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Serra da Barriga reúne cultura e preservação ambiental

O Parque Memorial Quilombo dos Palmares está a cerca de 80 quilômetros da capital alagoana, Maceió. Antes da chegada dos escravizados fugitivos, a região era habitada pelos povos indígenas originários

Matheus Nascimento

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Em 2007, foi implantado pelo Ministério da Cultura o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, no município de União dos Palmares, Alagoas. Esse é o primeiro e único parque temático sobre a cultura negra do país. O espaço é composto por ocas, mirantes (atalaias) com paisagens magníficas.

Esse é um dos poucos locais no Brasil que rememoram fielmente as características dos quilombos do período colonial na América Latina. Palmares foi fundada no século 16 pela princesa congolesa Aqualtune e seu filho Ganga Zumba e de acordo com a Fundação Palmares foi o mais duradouro e mais organizado quilombo já implantado nas Américas.

O local é um dos maiores núcleos de resistência negra do país e chegou a ter cerca de 30 mil habitantes. Esteve sob comando de duas lideranças: Ganga Zumba, e em seguida de Zumbi dos Palmares, que optou enfrentar os colonizadores.

A palavra quilombo significa povoação na sua origem no idioma quimbundo do grupo etnolinguístico bantu, porém, representa muito mais que essa definição.

Para defender os movimentos heróicos de Palmares, atualmente, organizações têm a tarefa de rememorar os ancestrais africanos resgatando a cultura oral existente sobre as suas religiões, artefatos de uso cotidiano, alimentos e principalmente através das suas manifestações culturais.

Esse desafio passa por uma maior compreensão da estrutura de exploração da mão de obra africana em nossa sociedade que durou mais de três séculos e também pelos estudos dos diversos povos africanos que através de um sistema de dominação eurocêntrica vieram ao Brasil.

Entretanto, ainda falta reconhecimento em muitos aspectos para a cultura afro-brasileira. O Parque Quilombo promove de maneira inovadora o turismo, a cultura, a geração de empregos e o desenvolvimento educacional da população das cidades em torno da Serra da Barriga, zona da mata do estado e área de preservação ambiental.

Chef Mãe Neide e o trabalho das artesãs da comunidade quilombola Muquém

Devido ao trabalho realizado pela população de Palmares, a comunidade quilombola Muquém, localizada a cerca de 15 quilômetros do Parque, passou a ser conhecida. Com isso, eles começaram a difundir as tradições culturais afro-brasileiras regionais usando o potencial do Parque Memorial como ferramenta de divulgação. A maior referência e exemplo disso é a ialorixá Mãe Neide Oyá D’Oxum.

Chef do restaurante de culinária quilombola e indígena Baobá, que significa árvore da vida, ela tem uma relação maternal e ancestral com a Serra da Barriga. “Eu subo a Serra há mais de quarenta anos. Ela é meu lar, é a barriga da onde eu vim, é minha vida, meu sangue, meu legado”, conta.

Quem também conhece bem essa região é Adriana Maria Pereira da Silva. Ela é moradora da comunidade quilombola Muquém, zona rural do município de União dos Palmares, e filha de Dona Irinéia, artesã referência no Vale do rio Mundaú.

Ela conta em entrevista à Babel que os vasos, cabeças, tigelas, cumbucas, pilões, esculturas e santos, são feitos há mais de quarenta anos pela mãe dela. “Eu só ajudo ela a vender, barrear, tirar a lenha e principalmente tirar o barro do rio que é nossa matéria prima”, conta.

Mãe Neide conta ter tido contato com religiões de matriz africana ainda quando criança, sendo incentivada pela avó.

Assim como as panelas e bonecos de Dona Irinéia, Mãe Neide acredita que o Baobá é atrativo na Serra porque a culinária quilombola desperta interesse pela diversidade de ingredientes e pratos peculiares aos sabores originais. Com muito axé e respeito, ela se esforça para manter as tradições das comunidades quilombolas que resistiram em meio aos costumes dos europeus no Brasil.

Como se imagina, o artesanato também é forte em União dos Palmares. O comércio das peças gerou interesse nos turistas sobre a vida por trás do trabalho das mulheres palmarinas. O Mercado de Artesanato movimenta a economia local e gera uma renda complementar para as famílias quilombolas. “No 20 de novembro a gente é convidado para expor por dois, três dias as peças lá”, disse Pereira.

As peças basicamente são fiéis às que eram usadas nos mocambos (nome dado às vilas do Quilombo dos Palmares) Aqualtune, Andalaquituche, Subupira e do Macaco. Além de compor o quilombo, eles sempre foram ligados por trocas comerciais. Sabe-se que o artesanato não surgiu de uma demanda turística na região, mas pelo contrário, essa tradição e a de construção de casas de taipa à pau a pique foi que passaram a ficar conhecidas em outras localidades.

“Não é um trabalho tão valorizado como antigamente. Minha mãe começou a trabalhar aprendendo com minha avó, aos oito anos de idade. Foi bem depois que os turistas vieram e passaram a se interessar mais. Ela [a mãe] casou com dinheiro de peça, de panela, criou seis filhos com esse trabalho”, lembra.

Nas comemorações do dia 20 de novembro, centenas de pessoas sobem a Serra — que é Patrimônio Cultural Brasileiro — para conhecer o Quilombo dos Palmares e a cidade. Adriana comenta que em torno de 80 peças foram vendidas durante um ano e que antes da pandemia, em média, menos de dez peças saem por mês. Novembro é o mês com o maior número de vendas.

Através da técnica do Pipiri — nome de uma planta típica da região encontrada dentro de lagoas e rios — são feitos outros tipos de artesanato na região, como por exemplo, abanadores, esteiras e leques. Comerciantes também apostam em produtos com a identidade afro e que “estampam” a imagem de Zumbi, além de elementos tradicionais da cultura quilombola.

“Devido a enchente de 2010 [em que o nível do rio subiu causando estragos a comunidade], a maioria perdeu suas casas e agora a gente tá morando em casa de alvenaria um pouco mais afastado da beira do rio Antigamente, era uma tradição fazer festa tapando uma casa para alguém que casou. Todos iam pisar o barro, amassar com a mão”, destaca.

Ativismo no Parque Memorial

Um profissional muito conhecido e que trabalha há cerca de vinte anos em projetos de incentivo ao turismo na Serra é Helcias Pereira. Ele foi presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Conepir) e relata ter feito um curso em 2019 para começar a atuar como guia no Parque e em outras regiões da Serra. Frequentemente, leva turistas da capital Maceió para conhecer o Parque.

Também é considerado um dos pioneiros na luta pela criação do Parque, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), desde 1985, e pelo Mercosul, no ano de 2017. “Também sou ativista do movimento negro de Alagoas e hoje trabalho para difundir o afroturismo para os visitantes, principalmente aos estudantes e pessoas interessadas em conhecer um pouco da cultura do povo de Palmares”.

Isso potencializa as identidades regionais, pois através do incentivo à cultura e dessas experiências surgem novas possibilidades para o mercado afro e um turismo direcionado a públicos diversos: entre eles, os estudantes de ensino público e universitários. O malungo conta que cerca de 40 mil turistas já passaram pela Serra.

“Já chegamos a receber turistas de muitas nacionalidades no Parque e muitos deles eram pessoas brancas que tiveram alguém ou algo que despertou neles um pouco de curiosidade sobre a cultura afro. Também buscam mais conhecimento sobre como é trabalhar com pautas anti-racistas”, destaca o guia.

É interessante saber que o espaço do Parque recria o ambiente do quilombo de forma didática, através de painéis informativos em pontos e trilhas do Parque, de “maquetes vivas” em escala real e também através de atividades experimentais, com sons e músicas tradicionais da cultura quilombola.

“O restaurante da minha amiga Mãe Neide, chef premiada no Brasil, fica sempre nesses meses de outubro e novembro. O meu trabalho ajuda os turistas a terem um contexto de cada ambiente, de cada negro que se estabeleceu aqui. Há 17 anos estou no Anajô, uma entidade do movimento negro alagoano, e me dedico no nosso maior projeto, que é o Vamos Subir a Serra”, conta.

No Parque fica o restaurante Kúuku-Wáana, conhecido pelos visitantes como banquete familiar, justamente por também ser repleto de pratos da culinária afro-brasileira, e o Batucajé, local onde ocorrem manifestações artístico-culturais. Ao lado da Gameleira Branca — na Lagoa Encantada do negro — frequentemente ocorrem momentos com músicas típicas e cantos de capoeira.

No centro da cidade, a cultura popular também não passa despercebida. Nos fins de semana é comum acontecerem festivais com muito samba de roda e danças tradicionais. Esses e outros eventos promovidos por ativistas do movimento negro fortalecem a luta da Maçayó-k preta, em reverência aos heróicos quilombolas de Palmares.

No dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra em recordação à data do assassinato do líder quilombola Zumbi dos Palmares, as comunidades de terreiro de Alagoas sobem a Serra da Barriga e cultuam a ancestralidade, os Orixás, Nkisis e Voduns na Lagoa Encantada do Negro.

[Foto: Theo Sales]

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