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CON tem kit gay, arte e muita liberdade criativa em sua segunda edição

Feira para quadrinistas LGBTQIAPN+ lotou Centro Cultural de São Paulo e trouxe artista finalista do Prêmio Jabuti

Luana Machado e Mariana Marques

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No Centro Cultural São Paulo, uma multidão de fãs de HQs de todas as letras do arco íris se reuniram para ver mais de 120 artistas gráficos e quadrinistas brasileiros. Com uma programação totalmente voltada para a comunidade LGBTQIAPN+, a POC CON, evento dedicado à arte em quadrinhos e cultura nerd, levou sua segunda edição ao centro da capital paulista no final de semana da Parada do Orgulho.

O nome POC CON faz referência a um termo pejorativo usado na década de 70 para se referir a homens homossexuais e transformistas e, agora, vem sendo apropriado pela comunidade como termo de autodeclaração. O evento, que teve dois dias de programação com rodas de conversa, palestras, oficinas e concurso de cosplay, tem como objetivos dar visibilidade a artistas LGBT+ do mundo gráfico.

Na fila, que já formava um caracol uma hora antes da abertura da feira, os amigos Mar, Leonardo e Natália esperavam ansiosos. Natália, fã de quadrinhos desde criança influenciada pelo pai colecionador, convidou os amigos para a feira ainda em 2021 depois de saber que seus artistas favoritos iam participar.

Mar, puxada pela amiga Nati, ficou animada por conseguir conhecer pessoalmente seus ídolos. “Ano passado, eu tive a oportunidade de conhecer a Laerte, algo muito, muito especial, ainda mais eu sendo uma pessoa trans. Eu não conheço tanto assim de quadrinhos, mas eu me apego muito a personalidades. Então acho que o ponto forte para mim é conhecer e ter o contato com pessoas que eu sempre idolatrei”, disse Mar, ansiosa para conseguir autógrafos.

Já Leonardo, ou só Léo, também falou sobre a importância da representatividade. “A questão da identificação entra muito, porque são narrativas que você se enxerga ali. Não são aqueles quadrinhos de super-herói, que eu não me identifico muito porque eu acho muito fora da minha realidade. Quando eu vejo sei lá ‘Cristirinhas’ ou qualquer outro desses artistas muito fodas contando histórias que eu passei eu fico tipo, não tem igual”, contou.

A quadrinista Verônica Berta, finalista do Prêmio Jabuti em 2019, integrou a programação da POC CON neste ano com uma oficina sobre colorização e falou sobre a diferença entre eventos voltados para a comunidade. Ela conta: disso e isso tem uma força e impacto tanto para quem está dentro quanto para quem está fora da comunidade”.

O jornalista e quadrinista Talles Rodrigues também destaca a importância desses eventos para quem expõe o próprio trabalho: “Os eventos são ótimos para conhecer novos públicos e conseguir de fato vender nossos quadrinhos. Para autores independentes é mais difícil contar com vendas remotas, em lojas ou na Internet”.

Talles costuma publicar obras de sua autoria no formato de webcomic, já que isso barateia o custo de produção e permite que cheguem a mais pessoas. Durante a POC CON, o artista afirma que é possível encontrar um público que dificilmente frequenta eventos menos nichados.

POC CON apresenta:

Vê Berta, finalista do Prêmio Jabuti

Verônica Berta, ou apenas “Vê Berta”, como é conhecida nas redes sociais, é quadrinista e colorista. Nascida em São Paulo, Verônica se formou no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e se especializou em ilustração na École Émile Cohl, uma instituição especializada em artes na cidade de Lyon.

A artista foi finalista do Prêmio Jabuti em 2019 com a história em quadrinhos “Ânsia eterna”, publicada pela SESI-SP Editora. A obra, que também foi indicada aos prêmios HQMIX e Angelo Agostini, é uma adaptação do livro de contos homônimo escrito em 1903 por Júlia Lopes de Almeida, uma das principais escritoras da Belle Époque brasileira e uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras.

Em setembro de 2022, Verônica lançou uma webcomic chamada “Princesa de Areia”, posteriormente publicada no formato físico em novembro do mesmo ano. A artista utiliza elementos do realismo mágico para tratar questões envolvendo relacionamentos e autoimagem.

A HQ aborda essas temáticas sob uma perspectiva feminista. Nas três histórias que compõem a obra, as protagonistas precisam enfrentar sentimentos e situações comuns à socialização feminina, como a insegurança e pensamentos autodestrutivos. Durante as narrativas, essas mulheres precisam enfrentar a constante necessidade de validação externa e o desejo “inquestionável” pelo amor romântico.

Babel: “Princesa de Areia” surgiu primeiro nas redes sociais e depois foi lançada impressa em eventos de HQ no final do ano passado. Qual a importância desses festivais para os artistas e suas obras?

Vê Berta: É nos eventos de quadrinhos que tenho a possibilidade de compreender quem é meu público e trocar ideia cara a cara com essas pessoas. Também é uma das melhores formas de passarem a conhecer uma das melhores formas de passarem a conhecer meu trabalho, porque em geral dedicamos mais atenção pessoalmente do que virtualmente. Além disso, é um espaço para conhecer e ser conhecida por outros artistas, criando uma rede de contatos muito importante para nossa cena de quadrinhos.

Babel: Ainda em relação aos eventos e feiras, como espaços voltados para a comunidade LBTQIAPN+ impactam os artistas no quesito econômico e de visibilidade?

Vê Berta: A POC CON especificamente é um dos eventos em que mais temos retorno nesse sentido. O evento não se limita à feira: a POC CON se preocupa ativamente em colocar profissionais no mercado e dar voz e visibilidade de diferentes formas. Então, temos um espaço que está realmente preocupado com os artistas enquanto profissionais e não apenas em ser um grande evento.

Babel: “Ânsia Eterna” e “Princesa de Areia” têm temáticas que trazem o universo feminino. Quais suas influências e inspirações para abordar esses temas?

Vê Berta: Não tenho influências muito pontuais porque tenho certeza de que tudo o que eu li e gostei acabou se tornando uma influência para meu trabalho. Mas me identifico muito com o realismo fantástico. As inspirações são sempre muito pessoais. Em Ânsia Eterna, adaptação para quadrinhos, foi a identificação com os contos de Júlia Lopes de Almeida que me fizeram ter vontade de me adaptar. Em Princesa de Areia, meus textos que eu escrevia a partir de reflexões e conversas com outras mulheres foram a base para eu conseguir criar as histórias. As questões e traumas de ser mulher estão sempre me movimentando e servindo de material para a criação.

Babel: Você foi finalista do Prêmio Jabuti, um dos maiores na arte e literatura brasileira. Acredita que a arte LGBTQIAPN+ tem conquistado mais visibilidade nas premiações?

Vê Berta: Com certeza. É evidente a preocupação do júri com a diversidade de uns anos para cá. Vemos isso acontecendo cada vez mais no troféu HQ Mix, em especial. Claro que não estamos no cenário ideal e ainda temos muito mais pessoas padrão sendo premiadas, então é preciso que esse movimento continue.

Resenha “Ânsia Eterna”

Uma das vantagens de ser uma artista mulher é ser incluída em versões revisadas da história da arte. A frase, da Guerrilla Girls, inicia o posfácio da história em quadrinhos “Ânsia Eterna”, de Verônica Berta, que revisa os contos do livro homônimo da escritora Júlia Lopes de Almeida.

A história em quadrinhos, finalista do Prêmio Jabuti, revisita três contos da escritora e propõe um resgate de sua obra. Nascida em 1862, Júlia Lopes de Almeida foi uma romancista brasileira com uma produção extensa. Sendo a única mulher que participou da idealização da Academia Brasileira de Letras, Júlia Lopes de Almeida teve seu nome vetado entre os “imortais”, que decidiram receber apenas nomeações masculinas.

A escritora trazia em suas produções narrativas politizadas e com personagens femininas de destaque. Seus livros e contos abordam temáticas sobre a autonomia feminina, o sufrágio e o abolicionismo. Tudo isso sob uma perspectiva realista e naturalista.

Verônica, que assume a influência do realismo mágico em suas publicações, exibe isso em “Ânsia Eterna” trazendo o inconsciente e subjetivo dos personagens para o primeiro plano. O cenário é o próprio personagem e seu submundo.

A escolha pelos contos “Os Porcos”, “A Caolha” e “Ânsia Eterna” também dialogam com a proposta inicial: como eram escritos personagens femininos no passado? A análise de Verônica atualiza as discussões propostas por Júlia Lopes de Almeida na época e dialoga com as dificuldades de ser artista mulher e produzir obras sobre o universo feminino até os dias atuais.

Em seu posfácio, Verônica Berta fala sobre a necessidade de revisar o trabalho de Júlia Lopes, que, mesmo sendo feminista, era uma mulher branca do século 19 e replicava estereótipos racistas nas suas obras.

Em “Os Porcos” e “A Caolha”, ambas as protagonistas são mulheres negras descritas com adjetivos pejorativos nos livros. Nos quadrinhos, embora a representação das personagens se assemelhe à obra original, a arte de Verônica enfatiza o aspecto subjetivo do visual e aproxima as mulheres do público sem colocá-las em uma posição de inferioridade.

Com isso, “Ânsia Eterna” consegue cativar os leitores de Júlia Lopes de Almeida, adicionando um novo olhar e reflexão sobre seus escritos e apresenta a autora, uma das mais célebres da história da literatura brasileira, para um público que talvez não conheça as palavras da mulher que esteve na fundação dos “imortais”.

Em sua HQ, Verônica incorpora as características da autora em seu estilo gráfico. Os contos de “Ânsia Eterna” trazem narrativas dolorosas e que dialogam com o horror gótico, o que transparece no traço da artista e nas escolhas do design.

A paleta de cores, por exemplo, traz cores representativas da “feminilidade”, como o rosa, roxo e lilás, que são usados em tonalidades escuras e causam um impacto sombrio em suas artes. Os traços, muitas vezes distorcidos, dos personagens também contribuem para o efeito bizarro e grotesco do design.

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