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A mobilidade que nos espera

Já vivemos tantos sobressaltos desde o primeiro dia deste ano que talvez não tenhamos dado a devida importância ao significativo fato de que temos um novo governo com seu próprio programa. É verdade que a última transição não se caracterizou pelo usualmente singelo rito que marca a transmissão de cargo de um antigo para um novo mandatário, e não só porque o antigo recusou-se a estar lá para passar a faixa. Desta vez estamos experimentando um processo que nos deixa a sensação de estarem em curso profundas revisões de práticas e valores, quiçá com impactos duradouros em nossas vidas.

Ao tempo em que nossa atenção foi capturada pelo circo de horrores que teve seu clímax – assim esperamos – no domingo 8 de janeiro, porém, enredos secundários podem ter passado despercebidos. Acontece que a marca que ficará deste governo na história pode estar mais nos palcos secundários do que na arena principal. Vamos dar uma olhadela em um deles, o da mobilidade.

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No primeiro ano do primeiro governo petista, a esmagadora maioria de nós comemorou a criação do Ministério das Cidades, com a missão de integrar políticas e ações em áreas como habitação, saneamento, mobilidade e afins. Ainda que com o passar dos anos a realpolitik tenha detido muito do ímpeto inicial, o saldo do período nos legou políticas e programas fundamentais para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. No caso específico da mobilidade ficaram, entre outras, uma Lei de Diretrizes que estabelece os marcos da mobilidade sustentável, uma Política Nacional de Trânsito e a articulação em uma mesma secretaria (a Semob) dos órgãos e entidades que compõem o Sistema Nacional de Trânsito – o SNT, que até então estava no Ministério da Justiça (?!).

A era pós-golpe de 2016 deu passos significativos rumo a um triste desmantelamento que se radicalizou nos inclassifi- cáveis anos do governo (sic) Bolsonaro. Foi nesse último quadriênio que a política de mobilidade foi atribuída de forma quase invisível ao Ministério de Desenvolvimento Regional enquanto o SNT ficou no Ministério da Infraestrutura. E se não vimos a Política Nacional de Trânsito ser completamente abandonada por uma agenda unicamente de obras foi graças ao compromisso do valoroso quadro de técnicos e dirigentes do Denatran, que ainda arrancaram a enorme conquista de elevar o órgão ao status de Secretaria Nacional de Trânsito, a atual Senatran.

Creio que não estava sozinho quando nutri a expectativa de retomada da trilha iniciada em 2003, mas confesso que fiquei decepcionado com o seccionamento da área entre os Ministérios dos Transportes e das Cidades. Depois, passei da decepção à preocupação quando ouvi o ministro dos Transportes, a quem ficou vinculada a Senatran, sinalizar que nosso vergonhoso problema de segurança viária se resolve com a mera duplicação de rodovias. Até o momento em que escrevo estas linhas ainda não haviam sido divulgados os nomes dos escalões inferiores. Espero sinceramente que as equipes das secretarias desfaçam a impressão que deixaram as primeiras palavras do ministro, que lembraram as do lampedusiano Tancredi, príncipe de Falconeri: é preciso que tudo mude para que tudo fique como está.

* Paulo Cesar Marques da Silva é professor da área de Transportes da Faculdade de Tecnologia da Universidade de Brasília. Possui graduação em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal da Bahia (1983), mestrado em Engenharia de Transportes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e doutorado em Transport Studies pela University of London (University College London) (2001).

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