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Ameniza as rugas e linhas de expressão, uma
Priscilla Alves e Ulli Marques
“Vidas negras importam”. Essa frase parece óbvia. Afinal de contas, toda vida humana deveria ter im portância e ser preservada. Mas esse ideal igualitário só existe perante à lei. Na prática cotidiana, distinções são frequentes, sobretudo quando se trata da relação entre brancos e negros. O racismo existe e não é observável apenas em discursos de ódio ou em repressões violentas, como as que pre encheram os noticiários do Brasil e do mundo nas últimas semanas. Faz apenas 132 anos que os es cravos foram libertos no país, sem qualquer garantia de direitos básicos. Do ponto de vista histórico, isso foi ontem. Esses últimos acontecimentos que motivaram protestos nas redes sociais e também nas ruas não são, portanto, episódios isolados: são a culminação de uma opressão sistemática. Em um contexto de pandemia, quando as auto ridades de saúde orientam que a população permaneça em suas casas, os atos antirracistas que ocorreram após a morte de George Floyd, nos EUA, e do menino João Pedro e do jovem João Vitor, no Rio de Janeiro — os três assassinados pela força policial em maio de 2020 — foram alvo de contro vérsias. No entanto, para aqueles que são as vítimas da desigualdade e da violência decorrente do preconceito racial, tais atos são o resultado de um acúmulo de situações que acontecem há séculos e que chegaram ao limite. “A cor da pele assusta e afasta, mas, quando se tra ta de uma abordagem policial, atrai”, pontou a professora doutora e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) da UENF, Maria Clareth Gonçalves Reis. “Os atos e manifes tações estabelecidos nas últimas semanas reúnem um conjunto de angústias e revoltas silenciadas historicamente. Com o lema ‘vidas negras impor tam’, estas vozes querem ser ouvidas e respeitadas. Querem, acima de tudo, o direito à vida”. Embaixador do Conselho Pan-Africano no Brasil, o jornalista Rogério Soares acredita que as mani festações antirracistas são importantes porque mostram a dimensão da condição do negro e dão amplitude às suas demandas desse grupo. “É pre ciso romper com essas estruturais, chacoalhar a sociedade, a começar pelos políticos que montam essa engrenagem e fazem com que ela funcione”, apontou. Contudo, o presidente do Conselho municipal de Igualdade Racial, Totinho Capoeira, esclarece que os atos que ocorrem no Brasil e no mundo não são políticos. "São atos civis que demonstram que re volta dos oprimidos é tão grande que fez a gente ter coragem de enfrentar até uma pandemia para fa zer manifestação. É importante que as pessoas não confundam a revolta dos oprimidos com a agres são dos agressores", destacou.
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Números
Essas declarações vão ao encontro dos núme ros. Os negros (pretos e pardos) correspondem a 56,10% da população brasileira, segundo a Pes quisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
Racismo
Precisamos falar sobre isso Últimos acontecimentos que motivaram protestos nas redes sociais e também nas ruas não são episódios isolados, são a culminação de uma opressão sistemática
Contínua do IBGE. E eles são maioria não somente no número de habitantes, mas também no quan titativo de pessoas analfabetas (9,1% são negros e 3,9% são brancos), desempregadas (64,2%), su bocupadas (66,1%), encarceradas (61,6%) e assassinadas (75,5%) no Brasil. Em contrapartida, os negros estão em menor número quando se trata de posições de liderança no mercado de trabalho, de acordo com pesquisa de 2018 do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, e em repre sentatividade na política e no magistrado (IBGE). Recentemente, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) também divulgou re sultados de uma pesquisa que mostra que a letalidade da Covid-19 é maior entre os pretos e pardos (55%) do que entre os brancos (38%), uma vez que aqueles se encontram em situações mais precárias de moradia e acesso a serviços de saúde.
Sistema racista
As estatísticas mostram que o racismo não se confi gura por meio de ações isoladas. Trata-se de um sistema institucionalizado, de acordo com a socióloga e cantora, Simone Pedro. “A necessidade de ir às ruas vem do fato de que a simples declaração de que ‘não é racista’ não é su ficiente para mudar esse quadro de desigualdade, segregação e violência. Precisamos nos colocar principalmente perante instituições que corrobo ram com essa prática. A Polícia Militar, por exemplo, é a expressão do Estado que, por sua vez, expressa a vontade da sociedade, ou pelo menos das classes dominantes. Quando o racismo é manifestado em uma ação violenta, trata-se do remate de uma série de pensamentos que se faz a respeito de um grupo, um povo, uma cultura, uma religiosidade”. Essa definição do racismo como “opressão sistemá tica”, inclusive, será inserida no verbete do Merriam- -Webster, dicionário de referência dos Estados Unidos, após uma jovem negra entrar em contato com a instituição que publica os dicionários desde 1847 para sugerir uma atualização. Segundo ela, o racis mo não é simplesmente um ato discriminatório. O diretor editorial do Merriam-Webster, Peter Soko lowski, confirmou que a definição será modificada e pediu desculpas "pelos danos que causamos por não ter feito antes".
Simone Pedro, socióloga e cantora
“Uma das expressões mais claras do racismo cotidia no pode ser observada no comércio. Quando entro em um shopping, sou seguida por seguranças. Essa é uma prática comum. A relação vendedor-comprador também marca muito. Diversas vezes entrei em lojas em que o produto comercializado não era barato e o vendedor me perguntou o que eu ‘fazia da vida’. Eles estranham uma mulher como eu comprar um produ to com preço mais alto. Esse estranhamento, que é tamanho a ponto de se manifestar em uma pergunta, é um sinalizador de uma sociedade racista. Também é corriqueiro os seguranças de estabelecimentos de entretenimento me dizerem que a ‘casa já está cheia’. Mas essa situação não é uma exclusividade de Cam pos. Sempre que entramos em ambientes que não foram feitos para pessoas como nós, passamos por situações de desconfiança e impedimento de ir e vir”.
MINHA EXPERIÊNCIA COM O PRECONCEITO
Rogério Soares, jornalista e embaixador do Conselho Pan-Africano no Brasil
“Eu teria vários episódios para relatar, mas, como sou jornalista, os acontecimentos que envolvem a minha profissão são os primeiros que passam pela minha cabeça porque me marcaram. Ao longo da minha car reira, por muitas vezes, em diversas situações, ou não acreditavam que eu era jornalista, ou, se acreditavam, não acreditavam na minha capacidade, simplesmen te pelo fato de eu ser negro. Isso acontece nos meios de comunicação de maneira muito severa, ainda que a profissão de jornalista seja tão sagrada à democra cia e tão atacada em tempos de intolerância. Vejo isso acontecer comigo e com outros colegas negros que, inclusive, também têm dificuldade para se inserir no mercado de trabalho. Esse é um reflexo de uma socie dade em que a pobreza e as condições de miséria têm um recorte racial”.


Maria Clareth Gonçalves Reis, professora doutora e coordenadora do NEABI-UENF
“Como mulher negra, sinto o racismo e os racistas batendo em minha porta cotidianamente. Certa vez, fiz uma compra e o entregador surpreendeu - -me com a seguinte questão: “Bom dia, onde está a patroa?”. Eu o respondi com outra pergunta: “Toda mulher negra teria que ter uma patroa? Eu sou a ‘patroa’. Só por eu ser uma mulher negra eu teria que ocupar a função de doméstica e ter uma patroa branca?”. Reagi naquele momento dizendo que ele estava sendo racista ao julgar uma pessoa pelo fenótipo. Este tipo de atitude já se naturalizou na sociedade. Por que as mulheres negras não po dem ocupar outros lugares na sociedade? A minha presença como mulher negra professora, doutora, concursada e servidora de uma universidade pú blica ainda surpreende”.
Educação é a saída
Para os entrevistados desta reportagem, somente a educação mostra-se eficaz para promover a equida de entre brancos e negros. “Mas não se trata de uma educação escolar, a não ser que haja uma mudança efetiva nos planos pedagógicos. A Lei 10.639 obriga as escolas a ensinarem a história da Africa e a cultu


Renato Chagas, psicólogo
“Exercendo a profissão de psicólogo, já sofri ra cismo por muitas vezes. Uma dessas ocasiões me tocou bastante. No começo da minha carreira, um dos meus primeiros pacientes, após receber alta do tratamento, me abraçou e chorou copio samente por um bom tempo. Perguntei o motivo das lágrimas e ele me pediu desculpas. Disse que chorava porque, no início, ele não acreditava na minha eficácia profissional pelo simples fato de eu ser negro. Ele justificou esse sentimento di zendo que nunca havia visto um psicólogo como eu. Essa é uma prova de que o racismo estrutu ral existe e persiste em vários âmbitos sociais. E exercendo a profissão de psicólogo, também ouço histórias de outras pessoas que são vítimas de racismo e percebo os diferentes danos que ele pode causar".