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Cena 4 – A MENINA

Num sou de causo, mas me alembro dos muitos acontecidos. Me alembro e já me esqueço. E assim meio desmemorado ainda lembro direitinho do dia que tava metido e apertado num terno de traça e fui acompanhar meu cumpadi Socó lá no fórum da cidade. Hum? Socó, homi. Filho de Doca que é coxo da perna, primo terceiro de Binho do Bar e neto de Dona Jana, que já morreu... Apois, é esse mesmo! Então. Num é pra me gabar, não, mas eu me caprichei. Tava todo aprumado no linho, com meu sombreirinho de palha fina, fivela ajustada no umbigo, dessas que têm a cara do boi, e sapato de verniz lustrado. E treis anel. Em cada mão! Tava no capricho. Vixe! E pra mó de proteção levei comigo minha menina. Nunca se sabe... E por que não havera de levar comigo

minha menina bem achegada na minha cintura? Dela num me separo, e deste jeito entrei naquele tal prédio do Fórum da cidade. Tava na educação e nos conforme do lugar e num é que aparece na minha frente um homem agravatado, todo apertado num terno preto, estilo ‘tora ovo’, que me falou com voz de besta: “O senhor está armado! Aqui é o Fórum da cidade, não pode entrar aqui assim. Ordeno que me entregue esta faca imediatamente!” De lampejo fiquei apoquentado! E já ia entregando a minha menina quando minha cabeça sustou e de estalo lhe perguntei: E quem me pergunta? Quem é vossa senhoria mesmo? E ele todo empertigado disse: “Sou o Juiz da Comarca de Lagoa Seca e Mulungu da Serra”. Num átimo trouxe de volta pra minha cintura minha menina. E lhe disse sem piscar: oxi, oxi, oxi, oxi, oxi! Mas quá! Achei que o senhor era um puliça! Me dá de vorta minha faca que juiz não é ninguém! Tomar minha faca, vai tomar no teu... E dali escapuli sem deixar rastro! O doutor ficou lá parado com cara de besta. Nunca mais vortei. Saí foi amolestado daquele negócio. Vou dizer uma coisa aqui, de amigo pra amigo, esse negócio de Fórum de justiça né lugar pra gente decente não. Se já foi num vorte e se nunca foi nem vá! Esse foi um dos últimos acontecidos antes da

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travessia. Isso foi antes de eu sair por aí, no ermo, embrenhado pela caatinga, no intento de achar pai! Esbarrando em meio mundo de gente e de bicho. E de muitas espécie de bicho e de gente, foi tudo que vi. Passando por cachoeira, capão, vereda, rio e capoeira. Me metendo em cada gruta! Umas que eram daqui pra ali. Umas que fica só os pezinhos de dentro e o corpo de fora. Tenteando as rochas no silêncio grosso da noite. E vendo tanta coisa tão espantosa que o sinhô num ia nem acreditar. Vi gente que parecia feita só de ossos e poeira. Gente que errava pelas eiras e beiras que nem alma descarnada. Meu jesusinho! Assombração o sinhô ia dizê? Mas dou meu testemunho que era gente humana. Muitas com sabedoria, tino e mãos de cura. Como a Véia Donia. A velha mais esperta que encontrei nestas capoeiras. Véia Donia que conhecia de cada folha e as suas devidas curas. Véia Donia e seu sorriso amarelo de malícia. Seus olhinhos de muito saber. Sempre com uns gravetos nas mãos escrevinhando coisas no chão. Cega doida...

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