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Cena 3 – A RAZÃO DA TRAVESSIA

Sim. Sim! Vou contar ao sinhô tudo que me alembro sem esconder nada. Apertando minha memória pra recordar de todos os acontecidos quando saí de viagem em busca de pai por este mundo de Deus. Conto tudo que se assucedeu. Sem tirar nem pôr. Não digo nem desdigo que esse homem — meu pai — era um desinfeliz sem razão. Se por sua própria cisma desatinou sua sina de perdição. Desrazoado. Escapuliu pelo mundo num lombo de jegue sem nunca mais dar notícia nem lembrança. Saiu por aí montado no nosso Chiquinho, o burro que vivia lá na roça comendo raiz e roupa estendida. Ai, Chiquinho! E dessa mesma sina, no modo de viver perdido e apartado de tudo, eu fiz pra mim todo o tento, padecendo do mesmo destino, do mesmo jeito, na mesma coragem.

Aqui comigo levo pouca coisa e de variado mesmo só a roupa de festa de pai e este chapéu velho. A sua roupa de gala de vaqueiro, que era seu orgulho e encantamento. Deste homi não tenho juízo firmado, mas meu pai ele é, e para o sempre será. A ele devo ao menos a gratidão da existência. Por isso sigo caçando esta criatura como fugitivo por esta terra de poeira e sol. Pra mó de quê? Ora, pra mó de nada. Mas quá... Sem desrazão nenhuma. Havera de ter alguma? Eu sei lá... Pra no encontro me achar nos seus olhos, pra marejar uma lembrança de menino... pra lhe pedir benção e consentimento: bença, pai! Quem sou eu pra ajuizar sentença? Que eu! A vida destrata o modo da gente sonhar o destino. O que será que é feito de tudo que a gente sonha? A vida tem seus planos. Vixe. Nem um se apercebe de nosso juízo, num se acabrunha diante de nossos desejos. Queta! Vai mesmo levando este existir aí, a esmo, sem importar vontade de ninguém. O homi era um bruto! Mas se bruto ele era, inda meu pai era também, por gosto ou desgosto, e isto havia de ser pelo sempre de meu Deus. O primeiro antes de arribar viagem foi de pedir benção a mãe e a Deus. Pois que sempre valha meu nosso sinhô meus passos nessa caatinga de pó e alma. Que nessas

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paragens sempre num me falte meu jesusinho, que nunca me abstenha, que nunca me estranhe, que nunca me desapanhe nem desgarre, porque na sua farta só resta minha faca bem amolada, e fé no brilho da ponta de minha menina num decido não, é ela que me leva, que me desgoverna, se não por minha mão e vontade por culpa do sol na moleira, que vai cozinhando o juízo do cabra e desmiola o sujeito, que fica cegado do seu brilho, como um lampejo de sol que corre na ponta da desdita. E assim se assucedeu. E por aí fui eu. Aprumado nos passos no encalço de pai. E foi como te digo. Desse jeito que vou te contar.

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