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Quando se afasta a presença: reinvenções constantes do educador em teatro

Encontramos igual direcionamento apontado em Vygotskii (2018) quando atenta para que embora o ser humano em seu contexto sócio-cultural alcance estágios de significativo desenvolvimento nem sempre o mesmo se estende a sua capacidade de transpor ou explicar de forma verbal ou imagética o que vê e percebe em termos de símbolos verbais e não verbais. Esta é uma habilidade que precisa ser ensinada, estimulada haja vista não ser natural, embora a linguagem do desenho seja comum a maior parte das crianças no início da idade escolar, enquanto atividade extremamente prazerosa, reconhece-se quatro fases do desenho (esquemático, descritivo, realista e plástico) que para serem alcançadas dependem, segundo Vygotskii, de ambiente com exposição contínua e profícua de imagens além de uma prática constante do desenho enquanto força motriz para desenvolver a atividade criadora. Para comprovar a possibilidade de se avançar nas fases do desenho, Vygotskii (2018, p.115) faz uso das pesquisas de Kerschensteiner para afirmar que quando há estímulo e continuidade do estudo do desenho o que se percebe é um amadurecimento da atividade criadora:

“Essa criação infantil não é mais a mesma criação espontânea e em grande escala, a que surge de modo autônomo; é a criação ligada à habilidade, aos hábitos conhecidos de criação, ao domínio do material”. Do que pode-se concluir que a encarnação de imagens é a forma de apropriação e ampliação do repertório imagético cultural e que se constitui enquanto ensinamento clássico ii sob a perspectiva da Pedagogia Histórico Crítica. De modo sistematizado e atendendo sobretudo a um conteúdo pré-estabelecido e de modo que coaduna com o mesmo, o ensino do desenho pode promover a autoconfiança do educando sobre sua dimensão criadora servindo assim para atender aos interesses do que Saviani (2013. p, 121) denomina de aluno concreto:

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“Mostro o aluno concreto e apresento o concreto como a síntese de múltiplas determinações definidas enquanto relações sociais. Portanto, o que é do interesse desse aluno concreto diz respeito às condições em que se encontra e que ele não escolheu… A sua criatividade via expressar-se na forma como ela assimila essas relações e as transforma”. Tal conceituação é determinante para entendermos que a capacidade criativa do educando não pode advir de uma gratuidade espontânea, mas ser fruto de uma prática coordenada, sistematizada de ensino, reforçamos aqui ainda que tal conteúdo seja direcionado de modo a se constituir enquanto prática libertadora do educando no que tange aos condicionamentos sociais que herdou sem perder de vista as especificidades dos conteúdos próprios de cada componente curricular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A necessidade e importância do ensino das artes no contexto educacional aguça a aquisição de conhecimentos distintos e específicos, fundamentais para além do desenvolvimento cognitivo, motor e perceptivo do educando, permite-lhe ampliar seu

repertório imagético cultural, e a depender da mediação com que for discutido pode se constituir enquanto exercício para a leitura crítica do mundo, respeito a diversidade e construção coletiva. Na descoberta das potencialidades artísticas e alargamento da atitude criadora possibilita-se desenvolver habilidades e competências particulares para lidar com formas, cores, leitura e interpretação de imagens, entre outros aspectos e, com efeito, ativa e apura sua sensibilidade estética. A aproximação com o patrimônio artístico da humanidade proporciona a apropriação de novos saberes, ao estimular o interesse por uma leitura sensível do ambiente social, potencializa uma melhor compreensão de sua cultura e oferece a possibilidade de comunicação por meio de uma linguagem não-verbal. O que permite desenvolver a sensibilidade do educando bem como sua percepção e capacidade criadora, experimentando a diversidade de formas e modos de criações, tanto na apreciação quanto na realização de formas artísticas. Para a concretude dessas formas, o desenho desempenha um papel fundamental junto ao desenvolvimento cognitivo do educando, justamente por externalizar o estado em que este se encontra e, consequentemente, permitir a avaliação das dificuldades ou avanços experimentados por cada indivíduo. O desenho, nesse sentido, é muito mais do que a resultante de uma tentativa de representação de algo concreto ou imaginário, mas se impõe como um forte indicador das particularidades que envolvem o amadurecimento psicomotor do indivíduo e de suas potencialidades. O desenho constitui uma linguagem essencial e um ensinamento clássico do ponto de vista da pedagogia histórico crítica, além de ser possível de ser aplicado no contexto do sistema público de ensino, dado seu baixo custo e a diversidade de elementos que podem ser utilizados para sua concretização. É uma importante ferramenta para mobilizar os educandos com práticas que possam ser realizadas com êxito, de modo que eles possam perceber o seu grau de evolução de modo consciente, entendendo o seu percurso individual mas também através de atividades coletivas e colaborativas poder ampliar suas habilidades e percepções, é não somente benéfico do ponto de vista de desenvolvimento de autoconfiança e capacidade criativa do educando como o prepara para entender melhor as relações estabelecidas a partir da cultura material tanto estética quanto comportamental. Permitindo estimular o aluno a realizar produções que lhe sejam significativas, dado a possibilidade de articular conhecimentos teóricos com experiências da vida cotidiana, de modo que ele seja levado a reconhecer seu potencial de atuar sobre a realidade e sua competência de transformação da mesma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTA DE FIM

1. Ana Tereza Carvalho Cerqueira, mestre em desenho, cultura e interatividade pela Uefs (2007-2009).

2. Disponível nas páginas 98 a 103: https://todospelaeducacao.org.br/noticias/anuario-2020-todos-pelaeducacao e-editora-moderna-lancam-publicacao-com-dados-fundamentais-para-monitorar-o-ensinobrasileiro/ ii“Clássico é aquilo que resistiu ao tempo, logo sua validade extrapola o momento em que ele foi proposto”. (SAVIANI. 2013, p. 87).

QUANDO SE AFASTA A PRESENÇA: reinvenções constantes do educador em teatro

Kauê Rocha1

RESUMO

O presente artigo traz as reflexões advindas de uma pesquisa de Mestrado em Artes, realizada pela UFMG e reestruturada após a pandemia de covid-19, que obrigou os pesquisadores a suspenderem seus trabalhos de campo presenciais. O trabalho propõe uma discussão a partir de aspectos como as constantes reinvenções pelas quais passam os educadores em Teatro, a importância da produção e compartilhamento de materiais de registro das aulas e uma formação docente que inclua a importância da capacidade de improvisação do professor como elemento necessário para uma aula onde haja a chance de atingir os objetivos propostos. Tendo como principais referenciais teóricos os trabalhos de Carmela Soares (2010), no que concerne ao jogo no espaço escolar, Mariana Lima e Muniz e Keith Sawyer (2017), à respeito do professor-improvisador, e Maurice Tardif (2014), que traz apontamentos sobre a formação docente, o artigo delineia suas considerações em vista de tecer alguns olhares possíveis sobre a criação, a pesquisa e a possibilidade de feitura do teatro em espaços de ensino no momento específico em que vivemos, com o isolamento social como medida imprescindível de segurança, persistindo na ideia de que é possível seguir pesquisando mesmo quando se afasta a presença. Palavras-Chave: Teatro-Educação; experiência docente; materiais de registro de aulas; improvisação docente.

ABSTRACT

This article brings the reflections arising from a Master of Arts research, carried out by UFMG and restructured after the covid-19 pandemic, which forced researchers to suspend their in-person fieldwork. Thus, the work proposes a discussion based on aspects such as the constant reinventions that theater educators go through, the importance of producing and sharing class registration materials, and teacher training that includes the importance of the teacher's ability to improvise as necessary element for a class where there is a chance to achieve the proposed objectives. Having as main theoretical references the works of Carmela Soares (2010), regarding the game in the school space, Mariana Lima and Muniz and Keith Sawyer (2017), about the teacherimproviser, and Maurice Tardif (2014), who brings notes on teacher education, the article outlines its considerations in order to weave some possible views on the creation, research and the possibility of making theater in teaching spaces at the specific time in which we live, with social isolation as an essential measure of security, persisting in the idea that it is possible to continue researching even when the presence is removed. Keywords: Theater-Education; teaching experience; class registration materials; teacher improvisation.

INTRODUÇÃO

Antes de iniciarmos a nossa discussão, convido você que lê este artigo a fazer uma brincadeira imaginativa. Pensemos em toda a carga de energia descarregada no percurso de uma aula de Teatro na escola e nas inúmeras possibilidades a partir daí. Mesmo que você não tenha tido a experiência teatral em sua caminhada escolar enquanto aluno, te convido a criar essa energia, livremente. Façamos o recorte temporal de um ano e imaginemos o que pode reverberar a partir de cada atividade proposta, a cada jogo realizado com a turma, a cada roda de discussão ao fim da aula, a cada processo de montagem de espetáculos e/ou cenas curtas. Pensemos também nos materiais concretos que podem orbitar esse percurso: planos de aula, avaliações, diários de bordo do professor, diários de bordo dos alunos, fotografias, vídeos, narrações gravadas, desenhos feitos sobre as aulas, anotações rápidas no canto da folha do caderno… acredito que um mar de cenas nos invade a mente ao brincarmos com essas memórias. A respeito disso, a professora Maria Lúcia Pupo, que atua na área de Artes Cênicas, já nos encaminha um apontamento, que será de extrema importância para nossa discussão: “Um processo teatral reúne em seu âmago um sem-número de fenômenos –

visíveis e invisíveis – de natureza diversa. Captá-los implica recorrer às modalidades mais variadas de registro” (PUPO, 2015, p. 84, grifo meu). Propus esse jogo com a memória para relembrar que fazer teatro na escola é um baú rico de possibilidades, o que inclusive configura a defesa de sua importância em espaços de ensino. Segundo Sérgio Farias (2015, pp. 185-186), “garantir um lugar para o teatro no processo educativo, assegurando condições espaciais e materiais, partindo do que o sujeito já conhece e do que para ele é relevante, é um modo de ampliar as possibilidades de formação de um ser capaz de organizar percepções”. Pensando na ampliação de possibilidades, há a chance de poder registrar cada detalhe das aulas que acontecem, o que inclusive pode se tornar um auxílio na participação dos alunos: por exemplo, aquele aluno que nunca quer se colocar ativamente na realização da proposta da aula pode ser convidado para atuar na produção dos registros, seja escrevendo, fotografando ou filmando, inserindo-se indiretamente no processo de ensino-aprendizagem através de outra forma de participação, o que inclusive auxilia o professor a não acumular funções aos alunos, iniciantes na prática (PUPO, 2015). Com a moldagem deste caminho de registros concretos, temos a chance de abrir esse baú de possibilidades, podendo compartilhar com colegas de profissão nossas experiências docentes para ampliarmos os modos de ver e fazer Teatro na escola. Desse modo, começo a apresentar aqui o caminho tomado por minha pesquisa de Mestrado em Artes, na linha de pesquisa Ensino-Aprendizagem em Artes realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais, que teve de ser reestruturada após a pandemia de COVID-19 que se alastrou pelo mundo no ano de 2020. É por meio da experiência de um educador em Teatro que pretendo seguir minha investigação teórica, que envolve o encontro do adolescente com a metodologia do jogo em escolas públicas brasileiras. Inicialmente, para realizá-la, minha intenção era a de ministrar uma oficina de jogos com duração de dois meses em uma escola pública e trabalhar intensamente com uma turma de adolescentes para poder observar as reverberações ocorridas frente a frente e produzir também um material de registro pessoal a cada dia de oficina. Surpreendido pela suspensão das aulas e pelo isolamento social, procurei táticas para continuar a pesquisa, visto que não seria interessante propor a oficina de modo virtual, já que os objetivos do projeto não seriam atingidos com aulas à distância; afinal, necessitaria deslocar por completo meu diálogo com o espaço físico da escola em confronto com o corpo adolescente. Imagino que muitos artigos e pesquisas sobre o ensino de Teatro à distância serão

realizados nos próximos tempos. Temo, inclusive, que alguns setores da Educação avaliem a prática de maneira positiva e pensem em segui-la como meio exclusivo, o que acredito não ser nada interessante. Mas esse não é o foco da discussão. Pelo contrário, redirecionando-a agora pelo lócus da pesquisa, me questiono sobre como continuar investigando temáticas acerca do Teatro-Educação que não estejam vinculadas unicamente a este momento específico pelo qual passa a sociedade. Depois de um trabalho criativo e de leituras a respeito da experiência docente, percebi que justamente através do percurso de um professor de Teatro e dos registros feitos a partir dele eu poderia seguir a pesquisa, observando, a partir dessa experiência, os detalhes que compõem minha investigação. Me pus a reconhecer a ampla gama de perspectivas que rodeiam o cenário dessa arte da cena, motivado pela própria polifonia que tanto caracteriza o fazer teatral, seja para ensinar, seja para aprender (PINTO, 2015). Assim, inspirada pela multiplicidade do ensino-aprendizagem da prática teatral, a metodologia do trabalho direcionou-se para a seleção de uma professora de Teatro que tivesse trabalhado com o método do jogo teatral em classe com adolescentes em escolas públicas. A professora foi selecionada através de uma chamada pública, sendo convidada para a realização de uma entrevista, onde compartilhou sua trilha na escola, desde sua formação até o momento atual, e falou sobre os desafios e as estratégias de seu trabalho. A essa professora, pedi também que compartilhasse todo seu material concreto obtido durante as aulas ministradas, para que eu pudesse me debruçar sobre ele e então extrair minúcias que amparasse minha investigação teórica. Ao reestruturar o projeto com esse foco, notei a importância inserida nesse tipo de compartilhamento, de materiais físicos advindos das aulas, que aqui não são considerados apenas como simples planos de aula, mas elementos concretos de um caminho permeado por inúmeros momentos vivenciados em sala que colaboraram para novas pesquisas acerca do Teatro-Educação. Assim, fica evidente que mesmo em tempos de isolamento é possível dar continuação nas pesquisas a respeito dessa temática, e a experiência dos professores é uma grande aliada. Quando se afasta a presença, o que antes poderia se configurar apenas como material efêmero torna-se elemento extremamente valioso para direcionar possibilidades de pesquisa e análise. Também durante o período das mudanças que tiveram de ser realizadas devido à pandemia, me veio à mente um caráter muito frequente do caminho profissional dos educadores em Teatro que acabou se evidenciando de forma contundente nesse momento de aulas remotas: as reinvenções constantes que estão sempre em volta desse profissional. Seja

pela disposição da turma, pelo espaço não-ideal fornecido pela escola, pelo insucesso de um jogo ou por uma pandemia que exige o isolamento social, o professor de Teatro precisa ter uma capacidade de improvisação inserida em seu trabalho, para que possa mudar a aula a partir do que lhe aparecer no momento da prática. Assim, a investigação em curso me levou a reconhecer dois aspectos importantes acerca do Teatro-Educação: as tais reinvenções ditas no parágrafo acima, aqui evidenciadas pela teoria de Maurice Tardif (2014) e Keith Sawyer (apud Muniz, 2017), e o prosseguimento da pesquisa nessa área mesmo em tempos de isolamento, onde aprofundo a nova metodologia que trago em minha pesquisa de Mestrado, propondo a valorização do compartilhamento das experiências e materiais docentes. Por conseguinte, passamos por três pontos de discussão que orbitam esses aspectos, para que sigamos discutindo não apenas a figura do professor em sala, mas a própria configuração que o trabalho com a arte na escola institui. No primeiro ponto, iremos nos deter sobre a figura do professor-improvisador. No segundo ponto, o foco será na principal interrogação que guia o presente artigo, acerca da persistência na pesquisa mesmo em isolamento. E, por fim, o terceiro ponto encaminha a discussão para a valorização do compartilhamento de materiais, estabelecendo uma rede de partilha. Avante!

1. O PROFESSOR-IMPROVISADOR: REINVENTAR-SE PARA PERSISTIR

Tomando como cenário o ambiente presencial da escola, é fácil rememorar os desafios inerentes à prática docente, ainda mais tratando-se da aprendizagem das técnicas teatrais. Não é minha intenção fazer juízo de valor da aula de Arte/Teatro, tampouco compará-la a outros cursos do currículo da escola básica; porém, enquanto fazedor desse universo, não posso deixar de evidenciar as batalhas travadas dentro da instituição escolar ao se ministrar uma aula que trabalha com a inquietação, o questionamento, a ludicidade e com a quebra de certos estigmas de uma escola tradicional. É como se tacitamente o elemento do improviso já acompanhasse o professor de Teatro, mesmo sem este saber concretamente. Segundo a professora Carmela Soares, o jogo teatral, um dos métodos mais característicos do ensino-aprendizagem de Teatro, evidencia bem esse aspecto. “Sua natureza pressupõe sua capacidade de invenção e reinvenção a partir do vazio, dos jogos de corpos, do uso do espaço nas condições em que se apresenta” (SOARES, 2010, p. 27). Imaginemos: há o planejamento inicial da aula, delineado com cuidado pelo professor; entretanto, durante a execução do jogo, este iniciado a partir do espaço vazio, tudo pode acontecer, exigindo do professor a capacidade hábil de reformular instantaneamente o que tem

planejado, a fim de que possa seguir o trabalho em busca dos objetivos pretendidos. Será então que a improvisação é inerente à docência? Ao falar sobre os objetivos que permeiam a profissão de professor, o pesquisador canadense Maurice Tardif aponta que os objetivos do ensino escolar

exigem dos professores uma adaptação constante às circunstâncias particulares das situações de trabalho, especialmente em sala de aula com os alunos, como também durante a preparação das aulas e das avaliações. […] O resultado disso é que os professores trabalham a partir de orientações de trabalho frequentemente imprecisas, que exigem não somente improvisação da parte deles, mas também escolhas e decisões quanto à maneira de compreender e realizar seus objetivos de trabalho. (TARDIF, 2014, pp. 126-127). O que está em jogo não é apenas a instabilidade que permeia o momento da execução da aula e exige uma resposta ágil do professor para alterar o cenário que desponta, mas também a preparação desse profissional para elaborar um material que já encare possíveis turbulências. A reinvenção está sempre latente na constituição dos objetivos do educador. E quando nos atemos para a aula de Teatro, reafirma-se uma montagem prévia que já imagina o que cada atividade pode fazer reverberar. Isso se atenua ao pensarmos na escola pública brasileira, ainda marcada pelas agruras da constante desvalorização que a atinge. São inúmeros os percalços que afetam o trabalho do professor, como o número de alunos em excesso e as condições de tempo, espaço e as burocracias institucionais. Para o professor de Teatro, os obstáculos ainda influem em sua própria aula, por vezes encarada como menos importante frente a outros conteúdos hegemônicos do currículo e a falta de ambiente adequado para um componente curricular que demanda movimentação e ocupação espacial. Desta feita, o educador se vê obrigado a enfrentar uma complexa tarefa, tendo que realizar seu plano de trabalho com diversas contrariedades (SOARES, 2010). Ou seja, não se pode passar ileso a uma formação que encare de forma consciente esses fatores diversos que mexem com uma estrutura tranquila e linear. Pensando na demanda de um trabalho criativo, um artigo recente da professora Mariana Lima e Muniz nos auxilia a seguir compreendendo mais essa necessidade, somando-se ao entendimento das reinvenções existentes nessa trilha. Em Estrutura, Improvisação e Criatividade (2017), Muniz traz a pesquisa do professor Keith Sawyer, que “defende que o que torna bons professores ótimos é sua capacidade de transitar entre estrutura e improvisação, tornando-se professores criativos” (MUNIZ, 2017, p. 27). Penetrando no universo complexo que é o da docência, Sawyer também elabora três paradoxos acerca desse trabalho. Ele apresenta o paradoxo do professor, que deve navegar entre uma grande base de conhecimentos e a prática da improvisação; o paradoxo da aprendizagem, quando os alunos recebem estruturas para os guiarem enquanto improvisam; e o paradoxo do currículo, que

deve ser bem planejado para a realização de uma trajetória de aprendizagem efetiva, mas não pode se esquecer de cultivar a improvisação, que deve ser permitida a partir do currículo (SAWYER apud MUNIZ, 2017). Com estes três paradoxos em mente, “o que está em jogo é o equilíbrio entre planejamento – currículo e planos de aula muito bem cuidados – e capacidade de improvisação a partir da realidade encontrada em sala de aula, tornando a atividade docente uma atividade criativa” (MUNIZ, 2017, p. 28). Com este cenário bem claro e com a exposição da criatividade aliada ao trabalho do docente em Teatro, fica nítido em nossa discussão que tal característica surge intrínseca ao universo do Teatro-Educação, mostrando-se completamente necessária nos espaços de formação e tornando o ambiente de ensino-aprendizagem um espaço cuja instabilidade não se mostra aterradora, mas passível de transformação. Mais uma vez evidenciando bem a palavra criatividade, encaminhamo-nos agora para o outro aspecto trazido neste artigo, que envolve a persistência na pesquisa em ensino de Teatro mesmo quando se afasta a presença (física e no mesmo espaço geográfico, no caso). Ao me deparar com a necessidade de reestruturar toda uma pesquisa, percebi a importância de se remexer a criatividade para encontrar novas possibilidades. E, no meu caso, a nova possibilidade descoberta foi através dos materiais da trilha docente, o que também me faz afirmar a importância do trabalho criativo. Afinal, como veremos de forma mais ampla a seguir, criar materiais das aulas de Teatro não são tarefas que envolvem a simples comprovação de percurso, mas sim que expõe a riqueza e a polissemia de uma aula tão importante.

2. COMO SEGUIR PESQUISANDO TEATRO-EDUCAÇÃO EM ISOLAMENTO?

Insisto na exibição de certas possibilidades para clarificar algumas ideias que irão nos amparar por aqui: algumas características de uma aula de Teatro só se tornam realmente efetivas na prática presencial, com toda a turma reunida no mesmo espaço, proporcionando o surgimento de diversos elementos que despontam a partir dela: a risada que é ouvida e visualmente sentida pelo colega, o aluno que se senta sob a justificativa do cansaço, o suor que molha a camiseta do uniforme, a energia pulsante gerada pelo encontro e movimento de corpos, e muitos outros detalhes que podem desenhar bem uma boa aula.

É claro que podemos encontrar tais elementos nas aulas à distância, porém, de forma distinta, redesenhada, sem a fisicalidade da presença e regida por uma individualidade traduzida pela separação das telas. Para seguir investigando, então, pensei em importantes aliados para a pesquisa, os quais já foram previamente introduzidos neste artigo, mas que

agora ganham destaque para reforçar a sua importância: os registros de preparação, execução e reverberação das aulas feitos pelo professor e sua turma. À primeira vista, de maneira simplista, esses materiais podem parecer banais ou puramente pessoais, considerando como sua única utilidade o preenchimento de protocolos institucionais ou a constituição de um acervo intocável. Entretanto, proponho aqui um caminho contrário, que reforça o mérito destes elementos concretos e o valor existente em cada um deles. Nesses pedaços de papel e registros visuais, temos a trilha de uma turma que teve contato com o Teatro; trilha essa que agora ganha um tom especial e potente para mim, visto à dimensão conferida a cada detalhe encontrado nesses materiais para seguir investigando o jogo, o adolescente e a escola. A professora Maria Lúcia Pupo nos traz uma importante contribuição para pensar o universo da escrita e da produção de memória em aula:

No que se refere ao registro escrito, muitas são as modalidades possíveis: diários de bordo, entrevistas, depoimentos, protocolos se revelam materiais preciosos que contribuem para equacionar as questões que emergem nos encontros. Saber valer-se de registro dessa natureza tampouco é uma evidência. A atitude sistemática de tomar notas após cada encontro por exemplo, costuma ser incorporada apenas a partir do momento em que o estudante se dá conta da importância da memória do processo. Mais do que isso, ela é adotada sistematicamente quando o jovem consegue apreender que a escrita é instrumento do pensamento (PUPO, 2015, p. 85). Anteriormente, ao falarmos sobre a flutuação do professor entre a estrutura e a improvisação, pode-se subentender que o plano de aula, material escrito, se caracteriza como um importante fator para análise da caminhada feita pelo professor em sua aula. Aliado ao diário de bordo, que expõe as reflexões advindas da realização da aula em si, surge a chance de estabelecer um laudo comparativo entre o planejado e o acontecido, corroborando a tese que elege a criatividade como elemento decisivo de um trabalho de qualidade. No processo de reestruturação de meu projeto de Mestrado, me coloquei a pensar no percurso de um educador em Teatro, estando ele na escola ou fora dela. Mais uma vez, retomando a brincadeira com a memória feita na introdução, imaginei a riqueza dos detalhes que compõem o mosaico de possibilidades dessa aula. Aproveito para reforçar outro ponto: não tenho a mínima pretensão de romantizar a prática ou de tentar levantar apenas aspectos positivos gerados por momentos de diversão. Exponho mais abertamente situações de maior adesão porque acredito que, se feito com cuidado, atenção e qualidade, o processo das aulas de Teatro trará bons resultados. Contudo, claramente nesse percurso estão presentes os desafios, as dores, as dificuldades, os desapontamentos e todos os outros elementos que infligem tensões no território do Teatro-Educação. Ir de encontro ao trabalho de um professor de Teatro é ir além da figura no exercício da

profissão. Como nos aponta Maurice Tardif (2014, p. 230), “toda pesquisa sobre o ensino tem, por conseguinte, o dever de registrar o ponto de vista dos professores, ou seja, sua subjetividade de atores em ação, assim como os conhecimentos e o saber-fazer por eles mobilizados na ação cotidiana”. Pensando nesse aspecto, entende-se que no percurso da prática escolar cotidiana o professor traz para a aula o conhecimento em que acredita. Conhecimento esse gerado por toda sua trilha de vida e todas as reverberações coletadas nas suas experiências profissionais. Então, através do diálogo, podemos entrelaçar essas histórias com outras narrativas, costurando uma rede de caminhos a respeito de metodologias comuns à profissão.

Figura 01. Alunos confeccionando diários de bordo durante oficina de jogos na Escola Estadual Amélia

Fonte: Passos, em Santa Cruz de Minas. Foto de Laura Resende, 2019.

3. COMPARTILHAR PARA VALORIZAR

Se surge a ideia de uma possível rede de compartilhamentos, imagino o quanto certos elementos são importantes para que esse trabalho ganhe cada vez mais potência. Enumero aqui três deles: o diálogo, a troca e o registro, este último bem delineado nos parágrafos anteriores. Diálogo, para que se tenha disposição em apresentar os argumentos e as ideias a respeito do fazer teatral em espaços de educação. Troca, para que a produção realizada pelo professor não se feche em sua instituição, podendo ser de grande valia para algum colega em outro lugar completamente diferente. E esses três elementos segue numa direção que merece ser apontada:

o desmantelamento de um individualismo que durante muito tempo imperou no ofício docente, onde se julgava que a prática de um nada poderia colaborar com a