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Cena 9 – O PAI
É preciso tomar coragem e tento! Me disse mainha. Carecia de passar sabença aprendida porque carecia de ser a última vez. A última vez, pai? Me perguntei. Sua mão acarinhava meu rosto tocante de ser pai. Não sou mais uma criança no relento que divaga. Mainha não me deixa quieto, num quer que eu faça a travessia. Diz que tu sumiu, escapou. “Teu pai fugiu! Escapou, menino!”
O senhor sabe como faz este povo. Diziam: “O homem bebe demais, merece porque merece ser tratado pelo sertão” — que a senhora sabe, o sertão tudo cura. Havia de atravessar o seco do leito do rio pra do outro lado achar mata virgem. De cobra, teiú, pacaçu e onça do mato. Diziam que lá tudo tinha. E só lá era o lugar
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dele se refazer. Pai montou no lombo do burro ciente de seu destino. Sabia que da parte da família eles até queriam o bem, mas sempre teimavam o mal. O calor atinava uma moleza, o sol queimava um sem-juízo. Ele mirou o horizonte, fitava o pôr do sol como flecha certeira que foi atirada pelos montes até onde a vista não alcança. O povo sentenciava: tá macomunado com o desdito! Oia só, comadre, tá perdido, fazendo acordo com o cão!
O homi resolveu selar o bicho, tomar montaria e encravar as esporas, mas antes me olhou. Te digo sem pestanejar que meu coração desatinou do meu peito. Parecia ouvir tudo daquele olho, ver as palavras daquela boca, respirar aquela suspiração. Pai seguiu rumo ao seu destino, levando suas poucas coisas. Deixou pra mim só seu chapéu e sua roupa de gala de vaqueiro. E ele rumava... E o povo dispersava... Só eu restei lá, pregado. Não ia arredar o pé até ver pai se apagar na vereda. E ele foi... trotando com constância até o mei do capão. Ali, parecendo doido, sem aviso. Parou. No mei, parado. Do jeito que ficou num parecia ter um pingo de vontade de sair dali. O sol era brabo, calor, pensei, mas ele tava ali com uma calma tão espantada que seu retrato chega divergia.
Enraizado que nem mandacaru antigo. Ali, decerto, era seu lugar: vi!
Não sei o que me deu, mas senti que com ele ali estando, eu ali ficava, atracado igual. E aí uma frieza me subiu dos extremos do corpo. A luz do sol se apagou. Num vi nem a hora que ele mergulhou no horizonte. Desacordado fiquei estirado na terra. Depois que despertei, dia após dia pensava que ele ainda estava lá. O povo fazia contagem: se apostavam. “Vorta!”. “Num vorta mais! Morreu!”. Morreu?
Foi aí que virei de costume passar as noites imaginando acompanhado de meu pai, em um tamburete velho assim. Contava as coisa pra ver se ele me escutava. Dizia como andava a vida na roça, como iam meus irmãos, como ia mãe trabalhando e como eu ia em meus estudos com Mestre Sizinho, no Vau das Bretas.
Pai, tô aprendendo a desenhar as letras. E os números? Tô multiplicando que é uma beleza. Noves fora nada, né, pai? Cismando.
Numa noite eu senti mais fome, mais frio, mais tudo, só a esperança que ia virando favinho de grão. Talvez
eu devesse largar mãe. Num é isso que tu quer? Coração de menino é fraco, num aguenta isso tudo, não.
Mãe entende, né? Apois então me decidi. Larguei qualquer traço de memória naquela roça de fim de mundo e fui embora.
Ora por que, pai? O dormir era sempre difícil. Sentia proximidade com o desdito. Tive sonho, pesadelo. No tamburete em que eu me sentava observava teu rosto, pai, teu rosto não demudara. Por que estava ali em sonho? – pensei.
De repente, demudou. Virou de rosto, me olhou, de novo disse tudo, mas desta vez ainda disse mais. Vi claramente. A bebedeira ferrenha se ajuntou em painho, o corpo costumou, pedia uma gorotinha de cachaça a mais – há muito tempo que não tomava. Diabo atenta, pede cumprir seus querer ou faz de nós sofredor de suas artimanhas.
Subiu uma tremedeira pelando do fim da tarde, da ponta da unha até os fiapos de cabelo restantes. Tudo se extremava no desconhecido. Fogo dos inferno, parecia. Os olhos perdidos, corpo de pai balangava de cima do lombo do burro feito rabo cortado de
lagartixa! A língua desemborcava. Parecia cobra preparando o bote. Aí desabô. Peso de pai escapuliu da montaria. Resvalô de cima do lajedo. O juízo se abriu feito melaço derramando no chão... Aí eu acordei suado feito cuscuz, despertei de salto e grito e chamei: Mainha! Era cedo da manhã, mas ali ninguém ficava delongado em cama, não. Apressei o passo pra ir ver o lugar da travessia, ali tinha de tirar dúvida.
Me tremia todo, ofegava, só podia. E aí me veio memória: “É preciso tomar coragem e tento”, lembrei. E decidi errar por todos os cantos. E então andei de perna esticada, de chicotar o destino com violência, pressa de menino em sede. Mas chegando lá num tinha nada. Nada? Nada...
Juro por este chão que tua busca findou, pai. Deus é juramento? Pois então tá juramentado e decretado: tu tá morto, pai. Morto! Sem enterro, sem luto, sem corpo, sem missa pra encomendar tua alma. Tu não existe mais. Mesmo que quase vivo por aí, que no ermo ainda teime, tu tá mortinho no mais profundo breu. No deserto da minha memória só ficou poeira e sol, minha alma tá curtida dos nossos descaminhos. Meu coração balangou, balangou, mas se aprumou no sossego. “Vi!”
Não sou mais menino. Aquele teu moleque mercadejou suas lembranças pelas capuavas da caatinga, descambando por toda brenha até dar gastura nos pés. Travessando cerca sem receio nem perdão. Em todo cafundó abafado arrastei minha sombra magra. Tocaiando ligeiro o destino pra morte não me dar emboscada.
E encontrando de mim a tua parte, pai, te dei memória, destino e cova. Assim o trato tá feito: tu mesmo morto vai comigo, e não é só sangue e tripas, num é só tua roupa de gala e montaria que tu me deixou, num é só um rosto talhado, nem cicatriz na alma. Tu tá morto por minha coragem e tento!
Morte é nada. Vida é nada: passagem de cada qual pro seu próprio contentamento. E se um filho meu me perguntar amanhã por seu avô, vou dizer a ele, tá aqui (Apontando para um filho imaginário) e aqui dentro de mim, ele é o relicário que nos alumia pra arrastar nossa teimosia de viver nesse chão coalhado, nessa sede de entendimento, nesse calor do cão. “Dá um abraço, meu filho!” (Abraça o filho imaginário)
A jornada findou! Atravessar toda esta terra quente é como atravessar a gente mesmo. Passagem do nosso
silêncio, passagem do nosso deserto. A travessia da terra toda é como atravessar um grão. Dona Donia, Dezinha, Dona Chica, os fantasmas, Bel, Mainha, Seo Neném, o Bicho-fera, Brisa, até o Demo, tudo isto tava no fundo de minha natureza, tudo fruto da mesma laia, feito do mesmo estofo. Todos filhos do mesmo silêncio extenso. Um grão profundo só bastava!
Esse grão profundo: isso é o sertão. Foi por ele que me embrenhei na tua busca. E dei fé! Deus? É só um juramento!
Bença, pai. Pra os que me perguntarem se enfim te encontrei, só tenho uma coisa pra dizer: sim! É... Sim! É... Sim.
FIM

Impresso no dia 8 de julho de 2022, na Gráfica JB Ltda, com miolo em papel Polen Bold 90g; e editorado com a fonte Adobe Garamond Pro corpo 12. Tiragem: 1000 exemplares.
