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Do ato à finitude: os extremos de "Memórias de Minhas Putas Tristes"

Em polêmica obra, Gabriel García Márquez transcende a perversidade para refletir a essência humana
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Bruno Milliozi
Quais os limites da linguagem artística? Capaz tanto de criar sensações oníricas e fantasiosas, quanto de penetrar as entranhas do mundano, a arte, em especial a literatura, transita por essas esferas com certa soberania, esquivando-se de preocupações normativas para trazer o impacto e a mensagem desejada pelo autor. No entanto, há situações, temas e problemáticas cuja natureza moralmente condenável traz obstáculos para que uma obra se estabeleça diante do público.
Ainda que abordagem, prosa e enredo caminhem para outro lado, a indignação com o teor do assunto é justificada.
“Memórias de minhas putas tristes”, do renomado autor colombiano Gabriel Garcia Márquez, vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1982, reside justamente nesse espaço, na contradição entre uma mensagem universal sobre a vida humana, e como tudo isso se dá a partir de uma prática perversa: a pedofilia.
A história é a de um jornalista aposentado, cronista e crítico musical que, aos 90 prostituta virgem, de 14. O encontro traz ao protagonista reflexões sobre sua vida, mortalidade, senilidade e o significado do amor, nunca antes encontrado anteriormente. Em 2010, o romance foi transformado em filme, com produção internacional e filmagens no México. Não foi a primeira oportunidade de García Márquez de ver sua obra adaptada para o cinema. Mas o desejo do autor era de que fosse a última.
No entanto, a romantização de um ato de clara imoralidade, descrito nas páginas do livro, preocupou comunidades latino-americanas de combate à pedofilia e prostituição. A Coalizão Regional contra o Tráfico de Mulheres e Meninas da América Latina denunciou a produção, organizou protestos e buscava impedir a filmagem do longa-metragem. A argumentação foi a de que a adaptação do romance para o cinema poderia promover a pedofilia e seria acessível a um grande público.
O filme acabou sendo lançado. Mas, independentemente de seu desempenho e das questões que pode levantar, não deve ser colocado à frente da interpretação da obra original. Limitar a interpretação do romance ao tema seria ignorar a prosa poética, a caracterização habilidosa e sua abordagem sensível de García Márquez a temas delicados. A partir da visão e dos questionamentos do velho protagonista, o leitor é levado por uma narrativa envolvente que contrasta o prazer e a finitude da vida. Apesar de não disfarçar os movimentos incômodos já citados - e, pelo contrário, romantizá-los sem teor crítico - o conflito exposto é usado com objetivo de tratar do despertar de um amor em terreno infértil: um homem que nunca amou e, às vésperas do fim da vida, se descobre vulnerável aos ridículos que só esse sentimento, cuja essência é tão bem captada pela narrativa, é capaz de causar.
A habilidade de Gabriel Garcia Márques em criar uma atmosfera onírica, mesmo nos ambientes mais soturnos dos bordéis em que os encontros se dão, gera, na obra, contradições e provocações que, ainda que carreguem teor irônico e humorístico, são capazes de encantar e balançar as avaliações do leitor, que tende a ter simpatia pelo protagonista. Ele usa uma linguagem rica e poética, cheia de metáforas e descrições minuciosas, conduzindo o leitor em sua prosa provocativa e encantadora que tão bem descreve uma cidade sem nome - mas claramente inspirada em Cartagena, na Colômbia, onde Márquez nasceu.
Vale destacar, por fim, um possível paralelo traçado pelo autor com sua própria vida. A publicação do livro, em 2004, ocorreu em um momento em que a saúde de Márquez estava em declínio. Ele havia sido diagnosticado com câncer linfático alguns anos antes, e sua saúde continuou a piorar nos próximos anos. Ele faleceu em 2014, deixando para trás uma carreira literária brilhante e influente. Explorar as nuances do fim e, nisso, deixar com que prevaleça um instante de brilho, de desejo e de felicidade talvez faça parte da forte mensagem da obra, construída sutilmente ao longo das páginas e culminando em lágrimas em sua última.