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Cavalo-marinho: corpo, memória e arte

considerado patrimônio imaterial de Pernambuco carregando em sua história uma longa trajetória de vivências e experiências do período colonial, sendo possível perceber que, em sua maioria, são pessoas que trabalham, já trabalharam ou apresentam uma relação ancestral com a produção de cana-de-açúcar na região. O folguedo é em sua essência reflexo de um processo de adaptação e resistência dos escravizados submetidos à violenta realidade imposta pelo sistema colonial escravista. É necessário analisar a trajetória dentro desse brincante, principalmente pela historiografia do Cavalo-Marinho que se estrutura a partir da colheita de cana-de-açúcar – em que a maioria de seus integrantes eram negros, com descendência africana, que se instalaram no nordeste brasileiro desde o século XIX nos engenhos de cana-de-açúcar e tem com propósito de uma forte crítica dos trabalhadores desse contexto às relações sociais existentes na época, para além disso olhar por uma perspectiva de liberação de dores através da arte. Assim, é importante compreender o conceito de catarse quando pensamos sobre a forte capacidade de liberar tensões emocionais e renovação que a arte permite, sobretudo nesse importante folguedo popular do cenário artístico pernambucano, existe através da expressão artística uma capacidade de descargas de emoções e sentimentos e uma potencialidade para experimentar a liberdade. Para Maria Acserald (2013) o folguedo também pode ter sido uma maneira de aproximação e solidariedade entre os negros vindos de diferentes partes da África, com línguas e costumes diversos, através da manutenção de seus cantos e danças. Uma tradição cuja performance expressada tanto no corpo quanto na narrativa contam uma história de luta que vem arraigada desde o período colonial. Esse contexto revela para além de uma crítica social, uma reflexão sobre questões sociais, principalmente quando falamos de exclusão e preconceito, os quais percebemos resquícios até a atualidade. A analogia da sociedade na manifestação pode ser percebida por meio de uma análise dos personagens que são apresentados na narrativa, por exemplo, o Capitão Marinho como a figura do senhor do engenho, os negros como representação dos escravizados, os galantes e damas como a imagem elitista que frequentam as festas; o soldado como representante da lei, o boi como metáfora ao homem do campo. A apresentação dos personagem no brincante se forma por meio do corpo e é no corpo que se desencadeiam processos que caracterizam, que refletem experiências coletivas e subjetivas, que revelam multiplas possibilidades de contar uma história, assim como transportar uma tradição oral, para além dessa perspectiva perceber o corpo que monta essa história da sociedade e contribui para sua formação, consequentimente, em toda sua potência

criativa e curativa.

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DESENVOLVIMENTO

Este projeto abarca sociologia, psicologia (análise bioenergética e psicanálise) e cultura. Ele nasce da necessidade de compreender como a fragmentada narrativa de histórias de vida é composta de “rastros de memória” (Ricoeur, 2007) do povo pernambucano, que se expressa através da performance corporal e oral. A tradição do Cavalo Marinho que acontece desde a época colonial permanece viva através da tradição corpo-voz. A relação com arte e o corpo surge a partir de uma narrativa reflexiva, construída tendo como base os conceitos de corpo em arte, estética relacional, caráter, mito e o corpo enquanto expressão dos sentimentos, compreendendo acima de tudo o processo de transformar uma possível consciência-corpo em corpo-consciência, conforme afirma o filósofo, ensaísta e professor José Gil (2004)

[...] a consciência torna-se “consciência do corpo”, os seus movimentos, enquanto movimentos de consciência adquirem as características dos movimentos corporais. Em suma, o corpo preenche a consciência com sua plasticidade e continuidade próprias. Forma-se assim, uma espécie de “corpo da consciência”: a imanência da consciência ao corpo emerge à superfície da consciência e constitui doravante o seu elemento essencial (Gil, 2004, 108). Compreender a noção de uma consciência e de como essa consciência também pode ser corpórea é mergulhar nas ideias de Gerald Edelman (1992, 2004), que acredita que somente seres corporais podem experimentar a consciência como indivíduos. Para ele, a consciência é essencialmente o resultado de funções corporais e da organização e funcionamento do cérebro de cada indivíduo, logo um processo que pode ser manifestado também pelo corpo. A socialização do indivíduo com o meio é importante para que a consciência corpórea exista, pois ela seria na perspectiva de Fritjof Capra (2001) um fenômeno social. Na mesma linha de pensamento António Damásio (2000) afirma que além da consciência ser corpórea, ela surge somente por meio de um sentindo pessoal que emerge do corpo. A manifestação social de uma tradição seria, portanto a forma de trazer histórias pessoais e transgeracionais através de uma manifestação corporal, e, através desse suporte, toma-se consciência das memórias de várias gerações. Desse modo, reforçamos a complexidade da experiência consciente que se constrói por processos cognitivos tais como memória, percepção e emoção. Toda a linguagem corporal e verbal do folguedo do CavaloMarinho é repleta de simbolismo e a forma como a manifestação é construída permite representar hierarquias sociais, gerando uma teia de significados para a vida permitindo

expressões de emoções, sensações e vivências, seja por meio do corpo ou da narrativa. O Cavalo-Marinho atualmente se enquadra como bem imaterial cultural de forma de expressão conforme estabelece o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e apresenta a versão regional do boi de terreiro que é exclusiva da Zona da Mata Norte de Pernambuco e agreste da Paraíba. Estudar a cultura popular é abrir possibilidades para quebrar conceitos e preconceitos, buscando entender os significados partilhados por grupos sociais em diferentes momentos históricos de uma mesma cultura através da memória que não se expressa apenas na fala. Nesse caso percebe-se também no corpo dos artistas, na representatividade dos arquétipos, no processo transgeracional e na representatividade ancestral, como é o caso de um dos personagens o Capitão-Marinho, que representa o arquétipo do político. É importante compreender como o corpo em todo seu movimento é capaz de se construir de sentidos e produzir cenas, entendendo como o corpo desses trabalhadores/artistas se forma a partir da construção de personas ou figuras de uma autorepresentação. Os sentidos que são existentes em cada expressão estão ligados a uma esfera cultural que é responsável por passar para cada signo um significante, um acordo social que parte da relação do homem com seu corpo, sua expressividade e seus movimentos. Assim, a escolha da Análise Bioenergética para compactuar com a sociologia e com a psicanálise nesse embasamento teórico, surge quando percebemos que essa abordagem que se fundou a partir das ideias do psicanalista Wilhelm Reich, na década de 1930, consiste basicamente em compreender o individuo como corpo, mente e espírito de forma que esses três pontos se entrelaçam e se influenciam mutuamente. Isso possibilita relacionar a energia corporal com as emoções, tornando-as mais conscientes. A partir do momento que existe essa relação, a comunicação/linguagem se desenvolve, influenciada em três instâncias: autopercepção, autoimagem e autoestima. Pensamos também no Cavalo-Marinho como um ritual que, ao enveredarmos nas idéias de Richard Schechner (2016, p. 52), compreendemos o conceito de rituais como memórias coletivas decodificadas em ações, que são manifestadas por esses corpos, aqui chamados de corpos-memória. Permite entender o quanto essas memórias são essenciais para dar sentido a formação de uma identidade, como defendido pelo escritor venezuelano Fernando Báez (2010, p.286), que acredita que as recordações compartilhadas costumam ser aglutinantes e são a base das memórias que permitem falar de uma história comum, neste caso, uma representatividade de uma tradição, não necessariamente algo estático, mas algo que ganha um movimento através de corpo-memória que armazena e permite reconhecer um

universo repleto de mitos com conotações ancestrais. Cabe enveredar nas ideias de Walter Benjamin (2000, p. 120-121), que em sua obra O Narrador traz uma distinção entre “vivência” e “experiência”, sendo a segunda algo transgeracional. Para Sant’anna (2000, p. 50) cada corpo, longe de ser apenas constituído por leis fisiológicas, supostamente imutáveis, não escapa à história. Logo, o corpo é, acima de tudo, linguagem, é um sistema social pré-existente no ser humano que já era pontuado por Walter Benjamin em seus ensaios Sobre a linguagem em geral e Sobre a linguagem humana, quando afirma que “toda e qualquer comunicação de conteúdos é linguagem” (BENJAMIN, 1992, pág. 180). Ele não limita a comunicação apenas à palavra, mas a tudo que se compreende, assim, para ele “não há acontecimento ou coisa, seja na natureza animada, seja na inanimada que, de certa forma, não participe da linguagem, porque a todos é essencial a comunicação do seu conteúdo espiritual” (BENJAMIN, 1992, p.177). Partindo do entendimento que a linguagem é aquilo que comunica, seja um texto, um gesto ou uma obra de arte, percebemos que o corpo se torna, nesse sentido, mediador entre o mundo e as coisas. É pelo corpo que somos conduzidos à relação com o meio, colocando, desta forma, o estado de consciência como algo perceptivo, compreendendo a fusão do homem com o mundo como algo encarnado. A linguagem, as tradições e a oralidade, por exemplo, são formas de preservar a memória. Nesse caso, o corpo e a narrativa carregam memórias. Para nos aprofundarmos nas idéias de linguagem, de corpo e de vivências, cabe nos adentramos no conceito de pulsão formulado por Freud, onde podemos abarcar a idéia de um corpo pulsional que se manifesta através de uma rede de representações, tanto inconsciente quanto consciente. Diante dessa correspondência, podemos pensar ainda no corpo como um mediador entre sujeito/mundo interno e sujeito/mundo externo. Assim, o corpo pulsional pode ser entendido como um elemento de estruturação psíquica e, para além, como definido por Freud (1923), esse corpo também se firma como uma superfície que pode originar sensações internas e externas. Logo, possibilita inscrever nele histórias não apenas subjetivas, mas também as vivências do indivíduo, ou seja, sua troca com o mundo. Há de convir a necessidade de um aprofundamento no entendimento de imagem corporal como sendo uma forma de registro inconsciente. Para isso, as idéias de Dolto (1984) corroboram que, para além de um propósito fisiológico, há um teor emocional instaurado na estrutura corpo pela relação simbólica com o outro, pela memória inconsciente do vivido relacional e pelo psíquico arcaico. A cultura pernambucana é arraigada por elementos narrativos de representação de um

corpo e de uma tradição que vive até hoje. Quando delimitamos o conceito de imagem corporal e esquema corporal, percebemos que o primeiro termo representa a importância de entender como as histórias e vivências de cada individuo se relacionam partindo de um inconsciente – algumas vezes se tornando pré-consciente quando está associado a linguagem. Assim, imagem corporal representa o lugar onde as pulsões são manifestas. O esquema corporal, por sua vez, é a potencialidade do sujeito em representar sua espécie, fazendo isso por meio de suas experiências e aprendizagens, e é independente da linguagem, se fazendo muito mais presente em uma representação sensível e motora. Assim, entendemos que a linguagem é a linha tênue entre imagem e esquema corporal e que é pela via da narrativa que a humanização se concretiza. Entendendo que a linguagem é formada de signos e símbolos lingüísticos, concluímos que a imagem corporal também é regida de forma simbólica, uma vez que ela se instaura pela linguagem. Entender o corpo sem desconsiderar a sua relação com o espaço, vivências e linguagem, foi uma das propostas de Pankow (1986), quando desenvolveu sobre o corpo vivido em comunicação com o espaço que se vive. Nesse sentindo, entende que o sujeito habita o corpo, logo sua dimensão existencial refere-se ao ser-no-mundo. Para que o corpo consiga se perceber nesse mundo, a linguagem se torna um caminho, uma vez que parte dela a possível relação com o outro. É através da comunicação que se torna possível o corpo articular a relação com o espaço, com o outro e consigo – essa comunicação pode se presentificar das mais diversas formas: oral, corporal, escrita, por exemplo. A partir daí o que era apenas simbólico começa a ganhar sentido na história do sujeito, é basicamente o código da comunicação entre o outro e si sendo reconhecido. Segundo Kofes (1985), corpo é acima de tudo uma expressão cultural, logo sua manifestação se forma de diferentes maneiras quando compreendemos as diferentes culturas. Assim, reforçamos as idéias de Damatta (1987) quando nos faz refletir sobre a quantidade de corpos frente às diferentes sociedades. Pensando não apenas no corpo como estrutura biológica, mas, como já trazia Roudinesco (2000, p. 9), o homem é livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico, ou seja, é um reflexo natureza/cultura/expressão. O corpo vivido é inundado por essas diversas formas de comunicação e o que era apenas simbólico começa a ganhar sentido na história do sujeito, na qual o código da comunicação entre o outro e si é reconhecido. A arte, em sua grande missão, não silencia, fala, grita. Nela a essência do sujeito se encontra e se reencontra. É nessa interface de dança, música, contos, poesia e teatro, que o homem e sua dimensão corporal mediam as demandas do mundo. Cada interpretação, cada ato, cada escrito, se torna uma grande vitrine do sujeito, de subjetividade, de experiência e de

alma. Quando paramos para compreender o corpo como algo intrínseco ao sujeito, que habita uma força que pulsa e impulsiona a comunicar algo, entendemos que dentro de um processo que revelamos singularidades, marcas, memórias, detalhes e rastros. Assim, percebemos dentro desse processo uma conexão com uma multiplicidade de imagens e memórias que vivem e se comunicam por meio da manifestação Cavalo-Marinho e que podem ser estudadas por meio da psicologia e da sociologia, uma vez que, como campos híbridos permitem um diálogo entre os diferentes campos como ciência, a cultura e a história. O corpo aqui sendo reconhecido como comunicação, é um meio de produzir signos, e, ao mesmo tempo, um conjunto de signos que relaciona órgãos, sentidos e produz significados através das suas relações e conexões. Produz identidades e surge através dessa manifestação uma possibilidade de estudar, por um viés da Análise Bioenergética, o corpo desses artistas que carregam uma história não apenas individual, mas coletiva e em mais de oito horas de apresentação e com mais de setenta personagens, recriam memórias, mitos, vivências, expressam dores e dúvidas que são demonstradas no corpo e na voz, trazendo para o consciente essas experiências como prova de resistência cultural ou de preservação da memória coletiva de um grupo historicamente oprimido. Theodor W. Adorno nos apresenta a ideia que a palavra é o corpo do pensamento. Assim, compreender o corpo na palavra nos possibilita múltiplas direções. Através desse projeto buscamos mostrar como o corpo narrado carrega memórias, que não apenas armazenam conteúdos apreendidos, mas também representam a capacidade humana de narrar fatos, de ordenar o tempo e o espaço, dessa forma, desenvolvendo os processos de formação de uma sociedade. O corpo nessa perspectiva se torna mediador entre essa relação do mundo externo com o mundo interno. Para Agostinho (1984, p. 274-275), a importância de apreender para guardar na memória é inquestionável.

(...) Luz, cores e formas dos corpos, através dos olhos, os diversos tipos de sons, os vários tipos de odores através do nariz, os sabores pela boca e através da sensibilidade de todo corpo, o que é duro ou mole, quente ou frio, liso ou áspero, pesado ou leve, e todas as sensações externas e internas. A memória armazena tudo isso em seus amplos recessos e em seus esconderijos secretos e inacessíveis, para ser reencontrado e chamado no momento oportuno. (AGOSTINHO, 1984, p. 274 - 275)

A relação corpo/memória vem sendo de grande importância na cultura oriental e ganhado grande espaço na cultura ocidental quando pensamos no processo de (re)conexão entre mente e corpo. O corpo que para Bergson não cria em sua essência as imagens do universo, mas de sensações que fazem parte de um fluxo continuo de ação, e a percepção da

matéria que se fixa ao corpo. A memória tem finalidade de resgatar percepções vividas, recordando-as e adentrando nas idéias da análise bioenergética, entendemos que não temos um corpo, mas que nós somos um corpo e por tanto nossas memórias estão presas a ele e que são ensinadas a cada geração por uma prática advinda de uma tradição corpo-voz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos relacionar sociologia, arte e análise bioenergética ao corpo e as tradições como um objeto de memórias, compreendendo a experiência do corpo numa sociedade assim construída, norteado pela abordagem crítica, concluindo sobre a importância de investigar os conceitos de corpo, cultura e sociedade com base de dados na manifestação cultural do Cavalo-Marinho. O corpo representa um símbolo da própria estrutura da sociedade, ele muda, sofre alterações e de maneira infalível, faz parte dessa ordem simbólica da sociedade. Compreender como esse corpo que tem sido reconfigurado, regulado, mutilado, deformado e transformado, não deixando de significar algo e a bioenergética busca resgatar e aproximar significados para esse corpo. Por meio do Cavalo Marinho percebe-se uma tradição oral que apesar das mudanças sociais carregam no corpo de desses trabalhadores/artistas significado e expressam a formação de uma sociedade que vive e revive histórias. Foi importante compreender o impacto dessa manifestação na formação da sociedade através do folguedo popular que com aproximadamente 70 personagens contam a história de um recorte da sociedade, através de versos falados de forma poética, representa personagens reais em uma forma de expressão de sentimentos e dores daqueles que vivenciaram esses momentos. O enredo circula ao entorno de dois extratos básicos da sociedade canavieira: o dos escravos – atualmente trabalhadores rurais – e dos senhores de engenho – atualmente usineiros e políticos. O corpo, a fala, a expressividade mantêm viva rastro de memórias. Assim, esse projeto intenta valorizar as memórias, a tradição oral, a cultura e o corpo, não esquecendo que de forma geral, ainda há uma dificuldade em reconhecer saberes e memórias coletivas que circulam como definidoras de uma construção de uma identidade cultural. O corpo, que permanece mais de oito horas ativo, vivo e buscando essa expressão de um cultura expressa através da performance muito mais do que gestos, ele expressa rastros de uma sociedade que permanece viva, pulsante e que apesar das transformações culturais grita como forma de resistir principalmente através de uma geração que transmite para seus membros uma cultura através do fazer.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Sto. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984

BÁEZ, F. A História da destruição cultural da América Latina: a identidade cultural. São Paulo: Nova Fronteira, 2010. BENJAMIN, W. Oeuvres III. Paris: Gallimard, 2000. BERGSON, H. Memória e vida. Tradução Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CAPRA, F. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Editora Cultrix, 2002 DAMATTA, R. O corpo brasileiro. In. Strozenberg, I.(org). De corpo e alma. Rio de Janeiro, comunicação contemporânea, 1987 DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. Sao Paulo: Perspectiva, 1984. EDELMAN, G. Winder tha the sky: the phenomenal gift of consciousness. New Haven: Yale University Press, 2004 GIL, José. Movimento Total. O Corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004. HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffer. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. KOFES, S. E sobre o corpo, não é o próprio corpo que fala? In. Bruhns, H.T. (org). Conversando sobre o corpo. Campinas, Papirus, 1985 LOWEN, A. Bioenergética. São Paulo: Summus, 1982. PANKOW, G. O homem e sua psicose. Campinas, SP: Papirus, 1983. REICH, W. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1995 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007 ROUDINESCO, E. Por que a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zaha, 2000. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Descobrir o corpo: uma história sem fim. Educação e Realidade. Porto Alegre: FACED/UFRGS, v. 25, n.2, jul./ dez. 2000 SCHECHNER, Richard. Performance Studies: An Introduction. Routledge, 2002.

NOTAS DE FIM

1. Notas e currículos dos/as autores/as: Graduada em Psicologia, Pós-graduada em Análise Bioenergética, Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Doutoranda em Memória Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio), desenvolve estudos voltados para as relações mnemônicas através do corpo em diversos campos de saberes, atualmente seus estudos são voltados para o patrimônio imaterial cultural, corpo, movimento feminista e negro dentro da manifestação cultural do Cavalo Marinho. Trabalha com autores voltados para memória e corpo como Halbwachs, Fanon, Lowen, Ricoeur.

CORPO CRIADO E RECRIADO: a prática da dança com objetivos educacionais

Isabele Fogaça de Almeida

RESUMO

O presente artigo tem como objeto de estudo reflexões sobre corporeidade e a importância das práticas de dança, dentro da conjuntura das escolas de Educação Infantil, que são o contexto principal da vivência e reconhecimento do mundo de muitas crianças. Pensando em uma formação integral das crianças, que congregue o corpo, a mente e a cultura; e que considere suas diferenças e valorize os seus potenciais, trabalhar com a linguagem artística da dança nesta etapa se faz essencial. Essa linguagem faz a integração de todos os elementos que nos constituem – social, emocional, cultural, intelectual, cinestésico; de forma que quem a pratica, aprende sobre si e sobre os outros, e constitui-se enquanto um ser social que é recriado constantemente. Palavras-chave: Corporeidade; Dança infantil; Educação Infantil; Movimento.

RESUMEN

Este artículo tiene como objeto de estudio reflexiones sobre la corporalidad y la importancia de las prácticas de la danza, en el contexto de las escuelas de Educación Infantil, que son el contexto principal de la experiencia y el reconocimiento del mundo de muchos niños. Pensando en una formación integral de los niños, que aúne cuerpo, mente y cultura; y que consideren sus diferencias y valoren sus potencialidades, trabajar con el lenguaje artístico de la danza en esta etapa es fundamental. Este lenguaje integra todos los elementos que nos constituyen: social, emocional, cultural, intelectual, cinestésico; para que quienes la practican, aprendan de sí mismos y de los demás, y se constituyan en un ser social que se recrea constantemente. Palabras llave: Corporalidad, Danza infantil, Educación Infantil, Movimiento.

INTRODUÇÃO

Durante toda sua vida o homem/a mulher é um ser essencialmente corporal, pois é através do corpo que manifestamos nossos desejos, valores, culturas, etc. A corporeidade está diretamente ligada aos processos de desenvolvimento do corpo, seja com aspectos fisiológicos, seja com a construção histórica, cultural e social da mente que reflete no corpo.

Com o passar do tempo, novas teorias e percepções sobre o corpo/corpo e mente foram constituídas. Uma teoria desenvolvida é a Teoria-Histórico-Cultural, construída com base nos estudos de pesquisadores tais como Vygotsky, Wallon, Leontiev, Luria, entre outros, a qual trata os processos psíquicos e biológicos de forma integrada, o que nos permite compreender

que os aspectos naturais estão entrelaçados com os aspectos culturais.

Portanto, para essa abordagem, a formação do sujeito não é retida somente a si em aspectos genéticos, mas principalmente dentro das relações sociais que cercam esse indivíduo. Na medida em que essas relações estão estabelecidas, são passíveis de mudanças pelo agente político, fazendo então que sujeito e sociedade não possam ser analisados separadamente.

Há padrões estéticos e comportamentais criados pela sociedade que incidem sobre os nossos corpos, que já existem antes mesmo de nós nascermos, e que nos influenciam conscientemente ou inconscientemente. E desde o processo de maturação, a criança se percebe e comunica-se com o mundo a sua volta, fazendo com que as informações recebidas sejam reproduzidas através do seu corpo, em todos os aspectos do movimento. Nessa linha de raciocínio “O corpo não se revela apenas enquanto componente de elementos orgânicos, mas também enquanto fato social, psicológico, cultural, religioso. Em qualquer realidade do mundo, o corpo é socialmente produzido” (BARBOSA, MATOS E COSTA, 2011, p. 28).

Nanni (1998, p.8) aponta que é "imprescindível para que o ser humano se torne sujeito de sua práxis no desvelar a sua realidade histórica, através de sua corporeidade". Nesse sentido, podemos considerar a dança como um instrumento que o ser humano utiliza para se desenvolver pessoalmente e socialmente, pois por meio dela, ele pode estabelecer um canal de comunicação com o mundo ao seu redor. Tanto é, que a dança existe desde as civilizações mais remotas; está imbricada na sociedade. Nanni (2003, p.7) evidencia essa informação quando cita que: "As danças, em todas as épocas da história e/ou espaço geográfico, para todos os povos é representação de suas manifestações, de seus

'estados de espírito', permeios de emoções, de expressão e comunicação do ser e de suas características culturais".

Percebendo a importância do corpo em movimento carregado de significados, e considerando que a dança é uma linguagem que se expressa através do corpo, é necessário que a prática da dança composta por objetivos educacionais, seja iniciada na escola, principalmente nos primeiros anos. Quando pensamos no contato que as crianças têm no Ensino Infantil, com a arte e com a dança, quando têm, percebemos que precisamos refletir e planejar intencionalmente esse contato com o corpo, e é indispensável que o profissional da educação esteja preparado para explorar os conteúdos que englobam esse tema e inseri-los em sua prática pedagógica.

Essa inserção crítica dos estudos de corporeidade, favorece a concepção da consciência corporal, noções de espaço, individualidade e coletividade, socialização, percepção do seu próprio ritmo e do outro, entre muitos outros fenômenos que podem ser descobertos.

Com as novas políticas de acesso à Educação básica, e à Educação Infantil, a escola se torna o ambiente principal da vivência e reconhecimento de mundo da criança. Assim, nesse trabalho propõem-se levantar e relacionar reflexões sobre a importância dos estudos e práticas de dança, especialmente na infância; baseando-se na visão de que essa linguagem faz a integração de todos os elementos que nos constituem – social, emocional, cultural, intelectual, cinestésico; de forma que quem a pratica, aprende sobre si e sobre os outros, e constitui-se enquanto um ser social que é criado recriado constantemente.

DESENVOLVIMENTO

A ESCOLA

À escola foi delegada a função de formação das novas gerações em termos de acesso à cultura socialmente valorizada, de formação do cidadão e de constituição do sujeito social. (José Geraldo Silveira Bueno)

A escola é uma instituição social que tem como função formar integralmente sujeitos a partir da construção e da socialização dos conhecimentos produzidos pela humanidade em determinado espaço de convivência entre pessoas.

Por formação integral entende-se o desenvolvimento em diversas áreas- cultural, afetivo, físico, social, político, filosófico, profissional, entre outros. Nesse sentido, o sujeito é compreendido em sua totalidade; e é nessa totalidade, que este constrói o conhecimento e desenvolve potencialidades a partir da socialização na escola. Conforme afirma Libâneo (2005, p.117): [...] educação de qualidade é aquela mediante a qual a escola promove, para todos, o domínio dos conhecimentos e o desenvolvimento de capacidades cognitivas e afetivas indispensáveis ao atendimento de necessidades individuais e sociais dos alunos.

Assim, a escola possui formas de organização, procedimentos e normas que transcendem a formalização da sua estrutura; elas são articuladas com os sujeitos sociais que a compõem. De forma contextualizada, a relação ensino-aprendizagem deve acontecer de maneira horizontal e que todos os sujeitos participantes socializem e construam junto, conhecimento.

Para Paulo Freire uma das tarefas mais importantes é “propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se”, num sentido também integral, “como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de

sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar” (1997, p.46).

Entretanto, há também que se analisar o outro lado da moeda, de como essa instituição tem atuado na sociedade. Para Foucault (1987) a escola se tornou uma instituição de sequestro, onde não se aprende apenas a controlar o tempo dos indivíduos, mas a extrair o máximo de tempo e força de seus corpos.

Desse modo, historicamente a instituição escolar detém a responsabilidade de higienizar o corpo, corrigi-lo e qualificá-lo dentro das lógicas vigentes do sistema (TIRIBA, 2008, p.4). É valido destacar que dentro de discursos generalizantes, todos somos iguais; contudo, é perceptível a olho nu que nossas marcas e subjetividades são completamente distintas, e a problemática logo se dá na falta de discussão das nossas diferenças. Na sala de aula, há crianças, negras, brancas, indígenas, portadores de necessidades especiais, LGBT, gordas, magras, etc.

Não se pode distribuir uma mesma prática pedagógicaeducativa a todas. Por melhor que seja o planejamento e escolha de conteúdos, cada destinatário recebe de maneira diferente as informações; e entre essas recepções pode estar a de um sujeito que está sendo vítima de alguma marginalização perante sua identidade, o que o faz ter dificuldade na compreensão e construção de conhecimentos.

Logo, uma formação que pense o corpo, a mente e a cultura, não tão somente rompe os padrões mortíferos e segregadores, mas auxilia na qualidade do ensino-aprendizagem, promovendo práticas de acolhida das diferenças e valorização dos sujeitos em sua potencialidade. Pode-se dizer, segundo Maturana e Valera que o aprendizado envolve a relação mútua de corpo e mente, aprendizagem não é mera reprodução, mas atividade que cria e necessita do envolvimento do organismo com o meio (GUIMARÃES, 2008. p. 27).

A EDUCAÇÃO INFANTIL

A educação infantil é uma etapa da educação que deve ser sempre tratada com relevância, pois é um momento determinante para toda formação que ocorrerá ao longo da vida; momento em que a criança se desenvolve como ser humano em seus aspectos mais diversos, tais como intelectual, emocional e motor; aspectos esses, que serão decisivos na forma como esse ser contribuirá com a sociedade. Integrando a Educação Básica desde 1996, a Lei de Bases e Diretrizes da Educação/LDB nº 9394/1996 estabelece que:

Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos, físico, psicológico, intelectual e social, completando a ação da família e da comunidade.

Essa etapa é de responsabilidade dos municípios, e é oferecida em creches para as crianças até três anos de idade, e em pré-escolas para as crianças de quatro e cinco anos¹. É uma etapa não obrigatória, mas só por integrar a Educação Básica, ser percebida como um processo educativo, e fazer parte das políticas de educação, já representa um grande avanço, pois historicamente a Educação Infantil foi caracterizada pelo caráter assistencialista, restrito a cuidados básicos com a criança.

Nessa faixa etária, há uma forma extraordinária de pensar e sentir o mundo; as crianças fazem uso de diversas linguagens para expressarem os seus sentimentos, comunicarem seus pensamentos; e através dessa comunicação, criam e recriam a todo o momento uma construção simbólica carregada de significados que fará parte de sua realidade.

Dessa perspectiva, não há uma essência humana, mas uma construção do homem em sua permanente atividade de

adaptação a um ambiente. Ao mesmo tempo em que a criança modifica seu meio, é modificada por ele. Em outras palavras, ao constituir seu meio, atribuindo-lhe a cada momento determinado significado, a criança é por ele constituída; adota formas culturais de ação que transformam sua maneira de expressar-se, pensar, agir e sentir. (OLIVEIRA, 2002, p. 126).

Nesse sentido, é essencial que as instituições de Educação Infantil propiciem um espaço físico e social que se leve em consideração esses aspectos. Como é comum haver um interesse espontâneo das crianças a tudo que é proposto, esse fator viabiliza ao educador um planejamento diversificado, abrangendo todas as áreas de conhecimento, que aproxime as crianças do repertório cultural ao qual estão inseridos, possibilitando a construção e reconstrução das identidades das mesmas.

Cada uma no seu tempo, do seu jeito, estão como esponjas absorvendo tudo o que a escola ensina, então esse deve ser um espaço de profissionais que não aprisionem e engessem as crianças; mas estimulem a curiosidade, ouçam, explorem o potencial de todas as formas de aprendizado, e respeite suas individualidades. Concordamos com Rubem Alves (2000, p. 166), quando ele afirma que:

Enquanto a sociedade feliz não chega, que haja pelo menos fragmentos de futuro em que a alegria é servida como sacramento, para que as crianças aprendam que o mundo pode ser diferente. Que a escola, ela mesma, seja um fragmento do futuro...

A DANÇA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Ao pensarmos em um mundo melhor do que o que vivemos

atualmente, é bastante comum depositarmos as nossas esperanças nas gerações mais jovens. Janusz Korczak, em seu livro Quando eu voltar a ser criança conta a história de um professor adulto que sente saudades de quando era criança; e ganha a oportunidade de rejuvenescer. Essa oportunidade proporciona ao antes Professor, e agora aluno, muitas experiências e reflexões sobre o universo dos adultos e das crianças; do primeiro amor à tristeza de não se poder fazer o quer, ele percebe que as crianças também sofrem. Nesse livro, ele relata a seguinte reflexão no momento em que é criança: “As crianças são os homens do futuro. Quer dizer que eles existirão um dia, mas por enquanto é como se ainda não existissem. Ora, nós existimos: estamos vivos, sentimos, sofremos” (1981, p. 152).

Essa reflexão é muito pertinente, pois realmente muitas vezes focamos mais no que as crianças farão no futuro, serão no futuro, e deixamos de perceber e entender o que elas são, e como elas estão no presente. E esse tipo de atitude é praticada por parte de adultos que podem ser de diversos círculos sociais da criança, como do núcleo familiar, da igreja, e também da escola, que muitas vezes é onde a criança passa boa parte do seu tempo.

Muitas vezes os educadores tem o pensamento equivocado de que o saber é relacionado à idade, e pensam que como mais velhos e detentores do saber, devem depositar conhecimento nas crianças e impor suas visões de mundo, ignorando que as crianças também têm conhecimento, e têm as suas próprias visões de mundo, que são igualmente importantes.

Nessa concepção de ensino não dialógica, hierarquizada, com o saber centralizado na figura do professor, por serem consideradas inferiores, as expressões dos alunos vão sendo podadas, corrigidas para que futuramente se adaptem ao

mercado de trabalho; de forma que são privilegiados valores intelectuais em detrimento dos valores corporais, há a preferência de uma higienização de corpos ao invés de uma prática educativa que explore o corpo inteiro, o que inclui cabeça e pescoço para baixo. Fux aponta que:

Quando somos crianças necessitamos mover-nos porque movendo-nos expressamos nossa vontade de rir, de chorar ou de brincar. À medida que crescemos, nosso corpo, pelos tabus de uma civilização que corrompe nossa necessidade de expressão, perde cada vez mais o desejo de mobilização. (1983, p. 67)

Depois de anos sofrendo “podas” de todos os lados, os adultos ficam com vergonha de fazer o que vem na cabeça, de se expressarem através do corpo, de brincar, de chorar. E vale lembrar que a escola está cheia de adultos que um dia já foram crianças que antes mesmo de falar, aprenderam a se comunicar através do corpo; porém cresceram dentro dessa cultura de silenciamento de corpos, e hoje reproduzem e ensinam as crianças a ficarem quietas, e passivas aos regimes disciplinares impostos.

Seguindo essa perspectiva, não é de se espantar que a dança, que vai num sentido contrário a essa lógica, não faça parte do que é ensinado na escola. O corpo é a nossa primeira forma de comunicação e não é levado a sério. A dança é uma linguagem corporal e também por esse motivo, não é valorizada. A perspectiva da negação do corpo é cultural, aliás, o corpo é controlado, para que um dia se possa chegar ao controle da mente. Conforme Godoy (2010) na escola infelizmente há carência de iniciativas relacionadas à linguagem da dança.

Ao integrar um projeto que tinha como objetivo entender como estava sendo desenvolvida a dança em escolas da rede municipal de ensino situadas em São José-SC, Elaine Lima apontou na sua dissertação de mestrado em Educação Física a

partir dessa experiência, que as compreensões de dança ainda eram muito reduzidas:

[...] os conteúdos e metodologias estavam, quase sempre, direcionados ao simples repasse de informações, seguindo um modelo tradicional de organização das aulas, onde o conhecimento está centralizado no/a professor/a. Este cenário limitado de compreensão e significação das possibilidades que a dança pode trazer para a educação e para a formação das pessoas que dançam, nos mostra a necessidade de realizar mais estudos na área da dança educativa, nos diversos níveis de ensino, no sentido de contribuirmos, cada vez mais para o saber e o fazer dos profissionais que trabalham com a dança numa perspectiva educativa (2009. p.17).

Considerados todos esses elementos, fica evidente que ter a dança incorporada nas escolas, de forma planejada, consciente e tendo seu potencial enquanto linguagem explorado, ainda é um desafio na sociedade em que vivemos, e há um caminho que se percorrer até que isso se efetive. E esse artigo também é um esforço no sentido de estimular a inserção da dança no caminho do contexto escolar das crianças:

[...] transformar a realidade parece uma tarefa utópica e distante das mãos do educador. Mas, considerando que a transformação faz parte da própria natureza humana, são os atos humanos, em sua peculiaridade, que têm a força da transformação. Pequenas ações, aparentemente frágeis, podem intervir na visão de mundo de cada um, realimentando, individual e coletivamente, a rede interativa capaz das grandes intervenções. Essa possibilidade amplia-se nas mãos docentes, no cotidiano do educador comprometido com a formação integral de seu aluno (MATTHES, 2010, p. 132).

Pensando em uma formação integral das crianças, que congregue o corpo, a mente e a

cultura; e que considere suas diferenças e valorize os seus potenciais, trabalhar com a linguagem artística da dança na Educação Infantil, se faz essencial. A dança enquanto um processo educacional contribui para o aprimoramento das habilidades básicas do movimento, além de favorecer a criatividade. Ainda, enquanto experiência corporal possibilitará as crianças novas formas de expressão e comunicação, levandoos à descoberta da sua linguagem corporal e expressão dos sentimentos. É nesse sentido que Godoy et al, afirma que:

O ensino de dança na escola pode dar subsídios ao aluno para melhor compreender, desvelar, desconstruir, revelar e transformar as relações que se estabelecem entre corpo, arte e sociedade, de forma a contribuir para que os alunos tomem consciência de suas potencialidades, aumentando sua capacidade de resposta e sua habilidade de comunicação. Seu objetivo englobaria a sensibilização e a conscientização tanto nas posturas, nas atitudes, nos gestos e nas ações cotidianas, quanto em suas necessidades de se expressar, comunicar, criar, compartilhar, interagir na sociedade em que vivemos (2010, p.39).

Partindo desse pressuposto, percebe-se que o ensino da dança nas escolas tem um potencial gigantesco. Mas não é qualquer dança. Marques (2003, p.26) aponta que ”[...] ao contrário de uma visão histórica ingênua de que a dança não passa de ‘uns passinhos a mais ou a menos na vida das pessoas’, hoje não podemos mais ignorar o papel social, cultural e político do corpo em nossa sociedade. E, portanto da dança”.

Sabemos que nem sempre o movimento do corpo na escola é visto com bons olhos, como uma linguagem não verbal. Muitas vezes ele é reprimido por ser percebido como um comportamento de indisciplina e desatenção, que dificulta o controle dos professores. Nesse sentido, Richter (2006)

defende:

[...] uma prática pedagógica que conceba a criança como um ser que pertence a um contexto sócio-econômico-cultural, possuidora de uma história de vida e, que apresenta várias dimensões (psicomotora, afetiva, cognitiva e social) a serem desenvolvidas e que, acima de tudo, são crianças. Por isso, na educação infantil, elas têm direito de se desenvolverem em um ambiente que valorize o mundo da fantasia, da brincadeira, do movimento, do lúdico, no qual muito se aprende (p. 34).

A dança é uma linguagem que se expressa através do corpo, e consideramos aqui, este não como algo profano, mas como uma realidade biopsicossocial, que é expressão e fundamento de um sujeito que é corpo criado e incessantemente recriado através de suas vivências sociais cotidianas. É sobre este corpo, afetivo e simbólico, que a dança, inscreve suas marcas, recriando-o, conforme aponta Dantas (1999, p. 28): “quem dança transforma o seu próprio corpo, se molda e se remodela, se reconfigura”.

No processo de aprendizagem da dança, o sujeito entra em contato com uma cultura artística, histórica e socialmente elaborada pela humanidade e reconhecida como sua herança às novas gerações. E também, no processo de apropriação dessa cultura, o sujeito participa de forma ativa na produção das significações que mediam as relações sociais aí encadeadas, sendo ao mesmo tempo reproduzidas e ressignificadas por eles.

A dança, portanto, através do corpo e sua articulação entre o cultural e o biológico, proporciona a criança a aquisição de outras formas de conhecimento, tendo em vista que se transforma através do movimento, e essa transformação acarreta em mudanças subjetivas naquele que dança. São essas mudanças que possibilitam a produção de sentidos, novas formas de expressão e consequentemente contribui para que a

criança (re)invente de forma criativa suas formas de ser, viver e estar com os outros.

Essa prática está diretamente relacionada ao processo de constituição dos sujeitos, à medida que são numa perspectiva histórica e social, e se constituem enquanto tal, a partir da sua relação com os outros (VYGOTSKY, 2000). A qualidade dessas relações é premissa para se ter as relações que o sujeito estabelece consigo mesmo, e nesse sentido, a dança, enquanto técnica do movimento do corpo, se insere nessa conjuntura como mediadora nesse processo: “[...] o corpo é o homem que se exterioriza, é o que me liga aos outros e ao mundo, é aquilo por meio de que eu me expresso e tomo consciência de mim mesmo” (GARAUDY, 1980, p. 181).

Apesar de ser uma linguagem usada desde os primeiros seres humanos, no decurso da história a dança se tornou uma prática característica das classes mais altas da sociedade. Vieira (2007, p. 117) afirma que:

A dança, como uma prática artística acadêmica, envolvendo uma técnica sistematizada, uma codificação de passos ou pesquisas sistematizadas de movimentos expressivos, construiuse historicamente como uma atividade das classes com maior poder aquisitivo, ou seja, uma prática até então afastada da escola, no entanto é papel da escola transformá-la num processo educativo que favoreça possibilidades e oportunidades do aluno de apreciar, contextualizar e vivenciar dança no espaço escolar. A dança está contemplada na legislação brasileira enquanto conteúdo escolar. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), ela está inserida tanto na área de Artes quanto na de Educação Física. Em ambas as áreas, “a dança pode vir a ocupar o seu devido lugar na escola: espaço de desenvolvimento da sensibilidade, do comportamento estético, que é ético e se efetiva corporalmente” (CONE; CONE, 2015, p.11).

Compreende-se que não é a intenção da escola usar a dança para profissionalizar bailarinos e bailarinas, mas sim, proporcionar as crianças o contato com a teoria e a vivência a cerca dos vários estilos de dança, para que assim, eles possam conhecê-la e agreguem essa linguagem a sua própria cultura, e explorem e reconstruam o sentido do seu próprio corpo.

Cunha (1992, p.13) destaca a importância do processo de escolarização da dança: "Acreditamos que somente a escola, através do emprego de um trabalho consciente de dança, terá condições de fazer emergir e formar um indivíduo com conhecimento de suas verdadeiras possibilidades corporaisexpressivas." Dessa forma, a escola tem a possibilidade de formar uma criança que olha para o seu corpo; se percebe enquanto sujeito, se gosta, percebe e sabe respeitar os seus limites e dos outros, saber valorizar o corpo do outro; e ainda desmistifica que a dança só pode ser ensinada por exímios bailarinos (as); e que só pode ser vivenciada por determinadas classes sociais, em determinados lugares especializados em dança, ou ainda, por determinado gênero sexual.

Os objetivos educacionais da dança incluem sua vivência e conhecimento como uma forma de manifestação corporal e cultural da sociedade, nas quais se relacionam aspectos como musicalidade, expressividade, criatividade, imaginação, contextualização histórica, entre outros. Ou seja, a dança entendida como legado humano. (PEREIRA; HUNGER, 2019. p. 774)

O uso da dança na escola pode trazer diversos benefícios para os sujeitos que a vivenciarem, entre eles estão à educação de um corpo cultural, crítico, criador, expressivo, sensível, observador, consciente, explorador, criativo, incorporado aos métodos do diversos estilos de dança. Transformando, nesse sentido, as relações que estes têm com a sociedade, com a dança e com o

corpo.

O sucesso de uma experiência de aprendizagem da dança está em fazer escolhas de conteúdos pertinentes e adequados do ponto de vista do desenvolvimento e possuir paixão pelo ato de ensinar. O primeiro passo é decidir o que você deseja que seus alunos aprendam e quais benefícios a oportunidade de participar dessa experiência proporcionará a eles. O resultado final, quando bem esclarecido, deve servir de guia para a seleção, o planejamento e a implementação de uma experiência de aprendizagem significativa para você e seus alunos. CONE; CONE, 2015, p.20).

Levando em consideração esse passos, é possível que através da dança, os profissionais da Educação Infantil criem uma forma prazerosa de exercitar o corpo, explorem a descoberta de movimentos, estimulem a criatividade do pensamento infantil, promovam o reconhecimento das partes do corpo, instigue o movimento expressivo, explorem a noção de espaço com movimentos laterais, estimulem a noção temporal utilizando diferentes ritmos de acompanhamento musical.

Mas para que isso se efetive, essa dança aplicada na Educação Infantil não pode se resumir em buscar sua execução em "festinhas comemorativas" da escola (VERDERI, 2000, p. 33); nem pode ser aquela que o professor vai a frete dos alunos, faz movimentos, e os alunos devem copiar esses movimentos exatamente como o professor está fazendo, caso contrário já são corrigidos. Nessa linha de raciocínio, Fernanda Almeida afirma que: [...] a dança para a educação infantil necessita estimular a descoberta, e não a padronização; a improvisação, e não a repetição de movimentos previamente determinados. Uma dança que não aprisione o movimento, mas liberte a

imaginação, a criatividade e a expressão; que germine das ações básicas do cotidiano e suas combinações (andar, girar, saltar, parar, torcer, dobrar), almejando um conhecimento amplo das possibilidades de movimento, do espaço e da consciência corporal. E, por fim, que possibilite o brincar com o corpo, conhecer-se, conhecer o outro e o meio que o cerca. (2013, p. 34)

Ela deve ser encarada como uma educação por meio da arte, e não como a arte do espetáculo esteticamente bonito aos olhos dos adultos (FERRARI, 2020). Nesse sentido de percepção o professor não pode ser aquele que decreta técnicas e conceitos; ele precisa assumir uma postura de mediação de conhecimento, que fomenta experiências através da dança, que orienta os alunos a usarem com criatividade do seu próprio corpo, para perceberem suas habilidades, limites, extensões, possibilidades e descobrirem novas formas de se expressarem e se comunicarem com o mundo.

Dessa forma, através da dança, é possível ensinar o respeito entre as diferentes formas de expressões culturais; trabalhar a socialização com os demais colegas da turma, onde possam trocar experiências com o outro, aspecto relacionado com a aprendizagem do respeito e a convivência. Criando um momento que pode tornar-se também um momento de brincadeira, de lazer e conhecimento e empoderamento sobre o próprio corpo das crianças, a partir de um simples toque e reconhecimento de limitações, de espaço, etc. Isso faz da dança um instrumento potencializador no processo de um ensino-aprendizagem significativo, que contempla efetivamente uma formação integral, de corpo inteiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS