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A decolonização das relações
Apesar de ser altamente difundida ao redor do mundo e praticada por defensores e diversas vertentes políticas, a monogamia é, para alguns, apenas mais um produto colonial
Natasha Teixeira e Mara Matos
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Amonogamia se estabeleceu há séculos como a única forma “correta” de se relacionar. Tudo aquilo que foge desses padrões é considerado imoral. No entanto, existem grupos que questionam essa ideia que é tida como verdade absoluta na maior parte do mundo atualmente.
Apesar de ter sido popularizada como uma prática que diz respeito somente à quantidade de pessoas que alguém escolhe se relacionar, na verdade, a não-monogamia fala sobre como as relações são construídas. Em sua forma política, chamada de não-monogamia política, ela nega tudo aquilo que está relacionado às estruturas monogâmicas.
Esse movimento político vem ganhando cada vez mais espaço entre grupos de esquerda porque parte de um pensamento anticolonial, anticapitalista, antirracista e feminista. Grupos que debatem esse tema, como o NM em Foco (@naomonoemfoco no Instagram), já possuem milhares de seguidores nas redes sociais e vêm expandindo o tema para diferentes vertentes.
Ramiro Gonzalez, pesquisador do Instituto de Psicologia da USP, define a não-monogamia política como “uma proposta radical, importante e transformadora que visa a construção de relações mais saudáveis para pessoas pretas, LGBTQAPN+, indígenas, mulheres, pessoas periféricas e pessoas com deficiência”. Ele enxerga a monogamia como um dos produtos coloniais, assim como é o racismo, o machismo e a LGBTQAPN+fobia.
Monogamia, colonialismo e cristianismo
Há séculos a monogamia vem sendo o modelo padrão de relacionamento nos países ocidentais, mas há razões para acreditar que nem sempre foi assim. Em um artigo escrito por Vânia Moreira, historiadora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), ela afirma que o combate ao que se chamava de “poligamia dos índios” foi um trabalho intenso dos jesuítas no Brasil, uma vez que a “poligamia impedia a conversão e o batismo dos adultos, comprometendo seriamente o sucesso da obra missionária”.
De acordo com a especialista em Cultura Material e consumo Anne Fonseca, “na América Latina, o que se tem registro da monogamia é a partir da colonização. As várias nações indígenas que aqui viviam, não viviam a monogamia nem a exclusividade sexual. Então, definitivamente, a monogamia é esse lugar ocupado pela colonização.”
Não é possível afirmar que a monogamia não esteve presente em nenhuma das culturas nativas da América Latina, mas é certo que o colonialismo cristão teve influência [Foto: Reprodução/Pexels] significativa na legitimação do sistema monogâmico no mundo, já que os ensinamentos encontrados no Novo Testamento da Bíblia condenam as formas não-monogâmicas de se relacionar.
Ramiro afirma que os povos europeus que colonizaram o Brasil inferiorizaram tudo o que não era sua imagem e semelhança. Os povos nativos do Brasil, assim como os povos africanos, foram considerados humanos bárbaros que precisavam ser civilizados e essa ideia se dá por uma perspectiva religiosa moral. Ele complementa dizendo que, apesar de a monogamia ter sido um mecanismo de opressão, ela foi se atualizando e se positivando para ser vista como único caminho possível e saudável.
Atualmente, a não-monogamia está inserida na discussão anticolonial e é defendida por diversos pesquisadores anticolonialistas, como é o caso da psicóloga, mestre e doutora indígena Geni Núnez (@genipapos no Instagram).
Monogamia e capitalismo, não-monogamia e feminismo
Essa monogamia defendida pela Bíblia não é à toa. Ela surgiu para sustentar um sistema, hoje chamado de capitalismo, em que a propriedade, para que se mantenha privada, é repassada somente aos que pertencem à mesma linhagem. É, então, uma forma de romper com a coletividade e fortalecer a busca individual por sobrevivência.
A escritora espanhola Brigitte Vassallo afirma em seu livro “O Desafio Poliamoroso” que “o sistema monogâmico não organiza uma forma de sobrevivência coletiva, mas quer que nos reproduzamos de maneira identitária e exclusiva, com nomes e sobrenomes, com linhagem, com marcas de nascença. É reproduzir nossa casta e colocar nossa marca, os direitos autorais, a denominação de origem, o código de barras, para saber quem pertence exatamente a quem.” A monogamia para Brigitte é uma forma de garantir que os grupos mais privilegiados mantenham esses privilégios.
Anne afirma que o capitalismo é usado para manter a monogamia é usada oara manter o capitalismo. Segundo ela, “a estrutura da monogamia surge de um jeito de estruturar a família para que fosse possível não distribuir as terras e conceber que você só vai entregar os seus bens para filhos. Para isso, a mulher é resguardada num lugar de exclusividade sexual.”
Então, por partir desses ideais capitalistas, a monogamia traz a necessidade de posse. Ainda que em algumas relações mais modernas tem sido trabalhada a liberdade individual do casal, a monogamia implica necessariamente em exclusividade. As pessoas que compõem um relacionamento amoroso monogâmico são exclusivas uma da outra, já que ninguém pode as “possuir” da mesma forma que elas se “possuem”.
Atualmente, apesar de muitos dos relacionamentos monogâmicos estarem se desprendendo da hierarquização dentro das relações, a monogamia originalmente traz a ideia de que, entre as duas pessoas que podem existir dentro de um relacionamento, haverá uma relação de poder. Afinal, se a monogamia é posse, uma pessoa “possui” a outra e, portanto, tem poder sobre ela.
Ainda considerando que o contexto da monogamia é heteronormativo, esse conceito acaba reforçando o poder do homem sobre a mulher. É por isso que, até 2021, era possível alegar “legítima defesa da honra” em casos de agressão contra mulher ou feminicídio caso a vítima tivesse cometido adultério dentro do casamento. “Definitivamente, a não-monogamia não pode existir sem o feminismo. É a partir do olhar feminista que a gente vai observar essa estrutura e dizer que ela não serve para a mulher, que ela não serve para auxiliar essa mulher. Muito pelo contrário, muito das nossas pautas feministas são pautas que negam a monogamia e enxergam o lugar da monogamia como um lugar de prisão, de aprisionamento, de submissão dessa mulher".
