2 minute read

Cena 8 – O BICHO-FERA

Eu cresci sem nenhum receio, sem nenhum desbrio. Me apanhei um menino sem medo, medo foi coisa que nunca tive, nem do escuro, nem de assombração, nem de mula sem cabeça, nem de lobisomem. Nem da fome. Não tive medo nem do tempo... E foi justo o tempo que foi meu professor e como mestre-mor me incutiu o medo. Medo do sem-fim, medo das profundezas de mim mesmo, medo de não poder acreditar em mais nada... E só uma vez eu senti o medo lambujando o meu couro. Foi no trespassar de uma madrugada que escutei pela primeira vez um ronco abafado, que num se respirava nem esguinchava bruto. (Ruídos. Relinchos. Cascos.) Oxi. Quem vem lá? Que barulho é esse? (Ruídos) Um bicho? Uma fera? Era menos um relincho

e mais um soprar de ventas. Por certo o ruído era uma coisa que saía de suas ventas, coisa espessa, desconfiei. Era o cão danado? O desconjurado, atinei. O rasta-chifres, o engrunhido, o escamoso que se aprochegava. Eu digo que sim e que não! E logo um baque atrás do outro, sem descanso. O calor descambou um batuque das horas perdidas. Madrugada molhada de desassossego. Minha moleira escorria no pescoço como se de mim saísse uma bica. Fora dos roncos do bicho, os barulhinhos da noite nem se escutava, nem pio de coruja, nem grilo, nem silfo de besouro, nem chocalho de cascavel, só os troncos passando uns nos outros num ruído esquisito, era tudo um agouro extremado... E eu e minha menina prontos pra soltar na carcaça da fera, fosse lá o que fosse... Ia ser eu, o bicho e a morte por testemunha. Será que minha hora derradeira chegava neste desembeste? Sozinho por completo com este bicho desvairado, este bicho-fera? Tava macomunado com o cascudo terrível, só podia! A gente do Sertão já nasce sabendo no couro que a vida é labuta sem recompensa, e no meio de tudo isso só uns agrado, coisa pouca pra dar alívio... Mas a fúria da existência não cessa! E o cão não tem moradia certa, tá espalhado por aí de esguelha, de tocaia e nunca se

Advertisement

esquece da gente, não! E aí foi chegando perto, foi chegando, chegando! E então... se revelou... O Batuque, aquelas cores. Línguas-gargalhadas. A música. Um treme-terra! Uma festa! Era uma festa! Uma festa, homi!

(Sons aumentando, pífaros, sons de festa. Imagens ao fundo, sons de patas no chão, o ator coloca um chapéu de reisado, pega um pandeiro e sai cantando) Cantiga de Dona Chica:

Dona Chica me dê o mingau/ me dê o mingau/me dê o mingau Dona Chica que mata a cobra, mas não mostra o pau Corre o cão e o bicho-fera Serpente fugida no meio do vau Dona Chica sacode a saia No terreiro da mata risca o sinal

Dona Chica cabocla danada melissa erva-doce pamonha curau Dona Chica cabocla danada melissa erva-doce pamonha curau

Dona Chica me dê o mingau/ me dê o mingau/me dê o mingau Dona Chica que mata a cobra, mas não mostra o pau

Dona Chica era dona do reisado, que bailava todo aprumado, indo de portão em portão; Chica carregava sua bandeira de porteira em qualquer beira, era Chica cabocla encantada, de histórias pelo avesso viradas. Era a avó do baixão verde. Chica por todos afamada, índia de alfazema perfumada deslizando pelo terreiro nas candeias do meu chão.

(Retoma o refrão da música e vai aos poucos parando de tocar)

This article is from: