [...] Sim, sempre que possível eu construo os materiais educativos que utilizo em sala de aula. Os materiais vão desde a construção de vídeos, até dados coloridos, quebra-cabeça. Gosto muito de fazer os fantoches das historinhas que leio pra eles também. Agora na pandemia, tenho aprendido a editar vídeos. Tenho um conhecimento intermediário nas ferramentas de edição de vídeo da Adobe (Photoshop e Ilustrador) e utilizo bastante essas ferramentas. Minha experiência como artesã, também ajuda bastante neste processo (PROFESSORA 1, ENTREVISTA REALIZADA EM 01/10/2020).


Figuras 2 e 3: atividades de pintura a partir da poética do artista.

Fonte: das autoras.

De acordo com a Professora 2 (Figura 4), ela elabora muito materiais: Figuras 4: Jogo dominó da História da arte com materiais reciclados.

Fonte: das autoras. [...] Sim ... Jogos da História da arte com materiais reciclados, tapete sensorial de cores; dominó dos gêneros musicais, Caixa musical para educação especial; projeto de brinquedos e brincadeiras na obra de Ivan Cruz (Peteca colorias flutuantes, galeria de quadros flutuantes; aviões de pregadores coloridos como instalações no espaço escolar, espaços interativos da arte; sucata); palitinhos coloridos de picolé e cartinhas figurativas para montar; móbiles de esculturas de papel machê; jogos com as cores (tabuleiro); história da arte dos artistas (uno). Dado da arte (PROFESSORA 2, ENTREVISTA REALIZADA EM 04/10/2020).

A produção de materiais educativos é um ato criativo e, um processo poético do/a professor/a, no qual a invenção perpassa seu trabalho e gera uma grande potência e inusitadas e variadas experiências, proporcionando vivências artísticas de aprendizagem nas quais todos se sentem envolvidos. O/A professor/a propositor/a concebe na arte uma oportunidade de interação, convidando as crianças a percorrerem trajetos criativos, estéticos e poéticos. Nessa perspectiva, o/a docente suscita diálogos, olhares, ideias e propicia encontros dos educandos com a arte, contribuindo significativamente para interação com os


conhecimentos e com seus pares. Consideramos ser poético porque cada sujeito poderá intervir nessa trajetória, entretanto, constitui-se como um desafio para o/a educador/a ao realizar curadorias, criar e elaborar esses materiais devido, muitas vezes, às condições sociais, culturais, econômicas e de infraestrutura em que se encontram. Na quarta questão, ao serem perguntadas se a utilização de materiais educativos potencializa/corrobora para aprendizagem em Arte, todas as educadoras disseram que sim. A Professora 6 respondeu o seguinte: [...] Sim. Quando a criança tem um contato mais próximo com esses materiais, percebo que elas têm mais curiosidade e atenção nas aulas, do que quando são imagens transmitidas pelo Datashow. Com os materiais educativos as crianças apontam e querem tocar, interagir, as cores são mais vivas e despertam o interesse nelas (PROFESSORA 6, ENTREVISTA REALIZADA EM 28/10/2020).

O ensino de Arte é potencializado por meio da mediação do/a educador/a com esses materiais, pois os educandos são convidados a um percurso de ensino-aprendizagem criativo e colaborativo, ao serem provocados a realizar experiências compartilhadas na sala de aula. Perguntadas, na questão 5, se, na(s) escola(s) em que trabalham, são incentivadas a produzir materiais educativos voltados para o ensino da Arte, quatro professoras responderam que sim e duas que não. Hofstaetter (2017) evidencia que é pequeno o número de instituições que investem na compra de materiais interativos para o ensino da Arte e, também, que as escolas não estimulam a produção desse tipo de material, seja ele produzido pelo/a professor/a ou pelas crianças. A respeito de como os materiais educativos tornam as aulas de arte mais lúdicas e dinâmicas, na sexta questão, todas as professoras responderam positivamente, evidenciando a relevância desses materiais para o ensino da arte. As Professoras ressaltaram que, [...] Para que o professor consiga ministrar suas aulas de maneira criativa, os materiais pedagógicos são de fundamental importância não só no que diz respeito à arte, como nas demais disciplinas. Porém, a arte exige ainda mais do professor, pois não basta apenas dominar a teoria, é essencial que a prática seja ensinada corretamente, para que os alunos se sintam atraídos pelas inúmeras técnicas existentes no universo da arte (PROFESSORA 2, ENTREVISTA REALIZADA EM 04/10/2020). [...] O material costuma trazer práticas e dinâmicas diferentes das quais os alunos estão acostumados e isso torna a aula mais atrativa. (PROFESSORA 5, ENTREVISTA REALIZADA EM 26/10/2020). [...] Os materiais educativos são ótimos mediadores e potencializam o contato das crianças com os artistas e obras de Artes, desta forma o interesse e participação na aula são mais significativos. A criança pergunta, fala mais sobre o que está vendo, quer apontar, tocar e interagir com o material. É uma forma lúdica de construção de conhecimento enriquecendo o repertório da criança (PROFESSORA 6, ENTREVISTA REALIZADA EM 28/10/2020).


Compreendemos então, a partir das narrativas das professoras, que as situações de aprendizagem desencadeadas pelos objetos propositores geram momentos nos quais os educandos socializam seus pontos de vista, seus saberes e esse diálogo é fundamental para o ensino da arte. Na questão número 7, foi perguntado quais critérios as professoras levavam em consideração ao produzir/elaborar um material educativo, se consideravam a realidade de cada sala de aula, faixa etária das crianças, curadoria, dentre outros pontos que elas quisessem destacar. Todas elas consideram a realidade presente em cada classe na hora de pensar, elaborar e produzir os materiais educativos, bem como no contexto sociocultural em que a escola e as crianças estão inseridas. Seguem as respostas: [...]O professor deve estar atento às necessidades dos alunos e sua realidade. Tenho essa preocupação de trazer algo para esses alunos que condiz com a realidade deles e que a obra se dialoga com seu contexto de vida arte (PROFESSORA 2, ENTREVISTA REALIZADA EM 04/10/2020). [...] Além desses apresentados, eu levo em consideração contexto da sala de aula e as especificidades dos alunos. E também, a qualidade do material que será utilizado para elaborar esses materiais educativos, o tamanho a forma o custo desse material. A curadoria (escolha das imagens) é relevante para ampliar o repertório imagético das crianças (PROFESSORA 6, ENTREVISTA REALIZADA EM 28/10/2020).

É importante que o/a professor/a, ao pensar em criar um material educativo, leve em consideração o contexto da sala de aula e o contexto cultural das crianças, suas singularidades, seus desejos, seus pensamentos, a etapa/modalidade na qual elas se encontram. Ademais, torna-se relevante também conhecer as crianças e saber os conhecimentos já consolidados e os conhecimentos que trazem a respeito do mundo, e nesse sentido, fazer intervenções/mediações, atuando, de acordo com Vigotski, nas zonas de desenvolvimento proximal das/os estudantes. Por fim, na questão de número 8, solicitamos que dessem um exemplo de um material educativo que elas criaram e que comentassem sobre as mediações e as reações das crianças. Apresentamos, na sequência, as respostas e os materiais educativos de cinco professoras que responderam ao questionário, com exceção da Professora 4 que não enviou as fotos dos materiais. [...] Como as crianças eram bem pequenas, criei fantoches para contar a história A boca do sapo. No final, eles quiseram brincar com os fantoches e se divertiram muito com isso. No meu estágio na Ed Infantil, criei vários materiais educativos para minha aula de regência. O resultado foi maravilhoso (PROFESSORA 1, ENTREVISTA REALIZADA EM 01/20/2020).

A professora disse que o teatro que ela realizou em sala de aula foi


uma releitura do livro “A boca do sapo”, de Eliardo França e Mary França. Ela viu no canal “Varal de Histórias”, no Youtube, e reproduziu. Coadunamos com a ideia de que a literatura que traz obras referentes aos artistas é de suma importância para as crianças pequenas e também que o teatro pode desencadear, por meio da mediação do/a educador/a, diálogos que impulsionam produções de diferentes e diversos sentidos. Para ampliar a atividade, seria interessante se a educadora trouxesse alguns artistas que, em suas obras, mostrassem diferentes borboletas evidenciando para as crianças que existem vários artistas e várias formas de retratarmos as borboletas e, a partir daí, construir essa caixa de contar histórias, como o teatro de fantoches. Nas escolas, faz-se necessário mostrar o artista e sua produção, do contrário, o trabalho vai se constituir na cor pela cor, a história pela história, não fazendo aquilo que Martins e Picosque (2012) consideram essencial, que é a nutrição estética, esta que, em nossa perspectiva, amplia o repertório artístico do/a professor/a e das crianças. Ressaltamos, então, a importância de subsidiar, nutrir as crianças esteticamente com artistas para fundamentar o aprendizado delas. A Professora 2 nos contou sobre o projeto que tem realizado com arte na educação especial (Figura 5): Figura 5: Tapete musical de cores.

Fonte: das autoras.

[...] Meu projeto de arte educação especial na EMEF. Esse projeto estou ainda em conclusão, pois é um desafio. Eu me vi na necessidade de fazer algo de intervenção para esses alunos. Os materiais tive que adaptar pra nova realidade até por conta da minha formação. Para mim está sendo uma experiência nessa área pouco descoberta, pouco trabalhada. Tenho tido, mesmo nessa época de distanciamento escolar, o retorno dos pais na proposta das atividades e materiais que estão indo para casa dos alunos. O projeto tem sido o diferencial da escola por conta do retorno dos pais e do olhar para esses alunos que ficam como invisíveis em sala de aula pelos professores que não sabem como adaptar o plano de aula para eles (PROFESSORA


2, ENTREVISTA REALIZADA EM 04/10/2020).

A Professora 2 relatou que está realizando um projeto “Arte especial na Educação Fundamental”, que tem como intuito oportunizar experiências que façam com que as crianças da educação especial possam explorar o mundo e as relações entre os objetos e as pessoas através de variados materiais e instrumentos. Destacamos o trabalho da professora, pois demonstra um olhar sensível para a diversidade existente na sala de aula, no entanto, consideramos, conforme já pontuamos, que a ampliação do repertório artístico é fundamental e, nesse sentido, ela poderia ter usado uma artista como por exemplo a Lygia Clark para fundamentar essa proposta de atividade, pois ela é uma referência importante ao pensarmos os objetos propositores ao considerar o próprio corpo como objeto propositor. A Professora 3 nos enviou o projeto que fez com a técnica do Tie Dye: [...] Estou realizando um projeto neste trimestre (outubro a dezembro) sobre estamparia e a harmonia das cores. Para incentivar o processo prático utilizei um método atual, com o nome de Tie Dye (técnica usada com diversas técnicas de dobraduras e cores). Durante a explicação, observei que os alunos ficaram bastante eufóricos e felizes em realizá-la. Fiz um vídeo e postei no YouTube para melhor visualização do passo a passo do projeto. A primeira aula teve que ser teórica e explicativa, constando os tipos de materiais, local para comprar, e o método. Logo após, os alunos precisariam realizar a atividade prática em suas casas com a ajuda de seus familiares (PROFESSORA 3, ENTREVISTA REALIZADA EM 12/10/2020).

Ela fez um vídeo no YouTube, no qual contextualizou a invenção do Tie Dye, ressaltando os diferentes povos que utilizavam essa técnica. Propôs então que, com a ajuda dos seus responsáveis, as crianças personalizaram as camisetas com a técnica do Tie Dye, o que lhes proporcionou a possibilidade de se reconhecerem como autoras do seu aprendizado. No entanto, voltamos à reflexão em relação a esse tipo de atividade, pois além de não se caracterizar como um material educativo (objetivo da pergunta 8), em nossa perspectiva o que fica é a técnica pela técnica. Por mais que as crianças aprendam a técnica e ampliem suas aprendizagens, compreendemos que, em uma perspectiva contemporânea de ensinar arte, é fulcral dialogar com as/os artistas, com a produção artística e cultural, com as imagens e tudo mais que atravessa o contexto da arte e da vida. A Professora 5 destacou, como material educativo, o livro da artista Yoko Ono: [...] Todo início de aula levo uma peça da Yoko Ono pra pensarmos juntos sem muita explicação para no final trabalharmos com o material, os alunos ficam confusos no processo e pensam em maneiras de que as peças sejam possíveis, alguns tentam fazer quando são possíveis por um curto tempo, outros logo comentam que são impossíveis e eu vou indagando para levantar mais as questões que eles trazem nesse processo (PROFESSORA 5, ENTREVISTA REALIZADA EM 26/10/2020).


A proposta da professora é muito interessante, pois trabalha com a criatividade e inventividade das crianças, além de tornar possível a experimentação do corpo todo das crianças nessas atividades, entretanto, também não se constitui como um material educativo elaborado pela professora. Por fim, trazemos a resposta da última professora da nossa pesquisa, a Professora 6 (Figura 6): Figuras 6: material educativo Viagem artística

Fonte: Professora 6.

[...] Eu criei uma viagem artística. Para fazer essa viagem com os alunos, eu fiz a impressão grande de cinco Obras de Artes. Cada Obra de um artista de continente diferente e também fiz a impressão de um mapa-múndi continente para que as crianças pudessem também situar (continente, país) de onde é cada artista. As crianças adoraram. Pedi para que elas fechassem os olhos e imaginassem que estaríamos dentro de um avião indo em direção para tal continente que eles escolheram e iríamos conhecer um artista. Quando chegávamos no continente, eu mostrava a imagem e falava um pouco sobre o artista. Depois direcionava perguntas sobre a Obra (realizando com eles a leitura de imagem), de forma que despertassem nelas o interesse e observação do conteúdo, estimulando uma construção de conhecimento mais abrangente. Quando mostrei as imagens, as crianças ficaram fascinadas. Queriam segurar as imagens, apontavam o que gostavam mais na Obra de Arte, cores, formas e elogiavam as pinturas (PROFESSORA 6, ENTREVISTA REALIZADA EM 28/10/2020).

Narrativa dela evidencia que a criação de materiais educativos requer pesquisa e reflexão para sua elaboração, pois se fundamenta em diversos artistas, objetivando nutrir as crianças estética, estésica e imageticamente, condição fundamental para ser um professorpesquisador. É necessário evidenciar que a utilização de objetos propositores nas aulas de arte demanda a mediação do/a professor/a a fim de conduzir os educandos para contextos de


aprendizagens em que ocorra encontro sensível com a arte, com a cultura e com os conhecimentos produzidos pela humanidade no decorrer da história, além de frisar que a criação e elaboração de materiais educativos precisam dialogar com a realidade existente em cada turma e que, para isso, o/a educador/a precisa ter um olhar atento e sensível, levando em consideração as especificidades de cada educando, suas vozes, seus interesses e sua cultura. Nesse sentido, trazemos como exemplo o material educativo produzido pela Professora 1, destacando uma aproximação das crianças com a cultura local capixaba por meio da construção/confecção do instrumento musical, casaca, e utilizando as cores da bandeira do Espírito Santo (Figura 7). Figura 7: confecção das casacas.

Fonte: Professora 1.

Posteriormente as crianças, com ajuda dos responsáveis, construíram esses instrumentos e assim, tiveram uma experiência significativa, pois esse tipo de atividade oportuniza que elas se enxerguem como autoras da aprendizagem produzida. O professor propositor, com sua poética, cria e elabora objetos propositores instaurando caminhos de aprendizagem convidativos, atrativos, interativos e dialógicos, permeados de afetos e que são percorridos em conjunto, nesse percurso ocorrem encontros frutíferos entre a cultura, a arte e os saberes. Em alguns casos então, concluímos que as professoras estimularam as crianças, provocando maior engajamento e propiciando que elas estabelecessem conexões entre suas vidas e a arte. Todavia, em algumas atividades, percebemos a ausência de um/a artista para balizar as atividades desenvolvidas com os materiais educativos e também, uma compreensão equivocada do que seja um material educativo para o ensino da arte. Os materiais educativos tornam o processo de ensino-aprendizagem mais prazeroso e lúdico, impulsionando e desenvolvendo a fantasia, a imaginação e a criatividade das crianças juntamente com a mediação do/a educador/a, instaurando um ambiente de aprendizagem dinâmico e interativo. CONSIDERAÇÕES FINAIS


No ensino da arte o professor propositor pode proporcionar experiências artísticas que potencializam o processo de ensino-aprendizagem, ao possibilitar a interação e o compartilhamento de saberes entre todos os sujeitos. Nesse contexto, ao analisar o impacto educacional e o discurso sobre os materiais educativos/objetos propositores elaborados e utilizados por Arte/Educadores que contribuem para os processos de ensino aprendizagem das crianças, concluímos que o ensino da arte é potencializado quando o/a educador/a supera o caráter tradicional e se propõe a produzir materiais educativos convidando as crianças para um trajeto interativo, criativo, inventivo e colaborativo. Experiências significativas de aprendizagem no ensino das Artes Visuais podem ser propiciadas por meio de materiais educativos criados pelo próprio docente a partir de situações dinâmicas, atrativas e dialógicas, o que se constitui como uma mola propulsora para materialização desses materiais. Dessa forma, a atuação do educador é poética, pois refere-se à singularidade presente no seu modo de compreender a arte, o ensino e de atuar no trabalho docente e assim, a elaboração de materiais educativos é um processo criativo e investigativo que enriquece sua formação. As narrativas das professoras evidenciaram que a inventividade e a criatividade percorrem suas práticas de maneira dialógica, provocando que as crianças tenham um encontro sensível com a arte, suscitando experiências estéticas e estésicas, culminando na produção de variadas interpretações e sentidos. Essas situações de aprendizagem geradas levam em consideração a vida, os afetos e os conhecimentos. Suas falas mostraram que têm um olhar atento e sensível para as diferentes realidades existente em cada sala de aula e, também, que a elaboração e criação de materiais educativos levam em consideração a pluralidade de sujeitos com experiências variadas e suas especificidades. Assim, os processos acontecem de forma contextualizada, de acordo com a realidade presente na sala de aula, promovendo experiências artísticas potentes, pois ao trilhar com as crianças, percursos de aprendizagem compartilhados, o/a professor/a propositor/a possibilita que seus educandos tenham encontros frutíferos com a arte, a cultura e os saberes historicamente construídos. REFERÊNCIAS HOFSTAETTER, Andrea. Criação de material didático em artes visuais: dispositivos sensíveis para a proposição de experiências de aprendizagem. Campinas, 2017. Disponível em: <http://anpap.org.br/anais/2017/PDF/EAV/26encontro______HOFSTAETTER_Andrea.pdf >. Acesso em: 21 de


setembro de 2019 às 20h58min. _______. Ensino de arte e pensamento utópico: por materiais poéticos para proposições de aprendizagem. Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://anpap.org.br/anais/2016/comites/ceav/andrea_hofstaetter.pdf>. Acesso em: 21 de setembro de 2019 às 21h59min. MARTINS, Mirian Celeste.; PICOSQUE, Gisa. Mediação Cultural para professores andarilhos na Cultura. 2º Edição. São Paulo: Intermeios, 2012. REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 25. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. – (Educação e Conhecimento). UTUARI, Solange. O professor propositor. [s.n.], 2012. Disponível em: <http://seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/Anaissem/article/view/42/128>. Acesso em: 2 de novembro de 2019 às 21h30min.


MEDIAÇÃO CULTURAL EM MUSEU DE ARTES VISUAIS: aspectos históricos Alanis Maria Okuzono1 Vinícius Stein2 RESUMO Qual é a origem das instituições museológicas? Como ocorreu o processo de institucionalização das artes visuais e sua exposição em museus? Quando os aspectos educativos e a mediação cultural foram inseridos nos museus? Essas questões, ainda que bastante abrangentes, situam nosso objeto de investigação - a mediação cultural em museus de arte - em um panorama histórico. Diante disso, mediante pesquisa bibliográfica, nosso objetivo neste texto é tratar sobre aspectos históricos relativos à constituição de museus de arte e às iniciativas de educação museal. Iniciamos com a contextualização sobre o museu. Em seguida, tratamos sobre as relações de classe que perpassaram a criação dos museus, demonstrando as proximidades entre museu e elitismo e a mediação cultural como possibilidade de superação dessa lógica. Palavras-chave: Museu. Artes Visuais. Educação. Mediação Cultural.

ABSTRACT What is the origin of museum institutions? How did the process of institutionalizing the visual arts and its exhibition in museums occur? When were educational aspects and cultural mediation inserted in museums? These questions, although quite comprehensive, place our object of investigation - cultural mediation in art museums - in a historical panorama. Therefore, through bibliographical research, our objective in this text is to deal with historical aspects related to the constitution of art museums and museum education initiatives. We start with the context of the museum. Then, we deal with the class relations that permeated the creation of museums, demonstrating the proximity between museum and elitism and cultural mediation as a possibility to overcome this logic. Keywords: Museum. Visual arts. Education. Cultural Mediation.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Neste texto apresentamos resultados iniciais de uma pesquisa em desenvolvimento por meio do Projeto Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Estadual de Maringá - UEM (processo: 1900/2020 - Mediação cultural em artes visuais: funções, termos e conceitos). O objetivo geral que mobiliza a realização da referida pesquisa é “analisar as funções atribuídas à mediação cultural em exposições de artes visuais”. Para atender ao objetivo, iniciamos a busca de referencial bibliográfico interessados particularmente no trabalho de mediação cultural em exposições de artes visuais realizadas por museus de arte. Tendo estabelecido o museu de arte como instituição a ser analisada, levantamos algumas questões que mobilizaram nossas buscas iniciais. Foram elas: Qual é a origem das instituições museológicas? Como ocorreu o processo de institucionalização das artes visuais e sua exposição em museus? Quando os aspectos educativos e a mediação cultural foram inseridos nos museus? Essas questões, ainda que bastante abrangentes, foram importantes para que situássemos nosso objeto de investigação - a mediação cultural em museus de arte em um panorama histórico e proporcionou o desenvolvimento deste texto. A seguir, apresentamos uma síntese dos resultados encontrados, mediante pesquisa bibliográfica, a partir das questões orientadoras. Nosso objetivo neste texto é, portanto, tratar


sobre aspectos históricos relativos à constituição de museus de arte e às iniciativas de educação museal. As fontes de pesquisa foram selecionadas em plataformas de acesso livre à periódicos científicos (Google Acadêmico e Periódicos Capes). Buscamos por palavras-chave como “museu”, “museus”, “educação museal” e “mediação cultural” e, após análise preliminar dos resumos, selecionamos os artigos que apresentavam argumentos que indicavam respostas às questões que levantamos e contribuem com o desenvolvimento dos objetivos da pesquisa. Além disso, esses artigos nos levaram a outras fontes de pesquisa, como sites e livros. CONCEITUALIZANDO O MUSEU No esforço de conceituar “museu”, recorremos inicialmente ao livro “Conceitos-chave de Museologia” (2013) organizado por André Desvallées e François Mairesse. Esta publicação foi realizada mediante apoio do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus (ICOM) e do Comitê Internacional para Museologia do ICOM (ICOFOM), e apresenta a definição de alguns termos museológicos em formato semelhante a um dicionário. Segundo Desvallées e Mairesse (2013) o termo “museu” pode intitular tanto a instituição quanto o estabelecimento ou local usualmente designado para a seleção, o estudo e a apresentação de dados materiais ou imateriais. Embora cada país tenha textos legislativos próprios para estabelecer e regular o funcionamento de museus, os autores destacam que a definição do estatuto do Conselho Internacional de Museus (ICOM), de 2007, tem sido amplamente utilizada em sua conceituação. Segundo o ICOM, o museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, estuda, expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio, com fins de estudo, educação e deleite (DESVALLÉES e MAIRESSE, 2013, p.64).

Os autores ponderam sobre esta definição destacando sua função normativa e seu caráter corporativo e assinalam que “[...] uma definição ‘científica’ de museu deve, assim, distanciar-se de alguns dos elementos aportados pelo ICOM [...]” (DESVALLÉES e MAIRESSE, 2013, p. 65). Para exemplificar, argumentam que instituições que possuem fins lucrativos podem ser socialmente identificadas como museus apesar de não serem reconhecidas pelo ICOM. No Brasil, constatamos que a lei 11.904, de 14 de janeiro de 2009, que institui o Estatuto de Museus e dá outras providências, apresenta aspectos centrais da definição apresentada pelo ICOM e a amplia. Conforme o texto legal: Art. 1º - Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins


lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (BRASIL, 2020).

Considerando nosso objeto de estudo nesta investigação, enfatizamos que ambas as definições destacam a função educativa dos museus. Assim, seja no âmbito internacional, por meio do Estatuto do ICOM, seja nacional, pelo Estatuto dos Museus, a concepção contemporânea dessa instituição considera a educação como um princípio fundamental. Retomaremos esta discussão no decorrer da pesquisa. Desvallées e Mairesse (2013, p. 65) destacam a função do museu para a criação de coleções e a conservação de bens e avaliam que, embora seu reconhecimento enquanto instituição independente tenha se consolidado século XVIII, a partir de conceitos tomados da antiguidade e reapresentados pelo Renascimento europeu, “[...] existia em quase todas as civilizações certo número de lugares, de instituições e de estabelecimentos que se aproximavam mais ou menos diretamente daquilo que englobamos atualmente com esse vocábulo”. Nessa direção, são pertinentes as considerações de Julia Rocha Pinto sobre os aspectos históricos para a constituição de museus, sistematizadas no texto “O papel social dos museus e a mediação cultural” (2012). A autora considera que o ato de arquivar e colecionar caracteriza as ações humanas desde a Pré-História, quando, por exemplo, os indivíduos acumulavam imagens nas paredes das cavernas e reuniam objetos de forma organizada. Rocha Pinto (2012) também menciona exemplos da Antiguidade que poderiam ser considerados como equivalentes aos museus atuais. Refere-se especificamente a espaços destinados ao culto religioso, estudos e contemplação, na Mesopotâmia e na Grécia. A autora sintetiza: o museu – etimologicamente da palavra mouseion, a casa das musas – sempre existiu como prática ainda que não nominalmente desta forma. Quando os mais favorecidos financeiramente adquiriam bens de consumo para a indução do poder absoluto e passaram a explorar deste recurso imagético para colocá-los como superiores às classes menos favorecidas, já se constituía a concepção do que hoje conhecemos como museu (ROCHA PINTO, 2012, p.84).

Nesse excerto, em nossa avaliação, Rocha Pinto (2012) apresenta uma reflexão pertinente sobre o caráter excludente que, por vezes, caracteriza o acesso às produções culturais pelos museus e demonstra que essa posição seletiva está relacionada com a origem dos museus enquanto instituição. Conforme explica adiante em seu texto, esse processo de elitização da arte vinculado à criação dos museus está relacionado com o Renascimento. MUSEU E ELITISMO


O Renascimento foi um movimento artístico, científico e filosófico que teve início na Itália e posteriormente se propagou em toda Europa, entre o período correspondente à Baixa Idade Média (séc. XIV) e início da Idade Moderna (séc. XVI). Os artistas, que possuíam valores humanistas, valorizavam temas como o antropocentrismo e incentivaram a busca de conhecimentos a partir da Antiguidade Clássica. Sob a visão humanista renascentista, o indivíduo passa a ser visto como um idealizador, capaz de todo domínio sobre aquilo que deseja fazer e perante a isso que se há o reconhecimento da nomenclatura do artista e a ruptura entre arte e artesanato, artista e artesão (PEIXOTO, 2011). Como demonstra Lucia Santaella no livro “Por que as comunicações e as artes estão convergindo?”, na Idade Média o que chamamos atualmente de artes visuais, era considerado artesanato de cunho utilitário, equivalente a fabricação de objetos e bens necessários e, a partir do Renascimento, a arte começou a ser tratada de modo distinto e os artistas começaram a conseguir status a partir do caráter intelectual e teórico que atribuíam às suas criações. Esse período também foi marcado pela transição econômica do Feudalismo para o Capitalismo e pela a abertura do comércio marítimo com novas rotas entre a Europa e os demais continentes, que permitiu o aumento do comércio nas cidades, promovendo a ascensão da burguesia e seu poder político na sociedade europeia (ROCHA PINTO, 2012). Sob essa perspectiva, Maria Inês Hamann Peixoto (2001) em “Relações entre, artista e grande público: a prática estético-educativa numa obra aberta”, pondera que a criação de novas rotas para os comércios marítimos e o desenvolvimento de colônias, permitiu a apropriação de objetos de outras culturas; essas relações resultaram no fortalecimento do mercantilismo da arte uma vez que os objetos trazidos pelos exploradores, considerados “exóticos”, passaram a ser colecionados e comercializados. As apropriações colonialistas de objetos de povos não europeus e a crescente produção de pinturas e esculturas produzidas pelos artistas europeus mobilizou a criação de acervos que pertenciam à aristocracia e à burguesia em ascensão. Avançando o processo histórico, Rocha Pinto (2012) informa que a partir do século XVII as coleções particulares pertencentes a esses grupos, começaram a ser visitadas em seus palácios e outros espaços que guardavam objetos de caráter artístico. As visitas eram realizadas apenas pelos nobres e, mediante autorização, por pesquisadores e estudantes de arte. Somente com a Revolução Francesa em 1789, a política de acessibilidade se tornou vigente para outros grupos sociais. Segundo Amália Ferreira Meneghetti (2016) em “Curadoria Museológica & Curadoria de Arte: aproximações e afastamentos”, após a Revolução Francesa a discussão sobre


patrimônio público e privado se intensificou. A autora revela que as grandes coleções pertencentes à elite dominante passaram a ser do estado, assim, a ideia de patrimônio, antes compreendida como um conjunto de bens pertencente apenas a um indivíduo ou a uma coleção privada, passou a pertencer ao povo. Ainda assim, o acesso aos museus era limitado para população, uma vez que a monarquia, nobreza, clero e agora a burguesia, passaram a usar o espaço museológico como local de celebração de suas conquistas. Meneghetti (2016) ressalta que a entrada dos museus se manteve restrita e controlada até metade do século XIX, mediante a justificativa de que a população não era considerada “educada” o suficiente para a compreensão de obras e objetos que pertenciam ao acervo do museu. Destacamos que no mesmo período, no contexto brasileiro, havia um número significativo de instituições museológicas. Cabral explica que: [...] na segunda metade do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX o universo museal brasileiro não era pequeno. Em Salvador, Recife, Amazonas e, é claro, na Corte, no Rio de Janeiro, eram muitos os museus, inclusive particulares, às vezes verdadeiras casas comerciais. Abriam ao público – desde que estivesse vestido adequadamente – aos domingos” (CABRAL, 2018, p. 140).

Com base nesses marcos históricos, compreendemos que os museus carregavam a função de coletar objetos de valores e a preservação dos mesmos. Portanto, antes mesmo de haver uma nomenclatura para denominar os espaços das coleções privadas, elas já poderiam ser caracterizadas como pequenos museus. MUSEUS NO BRASIL E EDUCAÇÃO MUSEAL No Brasil, a criação de museus está diretamente relacionada à tradição europeia. Segundo Rocha Pinto (2012) a experiência museológica mais antiga foi instituída em Pernambuco, no período de colonização holandesa, em meados do século XVII, com a criação do Palácio de Vrijburg, em 1640. Cabral reafirma este dado quando escreve que: “[...] a primeira referência a um museu no Brasil date do século XVII – por ocasião da presença do holandês Mauricio de Nassau na região do atual Recife, entre 1637 e 1644, e cujas coleções foram levadas para a Holanda por ocasião da expulsão dos holandeses [...]” (CABRAL, 2018, p. 139). Após, houve a criação de um museu de história natural denominado “Casa de Xavier dos Pássaros” no século XVIII no Rio de Janeiro, que se manteve até o início do século XIX. Embora esses museus não tivessem especificidades artísticas e não tenham sido preservados, a autora destaca sua relevância para implementação de uma cultura de museus no Brasil colonial. Em sua avaliação, esse processo se intensificou com a chegada da família real portuguesa (em 1808), que estabeleceu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 1818. Tal


criação reforça que “[...] durante muito tempo o ato expositivo e colecionador esteve abarcado pelos nobres e pela classe mais abastada financeiramente” (ROCHA PINTO, 2012, p. 85). Posteriormente, em 1826, houve a criação da Academia Imperial de Belas Artes, também no Rio de Janeiro, que posteriormente deu origem à Escola Nacional de Belas Artes (em 1890). Destacamos ainda, a partir de Cabral (2018), a criação de outros museus no século XIX, no período imperial, tais como “[...] em 1871, o Museu Goeldi, de História Natural, em Belém do Pará; e, em 1876, o Museu Paranaense, em Curitiba. Todos criados à semelhança com o Museu Real, hoje Museu Nacional” (CABRAL, 2018, 140). No artigo “Cultura de museus no Brasil: a gênese das instituições artísticas no país”, Clara Downey (2019) problematiza a constituição dos museus de arte evidenciando o caráter colonialista de sua gênese. Destaca que o modelo de criação utilizado partiu da iniciativa dos colonizadores europeus e visava agradar a elite cultural, intelectual e econômica residente na colônia, promovendo um caráter excludente. Downey (2019) explica que o Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro (Antiga Escola Nacional de Belas Artes que, por sua vez, foi a Academia Imperial de Belas Artes) inaugurado em 1938, é comumente considerado o primeiro museu de arte do Brasil. Conforme informa, as cinquenta e quatro obras que compunham seu acervo inicial foram criadas por artistas da Missão Francesa e adquiridas por Joachim Lebreton. Assim, a autora considera que, embora o Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro seja descrito como o primeiro museu de arte, a Academia Imperial de Belas Artes, que o antecedeu, foi pioneira na realização de exposições de arte no país. Segundo Downey (2019): “A Academia tinha o intuito de inaugurar o ensino artístico no Brasil; entretanto, ela também se responsabilizava pela criação de exposições, concursos e prêmios, conservação de patrimônio e criação de pinacotecas e coleções.” (DOWNEY, 2019, p. 264). Conforme Downey (2019), a segunda instituição museológica dedicada especialmente às artes no país foi a Pinacoteca do Estado de São Paulo, inaugurada em 1905, na cidade de São Paulo. Idealizada pelo governo estadual e pela Secretaria do Interior e Justiça, obteve inicialmente uma coleção de cinquenta e nove obras, obtidas do acervo do Museu do Estado, atual Museu Paulista, e de doações de obras por personalidades públicas locais. Ainda no contexto paulista, a autora destaca, décadas mais tarde, as contribuições de Ciccillo Matarazzo e Assis Chateaubriand na formação de coleções de arte com objetivo de impulsionar o cenário cultural do país. Chateaubriand criou o Museu de Arte de São Paulo (MASP) em 1947. A autora afirma que com o passar do tempo, o MASP tornou-se o museu mais importante da América Latina, contendo um grande acervo com obras nacionais e


estrangeiras. Em suas palavras: “[...] uma verdadeira aula de história da arte no meio da Avenida Paulista - lugar de sua sede definitiva, projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi, e um dos prédios mais famosos do Brasil.” (DOWNEY, 2019, p. 268). Ciccillo Matarazzo, por sua vez, iniciou o interesse de criar um museu aos moldes do Museu de Arte Moderna de New York (MoMA). Sua intenção culminou na criação do Museu de Arte Moderna (MAM), em 1948, inicialmente localizado na mesma sede do MASP (à época na rua 7 de abril), onde permaneceu até 1958 quando foi transferido ao Parque Ibirapuera. A autora destaca o protagonismo do crítico de Sérgio Milliet nas negociações para criação do MAM junto a um grupo “[...] que incluía mecenas e artistas, dentre eles, o empresário norte-americano Nelson Rockefeller, com quem o crítico trocava cartas recorrentemente” (DOWNEY, 2019, p.270). Ciccillo Matarazzo também direcionou esforços para a criação de uma Bienal de Arte, dessa vez baseando-se no formato da Bienal de Veneza. Matarazzo propôs um prêmio duas vezes maior do que o oferecido pela Bienal de Veneza em sua Bienal de São Paulo. A autora avalia que tal ação se moldava aos seus interesses de divulgar uma imagem de São Paulo como uma cidade industrializada e uma capital cultural. Dessa maneira, a Bienal Internacional de São Paulo foi criada em 1951, realizada pelo MAM-SP em um local provisório na Esplanada do Trianon, localizada na Avenida Paulista. As ambições de Matarazzo se tornaram reais e bem-sucedidas e “[...] no período entre 20 de outubro e 23 de dezembro, a Bienal recebeu cerca de 100 mil pessoas, sendo 45 mil pagantes” (DOWNEY, 2019, p. 272). Obras de artistas como René Magritte e Pablo Picasso foram expostas pela primeira vez no país e foi organizada uma sala exclusiva em homenagem aos artistas modernistas brasileiros Di Cavalcanti e Cândido Portinari. Rocha Pinto (2012) destaca que o processo de consolidação dos museus no Brasil foi um processo gradual. A autora avalia que no século XX, especialmente a partir da década de 1950, a publicações de livros, a criação de diversos projetos e a realização de eventos ajudaram a firmar a museologia no Brasil. Dado reafirmado por Cabral quando relata: “Na década de 1950, dois importantes encontros redimensionaram a relação museu e educação: o I Congresso Nacional de Museus e o Seminário Regional sobre a Função Educativa do Museu.” (CABRAL, 2018, p. 143). É também na segunda metade do século XX no Brasil que se intensificam os esforços para a implementação e desenvolvimento da educação em museus no Brasil, conforme relata Jezulino Lúcio Mendes Braga (2017) em “Desafios e perspectivas para a educação museal”. O autor inicia seu artigo datando e nomeando os eventos que antecederam e


motivaram a oficialização da função educacional em museus. Segundo sua pesquisa, a discussão sobre esta temática se intensificou na década de cinquenta do século XX, especialmente mediante a execução do seminário “A função Educativa nos Museus", realizado pela UNESCO, na cidade do Rio de Janeiro, em 1958. Conforme relata: No Brasil, na década de 50 foi realizado um seminário na cidade do Rio de Janeiro promovido pelo ICOM (Conselho Internacional de Museus) no qual foi debatida a função educativa dos museus, gerando vários documentos que antecedem o movimento para criação de um Programa Nacional de Educação Museal dentro do IBRAM [IBRAM: Instituto Brasileiro de Museus]. O PNEM, como é conhecido, teve suas bases lançadas na cidade de Petrópolis em 2010 e posteriormente a discussão ampliada aconteceu por meio de uma plataforma virtual lançada no dia 30 de outubro de 2012. (BRAGA, 2017, p. 55).

Segundo o autor, o Seminário Regional sobre a Função Educativa do Museu de 1950, potencializou a discussão em 1972 com a Mesa Redonda de Santiago do Chile, que deu bases para a chamada “Nova Museologia”. Assim, a Mesa de Santiago representa um marco na defesa da uma necessidade de esferas educativas em museus para mediação com escolas e outros programas para promover o acervo e a educação de uma sociedade. O autor sintetiza: Ao assumir seu papel educativo, os museus marcam sua especificidade e ampliam ações que fortalecem o uso educativo de suas exposições; propõe relações com a comunidade e com as escolas, dinamizando e publicizando suas exposições.; e rompem com a visão de uma caixa monumento que encapsula a memória em objetos e legendas, sem se preocupar com as inquirições próprias do social vivido (BRAGA, 2017, p.55).

Após apresentar uma retomada histórica de eventos que contribuíram e fortaleceram a educação inserida no contexto museal no Brasil, Braga (2017) trata sobre as vantagens da implementação de políticas para educação nos museus. Afirma que o museu, ao se responsabilizar por práticas educativas, pode potencializar a desestabilização de mitos, estabelecer vínculos com escolas e população que a cerca, e também gerar publicidade para suas respectivas exposições. Essas questões também são abordadas por Coutinho (2009) em “Questões sobre a formação de mediadores culturais”. Nessa elaboração a autora avalia que cabe aos mediadores questionar para quem é feita a medição e qual é o foco principal deste trabalho e, a partir dessas questões, elaborar investigações acerca das características do público. Em sua análise, quando se busca “[...] ampliar o acesso desse público aos bens culturais é necessário posicionar nosso foco de ação e refletir sobre as concepções de arte e de cultura que norteiam os projetos educativos das instituições.” (COUTINHO, 2009, p. 3749). Ao abordar práticas que pretendem diminuir esses abismos culturais, a autora analisa que, no Brasil, tornar mais acessível o acesso a museus e instituições culturais ainda é uma questão urgente, mas apenas propiciar o acesso não é suficiente. Nesse sentido, a mediação


cultural é uma das possibilidades para a aproximação entre museu e público. Além disso, Coutinho (2013) evidencia que não há pesquisas que respondam às questões: “[...] Como esse público está se apropriando dos bens culturais e patrimoniais? Como estamos formando o tal público fruidor?” (COUTINHO, 2013, p.52). Por isso, considera necessário analisar os conceitos de arte e cultura apresentados nos discursos de mediadores. CONSIDERAÇÕES FINAIS Iniciamos a pesquisa com a contextualização sobre o museu, no esforço de conceituar esta instituição. Para tanto, recorremos a três fontes de pesquisa: Um dicionário técnico, o estatuto do Conselho Internacional de Museus (ICOM) e a Lei que institui o Estatuto de Museus no Brasil. Verificamos que os três documentos consultados destacam a função educativa dos museus, objeto de nosso interesse nesta pesquisa. Em seguida, apresentamos informações relacionadas aos aspectos históricos para a constituição dos museus, denominados inicialmente como “gabinetes de curiosidade” e destacando sua função exclusiva como acervo. Posteriormente, tratamos sobre as relações de classe que perpassaram a criação dos museus e exemplificamos demonstrando as proximidades entre museu e elitismo estabelecidas no Renascimento (caracterizada pela propriedade e acesso privados aos objetos artísticos) e na Revolução Francesa (caracterizada pela abertura dos acervos privados). Após tratarmos sobre a condição dos museus na Europa, aproximamos nossas constatações sobre o processo de consolidação dos museus no Brasil e verificamos que, no país, houve a reprodução da lógica elitista europeia. Um dos meios para a superação dessa lógica, foi a abertura dos museus para o grande público e iniciativas de educação museal. Verificamos que a partir da década de 1950, eventos mobilizaram debates sobre a necessidade de ações que possibilitam o acesso às instituições museológicas e a inserção de práticas educativas que reforcem a acessibilidade. Concluímos problematizando a necessidade de olhar para os caminhos percorridos na consolidação dos museus europeus e, especialmente os museus de artes visuais brasileiros, a fim de reconhecer sua origem aristocrática que gerava a exclusão das demais classes sociais e buscar ações que possibilitam o acesso ao público a fim de aproximar os indivíduos que foram historicamente afastados destes conhecimentos, por meio da mediação cultural. REFERÊNCIAS BRAGA, Jezulino Lúcio Mendes. Desafios e perspectivas para a educação museal. Museologia e Interdisciplinaridade, Vol. 6, no 12, Jul./ Dez. de 2017. Disponível em:


https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/download/16332/14620/47096, acesso em: 24/03/2021. BRASIL. Lei 11.904, de 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de Museus e dá outras providências. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11904.htm, acesso em: 24/03/2021. CABRAL, Magaly. Um breve panorama da Educação Museal no Brasil. In: COSTA, Ana Loudes de Aguiar. LEMOS, Eneida Braga Rocha de (org.). Anais 200 anos de museus no Brasil: desafios e perspectivas. Brasília: Ibram, 2018. p. 139-149. DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François (editores). Conceitos-chave de Museologia. Tradução e comentários: Bruno Brulon Soares e Marília Xavier Cury. São Paulo: Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus: Pinacoteca do Estado de São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 2013. DOWNEY, Clara. Cultura de museus no Brasil: a gênese das instituições artísticas no país. ARS (São Paulo), [S. l.], v. 17, n. 37, p. 261-276, 2019. DOI: 10.11606/issn.2178- 0447.ars.2019.165380. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ars/article/view/165380. Acesso em: 18/12/2020. MENEGHETTI, Amália Ferreira. Curadoria museológica & curadoria de arte: aproximações e afastamentos. 2016. Monografia (Museologia) - Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2016. PEIXOTO, M. I. H. Relações entre, artista e grande público: a prática estético-educativa numa obra aberta. 2001. 259 f. Tese (Doutorado em História, Filosofia e Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2004. PINTO, Julia Rocha. O papel social dos museus e a mediação cultural: Conceitos de Vygotsky na arte- educação não formal. Palíndromo, v. 7, p. 97-116, 2012. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/palindromo/article/view/3341, acesso: acesso em: 24/03/2021. SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005.

NOTAS DE FIM 1.

Alanis Maria Okuzono. Graduação em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá (em andamento). Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4221914121604100.

2.

Vinícius Stein. Graduação em Arte-Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (2011). Especialização em Teoria Histórico-Cultural pelo departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (2014). Mestrado em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (2014). Doutorado em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (2019). Bolsista da Fundación Carolina para pesquisa na Universidad de Huelva - Espanha (2018). Coordenador do Conselho Acadêmico do curso de licenciatura em Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá (2019). Coordenador do núcleo de Arte do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - Pibid/UEM (2020). Integra o Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagem (ARTEI) e o Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil (GEEI). Pesquisa sobre ensino das Artes Visuais na educação escolar, educação estética e mediação cultural em Artes Visuais. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2140194065685423.


MEMÓRIAS DE UM SARAU VIRTUAL: uma proposta artística em momento de pandemia covid-19 Vanessa Aparecida de Oliveira1 Maria Angélica Vago-Soares2 RESUMO O artigo trata de uma reflexão a partir de uma experiência com o Ensino da Arte em tempos de Pandemia Covid19. Buscou-se analisar sobre o momento educativo Sarau virtual: como vai você?. Essa ação fez parte do projeto interdisciplinar da área de linguagens em 2020, no Colégio Estadual do Espírito Santo, na cidade de Vitória. A problematização se dimensionou em pensar: quais são as memórias que o Sarau deixou aos estudantes e profissionais da escola e quais foram as contribuições para a formação desses sujeitos? A metodologia foi qualitativa, a partir da análise documental e a produção dos dados foi através de entrevista no gerenciamento de pesquisas Google Forms3. O objetivo foi refletir e analisar, com base nas memórias de professores e estudantes, as contribuições para a formação deles, a partir da prática educativa Sarau virtual. Para os diálogos com o arcabouço teórico, escolhemos Benjamin (2012, 2013) e Bosi (2012) para pensar os conceitos de memória e narrativa; Barbosa (2005) sobre a importância do trabalho com a Arte e suas linguagens; Dunker e Thebas (2018) sobre a escuta e o acolhimento. Percebe-se que o acervo de memórias dos participantes é rico em experiências singulares e coletivas, nele encontramos produções criativas que entendemos por memórias afetivas, desse momento distante fisicamente da escola. Palavras-chave: Memória; Narrativa; Ensino da Arte; Acolhimento.

ABSTRACT The present article reflects on the experience of Art teaching during the pandemic of Covid-19. An analysis of the educational moment was sought: "Virtual soiree: How are you?" This action took place in 2020, as an interdisciplinary project in the language area, at the Colégio Estadual do Espírito Santo, located in the city of Vitória. The problem was conceptualized with the following reflection: what are the memories that Soiree left with students and school professionals, and what were their contributions to the formation of these subjects?The methodology was qualitative, with document analysis and data production through interviews in Google Forms research management. The goal was to reflect on an analysis of teachers' and students' memories as contributions to their formation via an educational practice: the Virtual Soiree. For the dialogues with the theoretical framework, we chose Benjamin (2012), (2013) and Bosi (2012) to think about the concepts of memory and narrative; Barbosa (2005) on the importance of working with Art and its languages; and Duken and Thebas (2018) on listening and welcoming. It is noticed that the collection of memories of the participants is rich in unique and collective experiences. In them, we can find creative works that we understand as affective memories from that moment when we are physically distant from school. Keywords: Memory; Narrative; Art teaching; Welcoming.

INTRODUÇÃO Considerar o campo da educação por meio da arte não é uma inovação no cotidiano e nem nas pesquisas sobre ações educativas nas escolas. Atualmente, a arte e suas linguagens estão presentes no contexto da educação desde a educação infantil, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017)4 traz em seu bojo os Campos de Experiências que apontam para várias práticas articuladas à arte. Para o Ensino Fundamental, o documento traz as linguagens: as Artes Visuais, a Dança, a Música e o Teatro, envolvendo práticas de ler, criar, produzir em toda diversidade de temas integradores. E, quando adentramos ao Ensino Médio, percebemos o quanto elas são deixadas de lado e o foco se concentra em estudos direcionados para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e até mesmo no contexto de crise sanitária da COVID-19, a perspectiva educacional persistiu nesse viés, pensando o currículo de Arte que traz um conteúdo preestabelecido. No Colégio Estadual de Vitória -ES, buscamos imbricar a


criação e a fruição artísticas nas práticas desenvolvidas. O relato da prática descrita neste texto nos instiga a pensar o quanto a arte atravessa e supera as questões dos exames de nivelamento que, diante do momento pandêmico, tivemos que repensar a validade formativa de tal currículo, sobretudo nossas metodologias em Arte para o acolhimento à pluralidade de conhecimentos surgidos na crise sanitária e na contingência das demandas peculiares da juventude estudantil da escola em questão. Juventude, a categoria social que o desejo de aprender está agregado a outros desejos que desafiam as práticas de ensino e aprendizagem, como a importância de espaços de escuta, fala, apresentação de suas ideias criativas diversas e negociações com os conteúdos que, dessa forma, em Arte e em outros conhecimentos se conectam ao objetivo maior: a formação integral do estudante e seu processo crítico necessário para exercer cidadania; democracia representativa, reconhecer-se sujeito de deveres, direitos e produtor de conhecimento e saberes. Sendo assim, o compartilhamento de saberes e práticas artísticas no momento da Pandemia de COVID-19 foi momento de, para além de relatar, refletirmos sobre a importância das atividades artísticas de apreciação, fruição e entretenimento. Ao pensarmos como essas práticas nos atravessam, aproximam, abstraem e nos colocam superiores à finitude da vida, torna-se possível a reelaboração de conhecimentos e reconhecimentos, fazendo-nos em sua pluralidade criarmos memórias melhores de uma pandemia tão devastadora como esta. Muitas foram as práticas interdisciplinares desenvolvidas pelo grupo de profissionais do Colégio Estadual de Vitória - ES, no ano de 2020, ano do início da pandemia. O Sarau surge da escuta aos anseios criativos dos estudantes da instituição de Ensino Médio em outras atividades propostas anteriormente, sempre ocupadas de perceber e saber dos mal-estares causados pela crise sanitária, pelo desânimo advindo dessa crise, falta de recursos digitais, entre outras discrepâncias sociais. Para este artigo, escolhemos dialogar e compartilhar sobre as memórias dos participantes no Sarau virtual: Como vai você?5 “[...]Eu preciso saber da sua vida/ Peça a alguém pra me contar/ Sobre o seu dia/ Anoiteceu e eu preciso só saber [...]”5

O trecho da música instigou a pensar sobre o momento pandêmico, como estou, como está o outro, como estamos. Partimos da questão: quais são as memórias que o Sarau deixou aos estudantes e profissionais da escola e quais foram as contribuições para a formação desses sujeitos? A metodologia foi na perspectiva qualitativa e de análise documental. A produção dos dados para as análises foi uma entrevista - por meio do aplicativo de gerenciamento de pesquisas Google Forms - disponibilizada para os estudantes e profissionais da escola que participaram do Sarau. Além de um vídeo curto solicitando respeitosamente que


respondessem e deixando-os cientes da utilização de suas narrativas como parte integrante desse texto. Sabemos que em uma pesquisa documental os dados são predominantemente descritivos, o material "[...] é rico em descrições de pessoas, situações, acontecimentos; inclui transcrições de entrevistas e de depoimentos [...]" (LÜDKE e ANDRÉ, 2015, p. 13, Grifo nosso). Assim, é importante que estejam de acordo com o compartilhamento de suas narrativas. Nessa investigação, optamos por dialogar com Benjamin (2012, 2013) e Bosi (2012) para pensar os conceitos de memória e narrativa; Barbosa (2005) sobre a importância do trabalho com a Arte e suas linguagens; Dunker e Thebas (2018) sobre a escuta e o acolhimento. Observamos que as percepções e as memórias das interações dos professores e estudantes no Sarau ressaltam a importância da ação coletiva e como espaço de expressão e de apreciação. O Sarau Virtual: análises das memórias dessa prática Como mencionamos, o Sarau Virtual foi proposto a partir da questão estimulante “Como vai você?” e ocorreu no mês de outubro de 2020. O tema do Sarau surgiu do interesse dos professores e outros educadores do Colégio Estadual do Espírito Santo em saber como os estudantes do Ensino Médio que estavam no sétimo mês imersos na Pandemia de COVID-19. A ação evoluiu no sentido poético para apresentações em que professores e pedagogas se interessaram em compor o momento e apresentaram suas criações, por meio das linguagens artísticas. O Sarau fez parte do projeto interdisciplinar de Linguagens. A ideia foi compartilhar as produções dos sujeitos: apresentações de vídeos, poesias, músicas, além de produções visuais. Teve como objetivos valorizar as escritas criativas dos estudantes; incentivar a produção e a fruição artística visual (fotografia, pintura, colagem, desenho, artesanato) e provocar, nos estudantes, o desejo de compartilhar suas criações. A atividade não teve cunho avaliativo, de modo que os estudantes tiveram a liberdade de participarem ou não. Para a divulgação do evento, produzimos um cartaz para as redes sociais do Colégio Estadual, Instagram, Facebook e o mural da plataforma de aprendizagem Google Sala de Aula. O envolvimento dos estudantes possibilitou as produções autorais, ou seja, exercícios de pesquisa, criação e exposição. A disposição dos participantes para a produção das criações artísticas mostrou a sensibilidade que todos os envolvidos estavam ao falarem de si. Participar de ações desse tipo tornam os conhecimentos mais significativos para docentes e discentes, levando-os a se sentirem pertencentes à escola e como ela está solucionando a distância. Devido ao processo tão relevante, justifica-se nosso interesse em conhecer e analisar


as memórias dos sujeitos que participaram do Sarau. A entrevista foi o instrumento escolhido para fazer o levantamento de informações de modo sistematizado e pensar as análises. Seguramente, certas informações não podem ser atingidas por meio de pesquisa, de revisão literária ou pesquisa de investigação. A única forma de apurar e conhecer é através de entrevistas, pois nela: [...] a relação que se cria é de interação, havendo uma atmosfera de influência recíproca entre quem pergunta em quem responde. Especialmente nas entrevistas não totalmente estruturadas, onde não há uma imposição de ordem rígida de questões, o entrevistado discorre sobre o tema proposto com base nas informações que ele detém [...] (LÜDKE e ANDRÉ, 2015, p. 33).

Nessa proposta, buscou-se integrar colegas professores e os estudantes a lançarem mão de suas memórias. Todos os participantes foram convidados a compartilharem suas memórias, porém tivemos a devolutiva de apenas cinco (5) deles que se dispuseram dessa experiência, que inclui memória, opinião, sentido, produção, conhecimento, expectativa e projeções futuras a um possível novo sarau. Podemos considerar que devido ao momento tão peculiar de crise sanitária, a pequena adesão à entrevista pode estar relacionada ao momento pandêmico que vivemos, às novas demandas da vida cotidiana que surgiram nos aspectos sociais e emocionais, transformando nossa relação com o tempo, com as prioridades do trabalho em detrimento dos estudos. E, apesar da entrevista proposta ter sido bem objetiva, clara e simples, ao retomar uma experiência artística, mesmo que prazerosa, em princípio pode ter gerado receio de tomar muito tempo, ou ainda para os estudantes uma abordagem desse tipo pode ter sido recebida como mais uma atividade escolar. Um fato ocorrido, durante a proposta de entrevista, foi que um dos estudantes disposto a responder a entrevista não a fez, solicitou que enviássemos o link do vídeo do sarau e justificou que seria mais coerente rever as imagens, pois não lembrava bem e estava preocupado em ser “traído por sua memória”, mostrando que, com as tecnologias visuais, a memória pode estar captada para ser retomada em vídeo quando duvidamos da capacidade e coerência da rememoração. As percepções dos entrevistados foram fundadas em suas memórias e, como as narrativas foram feitas sete (7) meses depois do Sarau, houve um tempo para reflexão, avaliação e revisão do que foi, do que poderia ter sido e do que pode ser no futuro Sarau, bem como para acessar as memórias e trazer aquilo que foi significativo para eles/elas. Entendemos que o passado nunca é igual. Ele é atualizado em cada momento que rememoramos, pois o presente transforma a memória (BENJAMIN, 2012). O aceite para responder sobre tais memórias do evento Sarau, como vai você? Foi a primeira declaração objetiva da entrevista (Figura 1).


Figura 1 - Gráfico do aceite.

Fonte: Acervo das Autoras.

A pergunta inicial foi se os entrevistados estavam dispostos a responder sobre as memórias do Sarau Virtual: Como vai você?. Mostrando o respeito inicial e o entendimento que a abordagem e a linguagem polida e gentil aproximam as pesquisadoras da ideia e da seriedade da pesquisa. Segundo (DUNKER; THEBAS, p. 25, 2018): "escutar com qualidade é algo que se aprende. Depende de alguma técnica e exercício, mas também, e principalmente, de abertura e experimentação". Nesse sentido, a ação foi pensar a escuta como modo de proporcionar momentos de atenção, alegria e interesse genuínos às palavras narradas pelo outro, que para além de suas memórias já elaboradas, resgata sentido reflexivo ao que viveu quando demandado a falar da experiência do Sarau virtual na entrevista por formulário. A escuta é essencial no processo de apropriação de conhecimentos, “[...] ao pesquisador cabe, além da sensibilidade e respeito ao ouvir, o compromisso de que aquilo que ele coleta do passado deve reverberar e fecundar o futuro [...]” (BOSI, 2012, p. 196). A entrevista é um modo de interação social entre o pesquisador e os sujeitos entrevistados, seguindo um rigor metodológico. É realizada para compreender, analisar, compor algum fenômeno ou evento. A entrevista foi um contato direto entre o pesquisador e os sujeitos entrevistados na tentativa de responder à questão: quais memórias o Sarau deixou aos estudantes e profissionais da escola e quais foram as contribuições para a formação desses sujeitos? Os dados foram sistematizados a partir das compreensões e das perspectivas das narrativas produzidas nas entrevistas. As respostas foram analisadas a partir do referencial teórico e de nossas subjetividades, pois compreendemos que se imbricam às nossas experiências enquanto professoras e pesquisadoras de arte e educação, “[...] bem mais que um documento unilinear, a narrativa da testemunha mostra a complexidade do real [...]” (BOSI, 2012, p. 197). Percebemos que os estudantes destacaram a importância do Sarau para reconexão com


as próprias famílias, que também participaram do evento. Foi emocionante rever os estudantes e poder estar com eles, mesmo de modo virtual, vivendo esse reencontro e essa partilha. Foi possível perceber a importância da Arte nessa fase de pandemia. A entrevista foi estruturada com cinco questões objetivas e quatro discursivas, foram elas: 1) Se é estudante ou professor/pedagogo; 2) Nome ou codinome – nome artístico; 3) Qual linguagem escolheu para se expressar? 4) Qual mensagem você deixou para as pessoas? 5) Com a experiência no Sarau, o que ficou na sua memória deixado pelas pessoas que participaram? 6) O Sarau foi importante para você, no momento de pandemia? Por quê? 7) Comente algo que não foi abordado nas perguntas anteriores. As primeiras questões objetivas consolidaram as informações que trataram de qual categoria o participante havia atuado no Sarau: estudante ou professor, já que esta proposta educativa em arte esteve aberta para toda comunidade escolar, família e convidados; sobre o endereço eletrônico para contato posterior, nome ou codinome do entrevistado, ao considerar que os participantes, se desejassem, pudessem criar um codinome para exposição de suas narrativas. Figura 2 - Convite no Google Forms.

Fonte: Acervo das Autoras.

Na apresentação do formulário (Figura 2), convidamos os estudantes e profissionais da escola e deixamos clara a intenção da entrevista: uma colaboração que tinha como desdobramento este artigo, que inclusive nos comprometemos compartilhar posteriormente com os participantes. Compreendemos a importância da concordância dos participantes em responder às questões e entendemos que uma das vantagens da entrevista é que "[...] permite a captação imediata e corrente da informação desejada, praticamente com qualquer tipo de informante e os mais variados tópicos [...]" (LÜDKE e ANDRÉ, 2015, p. 39). As questões subjetivas foram organizadas com a proposta de pensarem suas memórias sobre qual mensagem você deixou para as pessoas com sua apresentação? - a mensagem aqui


entendida como comunicação, linguagem, argumento e uma narrativa em histórias. Para Benjamin (2012) a história está sempre em processo de acabamento, em processo de transformação. Cada história é o ensejo para uma nova narrativa, que desencadeia outra e outra. A memória é ilimitada, bem como o imaginário, estão em constante refazer-se. Nesse sentido, a próxima questão destaca o que ficou guardado na memória sobre a experiência do Sarau e tivemos respostas que se dimensionaram narrativas que envolvem motivação, talentos potencializados e questões étnicas raciais. Correlacionadas à indagação anterior no viés das experiências (Figura 3) trazendo o porquê da importância do Sarau em momento de pandemia. Figura 3 – Cartaz divulgação/convite do Sarau.

Fonte: Acervo das Autoras.

As narrativas destacaram a necessidade de um tempo para a leveza, já que nós, estudantes e professores estamos vivendo momentos de insegurança e medo. As palavras rememoradas foram alegria, integração, aprendizado, saberes, valor à cultura, talentos, reencontro, tempo, distância, saudade, reencontro, desejo, fazer artístico, troca, emoção, criações, entusiasmo, sentimentos. A Arte é uma linguagem que pluraliza a vida, ela é “[...] expressão pessoal e como cultura, é um importante instrumento para a identificação cultura e o desenvolvimento individual” (BARBOSA, 2005, p. 99). Nas duas últimas questões, os sujeitos entrevistados revisitaram indagações relacionadas à contribuição para a afetividade e valorização do outro. Nas narrativas: “Pode contribuir para amenizar a ansiedade e os impactos negativos desse período de distanciamento social.” (Professora 1); “Momento de interação com os alunos e com os colegas.” (Professora 2); e “Ver o outro, saber do outro, compartilhar um momento manteve o elo tão importante entre nós da escola, professores e estudantes." (Professora 3). Percebemos o quanto o momento foi espaço de trocas, de compartilhar em imagens (quando abriram as câmeras e


compartilharam sua imagem), com as vozes que cantaram e encantaram poesias. Compreendemos que cada narrador extrai da experiência aquilo que lhe foi significativo, que a memória não linear e as recordações podem ser misturas de fatos que de alguma forma conectamos na construção de sentidos. Nesse vínculo com o passado, extrai-se a seiva para a formação de identidade (BOSI, 2012). Nas narrativas: “Acredito que em meio à pandemia, muitas pessoas não puderam expor seus trabalhos e suas criatividades, o Sarau foi importante para vivenciarmos isso.” (Estudante 1), e “Foi importante para nos rever e falar um pouco de nós por meio das linguagens da arte.” (Professora 4), além do destaque sobre a importância de se reconectar à escola e se sentirem valorizados por ela, pelos colegas e professores, trazem a importância da arte, do modo lúdico que foi pensada a organização do Sarau. Logo, A arte como aguçadora dos sentidos transmite significados que não podem ser transmitidos por meio de nenhum outro tipo de linguagem, tal como a discursiva ou a científica. Dentre as artes visuais, tendo a imagem como matéria-prima, tornam possível a visualização de quem somos, de onde estamos e de como nos sentimos (BARBOSA, 2005, p. 99).

Quanto aos comentários sobre o que não foi abordado na entrevista e que gostariam de relembrar, pontuaram sobre a importância do evento virtual, sobre o uso das tecnologias nesse momento de distanciamento social, em como essa proposta de aproximação, mesmo que virtualmente, trouxe vários benefícios para a saúde mental, destacamos a narrativa da Professora 1: “Pensar em momentos de lazer e integração é uma forma muito eficiente para amenizar a ansiedade e alguns dos impactos negativos que estamos sofrendo.”. A narrativa também vai ao encontro de que práticas educativas como o Sarau trazem momentos de bemestar, um frescor em momento tão conturbado, está evidente que as tecnologias digitais vêm adentrando à educação e, “[...] torna-se necessário não só aprender a ensiná-las, inserindo-as na produção cultural dos alunos, mas também educar para a recepção, o entendimento e a construção de valores das artes tecnologizadas, formando um público consciente” (BARBOSA, 2005, p. 111). Ainda na narrativa da Professora 1: “Sempre valerá quando o estudante puder protagonizar os momentos. Acho que falta bastante isso na escola.”. Essa ponderação pertinente analisa o passado das práticas na escola, antes da pandemia, e a intervenção do sarau virtual no contexto atual, fala da singularidade e significância da participação dos estudantes e dos professores. As narrativas dos participantes corroboram para concluir que uma simples ação de reunir sujeitos, mesmo distantes fisicamente, pode produzir memórias individuais e coletivas; vivências poéticas, tanto para a pluralidade do trabalho docente em arte quanto para a


aprendizagem em arte na formação integral do estudante. Além da integração e conhecimento dos pares docentes, os colegas que compartilhamos os dias na escola, já que: “[...] A arte na educação, como expressão pessoal e como cultura, é um importante instrumento para a identificação cultural e o desenvolvimento individual” (BARBOSA, 2005, p. 99). A Professora 4, conclui de modo a resumir as impressões e sensações: O Sarau não me fez só ver o que vi, mas me deixou lembranças e mostrou que realmente vem com o intuito de ajudar a mais e mais pessoas a seguirem pelo que querem. Foi muito importante estar presente e perceber que uma simples proposta pode aproximar tanto os estudantes da criação e apreciação das produções dos colegas. Foi muito importante perceber o envolvimento dos colegas e das famílias dos estudantes (ENTREVISTA, 2021).

Destacar a simplicidade de algumas apresentações artísticas do Sarau com título: Como vai você? é validá-lo como espaço de compartilhamento, de fala e escuta atenta aos estudantes, professores/as no momento de distanciamento social, em que estamos com as emoções expostas às incertezas do vírus, do contexto político brasileiro, com lento avanço na vacinação em massa, da polarização política que endurece os discursos e inviabiliza os diálogos e negação da ciência. Em um momento estritamente delicado na história da educação, com retorno às aulas presenciais na cidade de Vitória – ES. Nesse momento, em que de modo simples, o Sarau surge como proposta para acolhimento que por meio da Arte torna-se um diálogo bonito, respeitoso e hospitaleiro, pois: Uma das formas de acolher a nossa vulnerabilidade e compartilhá-la com outro é experimentá-la como insuficiência do saber. Isso se mostra, na prática do diálogo, por meio da alternância do silêncio e do vazio, da fala e da escuta, do consenso e do dissenso, da aproximação e do distanciamento do outro (DUNKER e THEBAS, 2018, p. 99).

Nessa vertente, entre o calar e ouvir, entre silêncios e distanciamentos, são aspectos das relações que mediam acolhimento às narrativas dos participantes entrevistados, que ao se lembrarem da experiência do Sarau que foram se constituindo enquanto aconteciam. Entendemos que as memórias perpassam a afetividade e as interlocuções foram estabelecidas com o contexto pandêmico, por meio das linguagens artísticas, tornando o Sarau um espaço de expressão de temas diversos sem as censuras de um discurso, mas sim com a poética que o clima permitia. O fato é que, rememorar fatos do passado, “[...] não como qualquer coisa de casual e biográfica, mas sim de necessário e social” (BENJAMIN, 2013, p. 69). Algo que nos constitui no coletivo carregado de sentido e sensações com o outro e com as coisas que compõem a memória. Cada vez que nos dispomos a lembrar e narrar, estamos narrando uma parte da história - nossa e do outro - com detalhes daquele tempo retomados, mas que têm o sentido do agora. Isso nos dá a dimensão do que fomos capazes de transformar em nós e nos outros, com uma ação educativa artística simples, que deslocou a escola e com a potência das


linguagens visual, digital, musical nos fez sentirmos presentes, pertencentes e imersos naquele momento do Sarau. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Sarau virtual: como vai você? Foi um momento de muitas trocas. Buscamos a diversificação das produções, contando com a participação de vários estudantes ao longo das atividades, que incluíam reinterpretação de textos, através de fotografias e desenhos, produção de textos, roteiros, vídeos e diversos outros formatos possíveis para a publicação. A experiência com o Sarau virtual, ação desenvolvida no projeto interdisciplinar da área de linguagens em 2020, no Colégio Estadual do Espírito Santo, uma escola de Ensino Médio, na cidade de Vitória/ES. A problematização se dimensionou ao pensar quais são as memórias que o Sarau deixou aos estudantes e profissionais da escola e quais foram as contribuições para a formação desses sujeitos. A produção dos dados, a partir das entrevistas, apontam para a ampliação do acervo de memórias dos participantes, de modo singular e coletivo, em que eles se sentiram acolhidos e estimulados a compartilhar suas produções artísticas. As narrativas apresentam fragmentos de suas memórias afetivas daquele evento. Criamos um ambiente acolhedor, receptivo, alegre e sem igual para um evento nunca imaginado por nós e que, segundo relatos dos participantes, foi surpreendente e inesquecível. Apresentaram em suas narrativas a importância dessa ação artística coletiva e plural, outros como espaço de expressão de linguagens e de apreciação. Trazendo assim, cada um o entusiasmo com o encontro, mesmo que por meio digital e surpresos pela adesão dos participantes. Concluímos que foi uma ação que se produziu no coletivo, nas trocas o diálogo, a poética e a memória. Cada vez que descrevemos uma experiência e a partilhamos com outros, a narrativa fará parte de outras, pois cada sujeito atualiza o que escuta ou o que lê. Uma história dessa pandemia tão devastadora, que esperamos ansiosos por seu fim, temos a ciência que ficarão algumas boas memórias de resistência, postura formativa, posicionamento educacional por meio da pluralidade da Arte, apesar de todas as perdas reais e simbólicas desde o início da pandemia. REFERÊNCIAS BARBOSA, A. M. Dilemas da Arte/educação como mediação cultural em namoro com as tecnologias. BARBOSA, A. M. In: Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2005. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.


______. BENJAMIN, W. Rua de mão única: infância berlinense. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. BOSI, Ecléa. In: BRUCK, Mozahir Salomão. Entrevista: Ecléa Bosi. In: Dispositiva. Revista do programa de pós-graduação em comunicação social da faculdade de comunicação e artes da PUC, Minas. v.1, n. 2, 2012. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/dispositiva/article/view/4301>. Acesso em 13 de jul. de 2020. DUNKER C.I.L.; THEBAS, C. O palhaço e o psicanalista: como escutar pessoas e transformar vidas. São Paulo: Planeta, 2018. LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 2ª edição. Rio de Janeiro: EPU, 2015.

NOTAS DE FIM 1.

Professora Especialista em Didática no Ensino da Arte (FIJ); Mediação EAD (UFES) e Licenciada em Educação Artística - Arte Plásticas/UFES. Secretaria de Educação do Espírito Santo (SEDU) e Secretaria Municipal de Educação (SEME) da Prefeitura de Vitória (PMV).

2.

Professora Doutora do Centro de Educação no Departamento de Linguagens, Cultura e Educação (DLCE), na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduada em Educação Artística (UFES) e Pedagogia (SERRAVIX). Participa dos grupos de pesquisa: Imagens, Tecnologias e Infâncias (GepitiUFES) e do Núcleo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Experiências do Sensível (NUPEEES-UFSB). Autora do livro: Infância, Arte e Cultura: experiências em (com)textos educativos, 2015 e do conto Quita e Kristal: aventuras em uma cidade.

3.

Aplicativo de gerenciamento de pesquisas lançado pelo Google. Os usuários podem usar o Google Forms para pesquisar e coletar informações sobre outras pessoas e também podem ser usados para questionários e formulários de registro.

4.

Evento. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1nTlfbMwgJAYHbRUQYBOyhtkO6KiABy9_/view?usp=drivesdk>. Acesso em 8 de jan. de 2020.

5.

Composição de Antônio Marcos/Mário Marcos, CBS gravadora, 4:03” 1972. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/roberto-carlos /48571/>. Acesso em 20 de abr. 2021.


O LUGAR DO DESENHO NAS AULAS DE ARTES VISUAIS Ana Tereza Cerqueira Carvalho RESUMO No presente texto considera-se como a utilização do Desenho de forma constante e sistemática no ensino das Artes Visuais, pode ampliar a leitura crítica do educando sobre o referencial imagético estudado, favorecendo relações e ressignificações com a cultura material e comportamental. Considerando aqui a promoção da linguagem do desenho não como prática mecânica de reprodução mimética do mundo mas enquanto expressão reflexiva do mesmo, sem prescindir em tais práticas de uma abordagem que considere e expanda a capacidade do educando de se perceber enquanto ser dotado de uma criatividade em desenvolvimento, e que precisa ser expandida através de exercícios contínuos e conscientes. Evidenciaremos algumas questões relacionadas ao ensino da arte, vinculando pressupostos da Lei de Diretrizes e Bases – LDB, a princípios norteadores da pedagogia histórico crítica e da abordagem triangular através de uma leitura reflexiva. Palavras-chave: Desenho, Ensino das Artes Visuais, Produção criativa crítica e colaborativa.

ABSTRACT In this text, it is considered how the constant and systematic use of Drawing in the teaching of Visual Arts can broaden the student's critical reading of the studied imagery framework, favoring relationships and resignifications with material and behavioral culture. Considering here the promotion of the language of drawing not as a mechanical practice of mimetic reproduction of the world, but as a reflective expression of it, without dispensing with such practices an approach that considers and expands the student's capacity to perceive himself as being endowed with creativity in development, and which needs to be expanded through continuous and conscious exercises. We will highlight some issues related to the teaching of art, linking assumptions of the Law of Guidelines and Bases – LDB, to guiding principles of critical historical pedagogy and the triangular approach through a reflective reading. Keywords: Drawing, Visual Arts Teaching, Critical and collaborative creative production.

INTRODUÇÃO Ao ponderar sobre o ensino das artes no Brasil, numa perspectiva histórica, percebemos que esse é um campo recente e ainda em formação. As várias denominações que assumiu ao longo do tempo conferem percepções que ainda hoje atravessam o cotidiano das escolas como a denominação de Educação Artística, que em geral, se traduz em práticas terapêuticas, acríticas e uniformizantes, onde o objetivo em geral é a neutralização dos educandos em atividades que ou não são diretivas (a famosa folha em branco para fazer o que quiser ou ser livre) ou quando são diretivas pretendem “acalmar” os alunos com releituras de obras sem considerar a capacitação dos alunos para executá-las. Sem a pretensão de realizar uma profunda investigação ou reflexão sobre tais direcionamentos, o intuito desse texto é discutir como alguns pressupostos teóricos e metodológicos da pedagogia histórico-crítica fundamentada na obra de Dermeval Saviani podem contribuir para que o estudo do fenômeno estético possa estar em consonância com a formação plena e libertadora do educando, atentando para prerrogativas estabelecidas na LDB – Lei de Diretrizes e Bases. Inicialmente para categorizar o componente Artes – em particular Artes Visuais-, e considerarmos a eleição do desenho como uma prática a ser priorizada por tal componente, apoiaremos nossas percepções na obra de Ana Mae Barbosa e de Vygotski, haja vista tal manifestação gráfica permear uma grande parte dos registros de Arte da humanidade.


Conceituaremos aqui o desenho como um campo do conhecimento, segundo o que preconiza Luiz Vidal Negreiro Gomes e Nigel Cross, que ressaltam como o estudo dos fundamentos compositivos do desenho auxiliam no desenvolvimento das leituras que o indivíduo realiza sobre o referencial imagético que participa em suas práticas cotidianas sócio-culturais. Vale ressaltar que não estamos defendendo aqui o ensino acadêmico e sistemático do desenho nas escolas, enquanto uma técnica apegada a preciosismos técnicos e esvaziada de sentido, de modo puramente mecânico (embora só uma prática minimamente constante pode dotar o aluno de domínio autônomo da linguagem), mas como um meio de expressão que é possível ao educando possuir minimamente para veicular ideias, representações de mundo, e que facilita seu entendimento em outras linguagens e em outros contextos além do escolar. Ao estabelecer uma relação com outros componentes escolares, poderíamos entender que assim como o professor de matemática não precisa ensinar cálculos integrais para que os educandos aprendam as operações básicas matemáticas, mas deve constantemente trabalhar a noção de agrupamento para uma série de relações cognoscíveis não só para a domínio da aritmética como para a vida do aluno. Algumas noções inerentes ao domínio do desenho são imprescindíveis ao ensino das Artes como os direcionamentos, tensões e expressividade da linha, as relações da forma e suas propriedades como proporção, simetria, harmonia, relações, cor e sombra, ajudam na compreensão identitária de toda e qualquer manifestação artística. Atentarmos assim para a importância do desenvolvimento da instância criadora do ser humano através da utilização do desenho como uma linguagem visual e meio de representação imaginária e expressiva, compreendida enquanto importante instância do conhecimento humano e potencializador da participação ativa sobre o mundo material e comportamental do educando enquanto leitor consciente e crítico tanto de obras artísticas quanto do mundo. 1. As correspondências entre o ensino das Artes Visuais e do desenho no Brasil Ao traçar um percurso do ensino das Artes no Brasil vê-se igualmente delineado as marcas do ensino do desenho como um componente constante. Entretanto, a finalidade do ensino de tal modalidade da Arte nem sempre teve por finalidade atender ao objetivo apontado por Gomes (1996, p.14): “compreensão de aspectos da cultura material e, em particular da influência desta sobre a cultura das ideias e a do comportamento de um povo”. Ainda em Gomes (1996) encontra-se a trajetória do crescente desvirtuamento da compreensão do termo desenho enquanto campo do conhecimento, haja vista, a prática sistematizada nas instituições de ensino de dar ênfase apenas ao desenho enquanto reprodução mimética e/ou geométrica, pouco utilizando as possibilidades do desenho enquanto as conotações de: plano, ideia, intento, elaboração. Tal cenário é compreensível diante da desarticulação do próprio sistema de ensino


brasileiro, sobre o qual foram elencados três grandes problemas por Saviani (2013) que são: 1- a ausência de um sistema de educação realmente estruturado em âmbito nacional; 2prática incorporada a pressupostos teóricos, o que não deixa de ser reflexo de uma estrutura organizacional incipiente; 3- descontinuidade das iniciativas educacionais o que repercute nos objetivos que se pretende alcançar. Assim sendo, no âmbito geral, não encontramos uma divergência desta situação em se tratando do ensino das Artes, cuja adoção de sistemas importados nem sempre priorizaram atender aos objetivos do ensino de tal componente em si. Estando mais em conformidade com políticas externas, conforme atesta Barbosa (2016, p. 673): “O ensino da Arte no Brasil, desde seu início oficial, é vermelho, azul e branco. O sistema brasileiro de ensino da Arte tem seguido sucessivamente os modelos francês, inglês e norte-americano, quase sempre por imposição do próprio governo”.

Em Barbosa (2016) e (2019) vê-se retratado o ensino institucional da Arte no Brasil, inaugurado em 1816 com a criação da Escola de Ciências, Artes e Ofícios por decreto de D. João VI, cujo modelo viabilizado pela Missão Francesa sob o comando de Le Breton, tinha inspiração popular do modelo francês da École des Beaux-Arts, e pretendia unir Belas Artes e Indústria, o que acabou não acontecendo, como se percebe na denominação elitista da Escola, enquanto Academia Imperial das Belas-Artes, quando passa realmente a funcionar em 1826. A restrição do ensino do desenho para as classes dominantes na época do Império, se amplia na República, entretanto o ensino amplo do desenho passa a ser desvinculado de seus aspectos culturais, para através do treino de elementos geométricos formar mão de obra capacitada para produção industrial da população. “Podemos considerar essa espécie de ensino como a semente de uma educação para o design que não vingou, não se desenvolveu no mesmo compasso do desenvolvimento industrial do país, apenas sobreviveu. Uma ditadura, o Estado Novo, atrapalhou o progresso do Ensino do Desenho e da Arte nas Escolas (1937 a 1945)”. BARBOSA (2019, p. 676).

No período marcado pela democratização do Estado Novo, Barbosa (2016) e (2019), atenta para um ensino não só nas escolas formais quanto informais marcado pela experimentação de várias técnicas artísticas, levando em consideração o desenvolvimento do educando. Uma perspectiva que foi tolhida ou extirpada com a ditadura militar de 1964 até 1968-1972, quando começavam a ter espaço alguns projetos com base na teoria fenomenológica da percepção. Assim, pode-se a partir de Barbosa (2016), entender que a falta de uma sistematização continuada no ensino das artes não é decorrente de ausência de atividades reflexivas e experiências contextualizadas e colaborativas por parte dos profissionais de Arte brasileiros (embora destaca-se a dificuldade nos direcionamentos formativos do mesmo) mas de uma descontinuidade política na elaboração dos planos diretivos. “Apesar da equivocada política educacional do governo, que opta sempre por mimetizar os sistemas educacionais que não dão certo na Europa e Estados Unidos,


temos experiências de alta qualidade, tanto na escola pública como na escola privada, e principalmente nas ONG que se ocupam dos excluídos, graças a iniciativas pessoais de diretores, professores e mesmo artistas”.

As repercussões de tais políticas são pintadas no cenário atual por Marques (2014) onde revela-se que a vivência ou fruição do adulto médio frequentador de arte no Brasil pouco tem a ver com a prática escolar. Embora apesar de todas as contradições, este mesmo tenha ou deveria ter tido contato com tal componente por uma quantidade considerável de anos que o permitisse no mínimo reconhecer-se apreciador de Arte inclusive nas manifestações que permeiam seu cotidiano no que tange a música, filmes ou mesmo nas representações da indústria cultural. Embora Marques pondere sobre o papel de outras instâncias na formação da relação das pessoas com a arte em se tratando do papel do ensino de arte na escola, faz um importante questionamento. Marques (2014, p. 24): “Se o ensino de Arte que tivemos em nossa escolarização formal não foi significativo, se passou em branco ou como uma “atividade de segundo escalão”, como vamos exigir hoje que a educação em/por da Arte que as escolas estão propondo às novas gerações seja significativa, presente, articulada, crítica?”

Notadamente, na história do ensino brasileira das Artes, uma considerável diretiva foi apontada pela abordagem ou proposta curricular no sentido de considerar a importância do estudo da imagem, a contextualização histórica da Arte como aponta Barbosa (2019), uma das principais protagonistas desta proposta: “No Brasil, a ideia de antropofagia cultural nos fez analisar vários sistemas e resistematizar o nosso que é baseado não em disciplinas, mas em ações; fazer-ler contextualizar e tomou o nome de Abordagem Triangular”.

E desta orientação pode-se compreender que o ensino da arte compreende muito mais do que uma educação pelo desenho, o que atenta-se aqui é para que haja um reconhecimento da necessidade premente de se utilizar esta linguagem de modo eficiente, sistematizado como possibilidade para o aluno desenvolver sua capacidade expressiva de forma autônoma, crítica e colaborativa. Entretanto não se pode relegar ao espontaneísmo ao ato de fazer arte no contexto escolar, pois qualquer forma é muito mais do que uma marca no papel, como bem nos lembra Ostrower (1977, p. 17) na categorização do processo criador do humano, encontramos a forma como uma necessidade premente de compreensão e transformação da vida: “impelido como ser consciente, a compreender a vida, o homem é impelido a formar”. Representar, em arte significa muito mais do que só chegar a um resultado plástico, uma marca ou um registro gráfico está atrelado a concepções, a sentimentos e a determinações sócio-histórico-culturais. O PAPEL DA CRIATIVIDADE NA FORMAÇÃO HUMANA E SUA DEFINIÇÃO NO


ENSINO DAS ARTES A partir de entrevistas realizadas com milhares de professores de artes de escolas de São Paulo, Barbosa (1983) concluiu que para aqueles a criatividade era um objetivo de suma importância. Embora a definição de tal conceito, estivesse para tais profissionais apoiada no senso comum: “o conceito de criatividade era espontaneidade, autoliberação e originalidade” (Barbosa. 1983, p.171). Uma contradição compreensível quando se constata que embora os índices de formação superior dos professores tenham avançado bastante, muitos profissionais do ensino brasileiro não atuam na sua área de formação. Especificamente em Artes, cerca da metade dos professores não têm formação adequada, um percentual com pouca variação em todas as modalidades de ensino, segundo os gráficos elaborados pelo último censo de 2019 da ong Todos pela educaçãoi. Nos PCNS Artes (1997, p.19) é notado a importância do desenvolvimento da atividade criadora nas Artes paralelo a outros objetivos: “a arte ensina que é possível transformar continuamente a existência, que é preciso mudar referências a cada momento, ser flexível. Isso quer dizer que criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental para aprender”.

Inerente ao comportamento humano, a capacidade criadora é regida por dois tipos de produção, a reprodutiva e a combinatória ou criadora, conforme preconiza Vygostkii (2018), que também define a capacidade de criar como a forma que o homem compreende e transforma o mundo. Assim a imaginação depende do repertório imagético das pessoas e das suas necessidades prementes e está também condicionada ao arcabouço técnico a que a pessoa está sujeita e que lhe antecede. Vygostkii (2018, p 43): “a atividade da imaginação depende da experiência, das necessidades e dos interesses sob cuja forma essas necessidades se expressam. É fácil compreender que essa atividade depende também da capacidade combinatória e do seu exercício, isto é, da encarnação material dos frutos da imaginação; que depende, ainda, do conhecimento técnico e das tradições, ou seja, dos modelos de criação que influenciam a pessoa”.

Ainda em Vygotskii (2018) temos a amplitude da atividade criadora do homem, presente em todas as instâncias do conhecimento seja de caráter científico, artístico, empírico. E sua categorização em 4 leis que circunstanciam sua natureza a partir das experiências reais, que por sua vez devem ser ricas, carregadas de imagens emocionais e de construções fantasiosas e inovativas da realidade. Assim sendo, a potencialização desta capacidade humana é feita através de estímulos, e a transformação contínua do saber precisa de um ambiente desafiador, não podem ser feitos aleatoriamente sem pensarmos em uma socialização do saber. O que considera Vygotskii (2018, p. 44) ao atentar para as condições de acessibilidade como determinantes para as desigualdades sociais:


“Dessa maneira também se explica a distribuição desproporcional de inovadores e de pessoas criadoras em diferentes classes. As classes privilegiadas detêm um percentual incomensuravelmente maior de inventores na área da ciência, da técnica e das artes porque exatamente nessas classes estão presentes todas as condições necessárias para a criação”.

Uma prerrogativa que também encontramos na definição de produção social do saber da Pedagogia Histórico Crítica (PHC) em Saviani (2013): “falar na socialização de um saber supõe um saber existente, mas isso não significa que o saber existente seja estático, acabado. É um saber suscetível de transformação, mas sua própria transformação depende de alguma forma de domínio deste saber pelos agentes sociais. Portanto, o acesso a ele impõe-se”.

Esta reinvidicação pode ser percebida na definição da educação por Charlot (2013, p. 170): “é um direito antropológico”. Haja visto que o significado das coisas não pode ser transmitido tem que ser experimentado para possuir sentido, para formar um conceito. E que tais experiências na escola devam ter o papel de alargar esse viver propondo experiências significantes, desafiadoras, complexas. Na educação, a Arte é listada por Vygotskii (2018) enquanto primordial na formação dos pseudoconceitos, através dos exercícios de abstração e análise, o que a habilita a ser utilizada enquanto ferramenta na tomada da consciência dos conceitos espontâneos e científicos. Numa categorização sobre o papel do ensino das Artes na escola da sociedade contemporânea Charlot (2013) reconhece a importância do mesmo partir dos direcionamento apontados pela abordagem triangular, ou seja, com acesso ao patrimônio artístico da humanidade, que lhe permita não só apreciar como discutir, contextualizar e também se mobilizar enquanto praticante de arte. Desvinculando assim tal ensino de modelos apoiados de práticas espontaneístas e vazias, sem mobilização social do educando. “A espontaneidade e a criatividade não são pontos de partida, ao contrário do que pensa o senso comum. São efeitos de uma educação que proporciona vários modelos de atividade, a serem adaptados, criticados, misturados, combinados, superados. O que faz um texto, um objeto ou um evento ser arte é o olhar que o constitui como tal. Aceitemos o princípio contemporâneo. Mas o olhar se educa”. (CHARLOT. 2013, p. 229)

Na concepção de abordagem triangular, atividades contextualizadas no ensino das artes propiciam ao educando conhecer o que está observando. E uma boa contextualização deve ir além da biografia do autor da obra ou de uma conexão com algum movimento artístico, deve permitir ao aluno compreender uma produção artística considerando o contexto histórico material em que ela foi produzida, traçando paralelos com a sua compreensão do mundo atual. O que coaduna com a expressão do materialismo histórico da pedagogia histórico-crítica. Definida em Saviani (2013, p. 76) como: “a compreensão da história a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições materiais da existência humana”. Interessa ressaltar que toda ação educativa não depende única e exclusivamente da ação de mediação da figura do educador mas está inserida numa contexto sociocultural, cuja realidade se impõe e tem seu impacto determinante sobre a prática pedagógica. E esta


conforme atenta Saviani (2013), deve estar ciente das determinações sócio-históricas que a cultura carrega sem entretanto perder de vista o potencial da iniciativa histórica. Ao proporcionar a apreciação da produção dos colegas, da arte e do patrimônio artístico local, de obras de Arte de diferentes artistas e épocas, o educador ressalta a relevância e valor histórico que cada um ostenta. Com efeito, cria oportunidade para o educando falar o que vê e o que sente, despertando-lhe a curiosidade, sensibilidade e capacidade de interpretação. Com o fazer artístico, é proporcionada uma vivência em que se aplica na prática os conceitos estéticos e poéticos abordados com a leitura, apreciação e contextualização, de modo que o processo de ensino e aprendizagem em artes se torne abrangente e significativo, estimulando a autonomia da criança na apropriação e criação artística. Partindo dessa premissa, a educação do olhar fazendo uso do desenho enquanto prática precisa estar atenta a uma abordagem que promova a atividade criadora de forma crítica e autônoma. A IMPORTÂNCIA DO DESENHO PARA O DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE CRIADORA Tendo aqui exposto que a atividade imaginativa é inerente ao ser humano, estimulada a partir do contato com o patrimônio da humanidade, ressignificada e recriada a partir de mediações direcionadas, estimuladoras e contextualizadas. Reitera-se a importância do ambiente escolar na produção ou socialização desse saber, mediado nas Artes pela abordagem triangular de Ana Mae Barbosa, intenta-se adiante perceber a relevância do desenho enquanto prática efetiva nas aulas de arte e se a mesma coaduna com o ensino do ponto de vista da Pedagogia Histórico Crítica. Encontra-se em Gomes (1996) o duplo sentido que a palavra desenho carrega, enquanto marca, impressão, registro mas também intento, plano, ideia, memória. Estando os dois vinculados ao conceito de Desenhística compartilhado e definido também por Cross (2003, p. 40) como: A. B. C. D.

solução de problemas mal-definidos; adoção de estratégias focadas na solução; emprego de pensamento de abdutivo/produtivo/aposicional; uso de meios de representação e expressão não-verbais, gráfico/espaciais.

Ambos os autores determinam que o desenvolvimento desta habilidade prescinde de um ensino sistematizado do desenho, e não só para os Desenhadores (aqueles profissionais que se utilizam do desenho de modo direto, como artistas, arquitetos, engenheiros, artesãos, etc) mas para toda a sociedade de modo universal. Como aponta Gomes (1996, pág. 102): “Todo o ser humano é um complexo vivo de matéria, pensamentos e ações; a Educação, ou seja, os sistemas de capacitação formal de indivíduos para que possam agir consciente e efetivamente sobre as novas situações de vida, deve ser baseada e dirigida para as características intrínsecas do ser humano; portanto, a Educação deve ser baseada em áreas de conhecimento dedicadas à compreensão da Natureza (as Ciências), do Pensamento (as Humanidades) e das habilidades plasmativas (os Desenhos) dos seres humanos”.


Encontramos igual direcionamento apontado em Vygotskii (2018) quando atenta para que embora o ser humano em seu contexto sócio-cultural alcance estágios de significativo desenvolvimento nem sempre o mesmo se estende a sua capacidade de transpor ou explicar de forma verbal ou imagética o que vê e percebe em termos de símbolos verbais e não verbais. Esta é uma habilidade que precisa ser ensinada, estimulada haja vista não ser natural, embora a linguagem do desenho seja comum a maior parte das crianças no início da idade escolar, enquanto atividade extremamente prazerosa, reconhece-se quatro fases do desenho (esquemático, descritivo, realista e plástico) que para serem alcançadas dependem, segundo Vygotskii, de ambiente com exposição contínua e profícua de imagens além de uma prática constante do desenho enquanto força motriz para desenvolver a atividade criadora. Para comprovar a possibilidade de se avançar nas fases do desenho, Vygotskii (2018, p.115) faz uso das pesquisas de Kerschensteiner para afirmar que quando há estímulo e continuidade do estudo do desenho o que se percebe é um amadurecimento da atividade criadora: “Essa criação infantil não é mais a mesma criação espontânea e em grande escala, a que surge de modo autônomo; é a criação ligada à habilidade, aos hábitos conhecidos de criação, ao domínio do material”.

Do que pode-se concluir que a encarnação de imagens é a forma de apropriação e ampliação do repertório imagético cultural e que se constitui enquanto ensinamento clássico ii sob a perspectiva da Pedagogia Histórico Crítica. De modo sistematizado e atendendo sobretudo a um conteúdo pré-estabelecido e de modo que coaduna com o mesmo, o ensino do desenho pode promover a autoconfiança do educando sobre sua dimensão criadora servindo assim para atender aos interesses do que Saviani (2013. p, 121) denomina de aluno concreto: “Mostro o aluno concreto e apresento o concreto como a síntese de múltiplas determinações definidas enquanto relações sociais. Portanto, o que é do interesse desse aluno concreto diz respeito às condições em que se encontra e que ele não escolheu… A sua criatividade via expressar-se na forma como ela assimila essas relações e as transforma”.

Tal conceituação é determinante para entendermos que a capacidade criativa do educando não pode advir de uma gratuidade espontânea, mas ser fruto de uma prática coordenada, sistematizada de ensino, reforçamos aqui ainda que tal conteúdo seja direcionado de modo a se constituir enquanto prática libertadora do educando no que tange aos condicionamentos sociais que herdou sem perder de vista as especificidades dos conteúdos próprios de cada componente curricular. CONSIDERAÇÕES FINAIS A necessidade e importância do ensino das artes no contexto educacional aguça a aquisição de conhecimentos distintos e específicos, fundamentais para além do desenvolvimento cognitivo, motor e perceptivo do educando, permite-lhe ampliar seu


repertório imagético cultural, e a depender da mediação com que for discutido pode se constituir enquanto exercício para a leitura crítica do mundo, respeito a diversidade e construção coletiva. Na descoberta das potencialidades artísticas e alargamento da atitude criadora possibilita-se desenvolver habilidades e competências particulares para lidar com formas, cores, leitura e interpretação de imagens, entre outros aspectos e, com efeito, ativa e apura sua sensibilidade estética. A aproximação com o patrimônio artístico da humanidade proporciona a apropriação de novos saberes, ao estimular o interesse por uma leitura sensível do ambiente social, potencializa uma melhor compreensão de sua cultura e oferece a possibilidade de comunicação por meio de uma linguagem não-verbal. O que permite desenvolver a sensibilidade do educando bem como sua percepção e capacidade criadora, experimentando a diversidade de formas e modos de criações, tanto na apreciação quanto na realização de formas artísticas. Para a concretude dessas formas, o desenho desempenha um papel fundamental junto ao desenvolvimento cognitivo do educando, justamente por externalizar o estado em que este se encontra e, consequentemente, permitir a avaliação das dificuldades ou avanços experimentados por cada indivíduo. O desenho, nesse sentido, é muito mais do que a resultante de uma tentativa de representação de algo concreto ou imaginário, mas se impõe como um forte indicador das particularidades que envolvem o amadurecimento psicomotor do indivíduo e de suas potencialidades. O desenho constitui uma linguagem essencial e um ensinamento clássico do ponto de vista da pedagogia histórico crítica, além de ser possível de ser aplicado no contexto do sistema público de ensino, dado seu baixo custo e a diversidade de elementos que podem ser utilizados para sua concretização. É uma importante ferramenta para mobilizar os educandos com práticas que possam ser realizadas com êxito, de modo que eles possam perceber o seu grau de evolução de modo consciente, entendendo o seu percurso individual mas também através de atividades coletivas e colaborativas poder ampliar suas habilidades e percepções, é não somente benéfico do ponto de vista de desenvolvimento de autoconfiança e capacidade criativa do educando como o prepara para entender melhor as relações estabelecidas a partir da cultura material tanto estética quanto comportamental. Permitindo estimular o aluno a realizar produções que lhe sejam significativas, dado a possibilidade de articular conhecimentos teóricos com experiências da vida cotidiana, de modo que ele seja levado a reconhecer seu potencial de atuar sobre a realidade e sua competência de transformação da mesma. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estud. av., São Paulo , v. 3, n. 7, p. 170-182. Dec. 1989. ____________________. Ensino do Desenho e da Arte no Brasil. Revista NAVA - Revista do Programa de PósGraduação em Artes, Cultura e Linguagens Instituto de Artes e Design: UFJF. v. 7 n. 1 e 2 agosto: 2018 e 2019 p. 28-51. 2019


____________________. Síntese da Arte-Educação no Brasil: duzentos anos em seis mil palavras. Revista Polyphonía, 27(2), 19–39. 2016. https://doi.org/10.5216/rp.v27i2.44693 Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1997. 130p CHARLOT, BERNARD. Da relação com o saber às práticas educativas. 1 ed. - São Paulo: Cortez, 2013. (Coleção docência em formação: saberes pedagógicos) ISBN: 978-85-249- 2050-9 CROSS, Nigel. Desenhante: pensador do desenho. Org. e Tradução de Ligia Medeiros. Santa Maria: sCHDs Editora, 2004. GOMES, Luiz Vidal Negreiros. Desenhismo. 2. ed Santa Maria, RS: Universidade Federal de Santa Maria, 1996. 119 p MARQUES, Isabel. BRASIL, Fábio. Arte em questões. 2 ed. - São Paulo: Cortez, 2014. MEDEIROS, Ligia Maria Sampaio de. Desenhística: a ciência da arte de projetar desenhando. Santa Maria: sCHDs Editora,. 2004. SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política. - 32. ed. - Campinas, SP: Autores Associados, 1999. - (Coleção polêmicas dos nosso tempo; v.5) _______________. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11.ed. Rev – Campinas, SP: Autores Associados, 2013 VYGOSTKII, Lev Semenovitch. Pensamento e Linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica José Cipolla Neto. – 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. __________________________. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico livro para professores, tradução e revisão técnica Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. – 1 ed – São Paulo-SP: Expressão Popular, 2018.

NOTA DE FIM 1.

Ana Tereza Carvalho Cerqueira, mestre em desenho, cultura e interatividade pela Uefs (2007-2009).

2.

Disponível nas páginas 98 a 103: https://todospelaeducacao.org.br/noticias/anuario-2020-todos-pelaeducacao e-editora-moderna-lancam-publicacao-com-dados-fundamentais-para-monitorar-o-ensinobrasileiro/ ii“Clássico é aquilo que resistiu ao tempo, logo sua validade extrapola o momento em que ele foi proposto”. (SAVIANI. 2013, p. 87).


QUANDO SE AFASTA A PRESENÇA: reinvenções constantes do educador em teatro Kauê Rocha1 RESUMO

O presente artigo traz as reflexões advindas de uma pesquisa de Mestrado em Artes, realizada pela UFMG e reestruturada após a pandemia de covid-19, que obrigou os pesquisadores a suspenderem seus trabalhos de campo presenciais. O trabalho propõe uma discussão a partir de aspectos como as constantes reinvenções pelas quais passam os educadores em Teatro, a importância da produção e compartilhamento de materiais de registro das aulas e uma formação docente que inclua a importância da capacidade de improvisação do professor como elemento necessário para uma aula onde haja a chance de atingir os objetivos propostos. Tendo como principais referenciais teóricos os trabalhos de Carmela Soares (2010), no que concerne ao jogo no espaço escolar, Mariana Lima e Muniz e Keith Sawyer (2017), à respeito do professor-improvisador, e Maurice Tardif (2014), que traz apontamentos sobre a formação docente, o artigo delineia suas considerações em vista de tecer alguns olhares possíveis sobre a criação, a pesquisa e a possibilidade de feitura do teatro em espaços de ensino no momento específico em que vivemos, com o isolamento social como medida imprescindível de segurança, persistindo na ideia de que é possível seguir pesquisando mesmo quando se afasta a presença. Palavras-Chave: Teatro-Educação; experiência docente; materiais de registro de aulas; improvisação docente.

ABSTRACT

This article brings the reflections arising from a Master of Arts research, carried out by UFMG and restructured after the covid-19 pandemic, which forced researchers to suspend their in-person fieldwork. Thus, the work proposes a discussion based on aspects such as the constant reinventions that theater educators go through, the importance of producing and sharing class registration materials, and teacher training that includes the importance of the teacher's ability to improvise as necessary element for a class where there is a chance to achieve the proposed objectives. Having as main theoretical references the works of Carmela Soares (2010), regarding the game in the school space, Mariana Lima and Muniz and Keith Sawyer (2017), about the teacherimproviser, and Maurice Tardif (2014), who brings notes on teacher education, the article outlines its considerations in order to weave some possible views on the creation, research and the possibility of making theater in teaching spaces at the specific time in which we live, with social isolation as an essential measure of security, persisting in the idea that it is possible to continue researching even when the presence is removed. Keywords: Theater-Education; teaching experience; class registration materials; teacher improvisation.

INTRODUÇÃO Antes de iniciarmos a nossa discussão, convido você que lê este artigo a fazer uma brincadeira imaginativa. Pensemos em toda a carga de energia descarregada no percurso de uma aula de Teatro na escola e nas inúmeras possibilidades a partir daí. Mesmo que você não tenha tido a experiência teatral em sua caminhada escolar enquanto aluno, te convido a criar essa energia, livremente. Façamos o recorte temporal de um ano e imaginemos o que pode reverberar a partir de cada atividade proposta, a cada jogo realizado com a turma, a cada roda de discussão ao fim da aula, a cada processo de montagem de espetáculos e/ou cenas curtas. Pensemos também nos materiais concretos que podem orbitar esse percurso: planos de aula, avaliações, diários de bordo do professor, diários de bordo dos alunos, fotografias, vídeos, narrações gravadas, desenhos feitos sobre as aulas, anotações rápidas no canto da folha do caderno… acredito que um mar de cenas nos invade a mente ao brincarmos com essas memórias. A respeito disso, a professora Maria Lúcia Pupo, que atua na área de Artes Cênicas, já nos encaminha um apontamento, que será de extrema importância para nossa discussão: “Um processo teatral reúne em seu âmago um sem-número de fenômenos –


visíveis e invisíveis – de natureza diversa. Captá-los implica recorrer às modalidades mais variadas de registro” (PUPO, 2015, p. 84, grifo meu). Propus esse jogo com a memória para relembrar que fazer teatro na escola é um baú rico de possibilidades, o que inclusive configura a defesa de sua importância em espaços de ensino. Segundo Sérgio Farias (2015, pp. 185-186), “garantir um lugar para o teatro no processo educativo, assegurando condições espaciais e materiais, partindo do que o sujeito já conhece e do que para ele é relevante, é um modo de ampliar as possibilidades de formação de um ser capaz de organizar percepções”. Pensando na ampliação de possibilidades, há a chance de poder registrar cada detalhe das aulas que acontecem, o que inclusive pode se tornar um auxílio na participação dos alunos: por exemplo, aquele aluno que nunca quer se colocar ativamente na realização da proposta da aula pode ser convidado para atuar na produção dos registros, seja escrevendo, fotografando ou filmando, inserindo-se indiretamente no processo de ensino-aprendizagem através de outra forma de participação, o que inclusive auxilia o professor a não acumular funções aos alunos, iniciantes na prática (PUPO, 2015). Com a moldagem deste caminho de registros concretos, temos a chance de abrir esse baú de possibilidades, podendo compartilhar com colegas de profissão nossas experiências docentes para ampliarmos os modos de ver e fazer Teatro na escola. Desse modo, começo a apresentar aqui o caminho tomado por minha pesquisa de Mestrado em Artes, na linha de pesquisa Ensino-Aprendizagem em Artes realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais, que teve de ser reestruturada após a pandemia de COVID-19 que se alastrou pelo mundo no ano de 2020. É por meio da experiência de um educador em Teatro que pretendo seguir minha investigação teórica, que envolve o encontro do adolescente com a metodologia do jogo em escolas públicas brasileiras. Inicialmente, para realizá-la, minha intenção era a de ministrar uma oficina de jogos com duração de dois meses em uma escola pública e trabalhar intensamente com uma turma de adolescentes para poder observar as reverberações ocorridas frente a frente e produzir também um material de registro pessoal a cada dia de oficina. Surpreendido pela suspensão das aulas e pelo isolamento social, procurei táticas para continuar a pesquisa, visto que não seria interessante propor a oficina de modo virtual, já que os objetivos do projeto não seriam atingidos com aulas à distância; afinal, necessitaria deslocar por completo meu diálogo com o espaço físico da escola em confronto com o corpo adolescente. Imagino que muitos artigos e pesquisas sobre o ensino de Teatro à distância serão


realizados nos próximos tempos. Temo, inclusive, que alguns setores da Educação avaliem a prática de maneira positiva e pensem em segui-la como meio exclusivo, o que acredito não ser nada interessante. Mas esse não é o foco da discussão. Pelo contrário, redirecionando-a agora pelo lócus da pesquisa, me questiono sobre como continuar investigando temáticas acerca do Teatro-Educação que não estejam vinculadas unicamente a este momento específico pelo qual passa a sociedade. Depois de um trabalho criativo e de leituras a respeito da experiência docente, percebi que justamente através do percurso de um professor de Teatro e dos registros feitos a partir dele eu poderia seguir a pesquisa, observando, a partir dessa experiência, os detalhes que compõem minha investigação. Me pus a reconhecer a ampla gama de perspectivas que rodeiam o cenário dessa arte da cena, motivado pela própria polifonia que tanto caracteriza o fazer teatral, seja para ensinar, seja para aprender (PINTO, 2015). Assim, inspirada pela multiplicidade do ensino-aprendizagem da prática teatral, a metodologia do trabalho direcionou-se para a seleção de uma professora de Teatro que tivesse trabalhado com o método do jogo teatral em classe com adolescentes em escolas públicas. A professora foi selecionada através de uma chamada pública, sendo convidada para a realização de uma entrevista, onde compartilhou sua trilha na escola, desde sua formação até o momento atual, e falou sobre os desafios e as estratégias de seu trabalho. A essa professora, pedi também

que compartilhasse todo seu material concreto obtido durante as aulas

ministradas, para que eu

pudesse me debruçar sobre ele e então extrair minúcias que

amparasse minha investigação teórica. Ao reestruturar o projeto com esse foco, notei a importância inserida nesse tipo de compartilhamento, de materiais físicos advindos das aulas, que aqui não são considerados apenas como simples planos de aula, mas elementos concretos de um caminho permeado por inúmeros momentos vivenciados em sala que colaboraram para novas pesquisas acerca do Teatro-Educação. Assim, fica evidente que mesmo em tempos de isolamento é possível dar continuação nas pesquisas a respeito dessa temática, e a experiência dos professores é uma grande aliada. Quando se afasta a presença, o que antes poderia se configurar apenas como material efêmero torna-se elemento extremamente valioso para direcionar possibilidades de pesquisa e análise. Também durante o período das mudanças que tiveram de ser realizadas devido à pandemia, me veio à mente um caráter muito frequente do caminho profissional dos educadores em Teatro que acabou se evidenciando de forma contundente nesse momento de aulas remotas: as reinvenções constantes que estão sempre em volta desse profissional. Seja


pela disposição da turma, pelo espaço não-ideal fornecido pela escola, pelo insucesso de um jogo ou por uma pandemia que exige o isolamento social, o professor de Teatro precisa ter uma capacidade de improvisação inserida em seu trabalho, para que possa mudar a aula a partir do que lhe aparecer no momento da prática. Assim, a investigação em curso me levou a reconhecer dois aspectos importantes acerca do Teatro-Educação: as tais reinvenções ditas no parágrafo acima, aqui evidenciadas pela teoria de Maurice Tardif (2014) e Keith Sawyer (apud Muniz, 2017), e o prosseguimento da pesquisa nessa área mesmo em tempos de isolamento, onde aprofundo a nova metodologia que trago em minha pesquisa de Mestrado, propondo a valorização do compartilhamento das experiências e materiais docentes. Por conseguinte, passamos por três pontos de discussão que orbitam esses aspectos, para

que sigamos discutindo não apenas a figura do professor em sala, mas a própria

configuração que o trabalho com a arte na escola institui. No primeiro ponto, iremos nos deter sobre a figura do professor-improvisador. No segundo ponto, o foco será na principal interrogação que guia o presente artigo, acerca da persistência na pesquisa mesmo em isolamento. E, por fim, o terceiro

ponto encaminha a discussão para a valorização do

compartilhamento de materiais, estabelecendo uma rede de partilha. Avante!

1. O PROFESSOR-IMPROVISADOR: REINVENTAR-SE PARA PERSISTIR Tomando como cenário o ambiente presencial da escola, é fácil rememorar os desafios inerentes à prática docente, ainda mais tratando-se da aprendizagem das técnicas teatrais. Não é minha intenção fazer juízo de valor da aula de Arte/Teatro, tampouco compará-la a outros cursos do currículo da escola básica; porém, enquanto fazedor desse universo, não posso deixar de evidenciar as batalhas travadas dentro da instituição escolar ao se ministrar uma aula que trabalha com a inquietação, o questionamento, a ludicidade e com a quebra de certos estigmas de uma escola tradicional. É como se tacitamente o elemento do improviso já acompanhasse o professor de Teatro, mesmo sem este saber concretamente. Segundo a professora Carmela Soares, o jogo teatral, um dos métodos mais característicos do ensino-aprendizagem de Teatro, evidencia bem esse aspecto. “Sua natureza pressupõe sua capacidade de invenção e reinvenção a partir do vazio, dos jogos de corpos, do uso do espaço nas condições em que se apresenta” (SOARES, 2010, p. 27). Imaginemos: há o planejamento inicial da aula, delineado com cuidado pelo professor; entretanto, durante a execução do jogo, este iniciado a partir do espaço vazio, tudo pode acontecer, exigindo do professor a capacidade hábil de reformular instantaneamente o que tem


planejado, a fim de que possa seguir o trabalho em busca dos objetivos pretendidos. Será então que a improvisação é inerente à docência? Ao falar sobre os objetivos que permeiam a profissão de professor, o pesquisador canadense Maurice Tardif aponta que os objetivos do ensino escolar exigem dos professores uma adaptação constante às circunstâncias particulares das situações de trabalho, especialmente em sala de aula com os alunos, como também durante a preparação das aulas e das avaliações. […] O resultado disso é que os professores trabalham a partir de orientações de trabalho frequentemente imprecisas, que exigem não somente improvisação da parte deles, mas também escolhas e decisões quanto à maneira de compreender e realizar seus objetivos de trabalho. (TARDIF, 2014, pp. 126-127).

O que está em jogo não é apenas a instabilidade que permeia o momento da execução da aula e exige uma resposta ágil do professor para alterar o cenário que desponta, mas também a preparação desse profissional para elaborar um material que já encare possíveis turbulências. A reinvenção está sempre latente na constituição dos objetivos do educador. E quando nos atemos para a aula de Teatro, reafirma-se uma montagem prévia que já imagina o que cada atividade pode fazer reverberar. Isso se atenua ao pensarmos na escola pública brasileira, ainda marcada pelas agruras da constante desvalorização que a atinge. São inúmeros os percalços que afetam o trabalho do professor, como o número de alunos em excesso e as condições de tempo, espaço e as burocracias institucionais. Para o professor de Teatro, os obstáculos ainda influem em sua própria aula, por vezes encarada como menos importante frente a outros conteúdos hegemônicos do currículo e a falta de ambiente adequado para um componente curricular que demanda movimentação e ocupação espacial. Desta feita, o educador se vê obrigado a enfrentar

uma complexa tarefa, tendo que realizar seu plano de trabalho com diversas

contrariedades (SOARES, 2010). Ou seja, não se pode passar ileso a uma formação que encare de forma consciente esses fatores diversos que mexem com uma estrutura tranquila e linear. Pensando na demanda de um trabalho criativo, um artigo recente da professora Mariana Lima e Muniz nos auxilia a seguir compreendendo mais essa necessidade, somando-se ao entendimento das reinvenções existentes nessa trilha. Em Estrutura, Improvisação e Criatividade (2017), Muniz traz a pesquisa do professor Keith Sawyer, que “defende que o que torna bons professores ótimos é sua capacidade de transitar entre estrutura e improvisação, tornando-se professores criativos” (MUNIZ, 2017, p. 27). Penetrando no universo complexo que é o da docência, Sawyer também elabora três paradoxos acerca desse trabalho. Ele apresenta o paradoxo do professor, que deve navegar entre uma grande base de conhecimentos e a prática da improvisação; o paradoxo da aprendizagem, quando os alunos recebem estruturas para os guiarem enquanto improvisam; e o paradoxo do currículo, que


deve ser bem planejado para a realização de uma trajetória de aprendizagem efetiva, mas não pode se esquecer de cultivar a improvisação, que deve ser permitida a partir do currículo (SAWYER apud MUNIZ, 2017). Com estes três paradoxos em mente, “o que está em jogo é o equilíbrio

entre planejamento – currículo e planos de aula muito bem cuidados – e

capacidade de improvisação a partir da realidade encontrada em sala de aula, tornando a atividade docente uma atividade criativa” (MUNIZ, 2017, p. 28). Com este cenário bem claro e com a exposição da criatividade aliada ao trabalho do docente em Teatro, fica nítido em nossa discussão que tal característica surge intrínseca ao universo do Teatro-Educação, mostrando-se completamente necessária nos espaços de formação e tornando o ambiente de ensino-aprendizagem um espaço cuja instabilidade não se mostra aterradora, mas passível de transformação. Mais uma vez evidenciando bem a palavra criatividade, encaminhamo-nos agora para o outro aspecto trazido neste artigo, que envolve a persistência na pesquisa em ensino de Teatro mesmo quando se afasta a presença (física e no mesmo espaço geográfico, no caso). Ao me deparar com a necessidade de reestruturar toda uma pesquisa, percebi a importância de se remexer a criatividade para encontrar novas possibilidades. E, no meu caso, a nova possibilidade descoberta foi através dos materiais da trilha docente, o que também me faz afirmar a importância do trabalho criativo. Afinal, como veremos de forma mais ampla a seguir, criar materiais das aulas de Teatro não são tarefas que envolvem a simples comprovação de percurso, mas sim que expõe a riqueza e a polissemia de uma aula tão importante. 2. COMO SEGUIR PESQUISANDO TEATRO-EDUCAÇÃO EM ISOLAMENTO? Insisto na exibição de certas possibilidades para clarificar algumas ideias que irão nos amparar por aqui: algumas características de uma aula de Teatro só se tornam realmente efetivas na prática presencial, com toda a turma reunida no mesmo espaço, proporcionando o surgimento de diversos elementos que despontam a partir dela: a risada que é ouvida e visualmente sentida pelo colega, o aluno que se senta sob a justificativa do cansaço, o suor que molha a camiseta do uniforme, a energia pulsante gerada pelo encontro e movimento de corpos, e muitos outros detalhes que podem desenhar bem uma boa aula. É claro que podemos encontrar tais elementos nas aulas à distância, porém, de forma distinta, redesenhada, sem a fisicalidade da presença e regida por uma individualidade traduzida pela separação das telas. Para seguir investigando, então, pensei em importantes aliados para a pesquisa, os quais já foram previamente introduzidos neste artigo, mas que


agora ganham destaque para reforçar a sua importância: os registros de preparação, execução e reverberação das aulas feitos pelo professor e sua turma. À primeira vista, de maneira simplista, esses materiais podem parecer banais ou puramente pessoais, considerando como sua única utilidade o preenchimento de protocolos institucionais ou a constituição de um acervo intocável. Entretanto, proponho aqui um caminho contrário, que reforça o mérito destes elementos concretos e o valor existente em cada um deles. Nesses pedaços de papel e registros visuais, temos a trilha de uma turma que teve contato com o Teatro; trilha essa que agora ganha um tom especial e potente para mim, visto à dimensão conferida a cada detalhe encontrado nesses materiais para seguir investigando o jogo, o adolescente e a escola. A professora Maria Lúcia Pupo nos traz uma importante contribuição para pensar o universo da escrita e da produção de memória em aula: No que se refere ao registro escrito, muitas são as modalidades possíveis: diários de bordo, entrevistas, depoimentos, protocolos se revelam materiais preciosos que contribuem para equacionar as questões que emergem nos encontros. Saber valer-se de registro dessa natureza tampouco é uma evidência. A atitude sistemática de tomar notas após cada encontro por exemplo, costuma ser incorporada apenas a partir do momento em que o estudante se dá conta da importância da memória do processo. Mais do que isso, ela é adotada sistematicamente quando o jovem consegue apreender que a escrita é instrumento do pensamento (PUPO, 2015, p. 85).

Anteriormente, ao falarmos sobre a flutuação do professor entre a estrutura e a improvisação, pode-se subentender que o plano de aula, material escrito, se caracteriza como um importante fator para análise da caminhada feita pelo professor em sua aula. Aliado ao diário de bordo, que expõe as reflexões advindas da realização da aula em si, surge a chance de estabelecer um laudo comparativo entre o planejado e o acontecido, corroborando a tese que elege a criatividade como elemento decisivo de um trabalho de qualidade. No processo de reestruturação de meu projeto de Mestrado, me coloquei a pensar no percurso de um educador em Teatro, estando ele na escola ou fora dela. Mais uma vez, retomando a brincadeira com a memória feita na introdução, imaginei a riqueza dos detalhes que compõem o mosaico de possibilidades dessa aula. Aproveito para reforçar outro ponto: não tenho a mínima pretensão de romantizar a prática ou de tentar levantar apenas aspectos positivos gerados por momentos de diversão. Exponho mais abertamente situações de maior adesão porque acredito que, se feito com cuidado, atenção e qualidade, o processo das aulas de Teatro trará bons resultados. Contudo, claramente nesse percurso estão presentes os desafios, as dores, as dificuldades, os desapontamentos e todos os outros elementos que infligem tensões no território do Teatro-Educação. Ir de encontro ao trabalho de um professor de Teatro é ir além da figura no exercício da


profissão. Como nos aponta Maurice Tardif (2014, p. 230), “toda pesquisa sobre o ensino tem, por conseguinte, o dever de registrar o ponto de vista dos professores, ou seja, sua subjetividade de atores em ação, assim como os conhecimentos e o saber-fazer por eles mobilizados na ação cotidiana”. Pensando nesse aspecto, entende-se que no percurso da prática escolar cotidiana o professor traz para a aula o conhecimento em que acredita. Conhecimento esse gerado por toda sua trilha de vida e todas as reverberações coletadas nas suas experiências profissionais. Então, através do diálogo, podemos entrelaçar essas histórias com outras narrativas, costurando uma rede de caminhos a respeito de metodologias comuns à profissão. Figura 01. Alunos confeccionando diários de bordo durante oficina de jogos na Escola Estadual Amélia

Fonte: Passos, em Santa Cruz de Minas. Foto de Laura Resende, 2019.

3. COMPARTILHAR PARA VALORIZAR Se surge a ideia de uma possível rede de compartilhamentos, imagino o quanto certos elementos são importantes para que esse trabalho ganhe cada vez mais potência. Enumero aqui três deles: o diálogo, a troca e o registro, este último bem delineado nos parágrafos anteriores. Diálogo, para que se tenha disposição em apresentar os argumentos e as ideias a respeito do fazer teatral em espaços de educação. Troca, para que a produção realizada pelo professor não se feche em sua instituição, podendo ser de grande valia para algum colega em outro lugar completamente diferente. E esses três elementos segue numa direção que merece ser apontada: o desmantelamento de um individualismo que durante muito tempo imperou no ofício docente, onde se julgava que a prática de um nada poderia colaborar com a


de outro.

Sabemos dos tempos duros que permeiam o setor educacional e o setor artístico no Brasil. Assistimos embasbacados e quase sem reação a um sucateamento cada vez mais forte de ambos, com cortes brutais e falta de financiamento. A pandemia veio para deixar tudo ainda mais complexo, fechando os espaços e afastando a presença humana, tão cara a cada um desses lugares. A escola viu os alunos se trancarem em casa e o teatro, seja o de palco ou o de rua, teve seu público afastado. Por um bem maior, o distanciamento social agrava as crises e assustou até mesmo os mais otimistas. Transpassando a crueldade do desmonte educacional do país e as agruras da pandemia, atentemo-nos aqui para a aula de Teatro. Lidando com a transgressão e convidando corpos a se expandirem além do que por vezes lhes é imposto, essa aula mostra-se um alento para um momento de incertezas. Porém, não basta só imaginar a força desse fazer artístico, mas pensar na formação de profissionais de qualidade para atuar em seus espaços. Quando falamos tanto de profissionais criativos neste artigo, seguimos pensando e reforçando a formação de professores que não sigam uma lógica engessada de ensino. Como questiona Carmela Soares (2015, p. 27): Como ensinar teatro dentro da realidade de nosso país, dentro de uma instituição específica, a escola pública? Que teatro pretendemos ensinar? Um teatro que reproduz o mundo, que impõe valores, que dita as regras do bem feito ou um teatro que abre as portas da imaginação, que não cria certezas, mas que evoca o espírito de curiosidade, imaginação e paixão?

Para tal, além de toda a importância envolvida na criação, manutenção e compartilhamento de materiais de registro de aula a fim de gerar uma rede de trocas, torna-se claramente necessário afirmar a necessidade de uma constante aprendizagem e aprimoramento do trabalho docente, levando para os alunos nos espaços de ensino um conteúdo de qualidade e recheado de inquietações, numa gradativa geração de curiosidade, vontade e interesse. Dessa forma, nos resta, mais uma vez, tentar preencher essas lacunas com doses de esperança. Uma nova geração de educadores em Teatro vai se formando, revitalizando técnicas, inventando possibilidades que estimulem os alunos e expandindo essa teia de compartilhamento

e trocas. Há força para continuar seguindo e, justamente por isso,

resistindo frente aos tantos desafios que se multiplicam na existência do Teatro-Educação. CONCLUSÃO


Atualmente, sigo na direção do levantamento teórico em minha pesquisa de Mestrado, elegendo as pesquisadoras e pesquisadores com os quais dialoguei durante a escrita do trabalho. A entrevista com a professora selecionada para a pesquisa foi realizada, trazendo contribuições imensas para o prosseguimento da investigação. Além da professora, três de seus alunos também foram entrevistados, já que é de suma importância ouvir também os sujeitos que vivenciaram na prática a proposta trazida por ela. Através dessas entrevistas, sigo fazendo o arremate das questões norteadoras do projeto reestruturado. Conforme avanço em meu debruçar teórico e revejo percursos históricos nos quais o Teatro-Educação esteve (e está) presente, noto a importância de seguir pesquisando este recorte que envolve o ensino-aprendizagem do fazer teatral. Pesquisar é criar argumentos, escavar memórias e lançar novas questões, para que esse terreno siga sendo remexido, evidenciando sua força e comprovando seu valor. Não há como enumerar a quantidade de pessoas que foram transformadas por terem tido contato com o Teatro em seus espaços de aprendizagem. Nessa ideia, penso também que a transformação não se dá apenas com os alunos, mas também com o professor que realiza essa prática. E, neste caso, a transformação ocorre com o pesquisador que se dispõe a mergulhar nesse vasto universo. Para tal, trago uma afirmação de Jan Masschelein e Maarten Simons a respeito da pesquisa em Educação, onde dizem que o pesquisador envolve-se na pesquisa de uma forma que ele próprio se transforma. Nesse sentido, a pesquisa em educação se caracteriza por um trabalho do pesquisador sobre si: assim, uma pesquisa é educacional porque coloca em questão, primeiramente, o próprio pesquisador. […] A pesquisa educacional trata de tornar algo público, de tornar-se atento ao mundo em sua verdade e disponibilizar a pesquisa para qualquer um. […] Uma pesquisa educacional disponibiliza uma percepção sobre o mundo que não era perceptível. Eis o seu valor ou sentido educacional (MASSCHELEIN, SIMONS apud KOHAN, 2014, p. 71).

Espero que com o resultado desse trabalho eu possa propor mais diálogos que sejam propulsores de transformação e troca. A cada leitura sobre o Teatro-Educação que passa pelo meu caminho, percebo uma reorganização de ideias e anseios em minha investigação. Afinal, não há como passar ileso a um tema tão importante para tempos marcados pela dureza das relações. Sigamos, então, mesmo com o afastamento da presença física, pesquisando, dialogando e descobrindo mais sobre as inúmeras possibilidades que essa prática tem a oferecer. REFERÊNCIAS FARIAS, Sérgio. Teatro na Escola. In: KOUDELA, Ingrid Dormien; ALMEIDA JUNIOR, José Simões de (org.). Léxico de Pedagogia do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015. KOHAN, Walter Omar. Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feito escola. In:


LARROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. MUNIZ, Mariana Lima. Estrutura, Improvisação, Criatividade. In: CRUVINEL, Tiago; MUNIZ, Mariana Lima (org.). Pedagogia das Artes Cênicas: criatividade e criação. Curitiba: Editora CRV, 2017. PINTO, Davi de Oliveira. Encenação. In: KOUDELA, Ingrid Dormien; ALMEIDA JUNIOR, José Simões de (org.). Léxico de Pedagogia do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015. PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. Para alimentar o desejo de teatro. São Paulo: Hucitec, 2015. SOARES, Carmela. Pedagogia do jogo teatral: uma poética do efêmero. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. Petrópolis: Vozes, 2014.

NOTAS DE FIM 1.

Kauê Rocha é ator, professor de Teatro e palhaço. Graduado em Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal de São João del-Rei e Mestrando em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, com bolsa CAPES. Pesquisa o jogo e as relações entre essa prática e a adolescência.


TRÊS DÉCADAS DA ARTE CAPIXABA NA OBRA DE JEVEAUX Myriam Fernandes Pestana Oliveira1 RESUMO Este relato mostra registros de uma caminhada que evidencia acontecimentos que marcaram as artes plásticas capixaba, nas décadas de 1970, 1980 e 1990, destacando-se a obra do artista plástico e professor Jeveaux, visto que ele participou em exposições individuais e coletivas, movimentos artísticos em diversos espaços e de ter sido docente no Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo-UFES. Ao enfatizar estes acontecimentos, objetiva-se mostrar a efervescência da produção artística daquele período, a fim de narrar a história em curso, as memórias latentes nos/as artistas e profissionais da educação oriundos daquelas vivências. Para o desenvolvimento desta pesquisa, foi necessário o levantamento bibliográfico em materiais publicados em artigos científicos, convites e catálogos de exposições e principalmente em jornais, onde houve maior divulgação dos acontecimentos. O diálogo teórico se deu com BLOCK, FREIRE, LOPES, PIMENTEL, OSTROWER dentre outros que estudam e pesquisam o assunto aqui abordado. Palavras-chave: Arte; História; Produção Artística; Docência.

ABSTRACT This report shows records of a journey that highlights events that marked Espírito Santo's plastic arts in the 1970s, 1980s and 1990s, highlighting the work of the plastic artist and professor Jeveaux, as he participated in individual and collective exhibitions, artistic movements in various spaces and having been a professor at the Arts Center of the Federal University of Espírito Santo-UFES. By emphasizing these events, the objective is to show the effervescence of the artistic production of that period, in order to narrate the ongoing history, the latent memories in artists and education professionals from those experiences. For the development of this research, it was necessary to carry out a bibliographic survey of materials published in scientific articles, invitations and exhibition catalogs, and especially in newspapers, where there was greater dissemination of the events. The theoretical dialogue took place with BLOCK, FREIRE, LOPES, PIMENTEL, OSTROWER among others who study and research the subject discussed here. Keywords: Art; History; Artistic Production; Teaching.

INTRODUÇÃO Sob a metáfora de uma longa viagem registram-se movimentos das artes plásticas capixabas e da formação de professores/as de Arte, que marcaram as décadas de 1970, 1980 e 1990, de maneira inovadora e até irreverente. Escolheu-se a obra do artista plástico e professor Jeveaux, para evidenciar os fatos deste período, visto que ele participou ativamente de exposições individuais e coletivas, além de movimentos artísticos em diversos espaços expositivos. É notório que os acontecimentos registrados nas artes plásticas brasileiras, por um grande período, foram restritos às produções e eventos artísticos dos pólos considerados hegemônicos do país, Rio de Janeiro e São Paulo. Esta situação pode ser entendida, se observadas as dimensões geográficas do país, que proporcionam condições diversificadas ao desenvolvimento social, artístico e cultural com as especificidades de cada região. Assim pode-se justificar a produção artística acadêmica das duas cidades citadas, visto que

foi também onde surgiram as primeiras universidades públicas com os cursos de

graduação e pós graduação, além dos primeiros grandes e importantes museus do país, ou seja, tiveram mais condições, nesse sentido, devido criação de outras instituições que fortaleceram a pesquisa, a formação de professore/as de arte, a produção e divulgação das


obras e dos artistas. Esta viagem, que desbrava o lado artístico do estado do Espírito Santo mostra que, apesar de geograficamente muito próximo do eixo Rio/São Paulo, demorou entrar na rota das produções artísticas e pesquisas acadêmicas. Por aqui apenas em meados do século XX, a Escola de Belas Artes iniciou os trabalhos acadêmicos, mesmo sem o suporte necessário, mas com muita garra e vontade, porém de maneira acadêmica tímida, visto que não tinha suporte de museus, galerias, bibliotecas bem equipadas e nem políticas públicas que incentivassem a produção artística local. Nos primeiros caminhos trilhados encontrou-se um quadro desanimador que marcou a produção artística do Estado, porém adentrando pelas belas paisagens da mata atlântica, que na época já estava decadente, devido desmatamento desenfreado, chegar a capital banhada pelas agradáveis praias é possível ver uma situação quase inversamente proporcional, mostrada pela Arte Capixaba atualmente. A Universidade Federal com oferta de cursos de graduação presencial e a distância, que possibilita acesso do interior do Estado a formação acadêmica, cursos de pós-graduação, pesquisa, projeto de extensão, o que amplia a produção e participação de estudantes e profissionais envolvidos nos movimentos artísticos do país e pelo mundo afora. Nas estradas pelas encostas marítimas, as matas e as montanhas mantém-se o diálogo teórico com BLOCK, o apoio encontrado para contar essa

história, com PIMENTEL e

FREIRE que mostram a importância das ações educativas e culturais, como ferramenta pedagógica, nos processos de apropriação da arte e do acesso à cultura, OSTROWER, na reflexão sobre a necessidade do homem como ser que cria porque necessita, LOPES com os registros sobre a arte capixaba, dentre outros que estudam e pesquisam o assunto aqui abordado. NO CAMINHO DAS ARTES PLÁSTICAS Para chegar a capital Vitória, local onde há registro da maior movimentação artística, partiu-se da cidade do Cachoeiro de Itapemirim, sul do Estado, terra natal de Jeveaux que compartilha sua produção, numa carona carregada de pinturas, esculturas, desenhos, colagens, objetos, mosaicos e muitas invenções. Afirma CHENEIR2 que os caminhos foram abertos pelo frei jesuíta Belchior Paulo, pintor religioso que passou no século XVI em Nova Almeida, sítio histórico localizado na cidade de Serra, pintou a primeira obra brasileira considerada e classificada pela crítica nacional. E que nessa época o Espírito Santo era considerado o local que servia de proteção


para o estado de Minas Gerais e não tinha a mesma importância das cidades consideradas capitais culturais do país como Rio de Janeiro e São Paulo. Seguindo os passos do frei, segundo informações que constam no site da UFES, historicamente, o ensino oficial das artes no Espírito Santo, data de ano de 1909, com a criação do Instituto de Belas Artes, que teve suas atividades encerradas em 1916 e deixou poucos registros da sua existência. Somente na década de 1950, com a criação da Escola de Belas Artes, fundada pelo então governador Jones dos Santos Neves, e dirigida pelo pintor Homero Massena, teve o início e participação mais acentuada de estudantes e artistas. A partir daí a federalização da Escola de Belas Artes aconteceu no início da década de 1960, passando a integrar o corpo de escolas da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES3. Continuado a viagem, desfrutando da brisa do mar chega-se a década de 1970, e o Espírito Santo que já andava a passos lentos em direção à produção artística, em comparação aos grandes centros, como já citado, passa a desabrochar um número grande de artistas, desbravando espaços prontos para serem explorados, cheios de ideias, criatividade, inovações, surgem os espaços expositivos e com eles os movimentos de vanguarda. De acadêmicos a autodidatas, uma nova geração de artistas, movimenta as artes capixabas envolvidos na reviravolta das Artes Plásticas, e alguns destes artistas fazem parte do quadro de docentes do Centro de Artes da Universidade. Nas estradas pavimentadas e com elas surgem os espaços expositivos na cidade e a UFES cada dia mais responsável pela formação de professores de arte e artistas plásticos, mesmo que em condições restritas, no que se refere a pesquisa, a materiais didáticos e artísticos, a mercado de trabalho, a políticas públicas. Mesmo assim, avista-se pelos párabrisas dos carros e veículos coletivos o que pode se chamar de progresso artístico, bravo, visível. O calendário de exposições, o movimento dos estudantes, professores com formação especializada chegando às Redes de Ensino. O ensino da arte e a produção artística fortalecidos! REVIRAR A BAGAGEM PARA CONHECER A PRODUÇÃO DE JEVEAUX Costuma-se ouvir que ser artista é ser dotado de capacidade criadora, que produz, geralmente no seu espaço individual, trabalhos expressivos carregados de imaginação, trabalhos que incitam a sensibilidade, estimulam a expressão, buscam a prática da criação, "[...] o homem cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa; ele só pode crescer, como ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma, criando. [...] toda experiência possível ao indivíduo, também a racional, trata-se de processos essencialmente intuitivos. Intuitivos, esses processos se tornam


conscientes na medida em que lhes damos uma forma. Entretanto, mesmo que a sua elaboração permaneça em níveis subconscientes, os processos criativos teriam que referir-se à consciência dos homens, pois só assim poderiam ser indagados a respeito dos possíveis significados que existem no ato criador. (OSTROWER ,1986, p. 10).

Se a criação é uma necessidade humana,

ser artista é ser aquela pessoa que

inevitavelmente busca oportunidades para que a sensibilidade seja aflorada por meio da prática criativa. O artista transita no espaço do ateliê, da galeria de arte, da cidade com a mesma incumbência, de experimentar técnicas, criar métodos, abrir caminhos, suscitar a curiosidade, exercer a criação [...] uma pessoa inserida no contexto artístico como forma de viver. É essencial que a experiência estética seja um componente importante em sua vida cotidiana. (PIMENTEL, 2009, p.25). É neste contexto que se insere Jeveaux, que tem a caminhada artística marcada com o 1º prêmio que ganhou, em 1973, no VII Festival de Inverno de Ouro Preto-MG, concorrendo com artistas de todo país. Em seguida, em 1974,

inaugura sua exposição

individual batizada de NOTRE DAME DE LA CONCEPTION, com trabalhos em pastel, tema mitológico, basicamente brasileiro, onde mistura o espiritismo com a religião católica, conforme ele relata em entrevista sobre a Mostra: “As pessoas que figuram no quadro são parecidas com as pessoas com quem convivo”[...] “Nos meus desenhos, estou procurando a movimentação e a técnica que eu uso procura a transparência da figura humana. Tudo o que faço é que eu sinto, é a minha vivência, o meu conhecimento de vida e meu sofrimento também. Mas é difícil definir as coisas.”(A GAZETA,1974).

Paulo Cesar Henriques Jeveaux (1944)

capixaba de Cachoeiro de Itapemirim,

graduado em Desenho, atualmente professor aposentado da UFES, marcou nos anos 1970 as artes plásticas capixabas, com os primeiros eventos de happenings, instalações e performances. Marcou também com seu modo pedagógico de ser, com a marca - aprende fazer fazendo, sentindo, experimentando, seu jeito artisticamente peculiar de ser professor.


Figura 01. Exposição EXPRESSÃO DO PAPEL, 1995 – Fonte: a autora

Para obrigatória também na Galeria de Arte e Pesquisa da UFES, criada em junho de 1976, considerada, no ramo das Artes Plásticas, a marca da integração da Universidade com a comunidade. Sua primeira sede foi a Capela Santa Luzia, centro da cidade, imóvel tombado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –IPHAN. Atualmente é localizada no espaço do Campus Universitário da UFES, tem acervo formado por trabalhos doados pelos expositores no decorrer dos anos, realiza exposições individuais e coletivas locais e nacionais. Esta Galeria, passou a fazer parte dos acontecimentos artísticos e culturais da cidade. Numa época de efervescência da produção, destaca-se a exposição COMPOSIÇÕES AMBIENTAIS DE CORACY E JEVEAUX, que rendeu reportagens especiais nos cadernos de artes nos dois jornais de maior circulação do Estado, devido a irreverência e ousadia, consideradas na época: “O Centro de Arte e Pesquisa da Ufes, teve um número nunca visto de público. E, em sendo isso, a mistura de lantejoulas, paetês e missangas, com autoridades de terno e gravata, meninas e moças vestidas a caráter, dando um estrambótico colorido, mais que confuso ambiente das arcas, quadros, lanternas, vidrilhos, oratórios, estátuas, copos de leite, palmas, giocondos, faunos e outras figuras mitológicas e sociais conhecidas. E assim por diante, porque das perguntas que fiz, as respostas foram contraditórias, irreverentes, irônicas, cômicas divertidas, curtidoras, sérias, circunspectas, que é melhor que o leitor tire suas conclusões olhando as fotos...Particularmente, acredito que o “happening” tenha chegado sem avisar e que a intenção foi mais que válida, que todos devem dar uma chegada à Capela Sta Luzia, para ver ou rever o que não pode curtir pelo exíguo espaço, pelo


excesso de pessoas, pela geléia geral ou apenas por não ter tido a oportunidade de estarem livres numa festiva noite de meio de semana (CHENIER, 1977).

Cada um descreve, de maneira autêntica, a mostra que gerou curiosidade, espanto, incômodo: “Nem mesmo Fellini, poderia explicar, se aqui estivesse o evento ocorrido na noite de anteontem, quando as portas da secular e tradicional capela Sta Luzia, na Cidade Alta foram abertas para a mostra COMPOSIÇÕES AMBIENTAIS DE CORACY E JEVEAUX, dois artistas undergrounds que motivam a vida rebulesca desta cidade com suas promoções, eventos, criações e fatos. Tudo começa com um “decor” ambiental da rampa que dá acesso a secular igreja com imagens de gesso envolvidas em ramagens de folhagens bem como copos de leite. Ao dar entrada a capela ali, as obras saídas da imaginação criadora dos expositores faziam contraste com a afluência onde os convidados optaram por indumentárias que iam desde a fantasias de escola de samba à plumas, paetês, egretes, cetins, fitas, isso tudo aliado a presença de tradicionais figuras de nossa sociedade ou melhor nos moldes da mineira, a Tradicional Família Capixaba, com espanto.”( A tribuna,1977)

Os dois jornais de maior circulação no Estado, tinham caderno especial para publicar os acontecimentos artísticos, com entrevistas, reportagens, fotos, em publicações que se davam por meios impressos, rádio e televisão, o que divulgava em tempo real o que estava acontecendo nas artes plásticas capixaba. Figura 02: Exposição - ARTISTAS QUE MARCAM RENOVAÇÃO, 1980.

Fonte: a autora.

A viagem continua movimentada com muitas exposições envolvendo artistas, professores, estudantes do Centro de Arte, o que chama atenção do público, principalmente dos que mais acompanham as mudanças surgidas, antes e depois da Universidade. Uma exposição que reuniu cinco artistas, todos/as professores/as, deu muito o que bem falar, chamada de um marco de renovação dos artistas/professores do Centro de Artes da UFES. -1980-CINCO ARTISTAS CAPIXABAS – Jeveaux (pintura a óleo), Joyce Brandão (aquarela),

Renato

Caseira(tapeçaria),

Rômulo

Zanol(serigrafia)

e

Telma

Guimarães(xilogravura) – Galeria de Artes Pesquisa da Ufes – Capela Santa Luzia, Centro de


Vitória. Exposição apresentada pela diretora do Centro de Artes Freda Cavalcanti Jardim. HISTÓRIAS DESSA VIAGEM.... Ao evidenciar estes acontecimentos, objetiva-se mostrar a efervescência da produção artística capixaba da época, além de interesse e desejo pessoal, como profissional da área. O levantamento de dados sobre as exposições e os movimentos artísticos, se deu a partir de informações orais e de material publicado em artigos científicos, convites e catálogos de exposições e principalmente nas publicações em mídias jornalísticas, onde foi encontrado maior número de informações. O historiador Marc Bloch (1886-1944) sugere abordar o passado valorizando os envolvidos na história. Nesse pensamento, o homem é um personagem histórico, dinâmico e deixa marcas na história e no seu tempo. Bloch afirma que: “Nossa arte, nossos monumentos literários estão carregados dos ecos do passado, nossos homens de ação trazem incessantemente na boca suas lições reais ou supostas” (BLOCH, 2001 p .42). Para esse historiador, contar uma história é preciso ir além de narrar fatos relevantes ou enaltecer pessoas nobres. Falar de acontecimentos que marcaram época, é falar do local onde ela está inserida, das pessoas que ali habitavam, dos costumes, dos meios de comunicação, do que acontecia no movimento artístico, educacional, os movimentos políticos, etc. Nesse movimento dialógico textual é que se pretende resgatar essa história e contá-la aqui. Será preciso reconstruir as suas partes, revirar os guardados, sair em busca dos arquivos para mostrar, por meio da obra de Paulo César Henriques Jeveaux, o Jeveaux, acontecimentos, movimentos, irreverências, produções e criatividades de três décadas das artes plásticas capixaba. E continua a viagem no meio de tantas paisagens, num Estado agraciado por montanhas, rios, lagoas, mar e em pleno 1978, artisticamente informando, é presenteado com a criação da Galeria de Arte Espaço Universitário – GAEU outro espaço cultural da UFES, para propagar a produção artística local, nacional, internacional e preservar o acervo artístico além de oferecer ações educativas com visitas monitoradas ao público em geral. No ano de 1982, Jeveaux mostra a exposição CENOGRAFIA NUPCIAL –Capela Santa Luzia – HAPENNING um ritual de casamento para envolver todos os convidados. “Influência anarquista vinda de fora, mas bem sucedida. No mais, este artista é um primoroso pintor, cheio de inventiva e soluções pessoais” (CHENIER, 1983) . E Jeveaux informa que “Além disso, procurarei fazer, nas entrelinhas, uma crítica a esta instituição que vem se


perpetuando entre os povos”.(entrevista A GAZETA,22-09-82) As estradas se apresentam bem cuidadas e a viagem cada vez mais animada, com muita movimentação, muitos destaques, espaços expositivos criados pelo poder público e a iniciativa privada. A mostra UM ENCONTRO DAS INDIVIDUALIDADES que pode ser visitada na galeria Homero Massena, no ano de 1985, apresentou a visão panorâmica do que os artistas produziram nas diferentes modalidades de criação visual. Esta mostra reuniu os artistas – Carlos Cheneir, Helio Coelho, Zupo, Ivan Alves, Lando, Telma Guimarães, Sáskia Sá, Jeveaux, Nena B e Rômulo Musielo. Dos vários espaços expositivos que foram criados, nas décadas aqui evidenciadas, alguns continuam funcionando, outros funcionaram por determinado período e encerram suas atividades. Continuando a caminhada foi possível encontrar registros de obras de Jeveuax, em mostras individuais e coletivos no Espaço de Arte da ESCELSA, na Galeria Banco Itaú, Galeria Kroma, Galeria Ana Terra, além dos movimentos artísticos como o Festival de Arte de Nova Almeida e a Instalação Porto de Vitória. Figura nº 3 - Exposição individual – INAUGURAÇÃO GALERIA BANCO ITAÚ, 1985

Fonte: a autora

Final da década 1980, mais precisamente 1989 robusto movimento, que por 10 anos consecutivos virou, revirou e movimentou

a classe artística, considerado um marco no


cenário cultural do Estado, foi o Festival de Verão de Nova Almeida. Este evento, idealizado e organizado pelo professor e artista José Carlos Villar, tinha duração de quinze dias, no mês de janeiro no sítio histórico de Nova Almeida, Serra-ES, contava com extensa programação que envolvia palestras, mesas-redondas, espetáculos artísticos e um grande número de oficinas teóricas e práticas. “Na complexidade de nosso universo, desempenhamos o papel que nos cabe, promovemos o ensino e a discussão da cultura. O que propicia, aos participantes, um contato imediato com o panorama atual das artes plásticas no Brasil. [...] O Festival foi o grande norteador do desenvolvimento da arte capixaba. Você pode ver muito bem o que era Vitória antes e depois do Festival de Nova Almeida. Ele acirrou a discussão em torno da produção artística contemporânea. Desenvolveu esse despertar nas pessoas. Os nomes mais quentes do circuito nacional de produção contemporânea eram convidados, como Zé Rezende , Iole de Freitas, Rodrigo Naves, Nuno Ramos, Fábio Miguez, Paulo Herkenhoff.”(VILLAR –entrevista A GAZETA 26-01-1992).

As oficinas eram ministradas por artistas convidados de outros Estados como Marco Coelho Benjamin, Marco Túlio Resende, Arthur Lescher, Evandro Salles, Karin Lambrecht. Convidados também as pratas da casa Paulo Cesar Henriques Jeveaux, Attilio Colnago, José Aguilar Lorenzutti, Renato Caseira, Freda Cavalcanti Jardim. Figura nº 4- LOCAL DO FESTIVAL DE VERÃO DE NOVA ALMEIDA, 1992

Fonte: a autora

A viagem envereda pela a década de 1990 e encontra a Instalação Porto 91. Ação que foi realizada no Armazém 3 no Porto, centro de Vitória no período de 29 de agosto a 08 de setembro de 1991 e reuniu 40 artistas, com ousadas propostas plásticas do Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Foi considerada pela classe artística que acompanhou o movimento a oportunidade que, “injetou uma enorme quantidade de energia no circuito local” – “O nosso meio artístico/intelectual segue seu caminho rumo ao cosmopolitismo.” NENNA


B4, artista plástico, que destaca no mesmo texto publicado pela imprensa local: “O grande destaque foi a densa e ao mesmo tempo “zen” a criação de Freda Jardim, Rosana Paste, Celso Adolfo, Mac e Jeveaux. Areia, bolinhas de ferro e uma coluna em forma de paralelepípedo gigante, coberto com pó de minério, a peça propunha, segundo os autores, a visão de “um jardim infinito do futuro”. Foi uma “invasão” calma, sutil, bem dimensionada e que só teve similar no mesmo nível de exuberância oriental impregnada na obra de Heitor Takahashi. Sua instalação distribuía energia através de um sol dourado, iluminado varetas de madeira espetadas em areia. O sol ultrapassou as varetas e derramou a “luz” sobre os privilégios que ousaram se dividir no interior do Armazém 3.(NENNA B, 1991).

Prestes a chegar ao itinerário previsto, pode ver a paisagem repleta de produções, de muitos artistas, muitas mostras, happenings, festivais, instalações. Registra-se ainda na fértil década de 1990 nas exposições ANTES E DEPOIS DE VILA VELHA – Pinturas com figuras humanas, e O MUNDO DO MOSAICO – O MOSAICO NO MUNDO, ambas no Espaço de Arte Littig Engenharia, localizado na cidade vizinha, de Vila Velha –ES. Figura nº 6 – Pinturas com figuras humanas –exposição ANTES E DEPOIS DE VILA VELHA – 1996.

Fonte: a autora.

Também na década de 1990 a Companhia do Mosaico, grupo de artista composto por Celso Adolfo, Freda Jardim, Jeveaux e Rosana Paste, participou do Congresso Internacional da Associação do Mosaico Contemporâneo, na cidade de Kamakura no Japão, os fragmentos capixaba unidos apresentados em outro continente. Figura nº 7 – CAPIXABAS NO JAPÃO – 1994.


Fonte: a autora.

No Espaço Cultural da agência UFES da Caixa Econômica Federal, exposição coletiva para mostrar os mais recentes trabalhos de Jeveaux e um grupo de professores/artistas do centro de artes em 1992 – COLETIVA COM PROFESSORES – em comemoração ao Dia dos Professores. Já em 1995 a exposição EXPRESSÃO DO PAPEL no Centro de Vivência da UFES – Jeveaux e 40 alunos expõem máscaras e roupas feitas em mosaico de papel, produções com suportes e materiais diferenciados, experiências e experimentos a mostra, artistas, professores, estudantes juntos e juntas fazendo a roda girar. Figura nº 5 – COMPANHIA DO MOSAICO – 1992.

Fonte: a autora.

A criação artística de Jeveaux se destaca pela irreverência e invenções,

é uma

variedade de técnicas, reaproveitamento e multiplicidade de materiais para confeccionar telas, objetos de papel, esculturas, além dos vernissages e aberturas de exposições que fugiam dos padrões, e movimentavam o mundo artístico da cidade. Simultâneo aos movimentos de ateliês, criação de espaços expositivos, participação em exposições e eventos, acontecia a formação de professores/as por meio da UFES. Um período produtivo, os/as artistas plásticos envolvidos/as, na maioria deste acontecimentos,


estavam também na docência, era um caminho de mão dupla, difícil separar, artista era professor, que era aluno, que era artista. Período fértil, de muita produção, em todos os sentidos, as políticas públicas, a iniciativa privada, a movimentação necessária, a arte puxando a engrenagem, a arte acontecendo! CHEGANDO AO ITINERÁRIO As histórias e memórias dos causos marcados pelas exposições irreverentes, com happenings, musicais, performances, festas, o artista escolhido para ajudar resgatar esta história, permite mostrar com sua caminhada de estudante a professor do Centro de Artes da UFES, que o artista transita por várias estradas no campo da arte e assim assume outras funções, outros papéis. Aproximar os estudantes do universo da produção artística e cultural, bem como dos trabalhos de professores/as artistas, tanto de suas produções quanto de suas ações no ensino aprendizagem, possibilita o entendimento dos processos artísticos e incentiva a criação do pensamento crítico no que se refere ao aprender e ensinar. Segundo Paulo Freire (2002) não é válido o "ensino que não resultar num aprendizado em que o aluno não seja capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não foi apreendido não pode ser realmente aprendido pelo aluno" (FREIRE, 2002,p.21). No caso do artista Jeveaux foi possível assisti-lo durante sua carreira docente na Universidade, participando de mostras individuais e coletivas desde seu tempo de estudantes e como professor organizando exposições com seus alunos. Entende-se assim que a docência do/a artista é um misto de técnica, sentimento, expressão, saber estético, criação. É o profissional que aliado a sua experiência artística consegue mostrar a teoria e a prática, a partir de sua própria vivência como criador.. Foi o que se viu nesta viagem inusitada, com tantos encontros, tantas potências, tantos/as capixabas encantando o mundo. REFERÊNCIAS A GAZETA, Jornal. Edição 10 de Setembro, p. Vitória, 1974. A GAZETA, Jornal. Edição 21 de Agosto. Caderno Dois: Artistas que marcam renovação. Vitória, 1980. A GAZETA, Jornal. Edição 07 de Setembro, p. Vitória, 1991. A GAZETA, Jornal. Edição 26 de Janeiro, p. Vitória, 1992. ATRIBUNA, Jornal. Edição 02 de Setembro. 2º Caderno: Fellini não explicaria. Vitória, 1977. BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício de historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001 CHENIER, Carlos. Coracy e Jeveaux; um acontecimento para cada um tirar sua conclusão. A Gazeta. Caderno


Dois. Vitória, 04 set. 1977. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Paz e Terra, 1996. LOPES, Almerinda da Silva. Nenna e a vanguarda capixaba. In: Encontro nacional de pesquisadores em artes plásticas, XIV, 2005. Disponível em: < http://taru.art.br/enciclopedia/nenna/vanguarda/materia.html>. Acessado em: 21/06/2019. OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação . Editora Vozes. RJ,1977. PIMENTEL, Lucia Gouvêa. Metodologias do ensino de Artes Visuais. In: PIMENTEL, Lucia Gouvêa (org.). Curso de Especialização em Ensino de Artes Visuais 1. Belo Horizonte: CEEAV/EBA/UFMG, 2009. SALES, Sandra Fátima Dias; Lindolpho Barbosa Lima e Carlos Chenier : a crítica de arte em Vitória/ES entre as décadas de 1940-1980 / Sandra Fátima Dias Sales. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Artes, 2011.

NOTAS DE FIM 1.

Mestra em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Professora de Arte da Rede Municipal de Ensino de Vitória-ES. http://lattes.cnpq.br/1833632706232255.

2.

Apenas no início da década de 1970, com o intuito de informar ao leitor os acontecimentos artísticos da capital capixaba, o jornal A Gazeta e o Jornal da Cidade passaram a contar com Carlos Chenier, na função de “crítico de arte”.[...]identificado com um modelo textual mais próximo do jornalismo cultural, que também se tornou imperativo na crítica de arte vinculada na imprensa escrita de outras capitais brasileiras, [...] respeitado por aqueles que participavam do meio intelectual e artístico capixaba, quer pelos textos por eles publicados nos jornais quer por sua aproximação com o meio, principalmente com os artistas e suas obras. (Sales, 2011).

3.

O Governo Estadual promulgou a lei federal n° 3.868 de 31 de janeiro de 1961 e criou a Universidade do Espírito Santo (Ufes), que encampou cursos de institutos universitários, como a Escola de Belas Artes. A referida escola foi organizada de acordo com a legislação federal para funcionar com os cursos de Pintura, Gravura, Decoração e Professorado de Desenho. O primeiro espaço físico ocupado pela Escola de Belas Artes situava-se na Avenida Jerônimo Monteiro, ao lado da escadaria do Palácio Anchieta, sede do Governo Estadual. No mês de julho de 1969, a Escola mudou-se definitivamente para o campus universitário da Ufes, que se localiza ao lado do mangue, no bairro Goiabeiras - Vitória. Assim, o Centro de Artes é criado em junho de 1971.(www.car.ufes.br).

4.

Atílio Gomes estudou dois anos de artes plásticas na Universidade Federal do Espírito Santo, saiu na metade do curso acreditando que o ensino naquela instituição não havia acompanhado a evolução do tempo. Ele adotou depois, o nome artístico de Nenna B., mas atualmente é Nenna. LOPES, Almerinda da Silva. Nenna e a vanguarda capixaba. Disponível em: www.nenna.com/documenta/1970_1979resistenciapsicodelica/index.html.


UM CASO DE ESTUDO: as disciplinas práticas do ateliê de gravura no earte

.Fernando Gómez Alvarez RESUMO A presença tangível das sequelas da pandemia de Coronavírus no dia-a-dia da humanidade em geral, e do Brasil em particular, tem sido uma constante durante os últimos dois anos. Obrigando-nos a fazer uma tábula rasa dos nossos modelos tradicionais de ensino. Fomos compelidos a repensar em um período mínimo de tempo, tanto o formato quanto a forma de ministrar conteúdos em todos os níveis de ensino visando reduzir o grau de afetação aos discentes. Isto se refletiu nomeadamente no ensino universitário, especialmente nas disciplinas de ateliê e/ou laboratório. Tanto nas obrigatórias quanto nas optativas da grade curricular. O artigo a seguir é uma análise parcial da metodologia utilizada, da ênfase conferida à criatividade de docentes e discentes da área de gravura trabalhando conjuntamente. Assim como dos resultados por nós obtidos nesse intervalo, durante o qual, o laboratório da disciplina, transladou-se à moradia dos estudantes. Palavras-chave: Ensino remoto; Criatividade; Experimentação; Suportes alternativos; Impressão manual.

ABSTRACT The tangible presence of the sequelae of the Coronavirus pandemic in the daily life of humanity in general, and Brazil in particular, has been a constant during the last two years. Forcing us to make tabula rasa of our traditional teaching models. We were compelled to rethink, in a minimum time, both the format and the way to teach content at all levels of education, aiming to reduce the degree of affectation to students. This was particularly reflected in university education, especially in studio or laboratory subjects. Both mandatory and elective in the curriculum. The following article is a partial analysis of the methodology used, of the emphasis given to the creativity of printmaking teachers and students working together. As well as the results obtained by us during this interval, during which the discipline's laboratory moved to the students' homes. Keywords: Online teaching; Creativity; Experimentation; Alternatives matrices; Hand pulled print.

RESUMEN La presencia tangible de las secuelas de la pandemia del Coronavirus en la vida cotidiana de la humanidad en general, y específicamente en Brasil, ha sido una constante durante los últimos dos años. Obligándolos a hacer tabula rasa de nuestros modelos tradicionales de enseñanza. Nos vimos obligados a repensar, en un mínimo período de tiempo, tanto el formato como la forma de enseñar los contenidos en todos los niveles educativos, con el objetivo de reducir el grado de afectación a los estudiantes. Esto se reflejó particularmente en la educación universitaria, especialmente en las asignaturas de taller o laboratorio. Ambas obligatorias y optativas en el plan de estudios. El siguiente artículo es un análisis parcial de la metodología utilizada, del énfasis que se le da a la creatividad de los profesores y estudiantes de grabado que trabajaron de forma conjunta. Así como los resultados obtenidos durante este intervalo, durante el cual el laboratorio de la disciplina se trasladó a los domicilios de los alumnos. Palabras-clave: Enseñanza remota; Creatividad; Experimentación; Matrices alternativas; Impresión manual.

INTRODUÇÃO No decurso dos semestres letivos 2020-I, 2020-II e 2021-I devido a um evento global de força maior, a pandemia de Coronavírus, fomos obrigados a repensar, criativamente, tanto o formato quanto a forma de ministrar conteúdos nas várias disciplinas de ateliê que integram a área de Gravura, constituída por uma disciplina obrigatória e três optativas. O artigo a seguir é uma análise parcial da metodologia utilizada e dos resultados por nós obtidos nesse intervalo. Tomando como base conceitos caros a Coldwell, dentre os quais, a gravura enquanto prática expandida; a retomada de tradições esquecidas – uma espécie de arqueologia das técnicas da gravura que já existiram –; e a gravura híbrida – esta última em constante desenvolvimento desde as primeiras abordagens experimentais realizadas por Rothenstein,


Beutlich e Rolf Nesch na primeira metade do século XX. Assim, direcionamos as pesquisas a redescobrir e utilizar formas de gravação que independem do maquinário para a obtenção da imagem impressa uma vez que durante o EARTE o laboratório da disciplina, transladou-se à moradia dos estudantes. Desta forma, os discentes tiveram um papel de coadjuvante ativo na obtenção dos objetivos das disciplinas. Ao todo estaremos analisando os resultados – objetivados em exercícios – de três turmas da disciplina obrigatória gravura, DAV 05834 e de uma turma optativa Xilogravura, DAV 04964. Desde um ponto de vista quantitativo, os resultados da disciplina obrigatória de gravura superaram os da turma de xilogravura. Nisto incidiu o alto índice de desistência dos alunos por múltiplas causas: 1) Falta de computadores ou laptops individuais; 2) Problemas com a qualidade do sinal de internet; 3) Falta de ferramentas e/ou materiais específicos à disciplina ou dificuldade ou impossibilidade em adquiri-los; 4) Especialmente o isolamento, o stress e a depressão decorrente. Salientamos ainda que muitos estudantes assistiram às aulas síncronas pelos celulares, interagindo com a turma e o professor através do chat, o que dificultou, mas não impediu que as atividades assíncronas fossem por eles realizadas posteriormente. DESENVOLVIMENTO: A SUBSTITUIÇÃO COMO PREMISSA CRIATIVA Pelas especificidades da aula prática em laboratório, o desafio foi como suprir em casa o maquinário de impressão, as ferramentas específicas de entalhe e corte, assim como de substitutos para as tintas gráficas. A solução encontrada foi a busca conjunta, por parte dos alunos e do professor, de soluções tecnológicas criativas – nomeadamente técnicas gráficas em desuso ou ultrapassadas – e o emprego intensivo de substituições tanto para as matrizes como para as tintas gráficas de base oleosa e a base d’água. As experimentações e subsequentes descobertas eram imediatamente compartilhadas e aplicadas pelo resto da turma. Assim, a inexistência de tinta oleosa tipográfica ou off set em casa – tintas tradicionalmente utilizadas no ateliê –, foi suprida com a utilização de tinta a óleo para pintura sobre tela, de bisnaga, previamente desengordurada durante cinco ou mais dias sobre papel jornal. Cujo característico alto grau de absorção, possibilita que aproximadamente quase 50 % do óleo de linhaça presente na bisnaga como aglutinante, seja absorvido pelo papel jornal, deixando a tinta com maior viscosidade. Isto é, parecida à tinta xilográfica usada no ateliê da UFES. Depois de desengordurada, a tinta foi guardada em papel alumínio para a sua conservação, evitando sua oxidação e a conseguinte secagem, criação de crostas, etc. facilitando o seu manuseio. A grande vantagem de se utilizar tinta oleosa radica na extensa paleta de cores


disponível – algo que sempre foi balizado nas nossas aulas presenciais.

Imagem nº 1: Exemplo de tinta a óleo para pintura, de bisnaga, desengordurada sobre papel jornal e guardada fechada em envelope de papel alumínio. A tinta está em boas condições de uso desde março de 2020. Fonte: Própria. Quando não havia acesso à tinta a óleo, empregou-se aquarela, guache e inclusive, tinta xadrez líquida. Nas ocasiões em que foi utilizada tinta acrílica, a mesma foi acrescida de detergente lava-louças visando retardar a secagem. Nos exercícios de monotipia as tintas à base d’água são muito usadas. Para tanto são impressas com o papel úmido após secas nas matrizes, pois a umidade certa do papel faz voltar à vida as cores a base d’água. No entanto, ao iniciarmos os exercícios de gravura em relevo, tivemos de revisitar as técnicas orientais de impressão. Notadamente o acréscimo de cola às cores visando dar uma maior consistência e aderência à tinta. Na gravura japonesa e chinesa emprega-se tradicionalmente a cola de arroz (nori) de PH neutro – produto difícil de achar e de alto custo. Foi substituída de três formas: A) com carboximetilcelulose (CMC) quando possível. O CMC é uma cola de PH neutra usada em restauração e comercializada em lojas de materiais artísticos. B) com uma solução de goma arábica – tradicionalmente empregada em pintura e desenho com cores a base d’água na obtenção de efeitos de pinceladas. C) com amido (grude) de maisena, de PH neutro, e qual já foi muito utilizado, no passado, em museus de poucos recursos e também para empapelar


paredes e colar lambe-lambes. O emprego do grude de maisena foi a grande descoberta para a maioria das turmas, porque todos tem maisena em casa e todos sabem fazer mingau. Estas substituições aconteceram aos poucos, na base de tentativa e erro no que diz respeito às proporções, embora a bibliografia costume citá-las enquanto recursos plausíveis de serem usados. Nesse sentido, assistir coletiva e individualmente, várias vezes, os vídeos de mestres impressores japoneses em ação, foi o que permitiu apreender qual a quantidade de grude certa e como misturá-la à tinta.

Imagem nº 2: Xilogravuras na técnica da matriz perdida impressa com aquarela e amido (grude de maisena). Sulamita Alves de Oliveira, EARTE 2020/I. Fonte: Sulamita Alves de Oliveira. No que diz respeito aos métodos de impressão, focamos basicamente no esfregue ou polimento do verso da folha de impressão com movimentos circulares, repetidos, com colher de pau ou metal, ou com tampão de tecido recheado de estopa, e inclusive, com chumaço de estopa. Ora, a referida técnica de impressão é uma tradição secular na xilografia tanto em Oriente como em Ocidente. Partimos do princípio de que essa seria a forma de impressão stricto sensu mais viável no ateliê-laboratório caseiro. Contudo, outras formas de impressão foram comentadas e sugeridas para serem colocadas em prática. Dentre as quais citamos: A impressão ficando parada sobre a matriz com um pé enquanto o outro fica fincado no chão, conforme relatado por Rothenstein a propósito da forma de impressão alternativa usada por Edward Bawden. Segundo o autor, uma matriz entalhada profundamente com uma camada


encorpada de tinta produz boas impressões (ROTHENSTEIN, 1962: 52). Há também a técnica desenvolvida por Tadek Beutlich para imprimir grandes superfícies com um rolo inserido dentro de uma caixa de madeira com buracos para as alças, e com grandes pesos fixados acima da caixa da forma descrita por Allen (RUSS, 1975: 88). Uma espécie de rolo compressor caseiro. Outra forma de fazê-lo é ficar sobre o papel de impressão com ambos os pés, estando de meias, aproveitando o peso corporal enquanto se movimenta numa dança sem sair do lugar para imprimir a gravura com a matriz no chão e uma proteção sobre o papel de impressão, como em algumas das técnicas de impressão do Mokurito (ver Referências videográficas na página 10).

Imagem nº 3: À esquerda: Composição com fragmentos de madeira encontrados (object trouvée) impressos com os pés e o peso do corpo. Jéssica Correa, EARTE 2020/II. Fonte: Jéssica Correa. À direita: Impressão sobre tecido. Pedro Henrique Neves, monitor da disciplina, EARTE 2020/I. Fonte: Pedro Henrique Neves. Outra forma de impressão usada foi a impressão sentada. A qual remete à anteriormente mencionada por Allen. Esta última foi sugestão do bolsista PAEPE que nos auxiliou durante o semestre 2020/II. Colocar a matriz entintada em um banco baixo, com o papel de impressão por cima, uma folha de proteção e uma tábua sobre ambas. Depois colocar


pesos (livros grossos, blocos ou tijolos) e sentar-se em cima durante um tempo. O emprego dos pneus do carro (veículos pesam em média uma tonelada), de uma motocicleta ou inclusive de um patinete ou skate no mesmo sentido que a impressão anterior também foram recomendados desde que utilizada uma adequada proteção do verso do papel. Este tipo de solução para imprimir costuma ser sugerido tanto nas nossas aulas presenciais quanto nas aulas síncronas da disciplina gravura modalidade EAD desde 2017. No que diz respeito às matrizes, a ênfase foi dada à diversidade e à experimentação de materiais desde que os mesmos cumprissem os requisitos básicos para a técnica estudada. O princípio seletivo aplicado foi a empatia do discente com o material selecionado. Assim, no caso da unidade temática monotipia o caráter plano, liso e não absorvente da matriz foi determinante. Vidros, cerâmicas, acetatos, chapas de PVC ou acrílico, transparências, capa de cadernos, gelatina, etc. foram usados. Contudo, no bloco temático de Monotipia experimentações e exercícios de marmorização com técnicas de espelho d’água – uma lâmina de água como matriz – foram incentivadas a partir de assistir e comentar vídeos sobre as mesmas. Foi o caso do Suminagashi japonês; do Ebru turco; e da marmorização de papéis ocidental. Em todos os exercícios de impressão com espelho d’água o espessamento, encorpamento ou adensamento da água com amido (grude de maisena) foi fundamental. A básica tinta empregada foi o nanquim, tanto preto como colorido. No entanto, se obtiveram bons resultados com esmalte de unhas, pigmento xadrez e inclusive com anilina comestível. Em dependência da qualidade plástica dos resultados obtidos as impressões foram selecionadas para integrar o portfólio ou usadas posteriormente, por sobreposição, em conjunto com monotipias ou técnicas em relevo.


Imagem nº 5: Exemplos de marmorização japonesa, Suminagashi. Alannys Fernandes Faustino, EARTE 2021/I. Fonte: Alannys Fernandes Faustino.


Imagem nº 6: Exemplos de sobreposição de impressões. À esquerda, marmorizado e relevo. No centro, monotipia sobre gelatina e gravura em relevo. Ana Paula Carvalho Andrade, EARTE 2020/II. Fonte: Ana Paula Carvalho Andrade. À direita, monotipia sobre gelatina e spray com estêncil. Vitor Coutinho Cardoso, EARTE 2021/I. Fonte: Vitor Coutinho Cardoso. No que diz respeito às matrizes para a gravura em relevo, sugeriu-se a escolha do suporte com base na empatia com o material. Dessa forma, placas de EVA, isopor, papel capa, Eucatex, sobras de madeira encontradas na rua, madeira, MDF, argila, e gesso dentre outros materiais foram pesquisados. Dentre os suportes referidos, merece especial destaque a argila crua. A argila foi usada crua e seca, sem queimar, com tintas a base d’água como o guache acrescido de amido de maisena (grude) e pigmento xadrez líquido. O que acabou acrescentando uma velatura da cor da argila à impressão final, uma vez que o papel teve de ser umedecido para se obter a impressão. Quanto à matriz elaborada com gesso comum, adquirido em casa de materiais de construção, a mesma foi previamente impermeabilizada com selador para madeira, verniz marítimo ou goma laca antes de aplicar a tinta para possibilitar uma boa impressão.

Imagem nº 7: À esquerda, matriz de argila. À direita, impressão da referida matriz com tinta a base d’água. Marcelo Andrew da Silva Demétrio, EARTE 2020/II. Fonte: Marcelo Andrew da Silva Demétrio.


Imagem nº 8: À esquerda, matriz de gesso comum. À direita, duas impressões de diferentes matrizes de gesso: No centro, com tinta a base d’água. À esquerda com tinta oleosa. Marcelo Andrew da Silva Demétrio, EARTE 2020/II. Fonte: Marcelo Andrew da Silva Demétrio.


Imagem nº 9: À esquerda: Impressão pela técnica da matriz perdida com matriz de MDF. Ana Paula Carvalho Andrade, EARTE 2020/II. Fonte: Ana Paula Carvalho Andrade. À direita: Monoimpressão com matriz de linóleo e tinta a base d’água acrescida de amido de maisena (grude). A diferença da monotipia, a monoimpressão se obtém de uma matriz em relevo que é entendida de forma diferente a cada impressão. Embora a imagem gravada seja sempre a mesma, as impressões resultantes são sempre diferentes entre si. Juliana Mangifesti, EARTE 2020/I. Fonte: Juliana Mangifesti.


Imagem nº 10: À esquerda: Impressão com tinta guache branca sobre papel preto de uma matriz de madeira recoberta de parafina. No centro e à direita: A imagem anterior foi digitalmente manipulada em duas variantes, recortes, no Photoshop. Brenda Moura, Earte 2020/I. Fonte: Brenda Moura. Durante cada semestre letivo incentivou-se que os discentes produzissem uma pesquisa paralela de imagens manipuladas digitalmente alicerçadas nas gravuras por eles produzidas. O objetivo foi criar um portfólio que fosse ao mesmo tempo uma documentação imagética dos melhores resultados obtidos ao longo do semestre. E também, uma documentação das experimentações com a manipulação digital da imagem com diferentes programas tanto para computadores e laptops como para celulares. As imagens manipuladas e tratadas digitalmente, se transformam em novos suportes binários. No caso, em matrizes virtuais de gravuras. As quais poderão ser impressas em uma gráfica ou na impressora de jato de tinta. As imagens resultantes, por sua vez, poderão ser novamente modificadas com intervenções plásticas manuais, podendo também ser novamente digitalizadas. Resumindo, o ciclo da produção de uma gravura multiplica-se com as novas tecnologias que passam a integrá-la ampliando seu leque de ação. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados parciais do trabalho desenvolvido ao longo destes semestres EARTE no DAV/CAR/UFES durante a pandemia mostram que, quando suficientemente motivados, os estudantes superam o insuficiente acesso aos materiais, maquinário e ferramentas específicas da disciplina. Aliás, dificuldades estas que já estavam presentes no ensino presencial. Gostaria de balizar como a resiliência, o anseio pelo conhecimento, o fato de partilhar uma experiência de grupo, mesmo que remotamente, aumenta o diálogo e a criatividade tanto dos discentes


como do docente, possibilitando a superação de obstáculos aparentemente insuperáveis à primeira vista. Resulta interessante balizar que na etapa inicial de implementação do EARTE percebemos certa reticência – talvez preconceito no que diz respeito ao ensino remoto –. Preconceito que não se restringiu apenas aos discentes, mas que poderia ser extensível inclusive aos docentes da nossa área de atuação. O referido entrave foi superado aos poucos com o empenho por parte de todos os implicados no processo educativo com destaque para o trabalho dos monitores do projeto de pesquisa em gravura. Mesmo a dificuldade de acesso a um sinal de internet estável, utilizando os celulares ao invés do computador ou do laptop, foi superada pela dedicação dos discentes, assim como pela alternância de conteúdos síncronos e assíncronos. Destacando que nossas aulas foram todas síncronas nestes semestres. A parte assíncrona foi deixada como dever de casa para que os discentes assistissem individualmente aos vídeos das playlists, lerem os textos em pdf e realizassem os exercícios conforme estipulado nas atividades. As dúvidas foram pontualmente esclarecidas pelos monitores e o professor. Após dois anos de ensino remoto, modalidade EARTE, os resultados obtidos constatam o ensino a distância de disciplinas práticas de laboratório, quer sejam obrigatórias ou optativas da grade curricular, resultam viáveis em tempos de provação que exigem de todos dar o nosso melhor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVAREZ, F. G. Gravura. Vitória: UFES/Sead, 2017. CHAMBERLAIN, W. The Thames and Hudson Manual of Woodcut Printmaking. London: Thames & Hudson Ltd., 1978. ___________________ The Thames and Hudson Manual of Wood Engraving. London: Thames & Hudson Ltd., 1978. COLDWELL, P. Printmaking. A contemporary perspective. London: Black Dog Publishing Ltd, 2010. ROTHENSTEIN, M. Linocuts & woodcuts. Rochester: Studio Books, 1962. RUSS, S. (Ed.). A complete guide to Printmaking. London: George Rainbird Ltd., 1975. WALKER, G. A. The woodcut artist’s Handbook. Techniques and tools for relief Printmaking. Ontario: Firefly Books Ltd., 2005.


REFERÊNCIAS VIDEOGRÁFICAS BULL, D. Wood block printing process. A Japan Journey. http://mokuhankan.com/subscriptions/, Tóquio, 2019. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=M8ma5q9-lA0&list=PLrv6iA4aPsDGlRLREjaelfS7iFdz15La&index=2. Acessado em 20/07/2021. MOTOMI, T. Mokurito live 53. Foot pressure printing.mp4. Japão, 2019. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zC33sO7Aw4&list=PLrv6iA4aPsDGGGziO5ZTqYpSwapZAeDR3&index=3&t=8s. Acessado em 26/07/2021. THE SMITHSONIAN’S MUSEUMS OF ASIAN ART. The Ukiyo-e technique. Traditional Japanese Printmaking with Master Printmaker Keiji Shinohara. Japan, 2017. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QA7x9PVHtiQ&list=PLrv6iA4aPsDGlRLREjaelfS7iFdz15La&index=6&t=1s. Acessado em 21/07/2021.

NOTAS DE FIM 1.

Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Professora de Arte da Rede Municipal de Ensino de Vitória-ES. http://lattes.cnpq.br/1833632706232255


UM PRODUTO EDUCACIONAL EM ARTES VISUAIS: possibilidades de integração curricular no ensino médio integrado

Kenia Olympia Fontan Ventorim1 Danielle Piontkovsky2 RESUMO O texto apresenta o processo de construção do produto educacional realizado durante a pesquisa do Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica, em curso, elaborado coletivamente entre a professora de Arte e os professores que ministram as disciplinas do núcleo profissionalizante do Curso em Administração Integrado ao Ensino Médio do Ifes. Partindo da problematização do questionamento: Como o ensino da Arte pode contribuir na busca pela efetivação de um currículo integrado?, nos baseamos em estudos nas legislações que regulamentam o ensino médio integrado e em autores que discutem sobre ensino médio integrado, integração curricular, ensino da arte e formação humana integral, conceitos estes relevantes para a fundamentação da nossa proposta. Por meio de encontros virtuais elaboramos o produto educacional, que chamamos de Cartões Postais, com imagens e sugestões de integração entre os conteúdos dessas disciplinas, buscando contribuir com a superação da fragmentação do conhecimento e o fortalecimento do campo da arte no processo de formação humana. Palavras-chave: Ensino da Arte; Produto Educacional; Integração Curricular; Ensino Médio Integrado; Educação Profissional e Tecnológica.

ABSTRACT The text presents the process of construction of the educational product carried out during the research of the Professional Master's Degree in Professional and Technological Education, in progress, collectively elaborated between the Art teacher and the teachers who teach the subjects of the professionalizing core of the Course in Administration Integrated with Teaching Middle of Ifes. Starting from the questioning of the question: How can art education contribute to the search for the realization of an integrated curriculum?, we base ourselves on studies in the legislation that regulates integrated secondary education and on authors who discuss integrated secondary education, curriculum integration, teaching of art and integral human formation, concepts that are relevant to the foundation of our proposal. Through virtual meetings, we elaborate the educational product, which we call Postcards, with images and suggestions for integration between the contents of these disciplines, seeking to contribute to overcoming the fragmentation of knowledge and strengthening the field of art in the process of human formation. Keywords: Art Teaching; Educational Product; Curriculum Integration; Integrated High School; Professional and Technological Education.

INTRODUÇÃO: PARA COMEÇO DE CONVERSA É de longa data a necessidade da superação do senso comum que trata tanto a arte como a cultura como temas supérfluos na formação humana, separando-as em uma disciplina que aborda especificamente o assunto, ou seja, fragmentando o conhecimento. É preciso pensar a cultura e concomitantemente a arte, como parte da totalidade construída socialmente e integrante da formação omnilateral3. “A razão explícita dada pelos educadores é que a educação no Brasil tem que ser direcionada no sentido da recuperação de conteúdos e que a arte não tem conteúdo (BARBOSA, 2012, p. 25). Pensando sobre essa realidade e, dialogando com diversos autores que tratam sobre integração curricular e como esse pode encaminhar a uma formação humana integral, Ramos


(2012) afirma que essa formação contribui para que o aluno tenha uma visão que vai além do mercado de trabalho, superando um aprendizado de funções meramente mecânicas para o acesso aos conhecimentos científicos, tecnológicos e sócio-históricos, abrindo caminhos para efetiva participação na sociedade. Com a elaboração desse trabalho, longe de ser o principal viés para a garantia de uma efetiva integração curricular, pretendemos contribuir para reflexões e mudanças de atitudes, saindo da inércia provocada pela disciplinarização e partindo para o diálogo com os interessados em colaborar com a integração. Para isso, é preciso entender que a arte se situa no entrecruzamento de muitos outros saberes, ela é mutante e universal, pois dialoga com diversos campos do conhecimento. “Como a matemática, a história e as ciências, a arte tem um domínio, uma linguagem e uma história. Constitui-se, portanto, num campo de estudos específicos e não apenas uma mera atividade” (BARBOSA, 2012, p. 7). Como também afirma a autora: A arte, enquanto linguagem, interpretação e representação do mundo, é parte desse movimento. Enquanto forma privilegiada dos processos de representação humana, é instrumento essencial para o desenvolvimento da consciência, pois propicia ao homem contato consigo mesmo e com o universo. Por isso, a Arte é uma forma de o homem entender o contexto ao seu redor e relacionar-se com ele. O conhecimento do meio é básico para a sobrevivência, e representá-lo faz parte do próprio processo pelo qual o ser humano amplia seu saber (BUORO, 2009, p. 20).

Nesse contexto, as práticas de ensino da arte vão além do desenvolvimento de habilidades e competências, podendo contribuir significativamente no processo de formação humana integral, uma vez que propiciam, dentre outros aspectos, a interação com o meio sociocultural, a criação estética e a visão crítica do mundo. Assim, trabalhamos com o objetivo de problematizar o ensino da arte reconhecendo-o como potencial para práticas integradoras entre a disciplina de Arte e as disciplinas do núcleo profissionalizante do Curso Técnico em Administração Integrado ao Ensino Médio em prol da efetivação da integração curricular e, consequentemente, da formação humana integral. Para isso há que se compreender primeiro a obrigatoriedade legal, depois o entendimento filosófico dessa proposta de ensino médio integrado e currículo integrado. Esse entendimento ajuda ver além dos espaços escolares, ao romper com a fragmentação teoriaprática, já que ainda é comum o pouco conhecimento dos professores sobre a proposta de integração do ensino médio com a educação profissional e, concomitantemente, com uma perspectiva de formação omnilateral. Para Ciavatta (2012), o exercício da integração supõe ações coletivas de professores dispostos a buscar a inovação, ministrando disciplinas de forma mais adequada a esta integração e considerando a articulação entre arte e ciência como


deflagradora de processos criativos. Nenhuma lei garantirá o exercício da integração se os professores não se dedicarem, de forma coletiva e compartilhada, a torná-la efetiva, acreditando na emancipação humana, política e social. Existe hoje a busca de um novo paradigma para a Ciência que, por entender o homem como um todo, maior do que a soma das partes, possa recuperar os “Leonardos” cientistas, anatomistas, inventores, criadores, músicos, pintores, seres integrais cujo conhecimento é construído a partir de uma integração com a natureza e com todas as formas de saber, por mais diversificadas que possa parecer (BUORO, 2009, p. 30-31).

A integração precisa ser experimentada, nesse contexto, como processo contínuo na trajetória de formação dos educandos, alicerçada nos eixos do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura. Conforme explica Moura (2013), são esses eixos que [...] permitem questionar o sentido das ciências e das tecnologias que estão envolvidas nos estudos e nas práticas realizadas no EMI, contribuindo para avanços significativos nas dimensões epistemológica e ético-política da formação humana. [...] E, dessa forma, [compreender] de que maneira eles contribuem para alterar a forma de viver dos seres humanos em geral e, em particular, da região onde está inserida a escola [...] (MOURA, 2013, p. 139).

É nesse sentido de busca por uma integração curricular que defendemos que a arte pode auxiliar no processo de mudança de atitude de um ensino puramente disciplinar, em um espaço e tempo que ainda há prioridade no ensino de técnicas, para um processo interdisciplinar entre os professores dispostos a buscar essa mudança em função da superação da hegemonia dominante e do caminhar em direção à integração de diferentes áreas do conhecimento. Como dito por Barbosa (2012), se pretendemos uma educação humanizadora, a necessidade da arte é crucial para desenvolver a percepção e a imaginação, para entender a realidade e pensar criativamente a modificação dessa realidade. Também afirma que é impossível o desenvolvimento de uma cultura sem o desenvolvimento de formas artísticas, é impossível o desenvolvimento integral da inteligência sem o desenvolvimento do pensamento divergente, do pensamento visual e do “conhecimento presentacional que caracterizam a arte” (BARBOSA, 2012. p. 5). De acordo com Parsons (2010), a integração só acontece quando a aprendizagem faz sentido para os alunos, quando percebem que os conhecimentos são conectados de diferentes formas, inclusive aos seus interesses, experiências de mundo e vida. Gallo corrobora com esse entendimento afirmando que [...] os alunos não conseguem perceber que todos os conhecimentos vivenciados na escola são perspectivas diferentes de uma mesma e única realidade, parecendo cada um deles autônomo e auto-suficiente, quando na verdade só pode ser compreendido em sua totalidade como parte de um conjunto, peça ímpar de um imenso puzzle que pacientemente montamos ao longo dos séculos e milênios (GALLO, 2016, p. 20).


Por isso essa pesquisa buscou enfatizar que não é possível conceber a ciência sem criação, sem arte, sem conhecimentos. Para Assumpção e Duarte (2016), não se trata de contrapor ciência e arte a partir de concepções dicotômicas que separam razão e emoção, fixando a ciência a uma visão reducionista da razão e a arte a uma visão igualmente reducionista da sensibilidade afetiva. Afirmar que a ciência lida apenas com a racionalidade é negar e unilateralizar a relação sujeito e objeto. Tanto a ciência quanto a arte conclamam os aspectos afetivos e cognitivos dos sujeitos. Aliás, a arte também é uma ciência! Todos esses aspectos fazem parte da construção humana e, nesse contexto, o ensino da arte envolve um conjunto de inúmeros conhecimentos que possibilitam esta integração, estabelecendo relação com diversos conteúdos de outras áreas, cada qual com seus saberes, mas objetivando o reconhecimento dessa complexidade, rompendo com a fragmentação das práticas em prol da formação integral do sujeito. Fazenda (2011) aponta a interdisciplinaridade como um dos caminhos para a efetivação da integração, visto que pressupõe uma mudança de atitude diante da concepção fragmentária do currículo para a unidade do ser humano. E afirma que o conhecimento interdisciplinar “deve ser uma lógica de descoberta, uma abertura recíproca, uma comunicação entre os domínios do saber, uma fecundação mútua e não um formalismo que neutraliza todas as significações, fechando todas as possibilidades” (Idem, 2011, p. 60). Salientamos que não existem “receitas prontas” para a efetivação da integração curricular, o que problematizamos são caminhos possíveis de serem percorridos buscando a superação da fragmentação do saber em disciplinas isoladas, bem como o distanciamento dessas com o contexto de vida do aluno. Entendemos também que para a realização dessas práticas integradoras é preciso que os professores saiam do comodismo de ensinar apenas questões específicas de “suas” disciplinas e sejam pensantes, criativos, renunciando verdades concebidas por anos, buscando nos campos teórico-epistemológico-práticos fundamentações para suas ações, compreendendo que esses campos não se separam. Para o professor do ensino médio integrado implica, nesse sentido, além de entender bem a sua área de atuação, conhecer também outras dimensões de conhecimentos que digam respeito à vida do estudante no seu processo de emancipação. SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA Os mestrados profissionais no Brasil foram instituídos a partir da publicação da normativa nº 17, de 28 de dezembro de 2009. Essa categoria de mestrado profissional exige, para sua conclusão, a elaboração de um produto educacional que seja útil à sociedade,


contribuindo com a tríade ensino, pesquisa e extensão, dentre outros aspectos. Dessa forma, utilizamos uma abordagem qualitativa por se tratar de uma pesquisa que pressupõe a participação dos sujeitos e o contato direto do pesquisador com o espaço investigado e com esses sujeitos. Esse tipo de pesquisa flexibiliza a condução da ação pois o foco está no processo e não no resultado da mesma (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). Os significados e observações surgem diante da vivência com o contexto, ou seja, o pesquisar produz os dados a partir da perspectiva dos participantes, que nela estão envolvidos, considerando que todos os pontos de vista são relevantes. Por ser uma abordagem que não segue rígidas estruturas, permite ao pesquisador que sua imaginação e criatividade proponham trabalhos que explorem novos enfoques (GODOY, 1995). Dessa forma, Oliveira (2012) nos alerta sobre os conhecimentos e as relações que são tecidas nos cotidianos entre os sujeitos, sendo relevantes não só para a vida cotidiana, mas para o desenvolvimento de novos conhecimentos que podem contribuir com a emancipação social. E afirma, [...] o cotidiano é o espaço-tempo no qual e através do qual, além de forjarmos nossas identidades e tecermos nossas redes de subjetividades, em função dos múltiplos conhecimentos, valores e experiências com os quais convivemos nele, tornamo-nos produtores de conhecimentos, mesmo dos chamados conhecimentos científicos (OLIVEIRA, 2003, p. 54).

A pesquisa com os cotidianos também foi nosso suporte, visto que entende que a educação acontece no percurso, nas relações entre os sujeitos desses cotidianos, buscando uma aproximação com os conhecimentos criados nesses contextos, da mesma forma em que buscamos a nós mesmos, nossas experiências enquanto professores, constituindo-se como nosso próprio tema de investigação. Garcia (2003) diz que a pesquisa com o cotidiano é ter a incerteza como recurso metodológico, pois são caminhos reais trilhados ao longo do processo, no encontro com pessoas e situações diferentes e imprevistas. Nos percursos da investigação e para a elaboração do produto educacional desta pesquisa, foram utilizados como instrumentos: análise de documentos, questionário, análise de imagens, narrativas e encontros virtuais – esses, que seriam presenciais, foram adaptados à realidade pandêmica da COVID-19 que se instaurou mundialmente desde final de 2019 até a presente data. Nesse processo buscamos proporcionar a interação constante entre o pesquisador e o campo de pesquisa, num permanente diálogo com/entre os sujeitos que praticam esses cotidianos (FERRAÇO, 2004). O lócus da pesquisa foi o Ifes – Campus Venda Nova do Imigrante, com foco no Curso Técnico em Administração Integrado ao Ensino Médio, escolha realizada por fazermos parte


desse grupo de professores e conhecer a realidade local. Iniciamos com uma prática exploratória, buscando uma ampliação dos estudos acerca de integração curricular, ensino médio integrado, trabalho como princípio educativo, omnilateralidade e ensino da arte, além de legislações que regulamentam a educação profissional e média, como a LDB (Lei nº 9.394/96), as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Concomitantemente, analisamos o Projeto Pedagógico do Curso Técnico em Administração Integrado ao Ensino Médio (PPC), a matriz curricular, o ementário e os planos de ensino desse mesmo curso, de modo a conhecer seus objetivos e fazer uma sondagem sobre as possibilidades de integração curricular entre a Arte e os demais componentes curriculares do núcleo profissionalizante. Para Lakatos e Marconi (2010, p. 151), a “análise é a tentativa de evidenciar as relações existentes entre o fenômeno estudado e outros fatores”. Especificamente, para o início do processo de construção da proposta, foi compartilhado com todos os professores que ministram as disciplinas profissionalizantes do referido curso, um formulário on-line para sondagem de práticas integradoras já realizadas por eles, com quais disciplinas e, em especial, com a disciplina de Arte, por ser o foco do nosso trabalho. Para Triviños (1987), quando usamos o questionário de forma semi aberta, enfatizamos a participação dos sujeitos da pesquisa de forma a evidenciar seus comportamentos no cotidiano, buscando pistas para a escrita da pesquisa. Esses mesmos professores foram convidados a participarem de dois Encontros Virtuais, síncronos, com o objetivo de discutir os temas principais da pesquisa e, posteriormente, realizar uma “catarse” 4 com imagens legitimadas ou não pelo campo da arte, mas que poderiam trazer possibilidades de integração entre as disciplinas já apresentadas. Nessa vertente, consideramos a obra de arte dotada de significados, construídos na relação direta da obra com o espectador. O leitor (aqui considerado “leitor de imagens” e as imagens consideradas “textos visuais”) constrói percursos profundos de sentidos, pois as imagens são ancoragens que permitem ampliar olhares, num diálogo contínuo com as experiências pessoais. Hernández (2007), ao tratar sobre a Cultura Visual, afirma que a intenção não é a de centrar-se no significado das imagens, mas em “como” significam. Para Freedman (2010), as relações entre as imagens e suas interligações interdisciplinares são inegáveis para o entendimento da arte e de outras formas de cultura visual. Após a realização dos encontros, demos continuidade à pesquisa e, já com muitos dados “em mãos”, traçamos as possibilidades de integração dos conhecimentos, refletindo acerca de como as práticas artísticas se inter-relacionam com os conteúdos abordados nos


encontros virtuais. As narrativas registradas nos encontros serviram de suporte na construção dessa proposta de integração. O que potencializa a contribuição dessas narrativas – musicais, imagéticas, românticas, contistas, etc. – são as múltiplas realidades constitutivas da sociedade em que vivemos e que elas expressam, possibilidades de subversão daquilo que a modernidade nos ensinou. Precisamos de narrativas que contribuam para a compreensão ampliada do que é e do que pode ser a realidade social na qual estamos vivendo, escamoteada e tornada invisível a “olho nu” pelas normas e regulamentos da cientificidade moderna, da hierarquia que se estabelece entre teoria e prática e dos textos produzidos segundo tais ditames (OLIVEIRA, 2010, p. 23).

Materializando o produto educacional produzido colaborativamente e, sendo importante para nós que fosse feito a partir de uma linguagem artística, optamos então por um gênero de arte experimental, chamado de Mail Arte 5, Arte Postal ou Cartões Postais. Vale destacar que os cartões postais são conhecidos tradicionalmente pela facilidade de circulação pelos Correios, como também pela necessidade de mostrar a alguém, muito querido, algo que lhe chamou a atenção, na maioria das vezes, pontos turísticos. A partir da Arte Contemporânea, com a utilização de novos suportes para criações artísticas, a Arte Correio, Arte Postal ou Mail Art, entra numa circulação underground/marginal de imagens e mensagens irônicas ou mesmo críticas à realidade social e política, como afirma Lopes (2018). Ray Johnson e seu amigo Ed Plunkett, jovens artistas americanos, objetivavam com a Mail Art ampliar a rede de comunicação entre artistas de todo o mundo, utilizando os recursos que existiam por volta de 1950 (LOPES, 2018). No Brasil, essa manifestação artística foi estimulada pelos protestos contra a Ditadura Militar, a partir de 1968, com a publicação do AI-56, enfatizando uma relação texto/imagem e encurtando a distância entre as pessoas, estimulando uma reflexão crítica. Resumidamente, e como material educativo, os Cartões Postais trazem em sua frente imagens trabalhadas em um dos Encontros Virtuais que despertaram, entre os professores, possibilidades de integração entre a Arte e as disciplinas do núcleo profissionalizante. No seu verso, constam sugestões de integração curricular, listando pontos de interseção, entre as dimensões do conhecimento das disciplinas citadas anteriormente, sempre pensando em efetivar a integração curricular e, consequentemente, buscando a melhoria de práticas integradoras na educação básica, visto ser de fácil acesso e permitir a troca de informações e experiências entre os professores que ministram disciplinas no Ensino Médio Integrado. Como afirma Kaplún (2003), um material educativo é um objeto, é algo que apoia e facilita o desenvolvimento de uma experiência de aprendizado e, mesmo que proporcione só informação, pode ser educativo desde que seja utilizado adequadamente para cumprir essa função.


Os Cartões Postais surgiram de um trabalho de conexões a partir do que os professores disseram nos encontros, das propostas de cada disciplina apresentada no PPC do Curso e dos Planos de Ensino dos professores entregues no início do ano letivo, com nosso conhecimento sobre a área da Arte. Algumas ementas/planos de ensino traziam conteúdos mais específicos, delineados, outros mais objetivos, o que dificultava nosso entendimento sobre qual conteúdo daquela disciplina o professor se referia. Por esse motivo, quando preciso, fazíamos um contato individual com alguns professores para que nos orientassem quanto a essas dúvidas. Para cada imagem apresentada fizemos uma análise e uma busca sobre quais disciplinas e conteúdos poderiam ser trabalhados a partir desta, além da busca de dados sobre a imagem. Foi o momento de maior entrega, pois é com esse material que outros professores podem efetivar movimentos de integração, propostas interdisciplinares, sendo esse o foco principal de toda a pesquisa. Sabíamos que algumas imagens poderiam contemplar mais disciplinas e conteúdos, mas não tivemos a participação de todos os professores do Curso Técnico em Administração Integrado ao Ensino Médio do Campus, por isso contamos com aqueles que se dispuseram a participar. Também poderíamos repetir alguns conteúdos em várias imagens, mas não pretendíamos sobrecarregar os cartões com tantas informações, de modo a não descaracterizar sua estética original. Dentre todas as imagens apresentadas durante o Encontro Virtual Dois, selecionamos, para o produto, aquelas que permitiram mais possibilidades de interseções entre as disciplinas do curso. É sabido também que as nomenclaturas das disciplinas também podem variar de um campus para outro, em virtude da elaboração da matriz curricular de cada um deles, mas acreditamos que a identificação pelos conteúdos permitirá o trabalho que estamos propondo. Figura 1 – Cartão Postal 1


Fonte: arquivo pessoal

No total, foram elaborados doze cartões que trazem imagens de pinturas, esculturas, filmes, propagandas, reportagens e fotografias, todas relacionadas ao mundo do trabalho, e quando apresentadas aos professores, foram despertando possibilidades de intersecção entre a Arte e as disciplinas do Curso Técnico em Administração integrado ao Ensino Médio. Defendemos que com esse material em mãos, uma infinidade de ações integradoras poderá ser elaborada coletivamente em termos metodológicos, como: projetos de exercício profissional, pesquisa aplicada, avaliações, seminários, estudo de casos, portfólio, entre outros, pois como nos diz Kuenzer e Garcia (2013, p. 71) “a utopia se concretiza a partir de ações coletivas; assim, a integração terá que ser construída pelo trabalho coletivo com direção política”. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do questionário aplicado e dos encontros virtuais realizados com os professores participantes, entendemos que a fala desses professores corroboram com muitos autores que apontam sobre a dificuldade do envolvimento nesse tipo de projeto, tendo em vista que a maioria dos profissionais não teve essa experiência durante sua formação, tradicionalmente disciplinar e conteudista, não conseguindo conceber novas atividades. Tauchem e Araújo (2018) ao discorrerem sobre a prática interdisciplinar afirmam que é preciso que o sujeito esteja predisposto ao trabalho coletivo, apostando na construção de respostas para suas inquietudes. Também percebemos que para muitos professores ainda é distante a percepção da Arte como campo de conhecimento com possibilidades de integração


com outras disciplinas. Frisamos, a partir dos resultados obtidos, a necessidade do entendimento de conceitos fundamentais para a educação profissional e o ensino médio integrado, como a interdisciplinaridade e currículo integrado, por acreditarmos que muitas práticas integradoras não acontecem devido a hierarquização dos saberes e a pouca discussão/estudo de temáticas relacionadas. Ao longo da pesquisa foi notória a percepção individual dos professores sobre sua prática, apontando a efetivação de um currículo integrado para que o aluno compreenda o mundo a sua volta a partir dos conceitos de trabalho, tecnologia, ciência e cultura e se desenvolva integralmente. Conforme afirmam Ciavatta e Ramos (2012), o currículo elaborado sobre as bases do trabalho, da ciência, da cultura e da tecnologia não pode hierarquizar os conhecimentos nem os respectivos campos das ciências, devendo problematizá-los em suas historicidades, relações e contradições. Se a formação humana integral pressupõe a indissociabilidade entre o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura, defendemos que uma dessas dimensões não pode ser pensada sem a outra, e a Arte se apresenta como possibilidade integradora, pois permite aos diferentes sujeitos "experienciar a arte como via de humanização de direito e de fato. [...] E não há como ignorar, contribui para o desenvolvimento da capacidade de raciocínio, de solucionar problemas e enfrentar desafios do pensamento divergente”, facetas exigidas no mundo do trabalho contemporâneo, frente ao atual modelo econômico-político-social (SCHLICHTA, 2009, p. 37). Vale destacar que o processo final da pesquisa se deu com a validação do produto educacional, feita por meio de um formulário de avaliação do produto, que foi enviado através dos Correios, para os professores do Curso Técnico de Administração integrado ao Ensino Médio do Ifes – Campus Centro-Serrano, confirmando a possibilidade dessa integração objetivada com a pesquisa. Essa participação dos professores foi fundamental não somente para a elaboração da versão final do produto, mas para a confirmação sobre a necessidade de ações voltadas para a integração curricular, ou seja, corrobora com a ideia de que uma formação de nível médio integrada só se realiza plenamente à medida que os conhecimentos propedêuticos estejam em consonância com o mundo do trabalho e coloca o professor desse curso como um dos pontos fundamentais para a efetivação dessa perspectiva de trabalho. Ressaltamos novamente a finalidade dessa pesquisa ser somente um condicionante sobre as possibilidades de integração entre a Arte e o núcleo profissionalizante desse curso, de forma mais específica, já que, como afirma Oliveira (2003, p. 82), se referindo as práticas curriculares tecidas nas escolas “suas tonalidades vão depender sempre das possibilidades


daqueles que as realizam e das circunstâncias”. Por fim, entendemos que o estudo aponta a existência de uma relação entre as disciplinas profissionalizantes e a Arte, visto que as primeiras podem fazer uso de conhecimentos da segunda para que os conteúdos/assuntos sejam apreendidos pelos alunos de forma mais significativa. Esses conteúdos podem ser elencados através de imagens legitimadas ou não pelo campo da arte, de forma contextualizada e interdisciplinar, cumprido o que os documentos legais do ensino médio integrado trazem sobre seus objetivos. Sabendo de nossas limitações, reconhecemos o caráter incompleto de nossa pesquisa, mas conscientes de que o que foi apresentado é um ponto de partida para novos estudos e outras proposições de integração que podem vir a ocorrer no ensino médio e na educação profissional do Brasil. REFERÊNCIAS ASSUMPÇÃO, Mariana de Cássia; DUARTE, Newton. A função da arte da educação escolar a partir de György Luckács e da Pedagogia Histórico Crítica. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 68, p. 208-223, jun. 2016. Acesso em 26 Abr 2019. BARBOSA, Ana Mae. Imagem no Ensino da Arte: anos oitenta e novos tempos. 6 ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. BUORO, Ana Amélia Bueno. O olhar em construção: uma experiencia de ensino e aprendizagem da arte na escola. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2009. CIAVATTA, Maria. A formação integrada: a escola e o trabalho como lugares de memória e de identidade. In: FRIGOTTO, G.; RAMOS, M.; CIAVATTA, M. Ensino Médio Integrado: concepção e contradições. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2012. CIAVATTA, M.; RAMOS, M. Ensino Médio Integrado. In: CALDART, R. S.; PEREIRA, I. B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO, G. Dicionário da Educação do Campo (Org.). Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012. FAZENDA, Ivani C. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. São Paulo: Edições Loyola, 2011. FERRAÇO, Carlos Eduardo. Os sujeitos praticantes dos cotidianos das escolas e a invenção dos currículos. In: MOREIRA, A. F. B., PACHECO, J. A. e GARCIA, R. L. (Orgs.) Currículo: pensar, sentir e diferir. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. FREEDMAN, Kerry. Currículo dentro e fora da escola: representações da Arte na cultura visual. In: BARBOSA, A. M. Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2010. GALLO, Sílvio. Transversalidade e educação: pensando uma educação não disciplinar. In: ALVES, Nilda; GARCIA, Regina Leite (orgs.). O sentido da escola. 6ª ed. Petrópolis, RJ: DP et Alii, 2016. GARCIA, Regina Leite. Tentando compreender a complexidade do cotidiano. In: ______ (org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. GODOY, Arilda Schimidt. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v.35, n.3, p. 20-29, 1995. HERNÁNDEZ. Fernando. Catadores da cultura visual. Porto Alegre: Mediação, 2007. KAPLÚN, Gabriel. Material Educativo: a experiência de aprendizado. Revista Comunicação & Educação, São


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NOTAS DE FIM 1.

Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica do Ifes – Campus Vitória e Professora de Arte do Ifes – Campus Venda Nova do Imigrante.

2.

Professora orientadora e Coordenadora Nacional do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica – ProfEPT.

3.

Para Manacorda, formação omnilateral é o “desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos, das faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade da sua satisfação” (MANACORDA, 2017, p. 94).

4.

A catarse se refere, em linhas gerais, “ao ápice da relação entre o sujeito e o objeto estético, num processo de elevação acima do caráter pragmático e heterogêneo que caracteriza a subjetividade dos indivíduos nas atividades próprias à vida cotidiana. Este é um processo, muitas vezes, moroso, que


depende da educação estética para atingir êxito. Um sujeito educado esteticamente, que possui uma sensibilidade apurada tem maiores possibilidades de captar toda a riqueza de uma obra de arte e vivenciar essa riqueza como parte de sua própria vida” (ASSUMPÇÃO; DUARTE, 2016, p. 213). 5.

A autora Almerinda da Silva Lopes, em seu artigo “Arte Correio na América Latina: do uso da tecnologia na manutenção da rede subversiva ao processo de institucionalização”, apresentado no 17º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, em 2018, traça um percurso histórico sobre o tema, além de abordar outras questões.

6.

O Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, marcou o início do período mais duro da Ditadura Militar (1964-1985). Editado pelo então presidente Arthur da Costa e Silva, ele deu ao Regime uma série de poderes para reprimir seus opositores.


PARTE 2 - RELATOS DE EXPERIÊNCIA


“ARTE À DISTÂNCIA”: reflexões iniciais sobre ensino de arte e, educação infantil, durante a pandemia da covid-19 (2020). Isabella Pires Vertuam Martins João Paulo Baliscei Regina Ridão Ribeiro de Paula RESUMO Durante a pandemia da covid-19, no ano de 2020, devido à suspensão das aulas na modalidade presencial, foram disponibilizadas atividades on-line pela Secretaria Municipal de Educação de Maringá – SEDUC para as crianças da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Ao analisar as atividades que envolvem técnicas artísticas, disponibilizadas no site oficial da Secretaria, perguntamos: Quais concepções de desenhos subjazem os exercícios destinados às crianças, a distância, durante a pandemia da covid-19? Nesta reflexão temos como objetivo apresentar aspectos iniciais de uma pesquisa em andamento sobre o ensino de Arte, Educação Infantil, e práticas de ensino durante a pandemia. Como metodologia, este trabalho consiste em uma pesquisa bibliográfica, a partir da qual reunimos textos de autores/as que discutem sobre o desenho infantil, como Susana Rangel Vieira da Cunha (1999), e documentos oficiais, como a Base Nacional Curricular Comum – BNCC (BRASIL, 2018). Auxiliaram-nos tanto para identificar conteúdos aplicáveis a esta Etapa da Educação Básica como e até mesmo ampliar as noções do que é a Educação Infantil. Como resultado dessa pesquisa, intentamos incentivar a prática de uma docência que utiliza de artifícios para além dos estereotipados e convencionais no ensino de Arte, desmistificando o desenho como a única atividade aplicável às crianças. Palavras-chave: Educação Infantil; Arte; Desenho Infantil.

ABSTRACT During a covid-19 pandemic in 2020, due to the suspension of classes in face-to-face mobility, on-line activities were made available by Secretária Municipal de Educação de Maringá – SEDUC for children from Early Childhood and Elementary School. By analyzing the activities involving techniques, available on the official site of the Secretary, we ask: What conceptions of drawings underlie the exercises aimed to present initial aspects of na ongoing research, from which e gather texts by authors that discuss children’s drawing, such as Susana Rangel Vieira da Cunha (1999), and official documents such as Base Nacional Curricular Comum – BNCC (BRASIL, 2018). They helped us both to identify contents applicable to this Stage of Basic Education and even expand the notions of what Early School is. As a result of this research, we intend to encourage the practice of a teaching that uses artífices beyond the stereotyped and conventional art teaching, demystifying drawings as the only activity applicable to children. Keywords: Early Childhood; Art; Children’s Drawing.

INTRODUÇÃO Esse relato de experiência consiste em um desdobramento de uma pesquisa do Programa de Iniciação Científica (PIC), cujo título é Arte a distância: análise de atividades com técnicas artísticas propostas à Educação Infantil durante a pandemia da covid-19 (2020), em desenvolvimento juntamente com o curso de Artes Visuais, (instituição), com início no ano de 2021. Nossa trajetória de pesquisa nesse PIC culminou, como era de se esperar, na formulação de outras perguntas, como a que aqui propomos: Quais aspectos envolvem os exercícios destinados às crianças, a distância, durante a pandemia da covid-19? Questionamento esse, que nos impulsionou a objetivar apresentar aspectos iniciais de uma pesquisa em andamento sobre o ensino de Arte, Educação Infantil, e práticas de ensino durante a pandemia. Desta forma, para atingir o objetivo ao qual nos propomos neste resumo expandido,


primeiramente, desenvolvemos um trabalho bibliográfico, onde reunimos textos (artigos, capítulos e livros, por exemplo) de autores/as que tematizam o desenho infantil; e, depois, a partir de um trabalho analítico, quando nos debruçamos sobre as atividades disponibilizadas pela Secretaria Municipal de Educação de Maringá, realizamos uma contagem a fim de verificar quantos exercícios envolveram técnicas artísticas, e quais técnicas foram contempladas por eles. ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL A Educação Infantil, segundo a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2018), tem como competência ampliar os conhecimentos dos/as alunos/as sobre o mundo e suas vivências. A BNCC (BRASIL, 2018) é um documento nacional que tem como objetivo orientar as bases educacionais, em suas aprendizagens essenciais, e estabelece elementos tais como, conteúdos e metas de aprendizagem a serem contempladas durante a Educação Básica. Portanto, propõe que todos(as) estudantes tenham a mesma base de conteúdos na educação. Nessa etapa da Educação Básica, contemplam-se bebês de zero até 1 ano e 6 meses e crianças entre 1 ano e 7 meses e 5 anos, de modo que a obrigatoriedade da matrícula só ocorre no caso de crianças de 4 e 5 anos, as quais frequentam o Infantil 4 e o Infantil 5, respectivamente. Esse documento nacional também assegura 6 direitos do desenvolvimento infantil, sendo eles: Conviver, Brincar, Participar, Explorar, Expressar e Conhecer-se. A BNCC (BRASIL, 2018) estabelece que é por meio deles que os/as docentes têm de assegurar o desenvolvimento pedagógico, relacionando-o às interações e brincadeiras, de modo que as crianças atuem ativamente com as atividades propostas, com os/as colegas e com os/as professores/as. Susana Rangel Vieira da Cunha (1999) trata, especificamente, sobre as atividades de Arte na Educação Infantil. Segundo a autora, é importante ter um ambiente onde o sujeito é colocado no papel de investigador do mundo, pois a criança pequena aprende com e a partir de seus cinco sentidos (visão, olfato, tato, audição e paladar). Portanto, a autora sugere que o/a educador/a provoque as crianças a conhecerem diferentes vivências, por meio de brincadeiras e atividades que estimulem os sentidos e o fazer artístico, sendo este a principal linguagem da criança. Em uma ação pedagógica executada por João Paulo Baliscei e Regina Ridão Ribeiro de Paula (2020), em desenvolvimento ao Estágio Supervisionado no curso de Artes Visuais, por exemplo, ofereceram às crianças do Infantil I, atividades lúdicas para que as elas interagissem assumindo um papel ativo. Utilizaram de um conjunto de pinturas intituladas como “Peixes”, do artista brasileiro Aldemir Martins, como ponto inicial para a elaboração das atividades, que envolveram peixes e o fundo do mar. Todo material usado durante as aulas


foi pensado de modo que conduzisse as crianças a refletirem sobre o uso da cor azul, dos peixes e do mar. É válido explicar que essa atividade de Estágio Supervisionado foi executada em 2019 e de modo presencial. Em tempos de atividades remotas, devido à pandemia causada pela Covid-19, os Centros Municipais de Educação Infantil de Maringá – CMEI, assim como os de outras cidades paranaenses e brasileiras, suspenderam as atividades presenciais desde de 2020, e disponibilizaram às crianças e familiares atividades virtuais e impressas para serem realizadas em seus domicílios. ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM TEMPOS DE PANDEMIA Ao analisar como está sendo o ensino de Arte em tempos de pandemia, segundo informações disponíveis na página inicial do site da prefeitura de Maringá, socializado entre os/as familiares, verificamos que a SEDUC se comprometeu a elaborar e a compartilhar atividades semanalmente, para os alunos/as da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, desde março de 2020 - período quando as aulas foram suspensas. No texto, é explicado que as atividades endereçadas à Educação Infantil contemplarão apenas os/as alunos/as do Infantil 3, 4 e 5. Diante dessa informação, perguntamos: Quais aspectos envolvem os exercícios destinados às crianças, a distância, durante a pandemia da covid-19? Ao acessar as atividades virtuais que foram disponibilizadas aos/as alunos/as e familiares, notamos que a cada semana foram publicadas novas atividades em arquivos em formato .pdf, permitindo que os familiares as imprimissem para a realização. Contamos que, para o Infantil 3, foram disponibilizadas cerca de 46 atividades, entre elas, atividades extras referentes aos cuidados que as crianças deveriam ter para se protegerem da covid-19, como também um livro literário infantil que discutia sobre a importância do isolamento social e de cuidados com a higiene. Para o Infantil 4 foram 56 as atividades disponibilizadas no total. Entre elas também havia exercícios referentes à covid-19 e ao mesmo livro de literatura. Já para o Infantil 5, contamos 54 atividades, as quais também contemplaram os cuidados com a covid-19 e o já referido livro de literatura. Dentre 46 as atividades disponibilizadas para a Educação Infantil 3, apenas 16 envolviam técnicas artísticas e nenhuma delas apresentava artistas ou produções artísticas específicas. Das 16, percebemos que 14 foram voltadas para o desenho, por exemplo, e pediam para as crianças desenharem seu animal favorito, ou então contornarem formas de objetos. Para além do desenho, houve também uma atividade que envolverá colagem e uma


outra, modelagem. Para colagem, a atividade propôs que os/as responsáveis pela criança dessem a ela vários tipos de papéis, incentivando com que ela rasgasse e depois colasse em uma outra folha, livremente estimulando a criatividade da criança. E para modelagem, foi pedido para que a criança modelasse com massinha um corpo humano e identificasse as partes dele. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do que aqui foi exposto, entendemos que as atividades direcionadas ao ensino de Artes Visuais requer também interações para além do desenho e do “fazer livre” e não direcionado. Pontuamos que a intencionalidade educativa promove trocas significativas entre professores/as e alunos/as, e que essa interação pode acontecer para além das atividades convencionais ao ensino de Arte. Por fim, gostaríamos de pontuar que em nossa experiência de pesquisa não tivemos oportunidades de estar em espaços físicos vivenciando e analisando as atividades de Arte junto às crianças, no entanto, este tipo de pesquisa tem sido inédito ao observar os exercícios docentes em momentos de pandemia, e que esse exercício nos parece interessante e convidativo para outras investigações e pesquisas. REFERÊNCIAS BALISCEI, João; PAULA, Regina Ridão Ribeiro de. Bebês também aprendem (com) as artes visuais: criação de recursos didáticos a partir dos peixes de Aldemir Martins. Revista Educação e Linguagens. Campo Mourão, v. 9, n. 16, jan./jun. 2020. Disponível em: <http://www.fecilcam.br/revista/index.php/educacaoelinguagens/article/view/2133>. Acesso em 28 de abr. de 2021. CUNHA, Susana Rangel Vieira da (org.). Cor, som e movimento: a expressão plástica, musical e dramática no cotidiano da criança. Porto Alegre: Mediação, 1995. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica: Brasília, 2018. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base>.


A ARTE COMO MEIO DE SOCIALIZAÇÃO Mariana Passini Cruz Maira Pêgo de Aguiar

RESUMO Este estudo teve como objetivo buscar com a fotografia uma melhor sociabilidade da criança com TEA. A metodologia utilizada foi o estudo de caso com um estudante do 6° ano, da rede pública municipal de Vitória com diagnóstico de autismo, tendo como ferramenta artística a câmera de celular do mesmo, onde realizava as fotografias com temas propostos. Como resultado, o aluno começou a querer mostrar seu mundo e o que achava ser belo sem ter um tema específico. Concluiu-se nesse caso que o seu envolvimento com a fotografia e seus espaços cotidianos, ele passou a interagir com as pessoas, tanto em seu condomínio como na escola, chegando no objetivo proposto, o da sociabilização. Palavras-Chave: autismo; estudante; fotografia.

ABSTRACT This study aimed to seek with photography a better sociability of children with ASD. The methodology used was to conduct a case study of an Autistic Diagnosed 6th grade student from the Public School System of Vitoria, using his cell phone camera as an artistic tool, where he took photographs with proposed themes. As a result, the student began to want to show his world and what he thought was beautiful without having a specific theme. It was concluded in this case that his involvement with photography and his everyday spaces, he started to interact with people, both in his condominium and at school, reaching the proposed objective, that of socialization. Keywords: autism; student; photography.

INTRODUÇÃO Buscou-se neste estudo de caso, orientado pela professora Dra. Maira Pêgo de Aguiar, utilizar a fotografia como meio de auxiliar a socialização de crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista). "Através das artes é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada” (BARBOSA, p. 4)

O ensino da Arte proporciona uma maior sensibilidade com o mundo e com as pessoas à nossa volta, dando sentido às nossas experiências. Desse modo busca-se com a Arte, auxiliar Mateus (nome fictício) no seu desenvolvimento tanto na área social como em sua autocompreensão, utilizando para isso, a fotografia. Aproveitando o interesse do aluno por seu celular, fizemos uso de sua câmera do aparelho neste estudo. Sabendo dos benefícios da arte na vida humana, o trabalho procurou reafirmar a importância do ensino de artes, auxiliando no desenvolvimento social, sensível aos sentidos do mundo ao nosso redor. O ESTUDO DE CASO E SEU ATOR Conforme, BRASIL (2014) o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é uma condição, na qual o indivíduo pode apresentar déficit na comunicação social ou na interação


social e comportamental (movimentos repetitivos, interesses fixos, sensibilidade a estímulos sensoriais), podendo ocorrer em intensidades diferentes dependendo de cada indivíduo. Mateus, 11 anos de idade, estudante do ensino fundamental da rede municipal de Vitória, tem Transtorno do Espectro Autista leve. Sua maior dificuldade estava em construir laços de amizade, muito receio de se aproximar e falar com colegas de turma, mesmo sendo um estudante extremamente participativo nas aulas. Foi observado seu comportamento também nos recreios, onde não se sentava no refeitório e nem se alimentava das refeições ofertadas pela escola. Quando era chamado para brincar pelos colegas, sempre recusava o convite. Pensando nas ideias de uma arte-educação defendida por Duarte Jr. (1986, n.p) destacamos: "[...] porque a simples transmissão de conceitos verbais, que não se ligam de forma alguma aos sentimentos dos indivíduos, não é garantia de que um processo de real aprendizagem ocorra". Neste sentido, ao tentar passar um conhecimento temos que trazê-lo o mais próximo possível de uma vivência do educando, com este intuito, o estudo de caso iniciou-se a partir da pergunta "Do que você gosta?". Para nossa surpresa, Mateus não soube responder do que ele gostava. Esperavam-se respostas como videogame, futebol, mas ele ficou apenas em silêncio. Devido à falta de resposta, optamos por observá-lo para perceber o que mais lhe agradava. Observamos que Mateus, como qualquer outro adolescente, passava o seu tempo livre no celular, dessa maneira, propusemos a fotografia como linguagem de expressão, utilizando para isto a câmera do celular. AS ATIVIDADES Atividade 1 - "Observar e enxergar a escola": tema escolhido para que Mateus observasse o espaço no qual passava grande parte do seu tempo e descobrisse lugares da escola que ainda não havia reparado, por não fazerem parte do seu caminho cotidiano. Imagem 1 - A quadra da escola.


Fonte: das autoras (2019). Imagem 2 - Janela do corredor.

Fonte: das autoras (2019).

O que consideramos mais interessante é que Mateus esperava as pessoas saírem do lugar para realizar a foto, pois os espaços não estavam realmente vazios quando ele os observava. Atividade 2 - "O seu apartamento": tema em que Mateus deveria apresentar onde morava, tendo como objetivo mostrar o que via. Imagem 3 - Sua gata.


Fonte: das autoras (2019). Imagem 4 - Área da piscina.

Fonte: das autoras (2019).

Nesta atividade ele traz duas novidades: mesmo não sabendo o que seria composição, ele trouxe essa ação para a Imagem 3, quando adicionou a manta que tinha cores próximas da pelagem de sua gata, tornando a foto monocromática. A outra novidade foi que Mateus desceu sozinho para a área comum do condomínio, uma vez que ele não tinha esse costume. A imagem 4 é um exemplo dessa visita à área comum do prédio, e mais uma vez, temos espaço que estaria composto por pessoas - a área da piscina, que, no entanto, Mateus fotografou-o vazio. Atividade 3 - “Sua Viagem”: o tema foi proposto devido a uma viagem que Mateus faria para Cabo Frio com a família.

Imagem 5 - Caminho.


Fonte: das autoras (2019). Imagem 6 - Praia.

Fonte: das autoras (2019).

Mateus trouxe novas imagens de cenários que não continham pessoas, o que nos causou estranheza considerando tratar-se de uma praia turística. Ele nos colocou que as pessoas não somam de forma positiva a sua imagem, que o seu objetivo é mostrar a beleza da paisagem. Percebemos que o trabalho de autoconhecimento de Mateus foi tomando forma tanto em suas opiniões quanto em suas produções. Um exemplo disso ocorreu em agosto, com a Mostra Cultural de sua escola, na qual cada turma teve um espaço expositivo de trabalhos produzidos no semestre anterior. Mateus, além de participar com a sua turma, foi convidado pela professora de arte para ter um espaço expositivo só dele. Atividade 4 - Seleção de fotos: o próprio Mateus teria que selecionar as fotos para a Mostra. Ele selecionou 19 imagens que, na sua concepção, eram belas e lhes deram prazer em produzir. CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante todo esse processo, observamos as mudanças no seu comportamento dentro da escola, os colegas de turma se interessavam pelas suas fotos deixando-o mais seguro e com menos medo de interagir com eles. Parou de se isolar durante os recreios sentando-se junto com os colegas no refeitório ou brincando de bola e pega-pega, até mesmo experimentou a


comida feita pela escola sem que nós precisássemos pedir para que tentasse comer algo. Sua mãe também notou as mudanças, contando-nos que ele tinha amigos no condomínio agora. A partir das descidas para fotografar nas áreas comuns do prédio, começou a ser visto pelas outras crianças, e assim foi sendo convidado para participar de jogos e brincadeiras. Ela comenta que o novo apelido dele é “arruaceiro”, pois não quer mais saber de ficar dentro do apartamento. São pequenas mudanças que fazem grandes diferenças na vida do estudante e da família. REFERÊNCIAS BARBOSA, Ana Mae. Arte, Educação e Cultura. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/mre000079.pdf>. Acesso em: 02 jan.2021. BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes de Atenção: à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (TEA). Brasília : Ministério da Saúde, 2014. 86 p. : il. ISBN 978-85-334-2. DUARTE Jr., João-Francisco. Fundamentos Estéticos da Educação. 10. ed. Campinas, SP: Papirus, 2008. DUARTE Jr., João-Francisco. Por que Arte-educação? Campinas, SP: Papirus, 2019. (Coleção Ágere) 299 Kb; ePub. ISBN 978-85-449-0331-5.


A MODA INSPIRADA NA ARTE AFRICANA Thais Martins do Nascimento RESUMO O presente trabalho refere-se a um relato de experiência sobre um plano de aula desenvolvido para alunos do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental em modelo remoto promovido em uma escola municipal da cidade de Vitória/ES. O plano de aula utilizou o tema da moda inspirada na arte africana sob a perspectiva da influência da cultura Afro na moda brasileira e no trabalho da artista Goya Lopes. O tema abordado responde diretamente à Lei n.10.639/2003 que institui a obrigatoriedade do ensino da história africana e afro-brasileira na Educação Básica. Discute-se também o desafio do ensino remoto na educação devido à crise sanitária em virtude da pandemia do Covid-19. Palavras-chave: Arte africana; Ensino remoto; Moda; Relações étnico-raciais.

ABSTRACT The present work refers to an experience report on a lesson plan developed for students from the 6th and 7th years of elementary school in a remote model promoted in a municipal school in the city of Vitória/ES. The lesson plan used the theme of fashion inspired by African art from the perspective of the influence of Afro culture on Brazilian fashion and on the work of artist Goya Lopes. The topic addressed responds directly to Law n.10.639/2003, which instructs the mandatory teaching of African and Afro-Brazilian history in Basic Education. The challenge of remote teaching in education due to the health crisis caused by the Covid-19 pandemic is also discussed. Keywords: African art; Remote teaching; Fashion; Ethnic-racial relations.

INTRODUÇÃO O presente trabalho refere-se a um relato de experiência sobre um plano de aula desenvolvido para alunos do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental em modelo remoto promovido em uma escola municipal da cidade de Vitória/ES, e tem por objetivo apresentar o referido plano de aula e o desafio de executá-lo de forma remota. Conforme a situação de crise sanitária em virtude da pandemia de Covid-19 tornou-se indispensável no contexto educacional desenvolver atividades pensadas sob a perspectiva de aulas remotas, devido à falta de previsão de retorno das aulas presenciais ou em modo híbrido. De acordo com a situação vigente, a docente preceptora da referida escola na qual atuei como residente, ofertou algumas opções de temas para cada residente desenvolver duas atividades de duas horas e meia cada uma, sendo uma aula por semana. A docente usou como base o livro didático Projeto Arte Presente (IAVELBERG, SAPIENZA e ARSIAN, 2017) adotado pela escola para a separação dos temas, além disso, o livro também foi usado como referência para o desenvolvimento das atividades. É importante destacar a problemática do ensino remoto conforme alega Monteiro (2021), principalmente no que diz respeito às escolas públicas e periféricas. No ano de 2020, logo após serem tomadas diretrizes para que o sistema educacional retomasse as atividades em modelo remoto com o intuito de não potencializar o prejuízo da aprendizagem dos alunos,


foi observado pela docente que, no decorrer dos meses, a adesão dos alunos na realização das atividades remotas foi muito pequena. Desta forma, o desafio para o ano de 2021 foi captar a atenção de todos ou da maioria dos alunos para fazerem as atividades. No entanto, o problema não estava somente em despertá-los para desenvolver as atividades propostas, por estarmos em uma pandemia, ou seja, enfrentando uma situação inédita em nossa geração, esbarramos em situações muito peculiares, como: perda de entes queridos, desemprego, fome, incertezas sobre o futuro, falta de equipamentos adequados para desenvolver e realizar as atividades (acesso à internet, computador e celular) entre outras situações, e por mais que o professor e demais profissionais da educação se esforçam para entregar um conteúdo de qualidade aos alunos, havia situações que não estavam sob controle. É compreensível que legalmente as escolas possuam o respaldo de implantar um ensino à distância em meio a esta situação emergencial, no entanto, diversas questões surgiram, como, por exemplo: de que modo seria garantida a qualidade do ensino? Este tipo de questionamento não possui uma resposta imediata, apenas a suposição de que muitos alunos encontram-se prejudicados e as consequências serão observadas melhor com o passar dos anos. Todavia, mesmo com esses questionamentos, o trabalho solicitado aos residentes foi desenvolvido. Deste modo, optei pelo tema “A moda e a arte africana” por questões pessoais, tenho muito apreço por assuntos relacionados à moda e sobre questões étnico-raciais, pois foi um dos meus objetos de estudo para a finalização da minha pesquisa de graduação. Além de a Lei n.10.639/2003 ter um papel importante na educação básica, pois como educadores, incluímos na formação dos alunos uma visão desconstruída no que diz respeitos às questões étnico-raciais, este tipo de educação contribui para a criação de uma identidade racial, de representatividade e conhecimentos relacionados à ancestralidade, visto que a população brasileira é predominantemente preta e parda, e isso corrobora para uma educação antirracista. Ribeiro (2019, p.41), afirma que um ensino que valoriza a diversidade humana e que referencia positivamente a população negra produz uma postura favorável para a sociedade como um todo. Conhecer sobre as histórias e culturas africanas e afro-brasileiras promove outra construção da subjetividade de pessoas negras. Além disso, rompe com a visão hierarquizada que as pessoas brancas têm da cultura negra. Mais ainda, são ações que diminuem as desigualdades e promovem a representatividade. DESENVOLVIMENTO Além do livro didático disponibilizado pela professora, utilizei como referência os


trabalhos de HARGER e BERTON (2013), HARGER (2015) e RIBEIRO (2020) para enriquecer o conteúdo sobre a cultura e a moda afro-brasileira. Foram desenvolvidos dois planos de aula, para aplicação de forma remota, tendo duas horas e meia cada aula, com apresentação do tema e duas atividades para o aluno fixar a aprendizagem. O tema escolhido no livro didático foi “A moda inspirada na arte africana”, sendo uma aula sobre a influência da cultura afro na moda brasileira e outra sobre o trabalho da artista Goya Lopes. O primeiro planejamento de aula foi desenvolvido sobre a influência da cultura afro na moda brasileira, desta forma, criei uma aula que teve por objetivo estimular a compreensão do aluno sobre o conceito básico de moda, além de fazê-lo entender como surgiu a influência da cultura africana em nossa cultura. Outro objetivo da aula foi estabelecer um conteúdo onde o aluno pudesse analisar e identificar a partir de imagens as influências da cultura africana na moda brasileira, além de apresentar como se encontra a moda afro-brasileira atualmente, sendo solicitada a identificação de elementos da moda afro-brasileira dentro da realidade que o aluno se encontrava. Os recursos materiais utilizados para a execução da aula foram: internet, smartphone e/ou computador, slides com a apresentação do conteúdo e a plataforma do Google sala de aula da escola para o envio das imagens da atividade. Sobre a metodologia adotada para a primeira aula, foi apresentado o material explicativo através de slides contendo questões da moda brasileira com a influência africana; após leitura do material, solicitou-se que o aluno respondesse por meio da plataforma do Google sala de aula da escola, o impacto que a moda afro-brasileira tem em seu cotidiano e se de alguma forma ele usa algum dos elementos apresentados nos slides. Ao final desta atividade, foi solicitado que o aluno fizesse uma breve análise em sua residência para verificar se existia algum dos elementos abordados na explicação e caso tivesse, que enviasse no máximo cinco fotos através da plataforma Google. Para avaliação, foi feita a análise verificando se as respostas às perguntas foram coerentes com o conteúdo apresentado e se as imagens enviadas estavam de acordo com o que foi solicitado. A segunda aula tratou sobre o trabalho da artista Goya Lopes. Como a primeira aula apresentou uma introdução sobre como a moda brasileira foi influenciada pela arte africana, a segunda reforçou o tema e expôs uma artista de referência no segmento para que os alunos conhecessem e aprendessem sobre a potência que o trabalho dela possui. Além de apresentar a artista plástica, designer e estilista Goya Lopes, a segunda aula teve como objetivo mostrar a


trajetória e o trabalho desenvolvido por ela; questionou-se a importância do seu trabalho no que diz respeito à representatividade e estimulou-se a criação de estampas com a temática inspirada na arte africana. Para a realização da segunda aula remota foi preciso ter acesso à internet, smartphone e/ou computador, acesso às redes sociais Instagram e Youtube, e a plataforma do Google sala de aula da escola para o envio das imagens da atividade, papel A4, lápis, borracha, lápis de cor e caneta hidrocor. A metodologia da segunda aula foi planejada da seguinte forma: no primeiro momento, através da apresentação de slides, foi feita uma introdução sobre o assunto com a apresentação da artista e suas obras; mostrou-se as profissões que fazem parte do universo artista; seus trabalhos foram expostos, além de ter sido apresentado a importância histórica que eles carregam à respeito da representatividade da cultura afro-brasileira; apresentou-se um vídeo disponível no Youtube1 que falava sobre a artista Goya Lopes, sua trajetória e criações no universo da moda; foi indagado sobre a importância do trabalho da artista na moda brasileira; e por fim, pensando na realidade da pandemia e o uso de máscaras, foi solicitado que o aluno desenhasse e desse nome a quatro estampas com a temática inspirada na arte afrobrasileira para estas máscaras, além disso, questionou-se se eles usariam alguma máscara com as estampas desenvolvidas. Assim como na avaliação da primeira aula, foi feita uma análise para verificar se as respostas às perguntas foram coerentes com o conteúdo apresentado, além de verificar se os desenhos enviados estavam dentro do contexto que foi proposto. CONSIDERAÇÕES FINAIS Executar esse plano de aula com a temática étnico-racial foi muito enriquecedor para minha formação profissional, tendo em vista a importância do tema para a construção de uma sociedade antirracista, além de oferecer representatividade étnica para os alunos, já que vivemos em um país com uma miscigenação tão presente. Estar no Programa Residência Pedagógica, mesmo que por apenas um ciclo de seis meses e de forma remota foi muito desafiador, por conta do cenário pandêmico que ainda estamos vivendo. No entanto, como futuros docentes, compreendo que a missão é oferecer aos alunos um ensino de qualidade e com atividades pedagógicas adequadas e acessíveis para todos, principalmente neste momento em que o ensino está sendo oferecido remotamente. Infelizmente, por conta da pandemia, cada aluno tem suas particularidades e é possível que alguns não consigam entregar as atividades conforme esperado. Porém, o apoio pedagógico


existe para que eles possam se desenvolver da melhor maneira. Minha jornada no programa se encerrou antes da docente preceptora aplicar as atividades para os alunos, então, neste relato de experiência não foi possível descrever as discussões sobre os resultados atingidos. No entanto, acredito que não houve muitas dificuldades para os alunos executarem a atividade, no que diz respeito à prática pedagógica. Assim, combinei com a docente para que compartilhe comigo os resultados obtidos e se os objetivos foram alcançados, pois pelo menos verificarei se a atividade foi produtiva e como foi a percepção dos alunos ao executá-la remotamente. REFERÊNCIAS HARGER, P.H.C. Identidade Afro-Brasileira e Moda. 2015. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas) - Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2015. Disponível em: http://sites.uem.br/neiab/teses-e-dissertacoes/identidade-afro-brasileirae-moda.pdf. Acesso em: 28 jan. 2021. HARGER, P.H.C; BERTON, T.J.B. Moda afro-brasileira: as abordagens da inspiração africana refletida na moda Brasileira. VI Congresso Internacional de História, [S. l.], ano 2013, p. 1-13, 25 set. 2013. Disponível em: http://www.cih.uem.br/anais/2013/trabalhos/92_trabalho.pdf. Acesso em: 26 jan. 2021. IAVELBERG, R; SAPIENZA,T.T; ARSIAN, L.M. Projeto presente: arte: manual do professor. 5.ed. São Paulo: Moderna, 2017. MONTEIRO, S.S. (Re) Inventar educação escolar no Brasil em tempos da COVID-19. Revista Augustus, Rio de Janeiro, v. 25, n. 51, p. 237- 254, jul./out. 2020. Disponível em: https://revistas.unisuam.edu.br/index.php/revistaaugustus/article/view/552/301. Acesso em: 27 fev. 2021. RIBEIRO, D. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. RIBEIRO, I. A influência da cultura afro na moda brasileira. [S. l.], 1 jul. 2020. Disponível em: https://stealthelook.com.br/ainfluencia-da-cultura-afro-na-moda-brasileira/. Acesso em: 27 jan. 2021.

NOTAS DE FIM 1.

Disponível em: <<https://www.youtube.com/watch?v=rYF8xUehjQw>>. Acesso em: 28 mai. 2021.


CRIATIVIDADE, ENSINO DE ARTE E LITERATURA NA EJA: UMA AÇÃO PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES Ana Rita Cesar Lustosa Luciano Tasso Filho RESUMO Este artigo relata as experiências extraídas do evento “Criatividade, Arte e Literatura na EJA – encontro com o autor e ilustrador Luciano Tasso: processo criativo do livro “Mergulho”,planejado para o curso de formação de professores de Arte, da Prefeitura Municipal de Serra (ES). A partir da conceituação da Criatividade e das etapas do processo criativo comparadas aos percursos artísticos que levaram o autor à produção de seu livroimagem"Mergulho"(2010),procurou-se fornecer aos professores subsídios para trabalharem com a poética da imagem, além de ampliar o conhecimento acerca de recursos possíveis na mediação da leitura de livros com fins pedagógicos. Palavras-chave: Formação de Professores;Artes;Educação de Jovens e Adultos; Criatividade; Livro- imagem.

ABSTRACT This article reports the experiences extracted from the event“Creativity, Art Literature at EJA – meeting withtheauthorandillustrator Luciano Tasso: creative process of the book Mergulho”,planned for the training course for Art teacher sofa Municipality of Serra (ES). FromtheconceptofCreativityandstagesofthecreativeprocesscomparedtotheartistic paths that led theauthortoproducehispicturebook“Mergulho'' (2010), wesoughttoprovideteacherswith subsidies toworkwiththepoeticsofimage, in addition to in the mediation of reading books for pedagogical purposes. Keywords:TeacherEducation; Art; Youth andAdultEducation; Creativity; Picture book.

INTRODUÇÃO A Formação Continuada para Professores é uma preocupação constante da práxis pedagógica. Com as restrições impostas pelo período de pandemia (COVID-19), surge uma rica oportunidade para discutir e argumentar sobre novas modalidades de ensino e de aprendizagem no campo da Arte. Os encontros de Formação Continuada de professores buscam uma qualificação e atualização profissional tendo em vista uma melhoria das práticas docentes,levando em consideração as trajetórias pessoais do educador e sua interação com o coletivo. Os momentos formativos propiciam uma reflexão acerca das práticas educacionais, articuladas com a teoria, por meio da troca de experiências entre seus pares. O Município de Serra, no Estado do Espírito Santo, ocupa uma área aproximada de 560 mil km² e conta com cerca de 530 mil habitantes. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no ano de 2010, o grau de escolarização entre crianças de 6 a 14 anos no Município de Serra foi avaliado em 96,9%. Esta taxa indica o percentual da população em determinada faixa etária que se encontra matriculada no nível de ensino adequado à sua idade. No entanto, verificou-se que parte de seus habitantes, com idade superior aos 14 anos, ainda não havia concluído o Ensino Fundamental. Sendo assim, no


mesmo ano de 2010, a modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) foi implementada no Município de Serra com a função de organizar esta oferta de escolarização. Com o objetivo de preparar professores para aulas remotas e dando sequência ao programa de Formação Continuada para todos os profissionais da rede municipal de ensino, sobretudo no componente curricular Arte, a Secretaria de Educação da Serra (SEDU) promoveu no dia 17 de maio de 2021 às 18h, por meio dos recursos oferecidos pelo programa de Atividade Extraclasse (AEC), o evento intitulado Criatividade, Arte e Literatura na EJA – encontro com o autor e ilustrador Luciano Tasso: processo criativo do livro Mergulho. 1 O encontro foi realizado ao vivo sob forma de videoconferência 2, transmitido pelo canal Educa Serra – que conta com 8,2 mil inscritos na plataforma Stremyard. O encontro teve por intenção fomentar um diálogo entre a Criatividade e os Processos de Criação e percursos pessoais vividos pelo autor na produção do livro “Mergulho”.O livroimagem, selecionado pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e, em 2020 foi adotado pela SEDU/PMS para fazer parte de seu acervo – logo, acessível para os professores e alunos – e tem por característica narrar uma história através das imagens prescindindo do texto, o que amplia sua interpretação poética. Acreditando que, por meio do acesso aos processos de criação, possíveis leituras trazidas pelo objeto artístico possam ampliar a construção dos saberes, o encontro procurou debater caminhos que estimulam inovações criativas para as metodologias pedagógicas para ampliar as possibilidades da leitura poética das imagens, além de potencializar a mediação na leitura de livros dentro das salas de aula. OS BASTIDORES DO PROCESSO DE CRIAÇÃO DO LIVRO MERGULHO Em resumo, o livro “Mergulho” narra uma história apenas com ilustrações sequenciais sem o uso da palavra escrita (recurso que também é conhecido por picturebook), a história transcorrida ao longo de um dia na vida do velho pescador que ensina a seu neto as antigas práticas deste ofício. Na vastidão do mar, um susto faz com que o menino caia nas águas até atingir suas profundezas, realizando uma viagem de sonhos e descobertas – uma incursão no inconsciente que desperta medo e admiração, em clara metáfora acerca das experiências adquiridas no curso da vida e que carregamos para o resto de nossos dias. Em consonância com as etapas do Processo Criativo, o autor comenta sobre o momento de Preparação do seu livro, revelando as ideias embrionárias que o levaram a elaborar sua história, o estágio de Incubação, onde começa a desenvolver uma série de exercícios livres que permitiram ao inconsciente projetar visualmente seu roteiro até uma


Avaliação racional de sua proposta. Numa das passagens mais significativas do livro, o autor revela o momento em que uma gaivota intrusa assusta o menino e o faz cair do barco sobre as águas, longe do alcance do avô, simbolizando a ruptura dos laços familiares. Figura 1 -Páginas 20 e 21, livro “Mergulho”.

Fonte: Acervo do autor (2010).

Enquanto descia para as profundezas, cardumes, arraias, baleias e pequenas águasvivas, apareciam em seu percurso metaforizando a variedade de sentimentos que vivenciamos ao longo da vida. Ao pisar a areia submersa, o garoto presencia, num momento de silêncio e magia, a colorida constelação que é, ao mesmo tempo, o céu estrelado e as partes luminosas que carregam dentro de si. Figura 2 -Páginas 34 e 35, livro “Mergulho”.

Fonte: Acervo do autor (2010).

Após uma transição narrativa, o menino encontra-se novamente no barco com seu avô, que inicialmente o olha com reprovação, mas em seguida revela um elemento que teria vindo com o menino: uma estrela-do-mar. Ao cair do dia, os personagens concluem uma elipse temporal retornando em seu barco para a aldeia. Encerrada a jornada dos personagens no livro, da mesma forma, o autor finaliza seu relato: “Teria sido tudo um sonho de mergulho ou um mergulho de sonho? O menino não sabe, talvez nunca saiba. Pouco importa. A noite se aproxima e o barco do velho e seu neto volta para beijar a aldeia beira-mar. Hoje, sob um teto de estrelas, tem história nova


de pescador para contar”.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Criatividade apresenta-se como importante ferramenta intelectual para a solução de problemas, sejam de cunho pessoal ou coletivo. É, portanto, um exercício que necessita ser instigado a todo instante, por meio de um conjunto de motivações e necessidades inerentes às etapas da vida. Apresentar e aproximar as teorias da Criatividade para professores de Arte que atuam diretamente com a práxis pedagógica tem se mostrado um grande desafio na formação profissional. Assinalamos a importância da Criatividade como uma potência humana, desmistificando sua exclusividade para os artistas, transpondo-a para os profissionais da educação que têm, portanto, a responsabilidade de ampliar seu conhecimento sobre o tema e incentivar esta faculdade entre os alunos. Concluímos desta experiência que o encontro abriu uma oportunidade ímpar de conhecer as dimensões da criatividade e o processo criativo de uma obra artística nas palavras do próprio autor, ressaltando a capacidade da arte e da literatura como linguagens capazes de promover afetos e diferentes vivências estéticas. Por outro lado, em um mundo cada vez mais dominado pelas imagens, ao discutirmos as potências educadoras contidas em um livroimagem, percebemos a importância de dominar a linguagem sígnica de seus elementos gráficos tanto quanto o da linguagem escrita. Aprender a ler imagens pode ampliar os processos de criação e expressão, como transformar a leitura do mundo. Portanto, é um conteúdo que amplia a construção do conhecimento, não só para a modalidade EJA, mas para todas as etapas da Educação Básica, da Educação Infantil ao Ensino Médio. REFERÊNCIAS BETTELHEIM,Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2002. FREIRE, Paulo. A Importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez Editora, 1921. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. FREITAS, Raquel Lima. A Formação do professor do ensino de arte na escola: uma construção no cotidiano da disciplina.Revista SCIAS Arte/Educação, Universidade do Estado de Minas Gerias – UEMG,v.1, n.1. p.50-63, nov.2013,Disponível em:<https://oasisbr.ibict.br/vufind/Record/UEMG1_367fc7a0eaab3cd19447b017cbcca3c3>.Acesso em: 29 jun. 2021. OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Rio de Janeiro: Vozes, 1987. SANMARTIN, Stela Maris. Criatividade e Inovação na empresa: do potencial à ação criadora. São Paulo: Trevisan Editora, 2012.


TASSO, Luciano. Mergulho. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

NOTAS DE FIM 1.

O encontro “Criatividade, Arte e Literatura na EJA – encontro com o autor e ilustrador Luciano Tasso: processo criativo do livro Mergulho” ainda está disponível e pode ser acessado pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=4xxIsNNVeHo.

2.

A videoconferência teve duração de duas horas e trinta minutos e contou com a audiência inicial de aproximadamente 180 visualizações. Este número atingiu a marca de 914 visualizações no dia 24/06/2021.

3.

Parte final da resenha editorial da Rocco: https://www.rocco.com.br/livro/mergulho/


ENSINO DE PERFORMANCE NA EDUCAÇÃO BÁSICA: A INQUIETUDE DOS CORPOS, PROCURANDO SENTIDO DENTRO DOS SENTIDOS. Monique Ramos Costa1 RESUMO Esta pesquisa objetiva analisar como a performance pode ser uma grande aliada nas construções de conhecimento no Ensino de Artes na educação básica, tendo como ponto de partida, estudos no campo da Arte Contemporânea, Performance e Arte Educação. Paralelo às pesquisas teóricas, foram coletados relatos de uma professora de Artes que conta suas experiências no ensino remoto durante um período de dois meses em uma escola pública de Salvador-BA em um contexto de reinvenção e ressignificação de espaços, mesmo diante das fragilidades que cercam o ensino de artes e a educação de modo geral. O presente texto apresenta reflexões e questionamentos a respeito do corpo como “território” sob uma disputa de controle e sobre como o ensino de performance pode contribuir para a construção de autoconhecimento dos sujeitos. Palavras-chaves: Performance; Ensino de Artes; Ensino Remoto.

ABSTRACT This research aims to analyze how performance can be a great ally on the construction of knowledge in Arts Teaching in basic education, taking as a starting point studies in the field of Contemporary Art, Performance and Art Education. Parallel to the theoretical research, reports from an Arts teacher have been collected, in which she tells about her experiences with remote teaching for two months in a public school in Salvador-BA, in a context of reinvention and resignification of spaces, among weaknesses that surround art teaching and education in general. This text presents reflections and questions about how the body can be a "territory" in the face of a control dispute, and how performance education can contribute to the development of self-knowledge for individuals. Keywords: Performance; Arts Teaching; Remote Teaching.

INTRODUÇÃO Há um ano (2020) o mundo precisou modificar comportamentos e hábitos na tentativa de reduzir a transmissão do vírus Covid 19. O isolamento tornou-se um compromisso social, uma ação importante para resultados mais animadores com relação a redução do número de infectados e mortos. Mesmo com tantos discursos falaciosos vindos de poderes públicos em relação à transmissão do vírus, o fato é que o isolamento se mostrou mais eficiente e capaz de mudar o cenário trágico. Diante do caos da saúde pública outros problemas vieram à tona, o que para muitos estava oculto, pelo véu do descaso, revelou-se com a pandemia. A exponencial desigualdade que impacta o tecido social fez emergir tensões, sobretudo, na educação. Jovens, crianças e adultos matriculados na rede pública de ensino sofrem com as fragilidades do sistema e são obrigados a conviver com o abandono e o descaso dos poderes públicos. As medidas propostas não foram suficientes à qualidade de ensino e, portanto, coloca em evidência a necessidade de reflexões profundas das assimetrias sociais provocadas por questões socioeconômicas que incidem sobre o ensino-aprendizagem neste momento de isolamento social. As soluções propostas pelos mesmos não se apresentam suficientes e capazes de garantir uma qualidade de ensino e colocam em evidência reflexões e questionamentos profundos que giram em torno de como o(a) professor(a) de Artes poderá


estar desenvolvendo o conhecimento de arte conceitual articulado a ações de performance na tentativa de “desengessamento” dos corpos no ensino remoto e pós pandemia? Partindo dessa pergunta disparadora e dentro do atual contexto, foram realizados estudos do campo da Arte Conceitual, performance e Ensino de Artes juntamente com os relatos dos acompanhamentos das vivências da professora de Artes no ensino remoto realizado no período de dois meses, com o objetivo de analisar como a performance pode ser uma grande aliada nas construções de conhecimento no ensino de arte e apresentar reflexões e questionamentos como a atual educação anda na contramão de um ensino emancipador que abastece a criatividade, a sensibilidade e os sentidos. DESENVOLVIMENTO A pesquisa foi desenvolvida na disciplina de Estágio Supervisionado, na qual a organização metodológica, por meio de pesquisas em livros, artigos, visitas em sites no campo da arte conceitual e que tratam sobre educação, corpo, ensino remoto e performance. Os estudos e todo o material coletado teve como norteadores da construção teórica, o artigo de Isabella Santos (2017), na qual a autora conta suas experiências pessoais no ensino de performance na educação básica, com estudantes do 9° ano. A autora pontua os desafios que o professor(a) pode vivenciar na escola pelos limites que muitas vezes não se reduz apenas às estruturas das instituições de ensino e também sinaliza possibilidades de trabalhar a exploração dos espaços junto às experiências sinestésicas dentro da escola nas aulas de Artes. “A performance serve para comunicar diretamente com um grande público, bem como para escandalizar os espectadores, obrigando-os a reavaliar os seus conceitos de arte e sua relação com a cultura”. (GOLDBERG, 2007, p. 8). Os trabalhos artísticos que têm o corpo como suporte demandam pensar o espaço escolar de maneira diferenciada. É preciso pensar quais são os espaços disponíveis para esse tipo de prática, assim como a ressignificação desses espaços. Dessa forma, a inserção da performance na escola traz à tona diversas questões sobre os métodos utilizados no processo de ensino/ aprendizagem e sobre a educação na contemporaneidade. (SANTOS, 2017).

Isabella Santos apresenta no artigo, resultados satisfatórios como o desenvolvimento da criatividade, cognição, sensibilidade e pensamento crítico-reflexivo dos estudantes. Em contrapartida, temos os relatos das experiências da professora de Artes “X” 2 na modalidade de ensino remoto que não obteve resultados animadores. Nesse sentido os objetivos não foram amplamente alcançados, pois muitos jovens foram destituídos de seus direitos, a uma educação de qualidade, por falta de compromisso concreto dos poderes públicos. Em consequência desse descaso, não houve as trocas de experiências entre professores e


alunos(as), as aulas foram gravadas e expostas em um canal de televisão. No entanto, foi possível refletir a ausência desses corpos que carregam histórias, sentidos e memórias, que nesse momento de pandemia, ocupam um único espaço do seu lar, espaços que poderiam ser modificados e ressignificados criativamente. O corpo como elemento educacional é o único objeto de estudo que pode se fazer presente em qualquer situação, seja em aulas presenciais ou não. Entender o seu próprio corpo esteticamente ajuda aos sujeitos na construção de suas identidades e a respeitarem o corpo do outro. (“X”, 2021).

A produção literária do livro “O Sensível Contemporâneo”, no primeiro capítulo, o autor faz críticas à sociedade que “abastece” o corpo real o colocando-o como único a ser valorizado. “O corpo real, esse corpo que surge do funcionamento do sistema nervoso central, nos é dado como único e verdadeiro, no entanto outros corpos e variadas fronteiras corporais fazem parte desse conjunto existindo uma aporia entre a inteligência sensível e inteligível” (OLIVIERI; BIRIBA; MORAES et. al, 2010). O autor destaca que a sociedade tem a tendência a desvalorizar os outros corpos. “A escola é constituída de uma metodologia que leva a criança a destruição desse primeiro corpo dando ênfase à construção do quarto corpo real analítico, pois o professor afere somente com o que é real.” (OLIVIERI, 2010, p. 23). O filósofo Michel Foucault (1999) aborda em uma passagem do livro, corpos dóceis, o surgimento de sistemas e estruturas como plano de controle das massas através do domínio dos corpos. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. (FOUCAULT, 1999, p. 163). A consciência do corpo e dos sentidos foram retirados e moldados para interesses de uma minoria que nutre o capitalismo e o pensamento neoliberal para gerar corpos disciplinados. Esses descasos estão atrelados a interesses do mercado com que tem como objetivo “uberizar” educação. “A docência “uberizada” terá na experiência do “ensino” remoto uma alavanca a serviço dos interesses mercadológicos pós-pandemia[...]” (SAVIANI; GALVÃO, 2021, p.39). CONSIDERAÇÕES FINAIS À guisa de conclusão, discutiu-se, a importância da introdução de Performance no ensino de artes da educação básica, com base nos levantamentos bibliográficos, artigos e relatos da professora de Artes. Foram identificados nas pesquisas teóricas que o corpo é ainda visto como um tabu e como um “território” de disputa de poder, um projeto implementado e construído na psique de uma sociedade fragilizada e com muitas pendências éticas nutridas por culturas criadas pelo sistema capitalista que utiliza o corpo como mercadoria e tem a tendência a cada vez mais torná-los objetos e máquinas. Paralela à pesquisa teórica, os relatos


da professora de artes contribuíram para reiterar o fato de que a ausência do corpo pode ser uma grande ameaça à liberdade de expressão do sujeito de forma geral, o corpo deve ser mais um elemento de comunicação assim como existem inúmeras formas e interlocuções que podem ser estimulados e pensados. Tendo em vista o que foi mencionado, conclui-se que o distanciamento social e físico vivenciado por esses estudantes os coloca afastados cada vez mais dos vínculos com a aprendizagem que são desenvolvidas nas relações escolares. Os estudantes de escolas públicas, são, em sua maioria, pessoas negras que estão tendo que lidar com a negação de seus corpos que já eram invisibilizados, marginalizados e esquecidos. Muitos estudantes estão abaixo da linha da pobreza, não têm condições de ter uma boa alimentação, muito menos de adquirir um aparelho celular, computador e acesso à internet. As dificuldades econômicas e sociais, em todo o país, resvalam com muito mais força em corpos negros(as) e periféricos, que estão sentindo fome, morrendo com a violência dentro e fora de suas casas, sobrevivendo ao caos da saúde e da educação, porque antes de nascerem seus corpos já eram estigmatizados, desumanizados e animalizados pela ganância e pelo prazer de uma minoria que lucram com o engessamento desses corpos. Todavia sabemos que resistir é uma exigência que nos encaminha ainda mais para a luta e consciência de nossos corpos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. 20. Ed. - Petrópolis- RJ: Editora Vozes, 1999. GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance: do futurismo ao presente. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. Ed. 1° edição portuguesa. Lisboa, 2007. Disponível em: https://www.academia.edu/5005019/ROSELEE_GOLDBERG_A_Arte_da_Performance. Acesso em: 15 de março de 2021. SANTOS, Isabella. A Performance na Escola: Evidenciando Limites e Possibilidades. Revista NUPEART, [S. l.], v. 17, p. 14-26, 2017. DOI: 10.5965/2358092517172017014. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/nupeart/article/view/10025. Acesso em: 20 de março. 2021 SAVIANI, Demerval; GALVÃO, Ana. Educação na Pandemia: a falácia do “ensino” remoto. Covid 19: trabalho e saúde docente. Universidade e Sociedade. ANDES-SN. 2021 Disponível em: https://www.sintese.org.br/2021/03/16/educacao-na-pandemia-a-falacia-do-ensino-remoto/ Acesso em: 26 de março 2021. SOULAGES, François; OLIVIERI, Alberto; BIRIBA, Ricardo; MORAES, Ariadne (org.). O sensível contemporâneo: VI Colóquio Franco-brasileiro de Estética. Salvador: UFBA, 2010. SITES Prefeitura de Salvador. Orientações Curriculares e pedagógica: para a Rede Municipal de Ensino em Salvador no Continuum Curricular. 2020/2021. Acesso em: 01 de maio de 2021. Disponível em: http://educacao3.salvador.ba.gov.br/adm/wp-content/uploads/2021/02/Orienta%C3%A7%C3%B5es-


Curriculares-e-Pedag%C3%B3gicas-FINAL-1.pdf.

NOTAS DE FIM 1. 2.

Bacharela em Artes Visuais e concluinte do curso de Licenciatura em Desenho e Plástica pela Universidade Federal da Bahia- UFBA. E-mail: niquecosta.art@gmail.com. A letra “X” está substituindo o nome da professora para a preservação de sua identidade.


ENTROPIA DA CONSCIÊNCIA Álvaro G. Souza RESUMO Os interesses deste texto vão ao encontro da busca pelo entendimento da consciência como soma de experiências para compreender nas ações dos estudantes provocações e atravessamentos causados por desejos, vivências ou ancestralidades e então, criar aproximações com as pesquisas e práticas deles. Nós indagamos então: Onde criador e criação se convergem? Qual a importância dos diálogos estabelecidos entre pessoa e conteúdo para compreensão do devir? É possível um olhar sensível para a produção e não apenas análises de resultados aparentes no desfecho de um projeto ou experimentação? Essas questões nos remetem a possibilidades de compreender como o repertório visual ampliado pela pesquisa influencia, direta ou indiretamente, na construção de possíveis produções que se pretenda realizar. Palavras-chave: cartografia; rizoma; internet; síntese; aprendizado.

ABSTRACT The concernments about this text goes for a search to understand consciousness as a result of experiences to comprehend the studient provocations and crossovers made by desires, experiences or ancestralities and create approaches with his searches and practices. So we quest: Where creator and creation converge? What is the importance of dialogs made between person and object to comprehence the course? Could be a sensitive look on the production and not only analysis of the final product of a project or experimentation? This questions could enabling to comprehend of how the expanded visual repertoire, influence directly or indirectly on construction of possible productions that could be made. Keywords: cartography; rhizome; internet; synthesis; learning.

INTRODUÇÃO Analisar o passado é observar estratégias ou experiências, principalmente aquelas encontradas obtusas na consciência. A humanidade contemporânea depara-se cada vez mais com situações que necessitam de aprendizado, um preço a ser pago para viver em uma era de cultura visual exacerbada, provocando uma inversão do olhar que antes se ampliava para o todo e hoje se reduz a um retângulo específico, conjunto ao encurtamento do tempo para observação de um objeto. O que se vê, ouve, vivência, passa cada vez mais despercebido, experienciamos mais e mais coisas, contudo sintetizamos cada vez menos as experiências que fazem parte do nosso aprendizado, reduzindo-o basicamente a um universo de informações desconectadas. Não observamos se com o tempo esse excesso de informações acaba se tornando nossos vícios, manias, que atuam como fechaduras capazes de travar o campo cognitivo, criando o estigma do não ir além, o da impotência. A tela luminosa pela qual possibilita acesso às informações e, posteriormente, ao conhecimento, pode se tornar um véu que distancia a síncrese do conteúdo de sua análise ou sua síntese. Como então trabalhar esse olhar cuidadoso ante ao excesso de informações e, respectivamente, esse processo curto de consumo de imagem? As inversões do cone visual, tal


como a difusão da imagem, abrem uma janela para educação de forma útil para o processo de aprendizado dos estudantes, porém uma janela muito frágil, pois a cyber-globalização, difundida em aparelhos móveis, portáteis, possibilita o acesso a infinidade de possibilidades que abrem espaço para duas causas muito opostas. A primeira seria a via de acesso fácil, sobre infinitas informações, de maneira ágil de apreensão do conteúdo e aprimoramento de áreas de conhecimento. A segunda entraria nas causalidades descritas no parágrafo anterior, tendo como consequência a apropriação superficial dessas informações que acabam por não se tornar, efetivamente, em conhecimentos. Não desejamos com isso chegar ao ponto de uma negação da cultura visual, porém faz-se necessário uma análise profunda sobre como consumir imagem de forma crítica e realmente significativa, ou seja, trabalhando não apenas com informação e opinião, contudo ampliando para que os diálogos cheguem até as experiências. Jorge Larrosa Bondía (2002), em “Notas Sobre a Experiência e o Saber da Experiência”, apresenta uma abordagem que explica como é se desenvolve esse tipo de aprendizado e os processos que permeiam essa transformação de informação para opinião e de que forma são deixadas de lado as experiências. Larrosa Bondía infere que O par: informação/opinião, é muito geral e permeia também, por exemplo, nossa ideia de aprendizagem, inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos chamam de “aprendizagem significativa”. Desde pequenos até a universidade, ao largo de toda nossa travessia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos a um dispositivo que funciona da seguinte maneira: Primeiro é preciso informar-se e, depois, há de opinar, há que dar uma opinião obviamente própria, crítica e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria como a dimensão “significativa” da assim chamada “aprendizagem significativa”. A informação seria o objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como reação subjetiva, é uma reação que se tornou para nós automática, quase reflexa: informados sobre qualquer coisa, nós opinamos. Esse “opinar” se reduz, na maioria das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso, nos convertemos em sujeitos competentes para responder como Deus manda as perguntas dos professores que, cada vez mais, se assemelham a comprovações de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me o que você sabe, diga-me com que informação conta e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dispositivo periodístico do saber e da aprendizagem, o dispositivo que torna impossível a experiência. Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera (BONDÍA, 2002, p. 22).

Por meio de um percurso mais trabalhado, validando o processo que surge da informação e finaliza na experiência, habilitamos a linguagem visual contemporânea como uma oportuna ferramenta de ensino, abrindo um campo para a ampliação do repertório cultural dos estudantes, tendo em vista que esta linguagem atua em dimensões maiores que as


unidimensionais presentes nos textos verbais. Vilém Flusser (2007) apresenta de forma muito compreensível as diferenças entre tais linguagens em “Linha e Superfície - O Mundo Codificado”. Para o autor Ao lermos as linhas, seguimos uma estrutura que nos é imposta; quando lemos as pinturas, movemo-nos de certo modo livremente dentro da estrutura que nos foi proposta. (...) O que significa que a diferença entre ler linhas escritas e ler uma pintura é a seguinte: precisamos seguir o texto se quisermos captar sua mensagem, enquanto na pintura podemos apreender a mensagem primeiro e depois tentar decompô-la. Essa é a diferença entre a linha de uma só dimensão e a superfície de duas dimensões: uma almeja chegar a algum lugar e a outra já está lá, mas pode mostrar como lá chegou. A diferença é de tempo, e envolve o presente, o passado e o futuro (FLUSSER, 2007, p. 104).

O consumo imagético nos traz diálogos que apesar de estarem prontos são expansíveis, não lemos imagem com uma linearidade histórica e sim com uma troca de relações que esbarram com a vivência do espectador e seu próprio repertório, criando uma relação simbiótica entre pessoas e imagens. DESENVOLVIMENTO Durante todo o percurso que chamamos de vida, assimilamos, modificamos, experienciamos tudo o que nos atravessa. Armazenamos esses conhecimentos e nos tornamos o “eu” e modificamos esses ser a cada novo percurso, a cada nova experiência, caminho de um que resulta em vários e se somam em outro, tornando-se rizomas. Em “Mil Platôs”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, é apresentado pelos autores o conceito de rizoma: [...] conceito da biologia para um caule em forma de raiz, que se caracteriza pela capacidade de emitir novos ramos”; como um conceito que pode configura-se como soma de hábitos, uma trama que passa por retornos e dicotomias, unos que constituem o múltiplo, a multiplicidade que constitui uma pessoa (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13). Utilizar-se de seu rizoma, essa complexa trama de experiências, mapeando e analisando os processos que levam aos caminhos, é uma metodologia significativa para o processo de pesquisa dos estudantes, para compreender suas vontades. A compressão dos próprios percursos, podendo ser realizada através da cartografia sentimental de Suely Rolnik (1989), que busca mapear as sensibilidades, traumas, desejos; fantasmas recuperando as memórias, reconhecendo símbolos e ancestralidades, redescobrindo motivações e angústias. Entender a construção que o levou a ser quem é, permitindo auxiliar na capacidade de síntese produtiva e de pensamento. Quais percursos passados me levaram aos questionamentos presentes? Para Harari (2014)


[...] a característica verdadeiramente única da nossa linguagem não é sua capacidade de transmitir informações sobre homens e leões. Pelo contrário, é a capacidade de transmitir informações sobre coisas que nem se quer existem. Até onde sabemos, só os Sapiens podem falar sobre tipos e mais tipos de entidades que nunca viram, tocaram ou cheiraram. Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva. Muitas espécies animais e humanas poderiam, antes disso, dizer: “Cuidado! Um leão!”. Graças à Revolução Cognitiva, o Homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: “O leão é o espírito guardião da nossa tribo”. Essa capacidade de falar sobre ficções é a característica mais singular da linguagem dos Sapiens (HARARI, 2014, p. 24).

Compreendemos então, que a interação social, verbal e o desenvolvimento cognitivo possibilitou à humanidade desenvolver ferramentas para auxiliar em situações que o corpo ou a mente não são capazes de resolver por conta própria. Para além de ferramentas outro processo que parte dessas interações e do desenvolvimento cognitivo é o da organização, a capacidade de criar estratégias para se atingir um objetivo, segmentando em etapas e traçado por objetivos que levam ao desfecho do todo. Um processo sincrético, analítico, sintético. Segundo Vasconcellos (1992) Uma metodologia na perspectiva dialética baseia-se em outra concepção de homem e de conhecimento. Entende o homem como um ser ativo e de relações. Assim, entende que o conhecimento não é "transferido" ou "depositado" pelo outro (conforme a concepção tradicional), nem é "inventado" pelo sujeito (concepção espontaneísta), mas sim que o conhecimento é construído pelo sujeito na sua relação com os outros e com o mundo (VASCONCELLOS, 1992, p.2).

A fala de Vasconcellos vai ao encontro diretamente com a de Larrosa Bondía, pois ambos trazem para diálogo uma metodologia de aprendizagem utilizando-se de todo o processo dos estudantes e que leva em consideração suas experiências, suas vivências. CONSIDERAÇÕES FINAIS Torna-se cada vez mais difícil auxiliar alunos estudantes em seus processos de síntese de conteúdo, por consequência do vício criado a partir do uso inadequado da internet, consumindo, a cada segundo, informações não checadas, forçando o usuário a pular etapas necessárias para o aprendizado de um conteúdo, levando-os a um conhecimento raso de montanhas de informações. Por este motivo observa-se a importância de se trabalhar diferentes conteúdos e informações de forma rizomática a fim de se fazer uma análise adequada do que consumimos, buscando referências, opiniões, realizando comparações de forma decolonializada, descentralizando o referencial de cultura presente nas novas mídias que normalmente nos soterram, intoxicando esses cyber-ambientes e que por consequência refletem-se no espaço físico. Uma quebra de idealidades, que geram os pensamentos: cultura, melhor que cultura,


padrão, melhor que padrão; que monopolizam os pensamentos e sobrepõem as vivências dos indivíduos que não se adequam a tais ideais, viabilizam a independência do pensamento, sua liberdade. A partir dessa educação do olhar e do consumo visual possibilita substanciar um determinado assunto de maneira plural, diversa, ampliando o repertório do aluno. A cartografia sentimental, que é um processo de mapeamento da memória, cartografando os rizomas gerados por nossos caminhos e por fim identificando o que toca e atravessa o indivíduo, sendo utilizada como metodologia de pesquisa, possibilita ao estudante localizar fontes, relacionando os conteúdos adquiridos ao longo de sua vivência, criando uma aproximação de interesses possibilitando a mobilização, apropriação e elaboração da síntese de um conhecimento. REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 13. FLUSSER, Vilém. Linha e Superfície - O Mundo Codificado. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 104 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: A Brief History of Humankind. London: Penguin, 2014. p. 24, tradução nossa. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira de Educação. [online]. Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19. p. 22 RIZOMA. In: DICIONÁRIO Priberam da Língua Portuguesa (DPLP). 2008-2021. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/rizoma. Acesso em: 25 de maio de 2021. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989. VASCONCELLOS, Celso dos S. Metodologia Dialética em Sala de Aula. In: Revista de Educação AEC. Brasília: abril de 1992 (n. 83). p.2.


ESPAÇO EDUCATIVO NA ESCOLA VIRTUAL: o lugar da arte em tempos de isolamento social Luciene Maria Hibner1 Stela Maris Sanmartin2 RESUMO Em meio a pandemia1 vivemos um tempo de muitos contratempos, movimentos limitados, intervalos, momento ímpar em que a dinâmica da vida foi alterada. Vida familiar, social e profissional tiveram que readaptar-se à realidade imposta pelo isolamento social para controlar o contágio e preservar vidas. Neste contexto, a escola também teve que repensar suas práticas e rapidamente gerar alternativas para manter o vínculo com os estudantes e garantir minimamente a continuidade do processo de ensino aprendizagem. Como tornar-se uma escola virtual de um dia para o outro? Como organizar aulas de arte para o modo remoto? É inserido nesse contexto que pretendemos tratar neste relato de experiência sobre as dimensões que constituem o espaço educativo e os lugares que constituem este território virtual das aulas remotas em arte. Privilegiar a relação professor aluno no processo de ensino-aprendizagem da arte para que as crianças e jovens estudantes não percam a motivação para continuar estudando, aprendendo, fazendo, pensando e fruindo arte, mesmo em tempos de pandemia e isolamento social.

Palavras-chave: Arte Na Escola; Aula De Arte Remota; Ensino De Arte.

ABSTRACT Amidst the pandemic we live in a time of many setbacks, limited movements, intervals, a unique moment in which the dynamics of life were changed. Family, social and professional life had to adapt to the reality imposed by social isolation in order to control contagion and preserve lives. In this context, the school also had to rethink its practices and quickly generate alternatives to maintain the bond with students and minimally guarantee the continuity of the teaching-learning process. How to become a virtual school overnight? How to organize art classes for remote mode? It is within this context that we intend to deal in this experience report on the dimensions that constitute the educational space and the places that constitute this virtual territory of remote art classes. Privileging the teacherstudent relationship in the art teaching-learning process so that children and young students do not lose motivation to continue studying, learning, doing, thinking and enjoying art, even in times of pandemic and social isolation. Keywords: art at school; remote art class; art teaching.

INTRODUÇÃO A Arte tem seu lugar no espaço da Educação, mas a metodologia e método empregado pode ou não promover aprendizagem significativa. O isolamento social, em virtude da pandemia ocasionada pelo Covid-19 e mudança para o modo de aulas remotas, conduziu os docentes à princípios imprescindíveis para a prática pedagógica, sem os quais dificilmente os estudantes se envolvem na tarefa trabalhosa de buscar conhecer o mundo e mergulhar nos conteúdos específicos das diferentes áreas do conhecimento. De acordo com Sanmartin (2013) a expressão espaço educativo pode designar os espaços ampliados da educação em que ocorrem as relações interativas dos processos de ensino e de aprendizagem, mas particularmente vinculada a esta expressão está a qualidade do encontro entre professor, aluno e objeto de conhecimento. Assim, vale destacar que as orientações didáticas para o ensino remoto tiveram que ser estruturadas para contemplar esta diferente situação de aprendizagem e não foi diferente com a disciplina arte. Arte no espaço educativo significa, portanto, aproximar a arte da criança 1


estabelecendo um lugar para a arte neste espaço, onde se ordenam e se articulam atividades com clara intenção educacional, sem perder de vista os conteúdos da aprendizagem em suas dimensões conceituais, procedimentais e atitudinais.(Sanmartin, 2013) PRÁTICA DIDÁTICA PARA O ENSINO DE ARTE REMOTO O ambiente da sala de aula possuía, anteriormente às aulas remotas, uma dimensão interpessoal, tátil e visual. As pessoas estavam habituadas a interagir, circular por salas, corredores, diante de mobiliários. Entretanto, essa configuração foi modificada quando passamos a trabalhar em casa utilizando uma máquina para intermediar a comunicação. Tanto as crianças quanto os professores tiveram que aprender a operar ambientes de aprendizagem virtuais, o que exigiu de todos uma rápida apropriação da tecnologia para que o ensino e a aprendizagem continuasse acontecendo e pudesse inspirar alunos e professores, mesmo diante do desconhecido. Diante da nova realidade, tivemos que nos reinventar e criar estratégias para continuar o trabalho. Uma das autoras, como professora de Arte, decidiu seguir uma indagação do pai de uma criança sobre quando elas aprenderiam a desenhar o corpo humano. Nunca havíamos pensado nessa possibilidade de prática para crianças de 8 e 9 anos, 4° e 5° anos do ensino fundamental I mas, neste contexto de isolamento, em que as crianças foram restringidas de circular nos espaços externos, parecia coerente voltar-se ao estudo do próprio corpo. A representação e/ou criação de diferentes maneiras de apresentá-lo, seria uma oportunidade interessante para experimentar diferentes técnicas e como Resnik (2020) afirma, mesmo que um aluno se sinta mais confortável com um estilo, é interessante experimentar outras abordagens. Nosso interesse, desde o início, era apresentar o desenho com proporção, mas deixar claro que existem diferentes estilos de desenhar o corpo humano. Iniciamos com a leitura para conhecer o que foi escrito no século I a. C. sobre o homem vitruviano, resgatado em 1490 por Leonardo da Vinci. A maioria das crianças ficou motivada com o passo inicial, mas foi necessário perceber a interação e o interesse para continuar o processo. Depois de conhecer o corpo humano e trabalharmos as noções de proporção, iniciamos os desenhos do corpo. Buscamos na internet vídeos tutoriais com a apresentação de cada parte do corpo: mão, pé, orelha, olho, boca, nariz e rosto. Também deixamos claro que desenhar o corpo humano, com proporção, é um desafio não somente para as crianças, mas também para os adultos, pois requer observação, técnica e paciência. As palavras de incentivo são primordiais para este percurso


desafiador de aprendizagens, não importando se o ensino esteja acontecendo na forma presencial ou remota. Foi surpreendente observar que as crianças ficaram orgulhosas com as conquistas, que tiveram interesse e paciência em exercitar o desenho do corpo humano em diferentes ângulos, que encararam os desafios. Figuras 1,2,3,4 e 5: Desenhos de diferentes crianças do 4° e 5° ano do ensino fundamental I.


Fonte: fotos do acervo das autoras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste breve exemplo de uma atividade didática desenvolvida remotamente com crianças do ensino fundamental I na disciplina arte, pretendemos refletir sobre a importância do professor estar em sintonia com o seu grupo de alunos. Também chamar a atenção sobre a necessidade de ser sensível e coerente com as circunstâncias do contexto, para adequar o plano de ensino, escolher os conteúdos e adequar as estratégias didáticas, pois propostas contextualizadas imprimem sentido as ações. Com relação aos conteúdos, sobre o ensino do Desenho especificamente, constatamos que a técnica vem a favor da expressão. Segundo Iavelberg (2006), há dois momentos cruciais no desenvolvimento do Desenho que, se não forem bem conduzidos pelo professor, podem levar ao bloqueio na linguagem gráfica. O primeiro se localiza no momento em que a criança começa a ser alfabetizada, pois a linguagem verbal/escrita passa a fazer parte do universo de interesses da criança e se o professor não propiciar tempo e espaço para o desenho, paulatinamente a criança desloca sua motivação e vai deixando de desenhar. O outro momento importante é aquele em que a criança não quer mais “desenhar como criança” e deseja representar o mundo como ela o vê, mais natural, com proporção, perspectiva, mais próximo ao real. Consideramos esta prática didática exitosa por escolhermos um tema vinculado às possibilidades do momento, como também pela reintrodução do desenho do corpo humano


com auxílio da técnica, para atender uma necessidade expressiva e criadora da criança desta faixa etária. Nesta experiência, a arte encontrou seu lugar na educação, mesmo de modo remoto. REFERÊNCIAS COUTINHO, Rejane. Vivências e experiências a partir do contato com a arte. In: TOZZI, Devanil; COSTA, Marta M.; HONÓRIO, Thiago. Educação com arte. São Paulo: FDE, 2004, p. 144-158. (Série Ideias, 31). FERREIRA, Sueli. (Org.). O ensino das artes: construindo caminhos. Campinas: Papirus, 2001. IAVELBERG, Rosa. O Desenho Cultivado da Criança. Práticas e formação de educadores. Porto Alegre, Zouk, 2006. PERRENOUD, Philippe. As competências para ensinar no século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed, 2002. RESNICK, Mitchel. Jardim de infância para a vida toda. Porto Alegre: Penso, 2020. SANMARTIN, Stela Maris. Arte no espaço educativo: práxis criadora de professores e alunos. Tese (Doutorado). São Paulo, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2013.

NOTAS DE FIM 1. Luciene Maria Hibner é pós-graduada em Abordagens Contemporâneas em Arte-Educação – UFES 2001. É professora de arte do ensino fundamental I da Escola da Ilha – Vitória – ES. Publicação “Corpo de Barro”, Lei Rubem Braga (2003).

2. Stela Maris Sanmartin é graduada em Licenciatura Plena em Educação Artística pela FAAP (1989), Máster em Criatividade pela Universidade de Santiago de Compostela (1999), Mestre em Artes pela Unicamp (2004) e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2013). Líder do Grupo de Pesquisa Criatividade, Educação e Arte, GPCEAr, financiado pela FAPES e cadastrado no CNPq (CNPq)www.dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3651130446369665. Pesquisadora em Criatividade, processos de criação e ensino de arte, é membro do Instituto Avançado de Criatividade Aplicada Total, IACAT e da Associação Brasileira de Criatividade e Inovação, Criabrasilis e do Comitê de Inovação da FAPES. Atualmente é professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Arte do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Autora dos livros “Criatividade e Inovação na empresa: do potencial à ação criadora” (2012), “Criatividade nos processos de coaching” (2013) e Intuição e Criatividade na tomada de decisões” (2017).

3. Pandemia ocasionada pelo Covid-19 declarada em 03/11/2019, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), enfermidade causada pelo coronavírus (Sars-Cov-2) [ Pandemic caused by Covid-19 declared on 11/03/2019 by the World Health Organization, a disease caused by the coronavirus (Sars-Cov-2)].


FORMANDO E (RE)PERFORMANDO DENTRO DO MUSEU: AÇÕES E REGISTROS DE UMA MEDIAÇÃO Marize Moreno de Carvalho. RESUMO A partir do interesse de histórias que não são registradas, esta foi uma proposta de mediação em que volto ao espaço em que trabalhei entre 2018 e 2020, para a produção de um caderno de artista em colaboração com trabalhadoras e trabalhador Cida Paulinha, Cris, Elenira Clemente , Larissa Fernandes e Wellington Rodrigues, do setor de limpeza do Museu de Arte Murilo Mendes. As atividades foram mediadas por cartas elaboradas especificamente para esta ação. O produto de registro foi a construção de um caderno na plataforma ISSUU, em que a qualquer momento qualquer pessoa pode acessar. Este trabalho se debruça sobre a importância de se fazer um museu para todos, principalmente para quem mais o frequenta, suas próprias funcionárias e funcionários. Este trabalho pode ser pensado para todo e qualquer ambiente institucional ou não, para a reflexão de modos de mediação entre pessoas e espaços, bem como maneiras de se realizar registros históricos importantes como a observação das pessoas sobre a arte. Palavras-chave: Museu; Arte; Educativo. INTRODUÇÃO Para o projeto era importante ter um tema que direcionasse as conversas e processos, neste projeto o tema escolhido foi “a relação do corpo e trabalho”. O espaço escolhido para a atividade foi o Museu de Arte Murilo Mendes da Universidade Federal de Juiz de Fora, pelo meu histórico de trabalho como bolsista no setor educativo entre os anos de 2018 e 2020, tendo assim laços de afetividade com outras pessoas que também trabalharam na mesma instituição durante esse período. Acredito que ambas partes possuem papel crucial para a materialização no trabalho, tanto meus escritos e direcionamentos, quanto das ações, escolhas e elaborações de Cida Paulinha, Cris, Elenira Clemente , Larissa Fernandes e Wellington Rodrigues. DESENVOLVIMENTO Embora as instituições culturais, como os museus, tenham em sua função a preservação de objetos culturais e suas histórias, cotidianamente perpetuam a ação de designar algumas histórias como irrelevantes. E apesar de enfatizar a necessidade da frequência do público às exposições, as instituições excluem as vozes das pessoas que mais frequentam seus espaços, seus trabalhadores. A partir da necessidade de registrar as vozes que fazem com que as instituições culturais sejam espaços coletivos, este trabalho é produção de pesquisa e catalogação de maneira artística dessas outras histórias não oficiais. O projeto atua para a valorização criativa dos(as) realizadores(as) dos cadernos e para que outras pessoas se indaguem sobre o tema e para o registro de histórias que não são contadas nos museus. Os trabalhadores participantes


serão atuantes de uma história a ser contada que os situam para além de objetos de análise, pois assumem a posição de sujeitos produtores que compõem ativamente o campo de produção de pensamento. 1. HISTÓRIAS A CONTAR Já há algum tempo, em que está em exercício em diversos campos, a necessidade de questionamento da História da arte, assim como da História como um todo, e ela se apresenta neste projeto. Há uma pequena pretensão de deixar de lado qualquer História e praticar-se história. As questões da ordem do discurso: Quem fala? A quem é permitido falar? Quais são as instâncias de permissibilidade? Em que contextos estão inseridos os sujeitos que falam, escrevem e finalmente são lidos, e às vezes repetidos? O verbo mediar, foi uma de minhas ações dentro do museu durante esses anos, que como nos salienta Túlio Magno Costa (2019,p.6), “Gradativamente a palavra mediação substitui termos como monitoria ou visita guiada”. E assim a ideia do sujeito que media é a de que: nossa tarefa é oferecer meios para que cada sujeito que participa de uma ação mediadora possa criar, e que sua criação alimente a criação de todos,construindo diálogos que permitam esta ampliação de pontos de vista que tanto enriquece.(MARTINS, 2014, p.260)

Neste trabalho houve uma convergência entre o mediar e criar, numa atuação que me enxergo como artista e arte-educadora, além de tantos outros papéis. E uma das ações que, a princípio, não estava tão evidente, é de como este trabalho se torna um registro, um arquivo da história. Ele pode ser não lido, esquecido, mas ele existe neste formato de agora, pequeno, mas importante. Importante pois me inscrevo, porque escrevo. Não há dados ou gráficos, mas há ações, percepções, nomes, relações. Se não estamos em livros de história da arte, tanto quando somos estudantes, pesquisadores, trabalhadores, este é o espaço para algum ressoar de vozes. Neste caminho além da minha dúvida sobre que lugar é este, o de artista, vem também o de não saber ao certo o limite entre uma ação de arte-educação, uma mediação, uma ação artística. Lançando mão da possibilidade de manejo das narrativas da História da arte, parte-se aqui, portanto, da premissa de que o discurso se dá sempre dentro da lógica das relações de poder, e pode desta forma ser contestado ou questionado indefinidamente. Assim pode-se dizer que, social e culturalmente, pessoas estão inseridas em contextos que lhes favorecem ou lhes oprimem e calam, devido a cada uma de suas “posições” sociais. Sabe-se que a história de todas as áreas do conhecimento está atrelada às estruturas sociais existentes no local de sua produção e, desta forma, a historiografia não está livre de omissões. Ao elaborar um passado “único”, que se torna facilmente narrativa dominante, impregnada dos “investimentos políticos que motivam a vontade de saber” (HEMMINGS,


2009, p. 219), e manufatura de uma História linear - responsável pela continuidade das mesmas omissões - foi modelo de unicidade que =encontrávamos até muito recentemente na História das Artes. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para a realização de uma pedagogia libertária não é tão simples trabalhar de uma forma aberta, onde tudo o que acontece pode ser incorporado, mas parece a forma mais viável para uma sociedade mais democrática, se torna importante também, o registro de passagens em instituições, o resultado aqui é caderno, sendo uma tentativa prática dessas ideias. E a partir das primeiras escritas para o projeto nota-se que muitas coisas foram alteradas. A maior dificuldade para o trabalho foi o tempo curto para a realização e finalização. Algumas coisas foram alteradas no percurso da atividade, principalmente pelo interesse de que o trabalho caminhasse de acordo com os desejos das(o) participante(s). Um exemplo de mudança foi a elaboração dos carimbos, na minha ideia primeira ele partiria da escolha de algum objeto do trabalho que fosse imaginado num sonho, após o exercício esta imagem seria elaborada em matriz de EVA e carimbada em uma superfície que poderia ser uma peça de roupa, uma bolsa ou um acessório que também poderia ser relacionado ao trabalho. Ao final o interesse da(o)s participantes foi outro, foram elegidas imagens que eram importantes para o dia, como um símbolo, foram escolhidas as representações de uma águia, o cristo redentor, um pássaro e um peixe que era uma gargantilha com a palavra Deus. Durante o processo uma das participantes parou de frequentar as aulas, não justificando a saída, tentei contato e entender sua motivação, mas não obtive respostas e não insisti, acredito que exista um limite onde uma professora ou professor possa buscar o diálogo com suas alunas e alunos, acredito que a liberdade de participar ou não, é algo primordial e fiz o possível para que fossem dias positivos para quem participou. O nome final “Tudo que vem lá de dentro” foi elegido por uma das colaboradoras, mas na verdade queriam colocar o meu nome “Marize” como título, talvez tenha sido a única coisa que não deixei que acontecesse, pois acredito que o título é algo importante para a entrada do trabalho e ele não se trata sobre mim. Um dos receios é que o trabalho ficasse algo muito semelhante ao da referência, tanto que recentemente o título “caderno de tudo que vem lá de dentro” perdeu a palavra “caderno”, pois ecoava em minha mente o título da obra de referência. É uma grande felicidade quando nos damos de encontro com uma produção que acolhe muitos de nossos desejos e foi isso que aconteceu com o “Caderno de Campo” de Vânia Medeiros. Existem muitas coisas que ainda não foram registradas aqui, dos pequenos detalhes, como a minha visão sobre a importância das conversas e lanche após as atividades, e a relevância do fato de eu ter realizado a maior parte do projeto sozinha, enfrentando medos,


me atentando para as questões burocráticas, como pegar a autorização de uso de imagem de cada participante, lembrando de realizar os registros de vídeos, que por hora só estão em frames no trabalho entre outras observações que por hora são memórias ou arquivos no google drive. A diagramação do caderno na plataforma Issuu foi trabalho realizado por Washington da Selva e que deixou tudo mais bonito. A mais recente alteração do arquivo foi o adicionamento de paginação e duas páginas com legendas. Este trabalho é algo a ser continuado, reelaborado em sua materialidade, o caderno ainda não foi impresso e o seu modelo pode mudar. O que também deve aumentar são as histórias contidas nele, talvez dando espaço para um segundo caderno, onde as palavras tomem mais espaço que as imagens. As páginas a seguir, após as referências bibliográficas, são as contidas no caderno da plataforma ISSUU. Acredito que a melhor visualização seja por lá, mas para o arquivamento junto a esses escritos tentei ajustá-las a esta formação de pdf. REFERÊNCIAS COSTA, Túlio Magno de Souza Pereira. Objetos propositores: uma mediação pelas galerias do Museu de Arte Murilo Mendes. Artigo (Especialização em Ensino de Educação). Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2019. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, 42.ª edição. HEMMINGS, Clare. Contando estórias feministas. Tradução: Ramayana Lira. London School of Economics. Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 215-241, janeiro-abril, 2009. MARTINS, Mirian Celeste Ferreira Dias. Mediações culturais e contaminações estéticas. Revista gearte, v.1, n.2, p 248-264, 2014. OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Rio de Janeiro, Campus, 1987. Convite à atenção. 33.bienal, 2018. Disponível em: http://33.bienal.org.br/pt/convitea-atencao . Acesso em: 13 mar. 2021.


MEMÓRIAS, IDENTIDADES E HISTÓRIAS DO CONGO: PRÁTICAS COM O ENSINO DE ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL Stéfani Santos Ferreira1 Maria Angélica Vago-Soares2 RESUMO O presente relato faz parte de um trabalho de Graduação em Artes Visuais, defendido em 2021. Buscou-se a partir de documentos produzidos na disciplina de Estágio Supervisionado do Ensino das Artes Visuais na Educação Infantil, compreender como produzir conhecimentos com crianças da Educação Infantil, a partir da cultura local, em especial com o Congo capixaba, e de suas relações com o patrimônio cultural afro-brasileiro do Espírito Santo. Optou-se pela abordagem qualitativa com análise documental, foram recordadas como foram produzidas as práticas educativas com as crianças. As análises foram a partir das narrativas dos documentos de estágio (relatório de estágio e diário de bordo) triangulando com as teorias. Os diálogos foram estabelecidos com Iavelberg (2003) para pensar o Ensino da Arte, Hooks (2020), para pensar as memórias e Benjamin (2007) para pensar a infância. Nesse percurso de análises podemos refletir e compreender sobre a importância do processo de produção de conhecimentos das crianças, a partir da relação com o patrimônio cultural afro-brasileiro e capixaba. Palavras-chave: Educação Infantil; Ensino de Arte; Congo.

ABSTRACT This report is part of an undergraduate work in Visual Arts, defended in 2021. Based on documents produced in discipline of Supervised Internship in the Teaching of Visual Arts in Child education, we sought to understand how to produce knowledge with children, from the local culture, especially with the capixaba Congo, and relations with the Afro-Brazilian cultural heritage of Espírito Santo. We opted for a qualitative approach with documental analysis, we were reminded how the educational practices with children were produced. The analyses were based on the narratives of internship documents (internship report and field diary) triangulated with theories. The dialogues were inserted in studies on Early Childhood and child education with: The dialogue was established with Iavelberg (2003) to think about the teaching of arts, Hooks (2020), to think about memories and Benjamin to think about infancy. In this course of analysis, we can reflect and understand the importance of the knowledge production process for children, based on the relationship with the Afro-Brazilian and Espírito Santo cultural heritage. Keywords: Child Education; Teaching of Art; Congo.

INTRODUÇÃO

O relato faz parte de Trabalho de Graduação (TG), defendido em 2021. Se ambienta na perspectiva do Ensino de Arte com a cultura afro-brasileira e capixaba, ou seja, com a cultura afro-capixaba3 em especial com o Congo. A pesquisa traz uma análise dos dados produzidos com crianças entre 4 e 5 anos, de um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI), em Vitória, capital do Espírito Santo, na disciplina de Estágio Supervisionado do Ensino das Artes Visuais na Educação Infantil, em 2019, ministrada pela professora Margarete Sacht Góes. Buscou-se na pesquisa rememorar os dados produzidos na disciplina, para analisar e compreender como produzir conhecimentos com crianças da Educação Infantil, a partir da cultura local, em especial com o Congo capixaba, tendo em vista as relações com o patrimônio cultural afro-brasileiro do Espírito Santo. Entendemos que, o ato de contar histórias é “[...] uma forma poderosa de nos conectar com um mundo diverso é ouvindo as diferentes histórias que nos contam. Essas histórias são um caminho para o saber. Portanto. Elas contêm o poder e a arte da possibilidade. Precisamos de mais histórias” (HOOKS, 2020,


p. 94). O intuito da intervenção produzida no estágio, foi de evocar a memória e as histórias do Congo capixaba2 através de práticas educativas artísticas. Os estudos foram a partir da análise documental, numa perspectiva de qualitativa, considerando com Lüdke; André (2015, p. 45) as fontes escritas “[...] leis e regulamentos, normas, pareceres, cartas, memorandos, diários pessoais, autobiografias, jornais, revistas, discursos, roteiros de programas de rádio e televisão até livros, estatísticas e arquivos escolares”. A problematização se dimensionou em: Como produzir conhecimentos com as crianças da Educação Infantil, a partir da cultura local e da relação com o patrimônio cultural afro-capixaba? O objetivo foi compreender o processo de produção de conhecimentos das crianças a partir do Congo e da relação com o patrimônio cultural afro-capixaba. Rever as memórias dessa experiência possibilitou reflexões sobre o processo de produção de conhecimentos das crianças, a partir da relação com o patrimônio cultural afrobrasileiro e capixaba. PERCURSO DA PESQUISA E ANÁLISES: MEMÓRIAS DA EXPERIÊNCIA COM AS CRIANÇAS Os momentos com as crianças, de acordo com planejamento de duas aulas se desenvolveu da seguinte maneira: primeiramente, fizemos uma pequena roda de conversa com as crianças para a introdução aos temas centrais de patrimônio, de modo lúdico com contação da história do Congo capixaba e apresentação dos instrumentos, utilizamos a casaca (Figura 1). Figura 1 – Roda de conversa

2 O Congo representa um dos mais significativos e disseminados símbolos da cultura do Espírito Santo, estando presente em muitas outras manifestações culturais “[...] as bandas de congo são encontradas em diversos municípios do Estado e têm adquirido aos poucos o reconhecimento de sua importância, ocupando significativo espaço em vários segmentos sociais, como os meios de comunicação e as artes. Segundo informações da Comissão de Folclore do Espírito Santo há aproximadamente 60 bandas no Estado. Os municípios de Cariacica (nove) e Serra (15) são os maiores centros de concentração” (SANTOS, 2016, p. 222).


Fonte: Acervo das pesquisadoras.

No segundo encontro rememoramos com as crianças a experiência na aula anterior e partimos para a confecção dos instrumentos (Figura 2). Figura 1 – Produção dos instrumentos

Fonte: Acervo das pesquisadoras.

Para a produção do brinquedo, solicitamos que as crianças que trouxessem potes potencialmente reutilizáveis para transformá-los em casacas ou tambores, pensando na importância de participarem de toda extensão do processo de criação e organização com os materiais como parte do trabalho das aulas de arte (IAVELBERG, 2007). Percebemos a capacidade das crianças de se relacionar e criar um universo de significados a partir da criação de situações imaginárias que demonstram a forma como interagem com os objetos a sua volta e como compreendem o outro, a elas mesmas e o mundo, pois “[...] quanto mais atraentes, no sentido corrente, são os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva [...]” (BENJAMIN, 2007, p. 93). Além disso, tornar possível a prática de criar e brincar, contribui para tornar vivo e acessível esse momento. Isso possibilitou que compreendêssemos os brinquedos não como produtos e resultados, mas como produção identitárias durante todo o desenvolvimento do plano de ensino, com o intuito de preservar o criar e o brincar orgânico


para que a ação se constituísse de maneira a contemplar não tão somente os objetivos da pesquisadora para a proposta interventiva, mas também os das crianças no decorrer da prática. Através das experiências, entre o contextualizar, frui e produzir com a arte, o processo garantiu o acesso ao brincar, jogar, imitar e criar ritmos e movimentos, possibilitando que as crianças também se apropriaram do repertório da cultura corporal na qual estão inseridas (BRASIL, 1998). Ao fim da ação propomos um exercício de memória com as crianças para compreender o que foi significativo para elas, mediada pelas questões: “Qual instrumento gostaram mais? Qual som mais agradou vocês? O que acharam mais legal? O que acharam do Congo?”. Obtivemos falas das crianças sobre as mulheres do Congo, composta em sua maioria por matriarcas negras, onde se referiram a elas como “princesas”, ressignificando parte do repertório imagético delas, sobre o conto de fadas hegemonicamente construídos previamente pela mídia e o mercado de brinquedos. Ainda nesses relatos notamos identificação de parte das crianças com o local de onde contamos a história do Congo: a cidade de Serra e as relações com suas identidades. Colaborar com o processo de desconstrução do padrão eurocêntrico vigente na sociedade e nos currículos das escolas, tem por intuito auxiliar na produção de um novo referencial imagético que abranja a diversidade étnica e cultural brasileira ao levarmos em conta a composição da população brasileira e o histórico de luta e resistência do povo negro e das culturas africanas e afro-brasileiras. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A preservação da prática de contação de história, passa pela rememoração e manutenção da memória e da tradição da oralidade ancestral africana e afro-brasileira, motivando as crianças na prática da contação de histórias, de modo que puderam valorizar e contribuir com a ampliação de suas narrativas identitárias, levando as histórias contadas para suas famílias e assim tornando-as contadoras também. Compreendemos o Ensino de Arte com crianças como lugar de histórias e de brincadeiras, dessa forma, concluímos que não há como dissociar cultura de prática educativa, seja dentro ou fora do âmbito escolar, pois acreditamos na educação democrática que viabiliza o acesso e o reconhecimento das culturas através do ensino e, sobretudo, no que tange essa pesquisa, através do Ensino de Arte. Nessa perspectiva, com a contribuição da pesquisadora na construção e no reconhecimento do repertório cultural das crianças, entendemos como elas podem se inserir na cultura local para produzirem seus conhecimentos que, nesse caso, ocorreu a partir do Congo e da relação com o patrimônio cultural afro-capixaba, reafirmando


a ideia de valorizar o processo no qual as crianças estão inseridas para desenvolver o sentimento de pertencimento à cultura delas, a partir de ações interventivas e inventivas em práticas de estágios ou na docência. REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. 34. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2007. HOOKS, B. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil/Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998, volume: 1 e 2. IAVELBERG, Rosa. Para gostar de aprender Arte: sala de aula e formação de professores. Porto Alegre: Artmed, 2003. LÜDKE; M.; ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. Rio de Janeiro: E.P.U, 2015.

NOTAS DE FIM 1. Estudante de graduação no Curso de Licenciatura em Artes Visuais (UFES). 2. Professora Doutora do Centro de Educação, no Departamento de Linguagens, Cultura e Educação da UFES.

3. Termo visto “no livro “Negros no Espírito Santo” do professor e pesquisador Cleber Maciel.


MURO MANGUE ESCOLA - RELATO DE UMA PINTURA MURAL NO BAIRRO MARIA ORTIZ Diego Alves Léssa Karen Carla Lima de Oliveira Máyra Monfardini Passos RESUMO Este relato de experiência abordará uma ação de pintura mural, realizada num projeto de extensão do PET Conexões Cultura em parceria com o SOS Manguezal, uma escola municipal de Vitória e a comunidade da região da Grande Goiabeiras. A atividade teve cunho pedagógico ao promover trocas de conhecimentos acadêmicos e populares, de modo a valorizar os saberes externos ao ambiente escolar. Nessa perspectiva, os colaboradores juntamente com as crianças da escola que residem nas imediações registraram na pintura mural os sentidos que atribuem a sua cultura. O resultado imagético nos possibilitou reconhecer elementos que representam o bairro registrados pelas mãos dos próprios moradores que foram estimulados a deixarem suas marcas por meio de desenhos em um local de grande visibilidade localizado no bairro Maria Ortiz. Palavras Chaves: Pintura de mural; Pedagógico; Comunidade.

ABSTRACT This experience report will address a mural painting activity, carried out in an extension project of PET Conexões Cultura in partnership with SOS Manguezal, a municipal school in Vitória and the community of the Greater Goiabeiras region.The action had a pedagogical nature by promoting exchanges of academic and popular knowledge, in order to value knowledge outside the school environment.Through this perspective, the collaborators, along with the school children who live in the vicinity, registered in the mural painting the meanings they attribute to their culture. The imagery result allowed us to recognize elements that represent the neighborhood registered by their own hands, who were encouraged to leave their marks through drawings in a highly visible place located in the Maria Ortiz neighborhood. Keywords: Mural painting; Pedagogical; Community.

INTRODUÇÃO Durante o ano de 2019, nós, discentes bolsistas do Programa de Educação Tutorial (PET) Conexões Cultura da Universidade federal do Espírito Santo, desenvolvemos um projeto de pesquisa, ensino e extensão voltado para a produção do documentário intitulado “Mangue Escola” que objetivou colaborar na preservação e conscientização acerca das visualidades e identidades dos bairros que constituem a região da Grande Goiabeiras localizados no município de Vitória, no estado do Espírito Santo. Nossas principais parcerias durante todo o processo foram com o SOS Manguezal, grupo voluntário e não governamental voltado para a preservação do mangue da região e com o Projeto de Educação em Tempo Integral da Escola Municipal de Ensino Fundamental Marechal Mascarenhas de Moraes, localizada no bairro Maria Ortiz que atende crianças de toda essa região. Este relato trata de um recorte do projeto, mais especificamente da ação de pintura mural realizada na praça principal do bairro chamada pela comunidade de praça do “Hi-Fi”. A ação finalizou o projeto e teve como objetivo o registro de saberes constituídos pelos sujeitos da comunidade sobre as culturas e identidades do bairro. As experiências passadas ao longo do projeto foram marcadas naquele local pelas expressões artísticas dos moradores que


registraram as principais manifestações culturais da comunidade que mais lhes afetaram durante a realização das oficinas do projeto. Assim, pensando sempre que os protagonistas eram os sujeitos da comunidade e que nós, deveríamos servir de ponte para o desenvolvimento de uma história contada por esses sujeitos sobre o que os afeta no seu cotidiano, nosso objetivo neste relato é evidenciar o caráter pedagógico da atividade, apontando as influências exercidas sobre a significação acerca da realidade dos sujeitos. DESENVOLVIMENTO A pintura mural foi a forma encontrada para que os sujeitos envolvidos no projeto pudessem deixar suas marcas carregadas de sentidos de identidades e saberes locais naquele espaço, de modo a remeter aos sentidos do território onde residem. Observamos que a oficina contribuiu para que aquele muro, um lugar antes comum, fosse ressignificado, tornando-se um lugar de memórias, afetos, que possibilitou à comunidade um olhar geral sobre o que foi construído ao longo do projeto. Possibilitou ainda uma reflexão sobre os impactos daquele elemento visual na potencialidade da população local sobre seus registros, sendo eles os protagonistas de sua própria história, produtores de conhecimentos que extrapolam o ambiente escolar, mostrando-nos, com isso, a cultura de mangue dentro desse caldeirão cultural ao qual eles pertencem. Realizamos essa ação em etapas, inicialmente contactamos a empresa VIX Logística solicitando a disponibilização de parte do muro localizado na praça do Hi-Fi, após a autorização, a empresa fez ainda, doação de tintas e materiais de pintura para que a comunidade pudesse realizar a pintura. Posteriormente, na escola, solicitamos às crianças do projeto de tempo integral, a reprodução em papel de imagens sobre o bairro que elas gostariam que fossem representadas no mural, tendo em vista todas as vivências que tiveram durante o projeto com o PET. Em uma outra data, iniciamos a preparação do muro para a pintura, realizando junto com as crianças uma base branca. A quarta etapa, a da pintura mural propriamente dita, aconteceu em um sábado, pois consideramos que seria um dia estratégico para contarmos com a participação de maior volume de pessoas, considerando que havia trabalhadores entre eles e que, desse modo, poderiam também envolver-se com a atividade. Assim, tivemos a presença dos petianos que faziam parte do grupo na ocasião, de estudantes da escola, dos membros do SOS Manguezal e da comunidade em geral, tendo também o auxílio de Thiago Sobreiro dos Santos, Elvys Souza Chaves e Maria Tereza Aigner Menezes que são artistas urbanos. Para pensarmos nossa atuação junto às crianças na escola em busca de sua


aproximação com os saberes populares das culturas do entorno, nos baseamos nos estudos de Nilda Alves sobre os/dos/com os cotidianos, que englobam conhecimentos negados e deslegitimados pela ciência moderna e promovem uma reflexão sobre o conhecimento, as vivências cotidianas das pessoas que residem nas proximidades do manguezal partindo desses para construírem seus bairros, desenvolverem suas culturas e economia. Pensando ainda, em uma educação contra-hegemônica, dialogamos com Paulo Freire (1996) para que de fato houvesse uma prática de escuta e troca de saberes possibilitando que todos os envolvidos nos processos fossem sujeitos da sua própria história. Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo especial, como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento. (FREIRE, 1996, p. 123).

Ao pensarmos em territorialidade como fruto das ações e relações que se deram durante os processos naquele território onde localiza-se o muro, concordamos com a proposta de territorialidade de Milton Santos, quando afirma que a

territorialidade provém da

comunhão dos indivíduos com o território, das relações que se dão naquele lugar, logo, “[...] o território sem vida é meramente um espaço físico recortado geograficamente para delimitar algo, mas as ações existentes nele remetem à territorialidade” (SANTOS apud HEIDTMANN, 2008, p. 43). Sobre a arte e territorialidade para este trabalho estamos de acordo com Gil Vieira (2010) que afirma: [...] basta que se tenha como pressuposto o fato de que a arte – enquanto campo distinto dentro da experiência humana, ou melhor, enquanto sistema – é indissolúvel de sua territorialidade. Afirmo que a arte se constrói através de sua própria territorialização, como condição inerente a sua existência social, o que não quer dizer que me refira apenas a lugar, espaço material para a concretização da mesma (p. 415).

Assim, por meio das subjetividades dos indivíduos, materializadas através das expressões artísticas na pintura mural, foi possível perceber a importância de darmos visibilidade aos saberes populares e locais que circundam a escola para dentro dela, assim como consideramos importante levar os saberes que estão dentro da escola para além dos muros que a cercam, tornando a educação um momento de troca de saberes entre educadores, educandos e comunidade local, colaborando, assim, para o protagonismo dos sujeitos envolvidos e de sua história. Quando entregamos lápis, pincéis e tintas para a comunidade a fim de que dessem asas à sua criatividade e espaço para sua subjetividade na pintura mural, observamos a


transformação de um muro de uma empresa, branco e distante da comunidade, em um mural (Figuras 1,2,3 e 4) repleto de sentidos sobre as identidades daqueles sujeitos e das culturas locais que transformou-se num espaço dotado de territorialidades que marcaram as memórias dos que viveram aquela experiência e que até hoje afetam os que por ali passam e fruem daquela paisagem. Figura 1: Registro do dia de finalização da pintura

Fonte: Acervo PET Cultura Figura 2: Registro do dia de finalização da pintura

Fonte: Acervo PET Cultura Figura 3: Registro da pintura atualmente

Fonte: Acervo PET Cultura Figura 4: Registro da pintura atualmente

Fonte: Acervo PET Cultura

CONSIDERAÇÕES FINAIS A Pintura do muro gerou resultados além do que esperávamos, tivemos uma ótima recepção por parte da comunidade, o envolvimento e reconhecimento desses sujeitos foi de


grande importância para nós e está refletido, por exemplo, no fato de que a pintura permanece lá, até os dias de hoje, sendo cuidada pelos moradores. Nosso intuito era despertar o sentimento de pertencimento e territorialidade na comunidade, podemos dizer que alcançamos o objetivo e estendemos à nossa comunidade petiana o respeito àquela cultura. Para nós petianos, é uma marca de nossa passagem pelo bairro, de um projeto que é importante para nossa construção como profissionais da educação e acreditamos ser importante também para os educandos participantes. As atividades de extensão tem como objetivo aproximar o conhecimento acadêmico da população que muitas vezes não tem esse acesso, mas acreditamos que também deve ocorrer o contrário, uma aproximação do meio acadêmico das realidades que estão fora de seu cotidiano universitário. Uma aproximação sem a função de levar conhecimento ao outro que deve apenas absorvê-lo, mas, sim em parceria com este outro, o que podemos afirmar que essa atividade fez com seus participantes. REFERÊNCIAS ALVES, Nilda. Sobre movimentos das pesquisas nos/dos/com os cotidianos. Rio de Janeiro: Teias, ano 4, nº 7-8, jan/dez 2003. Disponível em: <file:///C:/Users/USUARIO/Downloads/23967-76799-1-PB%20(1).pdf>. Acesso em: 30 ago. 2019. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 34. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. VIEIRA COSTA, G.. O registro como multiterritorialidade na arte contemporânea. In: 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), 2010, Cachoeira, BA. Anais do ... Encontro Nacional da ANPAP (Cd-Rom). Salvador, BA: ANPAP, EDUFBA, 2010. p. 415-429. HEIDTMANN, Henrique Carlos. A sensibilidade territorial das políticas públicas:um estudo em comunidades ribeirinhas na Amazônia Legal. 2008. 182f. Tese (Administração Pública) – Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, São Paulo, 2008.


NOTAS DE ENCANTAMENTO PARA CORPOS INSURGENTES Raquel Santos RESUMO Nas últimas décadas políticas públicas tem sido implementadas para diminuir as diferenças socio econômicas estabelecidas no país após 353 anos de escravidão. Mas antes destas pautas ganharem destaque, como as pessoas compreendiam a importância política de ter uma educação racial de qualidade? Esta pesquisa propõe investigar as transformações emocionais, sociais e políticas que ocorrem com mulheres negras, que não tiveram uma educação racial respaldada por tais políticas públicas. Busco compreender o que acontece quando participantes do bloco paulistano Ilú Obá De Min se encontram em lugares de convivência com seus pares, neste quilombo urbano, durante o processo de construção artística coletiva vivenciado junto a associação Ilú Obá De Min Educação, Cultura e Arte Negra. Como se dá este reencantamento coletivo? Após entrevistas e análise do material coletado, o objetivo será entender os cruzamentos de experiências vividas pelas integrantes do bloco, traçando uma cartografia afetiva que indique caminhos de possibilidade de aprendizado racial através da arte e performance do bloco pelas ruas de São Paulo. Palavras-chave: educação; cruzo; relações étnico-raciais.

RESUMEN En las últimas décadas se han implementado políticas públicas para reducir las diferencias socioeconómicas establecidas en el país después de 353 años de esclavitud. Pero antes de que estas agendas ganaran prominencia, ¿cómo entendía la gente la importancia política de tener una educación racial de calidad? Esta investigación se propone indagar en las transformaciones emocionales, sociales y políticas que ocurren con las mujeres negras, quienes no contaron con una educación racial sustentada por tales políticas públicas. Busco entender qué sucede cuando las participantes del bloque Ilú Obá De Min se encuentran en lugares de convivencia con sus pares, en este quilombo urbano, durante el proceso de construcción artística colectiva vivido con la asociación Ilú Obá De Min - Educación, Cultura y Arte Negra. ¿Cómo se produce este reencantamiento colectivo? Después de entrevistas y análisis del material recogido, el objetivo será comprender las intersecciones de experiencias vividas por las integrantes del bloque, trazando una cartografía afectiva que señale posibles caminos para el aprendizaje racial mediante del arte y performance del bloque en las calles de São Paulo. Palabras clave: educación, cruzo; relaciones ético-raciales.

INTRODUÇÃO O racismo é uma ferida aberta ainda presente no Brasil 2. Com episódios constantes, e cada vez mais difundidos nas mídias, essa violência arraigada na nossa sociedade estrutura todas as nossas relações e precisa ser tratada de forma urgente. Cada vez mais políticas públicas estão sendo criadas para combater o racismo em nosso país3. Uma destas ações é a lei federal 10.639/2003 que institui a obrigatoriedade de ensino de história e cultura afro-brasileira, acentuando a participação negra, afro diaspórica e indígena como algo positivo, em uma educação antirracista que promove uma diversidade étnico-racial, promovendo assim, outras versões da nossa história. Diferente da que é amplamente retratada através da iconografia violenta e digamos que fantasiosa ilustrada nos livros de História do Brasil, onde trazem o negro escravizado de uma forma peculiar e muito distante da realidade. Ter um espaço para construção do saber onde a identidade negra é vista não apenas como algo positivo, mas também realizador de algumas mudanças que vemos acontecendo hoje em nosso país, é um verdadeiro ‘paraíso’, como diz a escritora nigeriana Chimamanda


Adichie quando nos alerta sobre os perigos da história única, com a criação e manutenção de estereótipos que limitam a nossa existência, nos encaixando em um só lugar4. O Ilú Obá De Min - Educação, Cultura e Arte Negra é uma associação paulistana que tem como base o trabalho com as culturas de matriz africana e afro-brasileira. Foi fundado em 2004 pelas percussionistas Beth Beli, Adriana Aragão e Girlei Miranda com objetivo de preservar e divulgar a cultura negra no Brasil, além de destacar a participação e o protagonismo das mulheres através da arte5. A associação promove diversos projetos, mas é com o bloco afro carnavalesco que se faz mais conhecida. Há 16 anos o bloco Ilú Obá De Min leva às ruas seu cortejo, sua ópera negra (informação verbal)6. Resultado de oficinas criativas oferecidas ao longo do processo de construção do carnaval, que abrange aulas de percussão, dança, canto e perna de pau que são ministradas na rua, para as integrantes e os curiosos que param para admirar os ensaios7. DESENVOLVIMENTO Quando cheguei a São Paulo me senti uma estrangeira em meu próprio país, mesmo sendo sudestina, carioca, percebi de pronto as diferenças da celebração carnavalesca neste pequeno eixo. Ser migrante é ser de lugar nenhum. A travessia nos modifica e acabamos não cabendo nem no lugar onde nascemos, e nem onde escolhemos fazer morada. Foi neste “nãolugar” que cheguei ao Ilú Obá de Min, e ali encontrei uma casa. A instituição leva há 16 anos, cultura e arte negra para as ruas de São Paulo através de um trabalho coletivo das integrantes com o tema escolhido. O Ilú hoje tem cerca de 400 mulheres que a cada ciclo de preparação para o cortejo de carnaval vivem uma imersão sobre o tema escolhido. Nesses 16 anos de história, a instituição já trouxe como tema e femenageou (informação verbal)

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algumas personagens importantes da cultura afro descendente, como

Rainha Nzinga, Raquel Trindade, Elza Soares e Lia de Itamaracá. Assim, com mulheres contando a histórias de outras mulheres negras importantes para a nossa história, o Ilú vai se consolidando como importante ponto de cultura e educação não formal na cidade, ampliando o repertório das participantes e dos espectadores, assim como ofertando novas experiências artísticas, pois as integrantes são convidadas a participarem ativamente de todo o processo, como elaborar composições para o cortejo, além das oficinas de percussão e dança que são semanalmente oferecidas. Após coleta dos materiais educativos produzidos pela própria instituição pretendo em um pequeno grupo entrevistar mulheres de 15 a 50 anos, negras, que passaram pela experiência de vivenciar ao menos um ciclo completo de construção de carnaval. Após esta


primeira seleção pretendo comparar os relatos por faixas etárias e a percepção de experienciar mais de um carnaval com o coletivo, buscando analisar suas expectativas ao entrarem no bloco, e ao final do processo artístico, assim como comparar com o assentamento e desdobramento destes aprendizados em mulheres que estão a mais tempo na instituição. Para me orientar nesta pesquisa busco, a princípio, saberes de outros pesquisadores negros que também estudaram sua própria negritude e as outras epistemes praticadas na vivência das mulheres do bloco durante o processo de construção de carnaval. Esta é uma pesquisa de sujeito para sujeito, e por este motivo trago a importância de quilombos trazida por Abdias do Nascimento (2019) e Beatriz Nascimento (2006), os efeitos da mestiçagem de Kabengele Munanga (2019), a Pedagoginga de Allan da Rosa (2019) e os valeres civilizatórios Afro-brasileiros de Azoilda Trindade (2014), assim como a experiência como metodologia de ensino de artes trazida por Dewey (2010) e Larrosa (2020) e o entendimento de cruzo de Luiz Rufino (2019). CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta é uma pesquisa que está em sua fase inicial. Neste momento estou analisando os materiais de arquivo e educativos produzidos pela Instituição ao longo desses anos. Como cada ser humano é um universo, vou utilizando das pistas do método cartográfico para me orientar no percurso de tornar visível essas histórias e experiências, encontrando seus pontos em comum, e me abro também para me surpreender com respostas que ainda não estão no meu campo de possibilidades. Trazer as mulheres-sujeito como centro de suas próprias narrativas e investigar as epistemes vivenciadas por elas durante o período de oficinas com o bloco me possibilita ver o cruzamento dessas experiências, criando assim um grande mapa afetivo. Visualizar este ‘encantamento’ que perpassa à todas que passam pela instituição é o que torna esta jornada interessante de ser vivida, documentada e compartilhada. REFERÊNCIAS ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma história única. Tradução: Julia Romeu. - São Paulo: Companhia das Letras, 2019. DEWEY, John. Arte como experiência. Tradução Vera Ribeiro - São Paulo: Martins Fontes - selo Martins, 2010. HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.


ILÚ OBÁ DE MIN. Nosso Afeto é potência: mulheres do agogô tecendo histórias. São Paulo: edição do autor, 2019. GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 98-109, Jan/Abr 2012. KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira - Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2020 NASCIMENTO, Beatriz. Eu sou Atlântica. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Edição do Kindle. Mórula Editorial., 2019. SANTANA, Bianca. Quando me descobri negra. São Paulo: SESI-SP EDITORA, 2015. SOUZA, Neusa. S. Tornar-se negro. Edição do Kindle. LeBooks, 2019. SOUZA, V. A. Narrativas Etnográficas: raça, gênero, cultura e política no Bloco Afro Ilú Obá De Min. v.2 n.3. 2016. Artigo disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/index.php/altera/article/view/34761>. Acessado em: 17 ago. 2020.

NOTAS DE FIM 1.

Mestranda em Processos Artísticos, experiências educacionais e mediação cultural pelo Instituto de Artes da UNESP.

2.

KILOMBA, G. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira - Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

3.

GUIROTTO, E. Pesquisa exclusiva: 61% dos brasileiros acham que o país é racista. Revista VEJA. Agosto de 2020. Disponível em: <Pesquisa exclusiva: 61% dos brasileiros acham que o país é racista>. Acesso em: 28 set. 2020.

4.

ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. Tradução: Julia Romeu. - São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p.16.

5.

ILÚ OBÁ DE MIN, Nosso Afeto é potência: mulheres do agogô tecendo histórias. São Paulo: edição do autor, 2019, p. 16.

6.

Informação oferecida por Chris Gomes durante o curso Diálogos Negros em set. 2020.

7.

Informação coletada no site do Ilú Obá De Min. Disponível em: <https://iluobademin.com.br/carnaval/participe/> Acessado em: 21 set. 2020.

8.

Informação oferecida por Beth Beli durante o curso Diálogos Negros em set. 2020.


PLURALIDADE DAS CORES: UM TRABALHO A PARTIR DA CONEXÃO ENTRE ARTE E CIÊNCIAS DA NATUREZA Giani G. dos Santos Piol Kristian Karla Inácio de Souza Morais Crisane Aquino Meneghel RESUMO Esse trabalho refere-se a um relato de experiência sobre a associação dos componentes curriculares de Arte e Ciências da Natureza, fundamentado nos três momentos pedagógicos e aplicado nas aulas dos respectivos componentes, utilizando dois formatos, ensino remoto e ensino híbrido. Foi desenvolvido em uma escola pública da Educação Básica da Rede Municipal de Serra-ES, envolvendo alunos dos 6° Ano do Ensino Fundamental. Objetivamos estabelecer a integração entre os componentes curriculares de Arte e Ciências da Natureza com intencionalidade de se trabalhar a temática “Cores”. Destacamos que na disciplina de Arte pode-se dar ênfase aos conteúdos de Cor, durante o estudo da “cor luz e pigmento, e classificação das cores quentes, frias e neutras”; já na disciplina de Ciências da Natureza foi abordado o conteúdo “Visão” para contextualizar com o cotidiano do aluno, o tema proposto, mediante aulas expositivas, dialogadas, vídeos e outros recursos. Como resultado podese evidenciar, por exercícios desenvolvidos pelos alunos e também de atividades avaliativas, que houve a consolidação das aprendizagens dos objetivos propostos para esse trabalho a partir das intervenções pedagógicas. Os alunos concediam respostas coerentes com o tema em foco, evidenciando assim, bons resultados para o conhecimento. Os mesmos puderam perceber ainda a utilização do tema “Cor” na disciplina de Arte e sua ligação com um dos órgãos do sentido, a visão, na disciplina de Ciências da Natureza, sendo esta mais uma ação que permitiu a realização da interdisciplinaridade. Palavras-chave: Ensino; cor; visão.

ABSTRACT This work refers to an experience report on the association of the curricular components of Art and Nature Sciences, based on the three pedagogical moments and applied in the classes of the respective components, using two formats, remote teaching and hybrid teaching. It was developed in a public school of Basic Education of the Municipal Network of Serra-ES, involving students of the 6th grade of elementary school. We aimed to establish integration between the curricular components of Art and Natural Sciences with the intent to work on the theme "Colors''. We point out that in the subject of Art, emphasis can be given to the contents of Color, during the study of "color, light and pigment, and classification of warm, cold and neutral colors''; in the subject of Natural Sciences, the content "Vision" was approached in order to contextualize the proposed theme with the student's daily life, through exposition and dialogue classes, videos and other resources. As a result, it can be seen, through the exercises developed by the students and also through the evaluation activities, that there was a consolidation of the learning of the objectives proposed for this work from the pedagogical interventions. The students gave answers that were coherent with the theme in focus, thus showing good results for knowledge. They could also perceive the use of the theme "Color" in the discipline of Art and its connection with one of the sense organs, sight, in the discipline of Natural Sciences, this being another action that allowed the realization of interdisciplinarity. Key words: Teaching; color; vision.

INTRODUÇÃO Apoiadas na abordagem dos Três Momentos Pedagógicos, baseado em Delizoicov (1982), o qual destaca a problematização inicial, organização do conhecimento e aplicação do conhecimento, desenvolvemos o planejamento de nossas aulas remotas e presenciais. Compreendemos que a abordagem, correlacionar os conteúdos as questões sócio-históricas, aspirando referir o estudo das “Cores”, com o cotidiano dos alunos e suas vivências. Diante das incertezas vivenciadas durante todo ano de 2020 e também neste ano de 2021, devido à pandemia da Covid-19, parte das atividades foram realizadas


remotamente, com o uso de apostilas por intermédio de encontros síncronos. Outra parte dos exercícios foram efetuados em aulas presenciais, com revezamento de alunos, mantendo a utilização de apostilas, associando diferentes recursos didático-pedagógicos. O planejamento das atividades, que seriam desenvolvidas durante o processo, teve a participação das docentes das disciplinas envolvidas e de uma pedagoga que integrava a equipe docente/pedagógica. A temática foi proposta em uma das disciplinas cursadas no Mestrado de Ciências e Matemática/IFES. Com base no tema, foram pesquisados os objetivos de aprendizagem e as habilidades da BNCC (Base Nacional Curricular Comum) que seriam contempladas neste trabalho, bem como, os referenciais teóricos e as estratégias pedagógicas abordadas. Dialogando com esses pontos, as professoras desenvolveram o planejamento das aulas e exercícios a serem realizados pelos alunos. As aulas ocorreram, em momentos síncronos, tendo a participação da professora de Ciências da Natureza nas aulas de Arte, assim como, a presença da docente de Arte nas lições desenvolvidas pela professora de Ciências da Natureza. A atuação conjunta das educadoras objetivava observar e registrar as reações, dúvidas e avanços dos alunos, para que posteriormente, com o auxílio da pedagoga que compunha o grupo, refletirem e avaliarem as estratégias, para (re)planejar algumas ações didáticas para os próximos encontros. Mesmo com todas as inseguranças e mudanças geradas no ensino, devido à pandemia, trabalhamos interdisciplinarmente, compartilhando dos pensamentos de Fazenda (2006), na qual descreve que a interdisciplinaridade não é apenas como um conjunto de disciplinas, mas através do envolvimento da dimensão humana e cultural. Durante todo o planejamento, focamos na aprendizagem do aluno, considerando sua realidade, a fim de elaborarmos materiais didáticos, como apostilas e vídeos, relacionados a vivência dos mesmos. DESENVOLVIMENTO O desdobramento pedagógico intercorre com o uso da sequência didática intitulada “Onde está a Cor?”. A professora de Arte trabalhou aspectos como a percepção visual das cores e as cores presentes no cotidiano dos alunos. No primeiro momento da atividade, a docente de Arte recordou com os alunos a diferença entre cor luz e cor pigmento, enfatizando a presença de ambas no nosso dia a dia. Ainda nesse contexto, demonstrou-se para os alunos a interdisciplinaridade do conteúdo construindo um diálogo com a disciplina de Ciências da Natureza, através de uma atividade sobre a “Visão”, iniciada simultaneamente. Para melhor compreensão dos alunos, a classificação das cores foi revisada, assim como, o estudo das


cores quentes, frias e neutras, sempre usando como exemplo os elementos da natureza. Os processos de criação e a materialidade estiveram presentes em vários momentos das tarefas. Nos encontros remotos (com o auxílio da apostila, vídeos e outros recursos tecnológicos), e nas aulas presenciais (por meio da gamificação, caderno de arte, tintas, entre outros materiais artísticos). Durante todo processo, os alunos puderam expressar-se artisticamente sobre a temática. Ao final da atividade, com suas próprias produções artísticas, os educandos tiveram a possibilidade de analisar o elemento constitutivo das artes visuais, cor, estabelecendo uma relação direta e indireta com outras disciplinas escolares, bem como, com suas vivências. Em Ciências da Natureza estudamos os órgãos dos sentidos, destacando a visão, tendo como problematização inicial: como enxergamos as cores? Usando “slides” e aula dialogada, explicitou-se as partes do olho humano e os mecanismos da visão, apresentamos o vídeo “A biologia das cores”, disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=EuOUS1Ox_i8, desenvolvido pelas autoras. Por fim discorremos sobre a importância das cores na natureza, para plantas e animais e propomos exercícios relacionados ao conteúdo em apostila entregue aos alunos. Preconizamos caminhos que levassem os alunos a entenderem a importância do tema, além de realizarmos a avaliação diagnóstica, promovendo as discussões reflexivas e levantando conceitos dos próprios alunos acerca da temática abordada, abrangendo questões científicas sobre o tema a abordagem em foco. Para o momento de organização do conhecimento, os alunos mediados pelas professoras, apropriaram-se do conteúdo apresentado, debateram sobre as propostas, analisaram os resultados apresentados e desenvolveram conceitos sobre a temática abordada, no decorrer de suas atividades práticas. Por fim, na aplicação do conhecimento, momento o qual o professor retorna a questão problematizadora e sistematiza todo conhecimento ressignificado pelo aluno, pedimos que os alunos relatem suas conclusões sobre o assunto. Estimulamos o surgimento de novas questões, novas respostas e ideias diferentes para uma mesma questão. Como objetivo geral pretendemos estabelecer a temática “Cores”, fazendo conexão entre dois componentes curriculares, Arte e Ciências da Natureza. Colaborar para que os alunos percebam que as cores estão na natureza, na vida humana e animal, nas emoções e reveladas nas mais diversas formas. O desenvolvimento de nossas atividades foi fundamentado teoricamente por Delizoicov (1982) tratando-se dos três momentos pedagógicos e, Fazenda (2006) referindo-se ao trabalho pedagógico que deve ser efetivado através da interdisciplinaridade, de modo a


fazer sentido para a aprendizagem dos alunos. CONSIDERAÇÕES FINAIS O fato de as tarefas terem iniciado remotamente, dificultou um pouco o contato com os alunos, pois nem todos participavam das aulas síncronas, apenas um pequeno grupo. No momento que retornamos para as aulas presenciais, mesmo que em revezamento de alunos e opcional, conseguimos atingir um número maior de participantes, além de nos possibilitar realizar atividades práticas em conjunto, respeitando os protocolos de biossegurança. No entanto, o fato impediu uma interação maior das docentes (arte e ciências), além da pedagoga, durante as aulas, devido às cargas horárias das mesmas. Outro ponto de destaque, eram as incertezas, pois não sabíamos se as aulas seriam desenvolvidas remotamente ou presencial, quantos alunos teríamos presentes, e outros fatores limitantes. Mesmo em meio a esses desafios, concluímos que o desenvolvimento das ações foi bem-sucedido em relação à aprendizagem dos alunos. Os mesmos demonstram no decorrer de seus discursos, envolvimento e desenvolvimento das atividades, nas respostas dadas por eles, nota-se avanços importantes na compreensão e entendimento da importância da temática e sua transversalização interdisciplinar, em relação ao conteúdo de cada disciplina. Conseguimos conjuntamente manter a proposta dos três momentos pedagógicos, retomando a questão problematizadora, e conectando com as disciplinas de Arte e Ciências da Natureza, ficando claro para os alunos a integração do tema no contexto das aulas, consolidando assim os conhecimentos e objetivos propostos para este trabalho. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Temas contemporâneos transversais na BNCC: propostas de práticas de implementação. Brasília: MEC, 2019. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/implementacao/guia_pratico_temas_contemporaneos.pdf> Acesso em: 09 abr. 2021. DELIZOICOV NETO, Demétrio. Concepção problematizadora do ensino de ciências na educação formal: relato e análise de uma prática educacional na Guiné Bissau. 1982. 227 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade de São Paulo, São Paulo. FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: didática e prática de ensino. Interdisciplinaridade. Revista do Grupo de Estudos e Pesquisa em Interdisciplinaridade. p. 9-17. MENEGHEL, Crisane Aquino. MORAIS, Kristian Karla Inácio de Souza. PIOL, Giani Gomes dos Santos. A magia biologia das cores. 2021. Youtube, 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch? v=EuOUS1Ox_i8> Acesso em: 29 mar. 2021.


PRÁTICAS ARTÍSTICAS NO ENSINO DA ARTE CONTEMPORÂNEA Claudia Magalhães Gil RESUMO O presente texto compartilha a experiência na sala de aula durante o processo educacional do fundamental 2 no Colégio Objetivo Baixada Santista, a fim de significar a importância da arte contemporânea na formação do indivíduo enquanto sujeito ativo da construção da sociedade. Por meio da arte contemporânea, se busca despertar a percepção objetiva e a subjetiva das obras, contextualizando-as, e principalmente incitar a criatividade e a busca da autonomia do estudante. Além disso, a arte contemporânea configura-se como uma ferramenta transformadora do indivíduo como participante ativo de uma comunidade. Por meio do ensino da arte contemporânea, se enfatiza a importância do envolvimento do professor com práticas artísticas em grupo e individuais, a fim de estimular no estudante as emoções que a arte desperta, o conhecimento através da contextualização e a criatividade na abordagem das práticas artísticas, visto que a formação intelectual do estudante e seu papel na construção da sociedade, e a autonomia no momento em que ele se encontra num ambiente diversificado, consistem no início de uma vida social mais ampla. Práticas artísticas no processo educacional mostram os benefícios do ensino da arte contemporânea, e demonstram a importância do envolvimento do professor especialista na abordagem artística e no desenvolvimento dos educandos. Palavras-chave: Arte contemporânea; processo educacional; práticas artísticas

. RESUMEN Este texto comparte la experiencia en las clases durante el proceso educativo en la escuela primaria del Colégio Objetivo Baixada Santista, con el fin de significar la importancia del arte contemporáneo en la formación del individuo como sujeto activo en la construcción de la sociedad. A través del arte contemporáneo, se busca despertar la percepción objetiva y subjetiva de las obras, contextualizándolas, y principalmente fomentar la creatividad y la búsqueda de la autonomía del estudiante. Además, el arte contemporáneo se configura como una herramienta transformadora para el individuo como participante activo de una comunidad. A través de la enseñanza del arte contemporáneo, se enfatiza la importancia de la implicación del docente con las prácticas grupales e individuales, con el fin de estimular en el estudiante las emociones que despierta el arte, el conocimiento a través de la contextualización y la creatividad en el enfoque de las prácticas artísticas, desde la intelectualidade del estudiante. La formación y su papel en la construcción de la sociedad, y la autonomía en el momento en que se encuentra en un entorno diversificado, constituyen el inicio de una vida social más ampla. Las prácticas artísticas en el proceso educativo muestran los beneficios de la enseñanza del arte contemporâneo, y demuestran la importancia de la participación del docente especialista en el enfoque artístico y en el desarrollo de los estudiantes. Palabras-claves: Arte contemporáneo; proceso educacional; prácticas artísticas.

INTRODUÇÃO Este texto traz a importância da arte contemporânea na educação para a formação do desenvolvimento intelectual e criativo dos estudantes do fundamental 2 do Colégio Objetivo Baixada Santista, a fim de significar a importância da arte contemporânea na formação do indivíduo que tem papel fundamental na construção da sociedade por meio dos saberes, da emoção e da criatividade. O ensino da arte contemporânea enfatiza a importância do envolvimento do professor com práticas individuais e em grupos, a fim de estimular no estudante as emoções que a arte desperta, o conhecimento através da contextualização e a criatividade na abordagem das práticas artísticas, visto que a formação intelectual do estudante e seu papel na construção da sociedade, e a autonomia quando ele se encontra num ambiente diversificado, consistem no início de uma vida social mais ampla. Práticas artísticas no processo educacional mostram os benefícios do ensino da arte contemporânea, e


demonstram a importância do envolvimento do professor especialista na abordagem de práticas artísticas. DESENVOLVIMENTO A arte é inerente ao ser humano, pois se necessita de arte não somente para se expressar, mas também para conhecer o passado, o presente e as projeções sobre o futuro da humanidade. Embora algumas sociedades mal reconheçam o objeto como arte, compreendem o fazer artístico como forma de expressão, comunicação e identidade de um povo, como Janson (1996, p. 09) exemplifica: A arte é um objecto estético, feito para ser visto e apreciado pelo seu valor intrínseco. As suas características especiais fazem da arte um objecto à parte, por isso mesmo muitas vezes colocado à parte, longe da vida quotidiana, em museus, igrejas ou cavernas.

Ou seja, é válido ressaltar que o artista sempre buscará a partir da obra exprimir o que está sentindo ou o que quer narrar acerca de si. Entretanto, não o produz, pensando que o mesmo será exposto em museus ou galerias de artes, ele o faz pela necessidade. Todavia, com o tempo, a sociedade irá atribuir a este objeto, por sua vez, um caráter artístico, estético e até mesmo histórico, conforme seu específico conceito de tais valores, não obrigatoriamente opostos ao de seu criador, mas formulado de acordo com suas particulares expectativas. Por isso, é necessária a contextualização do objeto, para compreender o meio em que foi produzido. Segundo Dewey (2010, p. 151): A ligação entre veículo e o ato expressivo é intrínseca. O ato de expressão sempre emprega um material natural, embora este possa ser natural no sentido de habitual ou no de primitivo ou inato. Ele se torna um veículo ao ser empregado, em vista de seu lugar e papel, em suas relações, em uma situação inclusiva.

A arte pode ser caracterizada, então, como uma ferramenta que estabelece um diálogo com a sociedade, e da mesma forma que nós indivíduos nos transformamos, a sociedade vai se transformando ao longo do tempo; isso ocorre na arte em cada movimento artístico, das vanguardas que muitas vezes causam um efeito de estranhamento e rechaço, mas que são fundamentais pois indicam esta transformação. A expressão artística na educação é extremamente importante, pois é por meio dessas práticas artísticas que os alunos expressam seus sentimentos, e ao mesmo tempo desenvolvem habilidades motoras e cognitivas fundamentais para a vida, além de organização, atenção, construção do senso crítico e raciocínio lógico. Aprender depende de experimentar, e na arte o estudante, por meio das mais diversas manifestações artísticas, dialoga e sintetiza seu conhecimento com novas experiências. É no fazer artístico que o estudante está criando, a partir da sua forma, o aprendizado, além de estar


narrando o seu entorno. Outro fator importante é possibilitar aos alunos o desenvolvimento da capacidade de analisar seus próprios trabalhos artísticos. Segundo Barbosa (1994, p. 43): O desenvolvimento crítico para a arte é o núcleo fundamental da sua teoria. Para ele a capacidade crítica se desenvolve através do ato de ver, associado a princípios estéticos, éticos e históricos, ao longo de quatro processos, distinguíveis mas interligados: prestar atenção ao que vê, descrição; observar o comportamento do que se vê, analisar; dar significado à obra de arte, interpretação; decidir acerca do valor de um objeto de arte: julgamento.

O fato de analisar uma obra de arte nos proporciona o conhecimento e a contextualização da mesma na sociedade inserida. Ou seja, o estudante, quando se expressa por meio da arte, está ilustrando o que se passa com sua respectiva comunidade e sociedade, na qual está inserido. Assim, Fischer (1983, p. 158) postula: Recorremos a alguns exemplos para a ilustração de como o conteúdo é incomparavelmente mais do que o assunto ou o tema, para demonstração de que, por importante que seja a escolha do tema, o conteúdo de uma obra de arte não é determinado tanto pelo que está pintado como pela maneira como está pintado, isto é, pelo modo segundo o qual o artista, consciente ou inconscientemente, expressa tendências sociais do seu tempo.

Muitos estudantes discursam sobre a queda na qualidade da arte, o quanto a arte dos dias atuais não é bela, e muitas vezes, dificilmente compreendida. Com base numa primeira aula expositiva, com obras de artistas a partir do século XX, foram contextualizadas e suas respectivas técnicas conhecidas, mostrando a importância da originalidade e criatividade. Assim, os estudantes desenvolveram seu senso crítico, conheceram o que estava relacionado acerca da obra e do próprio artista. A arte contemporânea, assim como toda arte, é o retrato da sociedade onde está inserida, e a falta de compreensão demonstra o quanto se distancia do mundo moderno em busca de uma beleza que Kazimir Malevich, já substituída pela forma do quadrado (Fig.1) ou até mesmo Marcel Duchamp e os dadaístas, ao romper com tal necessidade durante a Primeira Guerra Mundial (Fig.2). Fig.1. Kazimir Malevich, 1878-1935. Quadrado branco sobre fundo branco,1918. Óleo sobre tela, 79,4 × 79.

Fonte: Museum of Modern Art, em Nova Iorque, EUA.


Fig.2. Marcel Duchamp, 1887-1968. Fonte, 1917. Mictório de porcelana e tinta, 61x36x48 cm.

Fonte: Museu Nacional de Arte Moderna. Paris, França.

Após a aula expositiva sobre arte contemporânea, os estudantes realizaram trabalhos plásticos, nos quais trouxeram experiências pessoais contextualizando e discursando sobre a técnica, com senso crítico e estético. Na Fig.3, os estudantes mostram a importância e o quanto significativo é estar presente num tempo que anda muito rápido. Na Fig.4, o grupo narra a natureza representada por meio da pintura em copos de vidros que juntos, um sobre o outro, se iluminam, se completam e se sustentam. A Fig.5 é uma instalação, onde cada aluno doou uma lata de leite em pó e juntos construíram esta trama de barbantes representando a união das famílias numa ação solidária, já que após a exposição as latas foram doadas a uma creche. A Fig.6 foi realizada durante o isolamento em razão da pandemia COVID-19, por meio de aulas remotas, o estudante construiu uma obra que reflete o efeito da pandemia no mundo e o uso das máscaras e mortes causadas pelo vírus. Fig.3. O tempo, 2019. Papelão

Fig.4. Sem título, 2019. Copo com pintura e iluminação.

Fig.5. Tramas, 2019. Latas de leite em pó e barbante.


Fig.6 Sem título, 2021. Pintura em P.V.A e materiais diversos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das informações contidas no presente texto, foi possível refletir acerca da importância que o ensino de arte contemporânea na escola possui. Além disso, foram levantadas questões sobre a necessidade de tal modalidade de ensino ser desempenhada, preferencialmente, por um profissional que possua, além de estudo acadêmico específico na área proposta, certa vivência na produção artística e na crítica da arte. Dessa forma, é dever deste profissional contribuir para a formação dos estudantes, não somente em relação ao aspecto intelectual, mas também focando no desenvolvimento de sensibilidade e senso crítico, possibilitando a abertura de um universo de possibilidades para a criatividade. Por meio das atividades práticas, notou-se que o estudante e o docente foram sensibilizados pelo fazer artístico, trabalhando a cooperação e a empatia quando solicitado que trabalhassem em grupos. Sendo assim, depreende-se que a arte contemporânea possibilita aprofundar questões voltadas à sensibilidade, criatividade e conhecimento, e é este o sentido de promover a arte contemporânea no fundamental 2, tornando único o aprendizado e a possibilidade de novas interações com a escola. REFERÊNCIAS ABDALLA, Maria de Fátima B. Formação de Professores: desafios e perspectivas. Rev. Educ. PUC-Camp., Campinas, vol 22, n. 2, p. 171-190, maio/ago, 2017. BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1994. DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins, 2010.


FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. FUSARI, Maria Felisminda de Rezende e; FERRAZ, Maria Heloísa Côrrea de Toledo. Arte na Educação Escolar. São Paulo: Cortez, 1991. Klein, Jacky; Klein, Suzy. O que é arte contemporânea?. São Paulo: Claro Enigma, 2012. MATURANA, Humberto R; VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e brincar. São Paulo: Palas Athena, 2004.


RESGATE DE IDENTIDADES CULTURAIS LOCAIS ATRAVÉS DE ELEMENTOS VISUAIS Myllena Sunderhus Thaize Caló de Oliveira Maira Pêgo de Aguiar RESUMO Este trabalho visa fazer uma análise de duas oficinas realizadas no projeto de extensão do Programa de Educação Tutorial (PET) Conexões Cultura da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O objetivo é analisar as relações estabelecidas entre as atividades realizadas com base nas teorias da cultura visual, buscando identificar o repertório cultural das crianças que participaram das oficinas a fim de promover o fortalecimento das identidades locais dessas. As oficinas aconteceram no decorrer do ano de 2019 com estudantes da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Marechal Mascarenhas de Morais. A escola está localizada no bairro Maria Ortiz, no município de Vitória - ES, na região conhecida como Grande Goiabeiras. São relatadas duas atividades dentre as que foram desenvolvidas na comunidade, sendo a primeira uma oficina de elaboração de cadernos de artista e a segunda refere-se à pintura do muro da sede da Empresa de Logística Vix, localizada no mesmo bairro da escola. A análise das imagens produzidas nas atividades permitiu-nos observar que, tanto nos cadernos de artista quanto na pintura do muro, os educandos demonstraram o vasto repertório cultural que possuem e que foi ampliado a partir das discussões durante a realização das atividades. Palavras-chave: repertório cultural; identidades locais; cultura visual.

ABSTRACT This work aims to analyze two workshops held in the extension project of the Tutorial Education Program (PET) Conexões Cultura at the Federal University of Espírito Santo (UFES). The objective is to analyze the relationships established between the activities carried out based on theories of visual culture, searching to identify the cultural repertoire of the children who participated in the workshops in order to promote the strengthening of their local identities. The workshops took place throughout 2019 with students from the Municipal Elementary School (EMEF) Marechal Mascarenhas de Morais. A escola está localizada no bairro Maria Ortiz, no município de Vitória - ES, na região conhecida como Grande Goiabeiras. Amongst the activities developed in the community two are reported, the first describes a workshop for the elaboration of artist's notebooks and the second refers to painting the wall of the headquarters of the logistics company Vix, located in the same neighborhood as the school. The analysis of the images produced in the activities allowed us to observe that in both the artist's notebooks and in the painting on the wall, the students demonstrated the vast cultural repertoire they have, which was expanded from the discussions during the activities. Keywords: cultural repertoire; local identities; visual culture.

INTRODUÇÃO Para melhor entendimento do trabalho realizado, inicialmente apresentamos o Programa de Educação Tutorial (PET) Conexões Cultura, que é um grupo multidisciplinar composto por uma tutora docente e 12 bolsistas graduandos. Os participantes podem provir dos cursos de Artes, Arquivologia, Geografia, História, Letras e Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O principal objeto de pesquisa ao qual se dedicam são as visualidades e identidades da periferia. Uma de suas características centrais é o cumprimento do tripé acadêmico - ensino, pesquisa e extensão - de forma totalmente integrada, horizontal e em parceria com as comunidades da Grande Vitória. Ao desenvolver suas atividades, o PET Cultura busca atuar junto à população, ouvindo seus saberes e necessidades. A partir daí desenvolve seus trabalhos de forma a atender as demandas identificadas pela comunidade em articulação aos objetivos do PET. O grupo acredita que as escolas são um importante meio de entender as necessidades


dos locais nos quais estão inseridas e fazer com que os projetos alcancem um maior número de pessoas da região. Por esse motivo, o contato com a comunidade de Maria Ortiz foi realizado através da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Marechal Mascarenhas de Morais. Para dar início ao planejamento de atividades, foram realizadas reuniões com os professores e coordenadores da escola visando compreender os interesses da comunidade escolar. A equipe também buscou ouvir dos próprios estudantes, principalmente acerca do que sabiam sobre as manifestações culturais do bairro e seu nível de interesse sobre o assunto. O objetivo era compreender a cultura imagética local a partir das bases da cultura visual. Nesse sentido, Franz (2008) destaca que Saber o que dizem os alunos sobre a arte ou sobre determinada imagem da cultura visual é apenas o primeiro passo para educar para a compreensão, porque estas falas são o principal instrumento pedagógico para planejar estratégias didáticas adequadas com o objetivo de tornar mais críticas e complexas aquelas compreensões. (p. 4).

A partir desse momento de escuta ficou evidente que as crianças não tinham tanto contato com a cultura local quanto era esperado. Com base nessa constatação pudemos compreender que ocorria com essas crianças o que Martins (2010) afirma sobre hiper visualização característica da contemporaneidade. Ou seja, o contato incessante dos sujeitos com imagens da mídia e da publicidade no cotidiano torna o indivíduo apático, passivo, agressivo e dependente. O sujeito se afasta das referências populares e de uma apreciação consciente por estar imerso em comportamentos de dependência da exposição imagética constante. Desta forma, com o suporte do que aprofundamos nos grupos de estudos a respeito dessas temáticas e das análises das reuniões escolares, a equipe decidiu realizar oficinas interdisciplinares que envolvessem todas as áreas abarcadas pelo PET Cultura. DESENVOLVIMENTO O PET decidiu direcionar suas ações para o resgate e valorização de elementos característicos da cultura local. Muitos estudantes não haviam nem mesmo visitado lugares da região que são prestigiados no Brasil inteiro, como o galpão das Paneleiras de Goiabeiras. A Grande Goiabeiras conta com outros fortes elementos culturais que são pouco divulgados, como a Banda de Congo Panela de Barro, a Escola de Samba Grêmio Recreativo Chegou o que Faltava, o maior manguezal urbano do Brasil e a festa de Folia de Reis. A região é chamada pelos moradores de “Caldeirão Cultural” pela diversidade ali presente. Seguindo com as oficinas, destacamos primeiro a elaboração dos cadernos de artista. O intuito era que os estudantes fabricassem cadernos com papel reciclado por eles mesmos,


promovendo a conscientização ambiental e uso dos materiais recicláveis. Nesses cadernos, os estudantes escolheram relatar, através de desenhos ou textos, o que aprenderam durante as oficinas. Alguns elementos representados nos desenhos foram a panela de barro, a flora, a fauna local e a paisagem do entorno das Paneleiras (Figura 1). Figura 1.

Fonte: acervo do PET Cultura.

Figura 2.

Fonte: Acervo do PET Cultura

Na pintura do muro da Empresa de Logística Vix (Figura 2), as crianças também utilizaram elementos presentes na paisagem da região e as experiências que tiveram com o PET Cultura no decorrer do ano para elaborar os desenhos executados no muro. É possível observar que muitos elementos simbólicos aparecem tanto no caderno de artista, realizado individualmente e de forma livre, como no muro pensado e feito de forma


coletiva. Dentro desse panorama, destacamos a afirmação de Martins (2010): “sistemas simbólicos, ao mesmo tempo em que se constituem como marca, se constituem, também, como prática cultural que caracteriza e singulariza um grupo, comunidade ou sociedade num tempo e lugar específicos” (p. 23). Nas imagens geradas pelas oficinas citadas pudemos observar como a cultura local pode ser ressignificada pelas gerações mais novas, passando a constituir-se em identidade local e assim, se tornando parte de seu repertório cultural. A panela de barro, o manguezal, a banda de congo e os outros elementos já citados são símbolos da cultura da Grande Goiabeiras, oferecendo ao grupo de moradores da região marcadores da cultura local. Esses ícones, cuja importância foi passada de geração em geração, representam os moradores daquela localidade como um grupo que apresenta características e valores em comum. Também contribuem para a constituição da identidade dos sujeitos que fazem uso desses símbolos, pois a cultura popular auxilia no resgate de suas subjetividades, já que suas referências não constituem-se apenas aquelas impostas pela cultura hegemônica. Os estudantes se mostraram abertos e entusiasmados ao receberem essas referências, que mesmo sendo encontradas em locais tão próximos às suas residências, passavam despercebidas num mundo dominado pela hiper visualização de imagens das mídias. As oficinas foram desenvolvidas com um foco metodológico que prioriza o desenvolvimento cultural e intelectual dos sujeitos, não sua docilização e preparação para o mercado. Queiroz (2014) afirma que O educador deve promover oportunidades de encontro de cada aluno com si próprio, com o outro e com o mundo que o cerca, através de uma outra linguagem, que favoreça múltiplas formas de ser, dizer e sentir, expressar-se e de representar o mundo à sua forma. (p. 39).

Este foi o objetivo do PET Cultura junto àquela comunidade, que consideramos ter alcançado. CONSIDERAÇÕES FINAIS O PET Cultura busca ouvir e dar protagonismo aos sujeitos das comunidades nas quais atuam, de acordo com as demandas que são apresentadas pelos próprios moradores. Ao observar os processos de aprendizagem dos estudantes relatado neste trabalho, é possível afirmar que a oficina de cadernos de artista realizada de forma individual e a pintura do muro, que foi uma oficina coletiva, possibilitaram que o aprendizado das crianças se desse num contexto de coletividade, uma vez que se constituiu nas relações estabelecidas entre elas nas situações de interação, muitas vezes envolvendo personalidades da comunidade que detém saberes ancestrais, tradicionais. Vivemos em um mundo onde o entretenimento toma a voz e a


cultura dos sujeitos, tornando sua própria cultura algo distante de sua vida, levando, de modo coletivo, ao esquecimento e apagamento das culturas locais. Desse modo, consideramos ter alcançado nossos objetivos ao oportunizar aos sujeitos envolvidos o resgate das memórias e da cultura local. REFERÊNCIAS FRANZ, Terezinha Sueli. Os estudantes e a compreensão crítica da arte. Porto: Revista da Associação de Professores de Expressão e Comunicação Visual, n. 49, p. 4-11, jan. 2008. MARTINS, Raimundo. Hipervisualização e territorialização: questões da cultura visual. São Paulo: Educação & Linguagem, v. 13, n. 22, p. 19-31, jul./dez. 2010. QUEIROZ, P. P. de. A Arte na Educação Para a Compreensão da Cultura Visual. Niterói: RevistAleph, n. 14, jun. 2014.


TECNOLOGIAS DIGITAIS NO ENSINO DE ARTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA Josicleia Gomes Nunes Rodrigues RESUMO O presente trabalho consiste em um relato de experiência com o ensino de Arte por meio das tecnologias digitais, vivenciado no primeiro semestre do ano letivo de 2021, no Centro Municipal de Educação Básica Helena Esteves, localizado na cidade de Barra do Garças, Estado de Mato Grosso. A importância do ensino de Arte por meio das tecnologias digitais tornou-se ainda mais evidente diante do momento da pandemia causada pela propagação da Sars-CoV-2, conhecida popularmente como covid-19, cenário em que teve-se a necessidade de utilizar as ferramentas digitais como recursos fundamentais no processo de ensino e aprendizagem. As tecnologias digitais, quando utilizadas corretamente, contribuem de maneira positiva para que a aprendizagem da Arte seja contemplada. A Arte assume uma importância indiscutível para a formação humana, estando presente na vida das pessoas de várias maneiras, assim, acontece com as tecnologias digitais, que são fontes de acesso à riqueza artística existente no mundo. Assim, o presente relato se destina a apresentar as contribuições da tecnologia para o ensino de Arte, bem como as atividades que podem ser desenvolvidas por meio destes recursos, possibilitando aos estudantes um processo de ensino e aprendizagem independente e significativo. Palavras-chave: Arte; Tecnologias Digitais; Escola.

ABSTRACT The present work consists of an experience report with the teaching of Art through digital technologies, experienced in the first semester of the 2021 school year, at the Helena Esteves Municipal Basic Education Center, located in the city of Barra do Garças, State of Mato Grosso. The importance of teaching Art through digital technologies has become even more evident given the moment of the pandemic caused by the spread of Sars-CoV-2, popularly known as covid-19, a scenario in which there was a need to use the digital tools as fundamental resources in the teaching and learning process. Digital technologies, when used correctly, contribute in a positive way for the learning of Art to be contemplated. Art assumes an undeniable importance for human formation, being present in people's lives in various ways, thus, it happens with digital technologies, which are sources of access to the artistic wealth existing in the world. Thus, this report is intended to present the contributions of technology to the teaching of Art, as well as the activities that can be developed through these resources, enabling students to have an independent and meaningful teaching and learning process. Keywords: Art; Digital Technologies; School.

INTRODUÇÃO A Arte é uma das manifestações de comunicação mais antigas existentes, sendo relatada ainda no período da pré-história, quando os homens não haviam descoberto a escrita, mas já se comunicavam e cultivavam manifestações artísticas. Essas manifestações são comumente relacionadas às pinturas rupestres e aos diferentes tipos de danças, que já se faziam presentes neste período. Com o passar do tempo, apesar das inúmeras dificuldades, a Arte ganhou o próprio espaço, sendo inserida aos poucos na Educação Básica. Com a implantação da Lei de Diretrizes e Bases no ano de 1971, a Arte foi inserida no currículo educacional com o nome de Educação Artística, assumindo caráter recreativo. Com a atualização da Lei no ano de 1996, foram revogadas as disposições anteriores e a disciplina “Artes” foi reconhecida, tendo seu ensino obrigatório, como dispõe o parágrafo 2º do artigo 26, “o ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”.


É conhecido que a Arte acompanha as mudanças no cenário social, assim, não pode ser diferente no ambiente escolar. A sociedade, em seus diferentes setores, têm adotado cada vez mais as tecnologias digitais como celulares e computadores em suas atividades do dia a dia, uma vez que agrega em melhorias e facilidades. A Arte está intimamente ligada à tecnologia digital, já que hoje são dispostas informações sobre os diversos tipos de Arte a partir da utilização desses recursos, bem como são desenvolvidas obras de Arte por meio de tais ferramentas. Nesse sentido, verifica-se que a utilização das tecnologias contam-se como importantes aliadas para o ensino de Arte na Educação Básica, qual torna-se ainda mais evidente de acordo com o período de pandemia da covid-19, em que coube às instituições de ensino adotarem métodos urgentes de ensino, vinculados às tecnologias digitais. Sendo assim, o presente trabalho visa dispor de um relato de experiência com uso de tecnologias digitais para o ensino da Arte na Educação Básica, que ocorreu no primeiro semestre do ano letivo de 2021 no Centro Municipal de Educação Básica Helena Esteves, localizado na cidade de Barra do Garças, Mato Grosso. DESENVOLVIMENTO O presente relato se destina a apresentar as atividades desenvolvidas no ensino de Arte, quais foram destinadas às turmas do 6º, 7º, 8° e 9° anos do Ensino Fundamental II no Centro de Educação Básica Helena Esteves, localizado na cidade de Barra do Garças. Na ocasião, foram utilizadas as tecnologias digitais enquanto recurso de aprendizagem, uma vez que o período da pandemia causada pela covid-19, exclui a possibilidade de um ensino presencial na referida instituição de ensino. Dentro desse contexto inovador, ao inserir as tecnologias enquanto recursos de aprendizagem o professor de Arte é confrontado a mudar suas metodologias de ensino, o que requer deste sujeito qualificação profissional para desenvolver este trabalho. Assim,

o

presente relato tem como problematização compreender “qual é a importância das tecnologias digitais para o ensino de Arte?”, sendo inicialmente respondido por um estudo bibliográfico e experimentado em atividades práticas. A metodologia deste relato se ampara na revisão da bibliografia já publicada, como também em documentos curriculares que norteiam o ensino de Arte, sendo consultado e estudado e Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Assim, como metodologias de ensino, foram desenvolvidas na referida instituição de ensino, atividades caracterizadas como metodologias ativas, levando os estudantes a desempenhar suas próprias pesquisas,


conhecendo a Arte de maneira abrangente, utilizando como recurso as ferramentas digitais smartphones e computadores. Assim, o processo foi acompanhado pela professora de Arte, a qual se encarregou de realizar a avaliação de cada estudante. As tecnologias digitais têm contribuído de maneira expressiva para o ensino de Arte, uma vez que permitem que o estudantes conheçam e reconheçam as aplicações da Arte sobre os diferentes tempos históricos, interagindo em tempo real, por meio das tecnologias digitais, sendo utilizados aplicativos, programas e as demais ferramentas disponibilizadas online. De acordo com a BNCC “a aprendizagem de Arte precisa alcançar a experiência e a vivência artísticas como prática social, permitindo que os alunos sejam protagonistas e criadores” (BRASIL, 2017, p. 193). O principal objetivo do desenvolvimento deste trabalho foi contribuir para que os estudantes tornem-se sujeitos mais ativos com relação a busca da própria aprendizagem, compreendendo a totalidade em que a Arte se insere na sociedade, desenvolvendo conhecimentos autônomos e críticos sobre assuntos que contemplam a presente disciplina de forma inovadora, com auxílio das tecnologias. Enquanto objetivos secundários, o desenvolvimento das atividades visam proporcionar um ensino de qualidade aos estudantes, fornecer conhecimentos que subsidiam a importância da Arte para a sociedade e contemplar o saber artístico por meio da utilização de tecnologias digitais. No decorrer das aulas remotas que ocorreram no ano de 2021, as práticas assumiram um caráter lúdico por meio da utilização das tecnologias, assim, puderam ser desenvolvidos jogos pedagógicos online, quebra cabeças com temas de obra de Arte, além de pinturas por meio de aplicativos e realização de pesquisas com temáticas referentes à Arte, especialmente sobre a cultura artística do Estado de Mato Grosso. É importante ressaltar que muitos sites dispõem de atividades onlines, não necessitando ser baixadas e sendo de fácil acesso aos estudantes. Para contemplar as atividades teóricas, as tecnologias digitais também tiveram grande utilização, sendo desenvolvidos formulários online com questões discursivas e objetivas que poderiam ser respondidos por meio de dispositivos com acesso a internet, quais eram entregues automaticamente e permitiram as correções de formas automáticas ou comentadas posteriormente por meio de reuniões pela sala de reunião online Meet ou pelo envio de feedbacks pelo WhatsApp. A utilização desses recursos permitiu que os estudantes tivessem melhor desempenho com relação às atividades, uma vez que o processo foi simplificado e significativo. Utilizando as tecnologias digitais, também foram solicitados aos estudantes que


fizessem pesquisas temáticas sobre as expressões artísticas regionais, estando eles livres para explorar as informações disponíveis na internet e criar apresentações artísticas por meio dos recursos disponibilizados. A entrega de trabalhos disciplinares ocorreu por meio de e-mails, os quais tiveram respostas e feedbacks, expondo a avaliação do trabalho. Considerando a abrangência de utilização de tecnologias digitais em nosso dia a dia, a BNCC fundamenta a necessidade de vincular o ensino de Arte à tecnologia, o que ampara o trabalho desenvolvido. A 5ª competência para o ensino de Arte no Ensino Fundamental da BNCC orienta que se deve “mobilizar recursos tecnológicos como formas de registro, pesquisa e criação artística” (BRASIL, 2017, p. 198). Por meio da realização deste trabalho relacionando o ensino da Arte com a tecnologia, partiu-se da fundamentação teórica a partir de consultas em documentos de referência para a educação, assim, como autores que expõe o tema em publicações de pesquisa, sendo exemplo, Becker, Oliveira e Bidarra (2009), quais relacionam o ensino de Arte por meio das tecnologias enquanto uma forma eficaz de promover o ensino na Educação Básica. De acordo com os autores, o ensino da Arte por meio das tecnologias permite que sejam desenvolvidas “compreensões sobre o mundo e sobre a cultura em que vive, bem como pode proporcionar novas formas de perceber e de aprender a realidade, tendo na tecnologia forte aliada da reflexão e da imaginação” (BECKER; OLIVEIRA; BIDARRA, 2009, p. 04). Assim, discute-se que a cultura digital para a promoção de ensino tem passado por um processo de adaptação, uma vez que em um ensino presencial, muitas instituições de ensino privaram a utilização destes recursos, contribuindo para que neste momento pandêmico houvesse certa resistência para a utilização desses aparelhos para as atividades escolares. Aos poucos, houve uma adaptação positiva, percebendo que as tecnologias contamse como fortes aliadas ao ensino de Arte, possibilitando novos caminhos, instigando os alunos a serem mais independentes em suas caminhadas de formação. CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegado ao fim deste relato, é possível afirmar que as tecnologias digitais possuem muita contribuição no ensino da Arte na Educação Básica, uma vez que dispõe de um leque de ferramentas que permite que a aprendizagem não se consista em um processo fragmentado, oportunizando aos estudantes acesso a diferentes tipos de Arte, podendo assim reconhecer a variedade cultural que existe no mundo. Por meio dos conteúdos que são dispostos em ferramentas digitais, é possível que os estudantes desenvolvam suas pesquisas de maneira autônoma, indo além do que os livros


didáticos oferecem, dispondo de um processo de ensino e aprendizagem mais completo, por meio de uma concepção realista sobre a Arte e suas aplicações sociais. As tecnologias, que são ferramentas de uso no dia-a-dia dos estudantes, podem ser vistas por eles de acordo com o potencial que exercem, exercitando atividades de Arte de maneira interativa e lúdica, já que há uma variedade de jogos dispostos em ferramentas digitais. Fica claro que esta experiência contribuiu de maneira positiva para que a inserção das tecnologias no ensino de Arte ficasse ainda mais evidente, percebendo que os estudantes dispõem de autonomia no uso de tais ferramentas, o que contribui para que eles se tornem cada vez mais críticos e independentes. Assim, percebe-se que a variedade de imagens, conteúdos, jogos, entre outros, contribui para uma aprendizagem não fragmentada, visto que insere os alunos diretamente ao objeto de ensino a ser trabalhado, sendo um processo completo e amplamente benéfico. Sendo assim, a experiência com o ensino de Arte por meio das tecnologias digitais foi positiva, considerando os excelentes resultados alcançados na construção desses estudantes. REFERÊNCIAS BECKER, Silvana Ap. Portes; OLIVEIRA, Valdeci Batista de Melo; BIDARRA, Jorge. Contribuições da Tecnologia para o Professor de Arte em sua Prática Pedagógica: um relato de experiência. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1886-8.pdf Acesso em 01 jun. 2021. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_sit e.pdf Acesso em 01 jun. 2021. ______. LDB – Leis de Diretrizes e Bases. Lei nº 9.394. 1996. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf Acesso em 01 jun. 2021.

NOTAS DE FIM TEMPERANDO O SABER: AULA DE CAMPO NO GALPÃO DAS PANELEIRAS E OFICINA DE MOQUECA COM OS ALUNOS DA REDE PÚBLICA ESTADUAL, VITÓRIA (ES) Eloiza Mara de Paula Rossoni Laura Paola Ferreira RESUMO O presente trabalho possibilitou aos estudantes da rede pública estadual, Escola Ensino Médio e Fundamental Elza Lemos Andreatta, experiências artísticas e culturais a partir de práticas pedagógicas em ambientes não formais de ensino. Na trajetória da pesquisa, foi possibilitado aos alunos da rede pública estadual, parceiros da pesquisa a partir de práticas pedagógicas experiências e vivências em ambientes artísticos e culturais por meio do estudo da cultura capixaba. No entanto, esse trabalho faz um recorte nas atividades desenvolvidas no Galpão das Paneleiras de Goiabeiras e Oficina de Moqueca Capixaba na escola. A atividade pedagógica possibilitou conhecer as práticas de mediações pedagógicas realizadas no galpão das Paneleiras, e ainda compreender como essas experiências em espaços não formais reverberam e quanto influi na construção de conhecimento e desenvolvimento sobre a cultura capixaba. A abordagem teórica do trabalho respaldou-se nos autores Larossa


(2005), Barbosa (2005) e outros autores que dialogam com as abordagens no processo de ensino-aprendizagem. Palavras-chave: Espaços não formais de ensino; Vivências e experiências artísticas e culturais.

ABSTRACT This work enabled students from the state public school system, Elementary and High School Elza Lemos Andreatta, artistic and cultural experiences from pedagogical practices in non-formal teaching environments. During the research, it was made possible for students, research partners from pedagogical practices, experiences and practices in artistic and cultural environments through the study of Espírito Santo culture. However, this study highlights the activities developed at the “Galpão das Paneleiras de Goiabeiras” and “Oficina de Moqueca Capixaba” at the school. The pedagogical activity allowed to know the practices of pedagogical mediations performed in the Galpão das Paneleiras, and also to understand how these experiences in non-formal spaces reverberate and how much they influence the construction of knowledge and development about Espírito Santo culture. The theoretical approach of the work was supported by the authors Larossa (2005), Barbosa (2005) and other authors who dialogue with the approaches in the teaching-learning process. Keywords: Non-formal teaching spaces; Artistic and cultural experiences and practices.

INTRODUÇÃO Na prática pedagógica, muitas vezes percebemos que os alunos não vivenciam e experienciam os espaços artísticos e culturais locais. Dessa forma, propiciar vivências culturais foi caracterizada pela ampliação da fruição estética que pode influir diretamente na criação de trabalhos de expressividade artística dos educandos, sendo uma forma de contribuir para um repertório de possibilidades, contextualização e entendimento da sua identidade cultural. Consideramos importante possibilitar aos alunos vivências com a cultura e arte para além dos livros, e desta forma significar experiências artísticas, contribuindo para uma construção e composição que não seja apenas cópia, para que essa construção seja do que sente e afeta o aluno. Buscamos propiciar um percurso para que os estudantes tivessem referências de artistas, técnicas para que esses elementos reverberassem em uma experiência repleta de signos e uma poética do aluno expressiva e significativa. O filósofo e pedagogo Larossa (2011) define experiência como tudo que nos acontece, tudo que nos ocorre, tudo que ocorre conosco no sentido da vida. Ele afirma que a cada dia se vive muita coisa, mas, ao mesmo tempo, se experiencia muito pouco. DESENVOLVIMENTO A atividade desenvolvida com os alunos teve como princípio norteador a aula de campo, com visita mediada no Galpão das Paneleiras de Goiabeiras: oficinas de panela de barro. Para desenvolvimento da atividade, foram realizadas pesquisas prévias, e os alunos assistiram documentários que versavam sobre as Paneleiras de Goiabeiras. Na aula de campo, os estudantes puderam conhecer a dinâmica e o processo de elaboração da panela de barro. O que tornou a experiência enriquecedora foi a oportunidade do aprendizado pela oralidade daqueles que perpetuam a tradição de confecção de panelas de barro há mais de 400 anos.


Para a elaboração metodológica deste texto, fez-se um levantamento bibliográfico e empírico dos processos relatados no diário de bordo/campo. Segundo Gil (2008), a pesquisa bibliográfica se desenvolve por meio de material já elaborado, constituído de livros e artigos. Como recurso metodológico, utilizou-se o diário de bordo do aluno e do professor. O diário de bordo/campo, segundo Machado (2002), é uma ferramenta fenomenológica de registro escrito, para realizar-se a reflexão pragmática cotidiana da pesquisa. Pelas práticas educativas, no cotidiano escolar, foi possível presumir que somente levar os estudantes ao Galpão das Paneleiras e propor uma produção com o barro provavelmente resultaria em um trabalho ilustrativo, o qual não traria proposições artísticas ou ampliaria o conhecimento sobre a cultura e tradição das paneleiras. Portanto, procurou-se criar estratégias que possibilitaram um conhecimento significativo. E é justamente no processo da construção de conhecimento que circunda a problemática dessa pesquisa, como os espaços não formais de ensino reverberam em uma prática educativa nas aulas de arte que contribua para uma construção de conhecimento significativa para o aluno. Assim, o objetivo consistiu em investigar os espaços não formais de ensino, as práticas pedagógicas desenvolvidas e as possibilidades que os mesmos têm de fomentar a percepção e entendimento desses espaços como processo de fruição para os alunos. Era necessário propiciar ao aluno vivências em espaços artísticos e culturais locais para ampliar o repertório dos mesmos, bem como possibilitar a contextualização, dinâmica e proximidade desses espaços. As Paneleiras de Goiabeiras é um grupo formado por mulheres que há mais de 400 anos mantém viva a tradição herdada dos índios Tupi Guarani de fazer a Panela de Barro, preservando a forma de fazer que foi sendo passada de geração em geração. A confecção das Panelas de Barro é composta pelas etapas: retirada do barro do Vale do Mulembá, pisagem do barro, a modelagem, a primeira secagem, o lixamento com a pedra de rio, a segunda secagem, a queima a céu aberto, e a aspersão com tanino com a panela ainda em brasa. Geralmente, após a realização da oficina de panela de barro, uma vez que foram várias turmas em diferentes dias, era realizada uma exposição ou os alunos levavam as panelinhas para casa. No entanto, em uma das aulas de campo, os alunos demonstraram interesse em saber como é a receita e o preparo da Moqueca capixaba. Surgiu assim a ideia da realização da Oficina de Moqueca Capixaba dentro da escola, que teve como principal objetivo oportunizar aos alunos a experiência de preparar um prato típico da gastronomia capixaba, conhecido nacionalmente e, ainda, levar essa cultura de forma


dinâmica para dentro da escola. Para esta oficina, contamos com a participação da Marzilia Silva, que foi participante, em 2017, do programa de televisão brasileira Masterchef, foi Desfiadeira de Siri e é moradora da comunidade da Ilha das Caieiras. Os alunos sugeriram a presença das Paneleiras de Goiabeiras, o que foi aceito pela Berenice (presidente da Associação de Paneleiras de Goiabeiras) e sua irmã, a paneleira Nete, que ministrou a oficina no Galpão de Goiabeiras. A escola disponibilizou um fogão e utensílios dispostos no refeitório da escola. Os estudantes, junto com os professores, trabalharam na visualidade do espaço com produções com panelas de barro que foram produzidas por eles e passaram pelo processo da queima em fogueira a céu aberto. E nessas mesmas panelinhas, foram servidas as moquecas para os estudantes e para a equipe pedagógica e de professores. Na fala dos alunos, percebemos o quanto foi significativa a ida ao Galpão das Paneleiras, quando viram a moqueca não como um simples alimento, mas sim como um elemento que faz parte da história da Paneleiras e da cultura local. A oficina de Moqueca, aliada às demais vivências artísticas e culturais, foi mais um elemento que despertou a sensibilidade do olhar do aluno, e compôs um repertório para sua experiência artística. Dessa forma, ao conhecer um patrimônio imaterial, que a maioria dos estudantes conceituavam “como aquilo que não se pode tocar”, estes tiveram a compreensão da cultura que se mantém viva, dinâmica e presente em uma comunidade que traz uma carga afetiva e de pertencimento. Ser paneleira vai muito além de confeccionar artesanalmente panelas de barro. É moldar uma cultura, é manter viva uma tradição, é perpetuar um modo de fazer de geração em geração. Esse contato direto com as paneleiras propiciou uma outra forma de conhecer a história da cultura capixaba, a transmissão oral. A escola normalmente não proporciona ao aluno vivências em espaços fora do ambiente escolar, uma vez que a metodologia praticada geralmente contempla atividades relacionadas à escrita. A esse respeito, Barbosa (2005, p. 89) se refere como: A natureza da escola, de maneira geral e como a conhecemos e vivenciamos, não privilegia um modelo de aprendizagem por relação direta com a realidade. O conhecimento do mundo que se faz por mediação da escola é necessariamente filtrado pela ferramenta verbal – de preferência em sua forma escrita.

Possibilitar vivências fora do ambiente escolar é enriquecedor para a compreensão do aluno sobre temas como cultura local, e nos faz refletir sobre a importância de novas metodologias de ensino. Buoro (2003, p. 33) aborda essa temática pontuando que: Nos percursos de transformação do conhecimento do educador e na etapa das


vivências em sala de aula, é preciso disponibilizar modelos variados para a experimentação, pois só com um repertório elaborado com base em experimentações e vivências será possível avaliar de fato as diferentes metodologias e então criar ou escolher aquela que responda aos parâmetros da realidade.

As construções expressivas nas aulas de Arte podem gerar experiências com sentido para os educandos. As trocas, reflexões e os registros propiciam o diálogo do estudante com o mundo. Segundo Hissa (2003), a construção do pensamento se relaciona ao sentir e relacionar-se com o mundo, pois “A experimentação do mundo precede a razão. Adiante, mais de que isso: a razão é feita da experimentação do mundo e o pensamento é feito do sentir. Ser afetado pelo mundo, portanto, é pressuposto, da construção do pensamento” (HISSA, 2003, p. 20). CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência em ambientes não formais de ensino oportunizou ao aluno o contato direto com a cultura e tradições locais e ainda a aproximação com a sua identidade cultural. Pensar em aula de Arte também fora do ambiente escolar pode propiciar vivências sobre a importância de práticas que ampliam o pensamento crítico e artístico do estudante. Desta forma, o estudante criará formas de dar importância às suas vivências artísticas e culturais. Constatou-se que essas atividades fora do âmbito escolar possibilitaram aos estudantes ter referências para sua própria construção artística e dos elementos que constituem a cultura. Nesse sentido, percebemos o quanto estas práticas pedagógicas, nas aulas de Arte, viabilizam ao estudante conceber a Arte como uma forma de expressar-se e, também, como uma forma de apropriação de nova percepção do mundo a sua volta, o que possibilita a integração diante da diversidade, e das diferentes formas de perceber a importância que a Arte exerce na sociedade. REFERÊNCIAS BARBOSA, Ana. Mae. A compreensão e o prazer da arte. São Paulo: SESC Vila Mariana, 1998. BUORO, Anamélia Bueno. Olhos que pintam: a leitura da imagem e o ensino da arte. 2. Ed. São Paulo: Educ/Fapesp/Cortez, 2003. GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. Antonio Carlos Gil. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. HISSA, Cássio Eduardo Viana. Entrenotas: compreensões de pesquisa. Belo Horizonte: UFMG, 2013. MACHADO, Marina Marcondes. O Diário de Bordo como ferramenta fenomenológica para o pesquisador em artes cênicas. Sala Preta (USP), v. 2, p. 260-263, 2002.



PARTE 3 - EXPOSIÇÃO COLETIVA “O MÚLTIPLO E O DIVERSO”


O Tempo das Águas Álvaro Nomura A água corre por um rio, nunca é a mesma e nunca é outra, alinhando-se ao tempo, o rio constantemente se transforma, um ciclo de constância com o efêmero. O tríptico “O Tempo das Águas” tem o intuito de trabalhar a partir do dinamismo das águas, sua transformação como matéria líquida, sólida e gasosa; em uma pintura liberta do enquadramento de um suporte geometrizado. Esse tríptico é parte de uma pesquisa sobre a transformação das figuras bidimensionais, possibilitando-as que sejam unos e/ou múltiplos, estudando as sobreposições de imagens, conjunto a reação da luz impregnada no objeto e a transformação óptica do mesmo.

NOTAS DE FIM 1.

2.

Álvaro Gonçalves de Souza. Exposição coletiva Imagine, IV Circuito ArtES – IADES (Instituto de Arte do Espírito Santo) – 2018; Exposição Extasia, DADA (Diretório Acadêmico de Arte) – 2019; Mostra de arte contemporânea on-line, Continuidades – GAP UFES (Galeria de Arte Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo) – 2020; Exposição coletiva Alter / Algo / Ritmos – GAP UFES (Galeria de Arte Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo) – 2021. Material Utilizado e ou processo: Posca e óleo, sobre plástico pvc transparente, 2021.Dimensões: 150 x


50 cm.


Saberes pelas mãos Elô Rossoni A exposição fotográfica “Saberes pelas mãos” traz pelo olhar da lente a especificidade, sensibilidade e a força das Paneleiras de Goiabeiras. Cada uma das etapas de confecção da panela de barro é carregada de um gestual, ferramentas, ainda primitivas, que culminam em um saber repleto de significados no sentido que o barro mais as mãos que o modelam multiplicam esse saber cultural. Ao mesmo tempo que é algo único, agrega os quatros elementos da natureza: água, terra, fogo e ar. É múltipla no sentido da tradição e da técnica e única no sentido que cada panela carrega a digital e a ligação com quem a produziu, porém por um outro lado é um saber que carrega os conhecimentos que se multiplicam de geração em geração.

NOTAS DE FIM 1.

2.

Eloiza Mara de Paula Rossoni. Elô Rossoni, artista plástica. Mestre em Ensino de Arte, Especialista em Artes na Educação. Formada em Artes Visuais e Pedagogia. Bacharelado em Artes Plásticas. Curso extensão Histórias de Cultura Afro-brasileira. Curso extensão Educação de Jovens e Adultos. Pesquisadora em Patrimônio com ênfase em Cultura Capixaba e Educação Patrimonial. Material Utilizado e/ou Processo: fotografia em moldura de MDF.2021.Dimensões: 40 x 50 cm.


Sempre o mesmo e deformado Gabriel Caetano Deseja-se deformar as imagens, “as coisas memória-da matéria”, os módulos de “presença”. As imagens aqui apresentadas a partir de provocações da minha corpa em situação mutável, assim como minha casa, a natureza, a saúde, as vidas, as luas - elas mudam e deformam-se a multiplicar-se em mídias de afetos, desejo e possibilidade de vir a transmidiar-se, trans-ser tempo.

NOTAS DE FIM 1.

2.

Gabriel Caetano Madeira. Graduando em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha - UVV e integrante da Cia Poéticas da Cena Contemporânea. Arte-educador, ator, performer, artista visual, pesquisador. 2012 - Coletiva Aberta: Barrense e Simpatizantes, Atelier Kleber; 2014 - Holázia, Assembléia Legislativa do ES, Vitória - ES (individual); 2015 - Pinta Ilha, Museu Cerqueira Lima, Vitória - ES (coletiva); 2015 - O lugar é aqui, Aliança Francesa, Vitória - ES (individual); 2018 - MAES na Fachada, Vitória - ES (coletiva de vídeos); 2019 - Emparede Com Vida (Coletiva); 2020 - Contra o Tempo, CAW Produções (Coletiva/evento online); 2020 - Fora dali (coletiva/evento online); 2021 - Eu não me encontro em ação, Vitória - ES (individual/online). Material Utilizado e/ou Processo: fotografia em moldura de MDF. 2021. Dimensões: 40 x 50 cm.


As várias faces de um ser incompleto

MAR São tantas que às vezes sinto-me perdida entre elas. Ao me olhar no espelho pela manhã não reconheço o ser diante de mim... Algumas carregam em si manchas do que um dia as outras já foram, outras possuem densas camadas sobrepostas na tentativa de esconder suas falhas, a linha entre elas nem sempre é reta, o medo e a incerteza a fazem tremer. Mas se você parar e olhar bem de perto verá que todas são diferentes, talvez ainda não tenha existido alguém que tenha se importado o suficiente para tentar perceber, perceber que o eu diante de você talvez não seja real...

NOTAS DE FIM 1.

Samara Silva Figueiredo.Estudante do terceiro período de Artes Plásticas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


Olhar.Expressar.Sentir THAÍZE CALÓ A exposição “Olhar. Expressar. Sentir”, visa apresentar, através de fotografias de 5 pessoas vestidas de máscaras de proteção facial, o enfoque das possibilidades expressivas que se verificam além do uso da boca como um dos instrumentos de expressões. Em contexto pandêmico, passamos a verificar, em nosso cotidiano, formas a princípio limitadas de expressão, e através disso analisamos que, para além do olhar, possamos expressar para então o outro sentir. Este trabalho pretende refletir sobre a potência expressiva dos outros segmentos do rosto, tais como olhos, sobrancelhas e, inclusive, a postura da cabeça.

NOTAS DE FIM 1. 2.

Thaíze Caló de Oliveira. Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais. Material Utilizado e ou processo: Fotografia, 2021.Dimensões: 1080x1080px.


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Temperando o saber: aula de campo no galpão das paneleiras e oficina de moqueca com os alunos da rede pública estadual, Vitória (ES

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