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A BNCC e o ensino de artes visuais no ensino médio: o que está em jogo?

Ressaltamos que não está fora de nosso horizonte de análise, a nova estrutura curricular do Ensino Médio que prescinde de disciplinas, organizado agora em áreas de conhecimento (BRASIL, 2018). Contudo, nossa análise será feita com base na concepção de que o conceito de linguagem não se reduz quando o estudamos em suas especificidades e campos de conhecimento, tal como aqui se pretende tratar especificamente o campo do ensino das Artes Visuais. De acordo com a lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2020), a Base Nacional Comum Curricular incluirá a obrigatoriedade de estudos e práticas de arte, além de educação física, sociologia e filosofia. Nota-se, de partida, uma lacuna nesta previsão, pois não se especifica o estudo destes campos de conhecimento nos três anos do Ensino Médio, tal qual, “[...] o componente Língua Portuguesa – tal como Matemática – deve ser oferecido nos três anos do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017)” (BRASIL, 2018, p. 487). Diante dessa omissão da BNCC, escolas particulares e públicas vêm optando por ofertar Arte em apenas um ano do Ensino Médio, prioritariamente, o 1º ano do Ensino Médio. Neste sentido, identificamos o primeiro estreitamento do ensino das Artes no Ensino Médio. Tal armadilha legislativa merece atenção, pois subtrair de sujeitos em formação um campo de conhecimento ligado às funções psicológicas superiores de criação e de imaginação não é só um prejuízo individual, mas a constituição de um fosso social, pois

A concretização do ato de criar, responsável por todo o desenvolvimento tanto das ciências quanto das artes, depende de um complexo processo de experiências vividas, sentidas e percebidas que são captadas a partir das impressões com o mundo externo (VIGOTSKI apud RAMALHETE; STEN, 2021, p. 162). Cumpre ressaltar ainda, que se estabeleceu na Base Nacional Comum Curricular não mais a organização do Ensino Médio em componentes curriculares, cuja justificativa, prevista na BNCC, é a exigência de se repensar a organização curricular, já que o Ensino Médio “[...] apresenta excesso de componentes curriculares e abordagens pedagógicas distantes das culturas juvenis do mundo do trabalho e das dinâmicas e questões sociais contemporâneas” (BRASIL, 2018, p. 466-467). Essa tendenciosa afirmação revela desapreço pelo trabalho pedagógico desenvolvido, nas últimas décadas, por professores e professoras. Assim, o que se nota é uma clara tentativa de se esvaziar os campos de conhecimento outrora organizados em componentes curriculares. À vista disso, pretendese aqui problematizar o que está em jogo na Base Nacional Comum Curricular para o ensino de Arte. Para tanto, além da introdução, apresenta-se reflexão sobre aspectos da Base Nacional Comum Curricular e o Ensino de Artes Visuais no Ensino Médio. Em seguida, discute-se a juventude e a educação dos sentidos, por fim, apresentam-se as considerações finais, em que afirmamos que o que está em jogo na BNCC é uma orquestrada política de estreitamento das Artes Visuais, bem como de outros campos de conhecimento das

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humanidades, campos imprescindíveis à tomada de consciência e a participação ativa na vida social.

A BNCC E O ENSINO DE ARTES VISUAIS NO ENSINO MÉDIO: UMA POLÍTICA DE ESTREITAMENTO DE UM CAMPO DE CONHECIMENTO

Conforme artigo 35-A e 36 da LDB (BRASIL, 2020), a Base Nacional Comum Curricular definirá direitos e objetivos de aprendizagem para os alunos do Ensino Médio. Quanto ao currículo, a legislação define que será composto pela BNCC e por itinerários formativos, organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, os quais devem considerar o contexto local e a possibilidade do sistema de ensino (BRASIL, 2018). Isso posto, interessa-nos mais detidamente a área de Linguagens e suas tecnologias, bem como o artigo 4º, inciso III, da Resolução CNE/CP nº 4/2018, que trata das competências gerais, expressão dos direitos e objetivos de aprendizagem que prevê “valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural” (BRASIL, 2018, [s.p.]). Para melhor elucidação, apresentamos as três competências específicas à área de conhecimento I, intitulada Linguagens e suas tecnologias, que mais se aproximam dos objetivos didático-teóricos e metodológicos do ensino de Artes Visuais:

a) Compreender o funcionamento das diferentes linguagens e práticas culturais (artísticas, culturais e verbais) e mobilizar esses conhecimentos na recepção e produção de discursos nos diferentes campos de atuação social e nas diversas mídias para ampliar as formas de participação social, o entendimento e as possibilidades de explicação e interpretação crítica da realidade e para continuar aprendendo. c) Utilizar diferentes linguagens (artísticas, culturais e verbais) para exercer com autonomia e colaboração, protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva, de forma crítica, ética e solidária defendendo pontos de vista que respeitem o outro e promovam os Direitos Humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável, em âmbito local, regional, nacional e global. f) Apreciar esteticamente as mais diversas produções artísticas e culturais, considerando suas características locais, regionais, nacionais e globais, e mobilizar seus conhecimentos sobre as linguagens artísticas para dar significado e (re)construir produções autorais individuais e coletivas, exercendo protagonismo de maneira crítica e criativa, com respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas (BRASIL, 2018, 490). Vale destacar que nessa área de conhecimento estão prescritas sete competências. No entanto, nossa análise bibliográfica-documental prevê apenas as competências que fazem alusão semântica e conceitual ao campo das Artes Visuais. Esclarecemos que o ensino de Artes, prescrito na BNCC para o Ensino Fundamental, apresenta outras competências e direitos de aprendizagem, sobretudo, nas dimensões que tratam do conhecimento das Artes Visuais, do Teatro, da Dança e da Música. Entretanto, não se pretende apresentar um estudo

comparativo de competências, objetivos de aprendizagem e dimensões entre os níveis fundamental e médio. Dito isso, o Ensino Médio é a etapa final da Educação Básica, constitui-se de um público predominantemente de adolescente e de jovens, cujos interesses e expectativas sociais apontam para a não homogeneidade desse público e, portanto, demanda, no ensino formal, que as múltiplas dimensões humanas sejam plenamente desenvolvidas e ampliadas nos mais variados campos de saber. Nesse sentido, o campo das Artes Visuais surge como lócus privilegiado de promoção de uma educação dos sentidos deste público, posto que nestes tempos de constantes mudanças sensoriais e perceptivas, esses jovens e adolescentes, não sofram da “[...] síndrome das „roupas do imperador‟” (DONDIS, 2015), ou seja, transformados em sujeitos passivos e, por isso, incapazes de intervir no mundo e, portanto, de produzirem alternativas de superação aos desequilíbrios sociais, pois

A arte como linguagem aguçadora dos sentidos transmite significados que não podem ser transmitidos por meio de nenhum outro tipo de linguagem, tal como a discursiva ou a científica. Dentre as artes, as visuais, tendo a imagem como matéria prima, torna possível a visualização de quem somos, de onde estamos e de como sentimos (BARBOSA, 2010, p. 99). À vista disso, nossa preocupação, quanto às competências apresentadas na BNCC para a área de Linguagem e suas tecnologias, aqui listadas, é não deixar claro, ao professor que desenvolverá diálogos didáticos-metodológicos com a BNCC, como promover, entre os educandos, essa capacidade de participação na vida social por meio do desenvolvimento da acuidade visual, a qual compreendemos como parte constituinte de uma educação dos sentidos. A questão que se coloca é como se organizará um trabalho educativo intencional, cujo objetivo seja o desenvolvimento da capacidade crítico-reflexiva do estudante, a fim de que se potencialize a recepção crítica das imagens bidimensionais, tridimensionais, fixas e não fixas, em todas as suas representações sociais (cinema, pintura, publicidade, fotografia, entre outros), já que refletir sobre como as imagens condicionam o imaginário social e como elas interferem diretamente na formação do gosto e preferências destes jovens, com implicações na construção da sua subjetividade, é um imperativo na contemporaneidade. Nesse sentido, elucida Dondis,

Que vantagens traz para os que não são artistas o desenvolvimento de sua acuidade visual e de seu potencial de expressão? O primeiro e fundamental benefício está no desenvolvimento de critérios que ultrapassem a resposta natural e os gostos e preferências pessoais e condicionadas. Só os visualmente sofisticados podem elevar-se acimas dos modismos e fazer seus próprios juízos de valor sobre o que consideram apropriado e esteticamente agradável (DONDIS, 2015, p. 231). As Artes Visuais, em contexto de educação formal, devem ser compreendidas como um campo de conhecimento expandido e em expansão, que dialoga e se interconecta com outros campos de conhecimento (BARBOSA, 2010). Portanto, não deve ser ensinada,

exclusivamente, no âmbito da fruição, da contemplação vazia ou de uma produção manual, com vistas ao desenvolvimento de habilidades para execução de técnicas que respondem a uma lista de competências como encontramos na BNCC. Muito longe disso está o trabalho educativo na interface com o campo das Artes Visuais. Notavelmente, o ensino de Artes Visuais não prescinde da tomada de consciência, da ação responsiva e reflexiva que tem em seu horizonte a crítica das contradições sociais. Dessa maneira, é incongruente pensar um ensino de Artes Visuais que não contrarie a adaptação passiva do organismo ao meio (VIGOTSKI, 2010). Nessa perspectiva, confirmamos a concepção de sujeito histórico, que consome e produz cultura em suas relações cotidianas, em espaços-tempos dinâmicos, os quais recebem influências sociais, políticas, éticas e estéticas, cabendo à educação formal questionar e compreender como se formam os condicionantes sociais. Ressaltamos a prerrogativa da escola de lócus privilegiado de difusão tanto de manifestações culturais quanto do conhecimento desenvolvido pela humanidade, como herança dos homens aos homens, portanto, espaço da práxis. No entanto, na contramão disso, o que se nota, é que o discurso acolhido pela BNCC não é exatamente o de modificar as condições de exploração social, mas, com certo tom fatalista, o documento prescreve a complexidade do mundo e das relações sociais como incertas, restando apenas à adaptação dos indivíduos.

Nesse cenário cada vez mais complexo, dinâmico e fluido, as incertezas relativas às mudanças no mundo do trabalho e nas relações sociais como um todo representam um grande desafio para a formulação de políticas e propostas de organização curriculares para a Educação Básica, em geral, e para o Ensino Médio, em particular (BRASIL, 2018, p. 464). Certamente, vários são os caminhos possíveis à superação de todas as desigualdades e complexidades que acometem a humanidade. Nesse sentido, nossa aposta é pela educação, a qual entendemos como processos formativos amplos que se desenvolvem nos mais variados espaços-tempos de circulação dos sujeitos. A educação formal é essencial à transformação da ordem vigente de exploração, tratada na BNCC por meio dos eufemismos: “complexo, dinâmico e fluído”. Contra essa naturalização de uma sociedade complexa e, portanto, impossível de ser modificada, em que resta aos indivíduos somente sua adaptação passiva, a educação formal emerge como base para o desenvolvimento e consolidação da cidadania. Posto isso, a arte surge como um campo de conhecimento e nas palavras de Barbosa (2012), Arte não é um “babado cultural” ou algo que se possa dispensar ou abrir mão a cada nova reforma educacional. Não se prescinde da Arte, sobretudo, em espaços de educação formal, onde, precipuamente, desenvolvem-se as capacidades superiores de criação, imaginação, fantasia,

memória, percepção entre outras, fundamentais ao desenvolvimento pleno do indivíduo (VIGOTSKI, 2009). Por isso, recebemos com desconfiança esse estreitamento do ensino das Artes Visuais na BNCC, pois essa integração do campo das linguagens não nos parece o melhor caminho para mitigar as incertezas de um fluido e complexo mundo. Sintomaticamente, nunca foi tão urgente ampliar os campos de saber, a fim de lutarmos contra as políticas neoliberais que asfixiam os direitos sociais. Portanto, retroceder à polivalência e estreitar campos de conhecimento com estatuto epistemológico como Artes Visuais, Teatro, Dança e Música, reduzindo-os em unidades de ensino é o que está em jogo neste momento. Portanto, é imprescindível consolidar, entre os professores e professoras, um ensino de Artes Visuais, disparador de perguntas, de respostas e de novos afetos que ajudem na busca por soluções às complexidades do mundo, que encaminhem à superação dos obstáculos e que invalidam práticas assépticas de ensino, que desconsideram as possibilidades de intervenção da Arte na realidade concreta do aluno. Para tanto, concepções teórico-metodológicas claras, que tratam das especificidades da educação visual à juventude é urgente, em uma sociedade, que cada dia mais circula e faz circular imagens. À vista disso, debruçar-se sobre a BNCC, de modo dialógico e dialético, com vistas a identificar lacunas e possíveis silêncios é nossa tarefa como professores desse campo de conhecimento. O campo das Artes Visuais, consensualmente, é hoje entendido como um campo de linguagens significativas, multi-trans-interculturais, simbólicas, digitais e inclusivas (BARBOSA, 2008; 2012; 2014). Portanto, é indispensável que o ensino de Artes seja orientado, sobretudo, para a educação visual, de modo que não incorramos em uma sociedade que, tão-somente, padeça de um automatismo social que controla de forma arbitrária o que vemos e os sentidos do que vemos. Sintomaticamente, é isso que está em jogo nestes tempos trevosos de aprofundamento de políticas neoliberais responsáveis pelo estreitamento de direitos sociais como a educação pública.

A JUVENTUDE E A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS

O filósofo alemão Walter Benjamin (2015), em sua análise sobre a modernidade, à luz da obra do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), analisou as mudanças sensíveis e perceptivas vividas pelos indivíduos, sobretudo, a partir do início do século XX. Suas concepções filosóficas erigiram-se pela constatação de que com o desenvolvimento da técnica não só novas formas de relações sociais se seguiram como se alterou a capacidade perceptiva desses sujeitos da modernidade. Benjamin (2015) alude à barbárie advinda da técnica, os modos mercantis de

conceber a vida e registra, especificamente, que “As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades se caracterizam por um evidente predomínio da atividade do olhar sobre a do ouvido” (BENJAMIN, 2015, p.40, grifo nosso). Esse predomínio da atividade do olhar se intensificou no século XXI, pois na contemporaneidade a imagem se tornou o veículo mais rápido e eficiente não só de perpetuar o sistema social vigente, cujas relações sociais excludentes, garantem privilégios a poucos e a dominação social, por meio de novos modos de ver o mundo, na maioria das vezes vistas pelas lentes impositivas de práticas de consumo de mercadorias. Entretanto, na contramão disso, a educação formal deve assumir a dianteira, com a prática de uma educação humanizadora a contrapelo dessas lógicas de instrumentalização dos conteúdos e de dominação das subjetividades da juventude, público que ainda está em processo de consolidação sócio-psicológico. Desse modo, vislumbradas as condições excludentes de produção da vida no sistema capitalista, intentamos um ensino de Artes Visuais que contribua não com a massificação e homogeneização do pensamento, mas com a promoção de uma educação dos sentidos que permita a formação plena e integral de sujeitos sensíveis, que partilhem experiências comunicáveis e que possam apontar novas e outras formas de produção da existência (BENJAMIN, 1994). Se na BNCC o eixo principal para o Ensino Médio é o Projeto de Vida, cabendo à escola organizar suas práticas a partir desta dimensão da vida do estudante, resta-nos observar que um currículo ampliado que permita maior integração dos jovens com as artes, com a filosofia, com a sociologia e com o corpo por meio da educação física é a melhor alternativa para intensificar dimensões vitais ao desenvolvimento humano, tais como autonomia, protagonismo e autoria bem defendidos na BNCC, pois

No Ensino Médio, o foco da área de Linguagens e suas Tecnologias está na ampliação da autonomia, do protagonismo e da autoria nas práticas de diferentes linguagens; na identificação e na crítica aos diferentes usos das linguagens, explicitando seu poder no estabelecimento de relações; na apreciação e na participação em diversas manifestações artísticas e culturais; e no uso criativo das diversas mídias (BRASIL, 2018, p. 473). Pensar a dimensão da autonomia, estreitamente ligada às promessas iluministas de liberdades, igualdade e fraternidade, é certamente voltar à era das utopias e relembrar possibilidades de mudança na estrutura social, afinal era isso que estava em jogo no Iluminismo. Todavia, foi Benjamin (1994), no século XX, que observou um declínio da experiência, um enfraquecimento de experiências autênticas e vislumbrou um acúmulo de catástrofes advindas de uma história que se repete ad infinitum. Lamentavelmente, os traços discursivos deixados no texto da BNCC apontam para uma aproximação não da autonomia do sujeito, mas da sua adaptação ao vigente e, em consequência, da perda da experiência, pois o que se encontra é uma prescrição à resiliência

e à flexibilidade identificada nas competências gerais para a Educação Básica, em que o estudante deve “Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários” (BRASIL, 2018, p. 12, grifo nosso). Notavelmente, é incongruente manter no mesmo campo semântico a ideia de autonomia e resiliência, pois o sujeito livre e autônomo que decide sua história e que luta para que o contínuo da história seja rompido, tal qual alude Benjamin (1994), não deve de modo algum se adaptar (lê-se flexível) às incertezas do mundo, tampouco deve ser submetido a todo tipo de exploração e suportar passivamente voltando à forma “original” como se prever na BNCC (BRASIL, 2018). Então, o que está em jogo? Ao que nos parece, estamos diante de uma orquestrada política neoliberal, que na aparência até pode se apresentar como moderna e inovadora para os jovens, mas basta um lance de dados dialético e vemos revelar, na essência, as peças contraditórias de um jogo perverso contra a plena formação cidadã, crítica e reflexiva dos estudantes do Ensino Médio. Ao lado dessas reflexões é que inserimos a importância de uma formação crítica e política do professor de Artes Visuais para que possa enfim como sujeito autônomo e livre questionar esses documentos que, à primeira vista, podem parecer caminhos mais amplos e abertos, mas se olhados pela lente da crítica, o que se vê são caminhos bem estreitos.

PALAVRAS FINAIS

Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas. Vladimir Maiakóvski Ao pensarmos em como as pesquisas nos revelam o constante e ininterrupto estado de ameaça e de sítio imposto ao ensino de Artes Visuais na história da educação brasileira (BARBOSA, 2015), inevitavelmente, somos levados a pensar essa história com certa melancolia e obrigados a nos manter em estado de alerta para não recair em desânimo e em fatalismos imobilizadores. Mas, como o “mar da história é agitado”, somos também levados à lembrança de todas as conquistas deste campo de conhecimento. A relembrar, como fruto de muitas lutas,

que a legislação educacional brasileira, apresenta a Arte como princípio em nossa república, como prática, como campo de estudo, como cultura, como expressão popular e regional, como componente curricular e como linguagem (BRASIL, 1888). Reconhecemos os ataques da recente tentativa de reforma do Ensino Médio, no ano de 2017, imposta pelo governo de Michel Temer e que foi, graças à organização rápida e eficiente de um coletivo de professores, alunos, associações e outros segmentos da sociedade, que o ensino de Artes permaneceu como componente curricular obrigatório na Educação Básica. Infelizmente, não há descanso nesta luta renhida, pois não é interesse dessa nova racionalidade empresarial de “pejotização” dos indivíduos a concorrência com uma educação crítica, sensível, portanto, humanizadora. Notadamente, como front, contra essa ordem social estranguladora do sensível, está o trabalho docente, articulado a ações planejadas e indissociáveis da prática social, que mantém em curso mudanças e transformações sociais. Nesse sentido, buscamos questionar essa política de estreitamento contra as Artes Visuais imposta na BNCC (BRASIL, 20218). Apresentar vias teórico metodológicas do ensino de Artes Visuais que aliada ao trabalho educativo intencional com imagens no Ensino Médio promova fraturas em um sistema de totalidades que concorre contra a humanidade. Destacamos que na contemporaneidade a educação do olhar e dos sentidos, com o pleno desenvolvimento da acuidade visual, permite ao aluno construir sua autonomia e cidadania. Todavia, estamos cônscios dos obstáculos que se interpõem cotidianamente contra os professores(as) de Artes Visuais. Obstáculos que, por vezes, nos impedem de acreditar que é possível alterar as condições de precarização do trabalho docente. No entanto, afirmamos que, apesar dos revezes, estamos certos de que o mar da história continua agitado, conforme nos alude o poema supracitado, o que nos sugere que é possível acreditar e lutar, por vias democráticas, pela qualidade da formação inicial e continuada dos professores e professoras de Artes Visuais, já que confiamos que o investimento em educação é a quilha que corta ondas agitadas de desânimo que se levantam contra o professor todos os dias. Por fim, este texto foi redigido durante uma grave crise sanitária mundial, especialmente, para o Brasil que experimenta recrudescimento da extrema direita, ataques constantes à ciência e uma onda de negacionismo que encontra força em fakenews disparadas a todo o momento em redes sociais e mídias digitais. Sentimos, na pele, a política de austeridade que confirma a presença do neoliberalismo nas ações governamentais, dilapidando os direitos sociais. Reconhecidamente, este é um tempo que exige enfrentamento e não resiliência ou flexibilidade.

Cabe uma última reflexão, o que seria do povo brasileiro sem sua indignação, sem os gritos contra a política de morte ou se não pressionar o governo federal por vacinas para enfrentamento à Covid-19, toda essa luta nos dá conta de que não estamos alegres como disse o poeta, mas porque deveríamos entristecer, cabe a nós tomar a história nas mãos e resistir com e pela arte.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae; AMARAL, Lilian (Orgs.) Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: Senac, 2008.

______. Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. 3. Ed. São Paulo: Cortez, 2010 ______. Inquietações e mudanças no ensino da Arte. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2012. ______. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 2014. ______. Redesenhando o desenho: educadores, políticas e história. São Paulo: Cortez, 2015. BRASIL, Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília: Ministério da Educação, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase. Acesso em: 26 nov. 2019. BRASIL, Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 nov. 2019.

BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Ministério da Educação, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 15 jun. 2020. BRASIL. Resolução nº4, de 17 de dezembro de 2018. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia//asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/55640296. Acesso em: 08 dez. de 2019.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7º ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. DONDIS, Donis. A sintaxe da linguagem visual. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. 3º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015. ______. Escritos sobre mito e linguagem. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2013. MAIAKÓVSKI, Vladimir. Antologia poética. 6. ed. Tradução de Emilio C. Guerra. São Paulo: Max Limonad, 1987. RAMALHETE, Mariana Passos. STEN, Samira da Costa. Que fim levaram todas as cores? As imagens que uma política pública conta para nós. Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, v. 30, n. 62, p. 152-166, 30 jun. 2021.

VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Martins Fontes, 2009. ______. Psicologia Pedagógica. Tradução: Paulo Bezerra. 3º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

NOTAS DE FIM

1. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Faced/UFBA). Leciona as disciplinas de Estágio Supervisionado em Artes Visuais e Metodologia do Ensino das Artes Visuais.

A PRESENÇA FEMININA EM EXPOSIÇÃO: um olhar sobre instituições museais do sudeste brasileiro entre 2015 e 2019.

Ananda Carvalho Larissa Megre Wanderley Cordeiro

RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão acerca dos procedimentos curatoriais e expositivos que vêm ocorrendo nos últimos anos em espaços museais com o intuito de dar a ver obras e artistas que anteriormente não eram incluídos. Para discutir esse contexto, estabelece diálogos com Renata Felinto, Andrea Fraser, Cecilia FajardoHill, Maura Reilly, Julia Halperin e Charlotte Burns, entre outras autoras. Na sequência, apresenta dados quantitativos sobre a presença feminina em exposições realizadas entre 2015 e 2019 em três instituições brasileiras: a Pinacoteca de São Paulo, o Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte - MG) e a Casa Porto das Artes Plásticas (Vitória - ES). O objetivo da discussão é analisar objetivamente exemplos pontuais a fim de obter uma visão mais clara do circuito da arte, espaço onde mudanças radicais são necessárias, mas nem sempre executadas com o mesmo ímpeto que são debatidas. Palavras-chave: Exposição; Artistas Mulheres; Curadoria; Procedimentos Decoloniais; Dados quantitativos.

ABSTRACT

This article proposes a reflection upon curatorial and exhibiting procedures that have been occurring in the last few years in museums with the intent of giving visibility to works of art and artists that previously weren’t included. To discuss this matter, the present essay sets dialogues with Renata Felinto, Andrea Fraser, Cecilia Fajardo-Hill, Maura Reilly, Julia Halperin and Charlotte Burns, among other authors. In the following, it presents quantitative data on the female presence in exhibitions held between 2015 and 2019 in three brazilian institutions: the Pinacoteca de São Paulo, the Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte - MG) and the Casa Porto das Artes Plásticas (Vitória - ES). The goal of the discussion is to objectively analyse punctual examples in order to obtain a clearer vision of the art world, where radical changes are necessary, but not always executed with the same impetus as they are debated. Keywords: Exhibition; Women Artists; Curatorship; Decolonial Procedures; Quantitative data.

INTRODUÇÃO

A partir de um giro decolonial em ascensão, com origens em trabalhos de acadêmicos e pensadores do “Sul Global” (MUÑIZ-REED, 2019, p. 5), o mundo da arte tem levantado debates acerca de suas limitações e raízes colonialistas. Seja nos livros, academias ou museus, pautas ativistas demandam espaços historicamente negados a grupos discriminados e rechaçados pela História da Arte “oficial”. Essas reivindicações são refletidas, por exemplo, nas instituições expositivas que mostram propostas curatoriais de objetivos pontuais para com a disparidade de gênero presente nos seus acervos e na bibliografia de arte mainstream. Como exemplos, é possível citar Histórias das mulheres, histórias feministas (MASP, 2019), Mulheres na Coleção MAR (Museu de Arte do Rio, 2018) e Mulheres Radicais: arte latinoamericana 1960-1985 (Pinacoteca de São Paulo, 2018). Essas mostras partem de um local de ausência na História da Arte, no qual não se encontra mulheres, salvo raras exceções.

O projeto A História da _rte apresenta dados quantitativos e qualitativos sobre todos