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14 A 20 DE JUNHO DE 2020
Priscilla Alves e Ulli Marques “Vidas negras importam”. Essa frase parece óbvia. Afinal de contas, toda vida humana deveria ter importância e ser preservada. Mas esse ideal igualitário só existe perante à lei. Na prática cotidiana, distinções são frequentes, sobretudo quando se trata da relação entre brancos e negros. O racismo existe e não é observável apenas em discursos de ódio ou em repressões violentas, como as que preencheram os noticiários do Brasil e do mundo nas últimas semanas. Faz apenas 132 anos que os escravos foram libertos no país, sem qualquer garantia de direitos básicos. Do ponto de vista histórico, isso foi ontem. Esses últimos acontecimentos que motivaram protestos nas redes sociais e também nas ruas não são, portanto, episódios isolados: são a culminação de uma opressão sistemática. Em um contexto de pandemia, quando as autoridades de saúde orientam que a população permaneça em suas casas, os atos antirracistas que ocorreram após a morte de George Floyd, nos EUA, e do menino João Pedro e do jovem João Vitor, no Rio de Janeiro — os três assassinados pela força policial em maio de 2020 — foram alvo de controvérsias. No entanto, para aqueles que são as vítimas da desigualdade e da violência decorrente do preconceito racial, tais atos são o resultado de um acúmulo de situações que acontecem há séculos e que chegaram ao limite. “A cor da pele assusta e afasta, mas, quando se trata de uma abordagem policial, atrai”, pontou a professora doutora e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) da UENF, Maria Clareth Gonçalves Reis. “Os atos e manifestações estabelecidos nas últimas semanas reúnem um conjunto de angústias e revoltas silenciadas historicamente. Com o lema ‘vidas negras importam’, estas vozes querem ser ouvidas e respeitadas. Querem, acima de tudo, o direito à vida”. Embaixador do Conselho Pan-Africano no Brasil, o jornalista Rogério Soares acredita que as manifestações antirracistas são importantes porque mostram a dimensão da condição do negro e dão amplitude às suas demandas desse grupo. “É preciso romper com essas estruturais, chacoalhar a sociedade, a começar pelos políticos que montam essa engrenagem e fazem com que ela funcione”, apontou. Contudo, o presidente do Conselho municipal de Igualdade Racial, Totinho Capoeira, esclarece que os atos que ocorrem no Brasil e no mundo não são políticos. "São atos civis que demonstram que revolta dos oprimidos é tão grande que fez a gente ter coragem de enfrentar até uma pandemia para fazer manifestação. É importante que as pessoas não confundam a revolta dos oprimidos com a agressão dos agressores", destacou. Números Essas declarações vão ao encontro dos números. Os negros (pretos e pardos) correspondem a 56,10% da população brasileira, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
Racismo Precisamos falar sobre isso
Últimos acontecimentos que motivaram protestos nas redes sociais e também nas ruas não são episódios isolados, são a culminação de uma opressão sistemática Contínua do IBGE. E eles são maioria não somente no número de habitantes, mas também no quantitativo de pessoas analfabetas (9,1% são negros e 3,9% são brancos), desempregadas (64,2%), subocupadas (66,1%), encarceradas (61,6%) e assassinadas (75,5%) no Brasil. Em contrapartida, os negros estão em menor número quando se trata de posições de liderança no mercado de trabalho, de acordo com pesquisa de 2018 do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, e em representatividade na política e no magistrado (IBGE). Recentemente, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) também divulgou resultados de uma pesquisa que mostra que a letalidade da Covid-19 é maior entre os pretos e pardos (55%) do que entre os brancos (38%), uma vez que aqueles se encontram em situações mais precárias de moradia e acesso a serviços de saúde.
Sistema racista As estatísticas mostram que o racismo não se configura por meio de ações isoladas. Trata-se de um sistema institucionalizado, de acordo com a socióloga e cantora, Simone Pedro. “A necessidade de ir às ruas vem do fato de que a simples declaração de que ‘não é racista’ não é suficiente para mudar esse quadro de desigualdade, segregação e violência. Precisamos nos colocar principalmente perante instituições que corroboram com essa prática. A Polícia Militar, por exemplo, é a expressão do Estado que, por sua vez, expressa a vontade da sociedade, ou pelo menos das classes dominantes. Quando o racismo é manifestado em uma ação violenta, trata-se do remate de uma série de pensamentos que se faz a respeito de um grupo, um povo, uma cultura, uma religiosidade”. Essa definição do racismo como “opressão sistemá-
tica”, inclusive, será inserida no verbete do Merriam-Webster, dicionário de referência dos Estados Unidos, após uma jovem negra entrar em contato com a instituição que publica os dicionários desde 1847 para sugerir uma atualização. Segundo ela, o racismo não é simplesmente um ato discriminatório. O diretor editorial do Merriam-Webster, Peter Sokolowski, confirmou que a definição será modificada e pediu desculpas "pelos danos que causamos por não ter feito antes". Educação é a saída Para os entrevistados desta reportagem, somente a educação mostra-se eficaz para promover a equidade entre brancos e negros. “Mas não se trata de uma educação escolar, a não ser que haja uma mudança efetiva nos planos pedagógicos. A Lei 10.639 obriga as escolas a ensinarem a história da Africa e a cultu-
MINHA EXPERIÊNCIA C
Simone Pedro, socióloga e cantora “Uma das expressões mais claras do racismo cotidiano pode ser observada no comércio. Quando entro em um shopping, sou seguida por seguranças. Essa é uma prática comum. A relação vendedor-comprador também marca muito. Diversas vezes entrei em lojas em que o produto comercializado não era barato e o vendedor me perguntou o que eu ‘fazia da vida’. Eles estranham uma mulher como eu comprar um produto com preço mais alto. Esse estranhamento, que é tamanho a ponto de se manifestar em uma pergunta, é um sinalizador de uma sociedade racista. Também é corriqueiro os seguranças de estabelecimentos de entretenimento me dizerem que a ‘casa já está cheia’. Mas essa situação não é uma exclusividade de Campos. Sempre que entramos em ambientes que não foram feitos para pessoas como nós, passamos por situações de desconfiança e impedimento de ir e vir”.
Rogério Soares, jornalista e embaixador do
Conselho Pan-Africano no Brasil “Eu teria vários episódios para relatar, mas, como sou jornalista, os acontecimentos que envolvem a minha profissão são os primeiros que passam pela minha cabeça porque me marcaram. Ao longo da minha carreira, por muitas vezes, em diversas situações, ou não acreditavam que eu era jornalista, ou, se acreditavam, não acreditavam na minha capacidade, simplesmente pelo fato de eu ser negro. Isso acontece nos meios de comunicação de maneira muito severa, ainda que a profissão de jornalista seja tão sagrada à democracia e tão atacada em tempos de intolerância. Vejo isso acontecer comigo e com outros colegas negros que, inclusive, também têm dificuldade para se inserir no mercado de trabalho. Esse é um reflexo de uma sociedade em que a pobreza e as condições de miséria têm um recorte racial”.
Maria Clareth Gonçalves Reis, profes- Renato Chagas, psicólogo sora doutora e coordenadora do NEABI-UENF “Como mulher negra, sinto o racismo e os racistas batendo em minha porta cotidianamente. Certa vez, fiz uma compra e o entregador surpreendeu-me com a seguinte questão: “Bom dia, onde está a patroa?”. Eu o respondi com outra pergunta: “Toda mulher negra teria que ter uma patroa? Eu sou a ‘patroa’. Só por eu ser uma mulher negra eu teria que ocupar a função de doméstica e ter uma patroa branca?”. Reagi naquele momento dizendo que ele estava sendo racista ao julgar uma pessoa pelo fenótipo. Este tipo de atitude já se naturalizou na sociedade. Por que as mulheres negras não podem ocupar outros lugares na sociedade? A minha presença como mulher negra professora, doutora, concursada e servidora de uma universidade pública ainda surpreende”.
“Exercendo a profissão de psicólogo, já sofri racismo por muitas vezes. Uma dessas ocasiões me tocou bastante. No começo da minha carreira, um dos meus primeiros pacientes, após receber alta do tratamento, me abraçou e chorou copiosamente por um bom tempo. Perguntei o motivo das lágrimas e ele me pediu desculpas. Disse que chorava porque, no início, ele não acreditava na minha eficácia profissional pelo simples fato de eu ser negro. Ele justificou esse sentimento dizendo que nunca havia visto um psicólogo como eu. Essa é uma prova de que o racismo estrutural existe e persiste em vários âmbitos sociais. E exercendo a profissão de psicólogo, também ouço histórias de outras pessoas que são vítimas de racismo e percebo os diferentes danos que ele pode causar".