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Cena 5 – A VELHA DONIA
(O ator deve trocar de roupa na frente do público e transformar-se na Velha Donia. Ela arqueada. Falando onomatopeias. Risos. Muxoxos. Expressões dela.)
A Velha Donia tinha seus muitos saber e olhava a gente no fundo das brenhas de nossa alma. Seu olho não piscava, nem desviava sua vista de nossa prosa. Tava sempre investigando, assuntando o sujeito. Toda entrupigaitada. Era uma velha desvariada de seus mais de cem anos. O corpo moqueado, a carne curtida nas carreiras do desconhecido, mas brava que nem aroeira. Vivia catando folhas, tralhas, de esqueleto e pena de bicho a pedregulhos da caatinga, tudo pra seus benzimentos. Coisa que fazia gente se rastear de lonjuras pra ser benzida e ter consulta com a
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velha. Diziam que sarava de tudo: de mal de cabeça a quebrante. E ainda mau-olhado, que todo mundo sabe só é curado através de reza bem dita nos melhores ditados e conformes. Eu cheguei esfalfado no seu roçado, gasto de pelejar sem norte por toda mataria, rompendo touceira de quiabento, raspando cansanção e urtiga. Adernei no seu terreiro, embaixo de um pé de bugalho, e ela veio com a sua latomia se cercando de mim... E me esmiuçava... E pedia: “Prova da minha garapa, Nem? Oh! Nem. Prova da minha garapa!”
(TEXTO EM OFF REPETIDO: “Prova da minha garapa, Nem? Oh! Nem. Prova da minha garapa! Num se avexe, não. Só no gole gole. Prova, Nem...”)
(Transição para Velha Donia. Velha Donia recita o benzimento.) Com dois te botaram com três eu te tiro depois te levanto e te ponho adiante. São Salustinano te tire o quebrante
São Miguel Arcanjo que dê tua desforra, nas tuas veias teu sangue purificado Nossa Senhora te dê aforra Que depois de benzido estarás curado
Deus te viu, Deus te criou, Jesus que te livre do mal e de quem te botou E assim, com este sinal, tiro o mau-olhado de riba Que Nosso Pai seja saudado de cima de sua estriba
São Francisco de Assis, Glorioso Francisco divino, Dá a esse moço seu destino Por esta cruz estarás defendido Deus te livre do marvado maligno Amém!
VELHA DONIA — Tu tá melhor, Nem? Tu tá muito esmerdeado. Parece que fugiu de Boquira, correste de um cristé? Ou foi cuspido da sambiquira? Levou uma surra, foi, seu pingarelho? Vixe. Vixe. Tu tá cheirando a cu de bode velho. (Risos)
(Reza) Senhora Santa Sofia tinha três fias: uma lavava, outra cozia, outra em chama de fogo se ardia. A mãe perguntou pras fia: com que se curava, com que se curaria? Com o untó do porco e o pó da guia? Com os culhão do boi e o tixé da gia. (Risos)
Tá miorando, Nem? Tu tem que ter muito tino pra errar por estas capuava. Aqui recebo pouca gente,
posso até contar nos dedos: já teve um mangaio notário chegado de muitas léguas, alguma gente perdida, povo com moléstia e ferida, muié de dois amantes querida, dessas veio um bocado. E até um sujeito sinsfrônio com umas queixadas de pacaçu, apanhado num terno cáqui, feito um soldado, mas esse coitado era corno e pra isto não tem benzimento. Eu mesma lamento. Santa Luzia me valha! Uma vez corno, num há zebedeu que se alivre das gaia. Nem com reza e nem lambança de pau lavrado, de pau-ferro, de pau de taca, de pau de peia e pau de mandioca. E de todos os outros paus conhecido e desconhecido. Pode juntar os paus todo numa cruzeta. Que a mulher corneira fica até zambeta, mas num deixa de seguir seu destino. Quando resolve que vai se oferecer a outro sujeito é promessa que cumpre com louvor e tino! Chifrudo uma vez, chifrudo sempre! Juro pelo fiofó da Luzemar que corno no mundo nunca vai de acabar! Pois é, Nem. No final acho até que veio muita gente!
Juro pelos fios de minhas veias que já vi de um tudo nessa peia. Coisas do coração sustar. A vida tem seus espanto! Não tem um só que não tremeu nem tropeçou neste lajedo, o que sei com toda certeza te digo sem arremedo: quem tem fiofó, tem muito
medo! (Risada) Me disculpa o palavrório, viu, Nem! A Velha Donia já tá muito gasta. Tem mais tempo pra compostura não. Tem nada! Por isso rezo todas as noites por estas caiporas perdida. Porque pra tudo neste mundo existe benzidos.
Tenho rezas e benditos pra espinhela caída, cobreiro bravo, dor de tutano, vento caído — que é das coisas mais difícil de tratar —, carne triada, isipela, variza, queda de cabelo, inchaço de binga, escorrimento de xexeca e caganeira braba. Tenho reza forte pra espantar mosquito, abeia, besouro, percevejo, carrapato, mosca e grilo. E até largata e broca de plantação eu tiro. Deixo tudo benzido, mas eu mermo faço é nada, quem faz é Deus Nosso Senhor Jesus Cristo! Se tiver bicho na plantação, eu rezo minhas quadras e pode apanhar as favas, pode descalpelar o algodão, pode arar tudo que a praga: sinisfrói! Vai embora. Se pica!
Te digo tudo isto pra mó de saber que Dona Donia tem suas mãos de cura. Tu vai miorá depois de beber dessa infusão de garapa que o sol azedou no oco da minha cabaça. Primeiro tu vai sentir um azedume e até um cheiro de xoroca! Num se assuste não.
Tu tem que tomar de toda a infusão pra dar uma suadeira. É o suor da vida! Depois passa a suadeira e o azedume é um gosto esquecido. Aí tu cumpre teu destino. Tu num é moço de coragem rala. Risca o teu rumo.
Sei de tua procura, viu, Nem. Sei de tudo. Tu é um moço que especula muito com tua cabeça. As gentes daqui são gado demais! Um rebanho de gente frouxa. Povo mofino! Fracalhão. Tu não! Tu é muito brioso e desempenado. Mas escute meu aviso: tua busca é por coisa que tu ainda não sabe. Acolhe o que te digo: nem rastro nem rosto deste teu pai tu vai achar. Assunte: nem sempre a gente procura o que quer encontrar... Desassuste, agora a garapa vai fazer efeito. Se aprume no chão. Pronto, tá feito.
(Cantando) Pelas cinco chagas de Cristo. Pelas cinco partes do mundo. Pela pena de São Mateus. Dou só o que Deus me deu. Jesus quando andava no mundo, tudo que achou levantou. Alevante o quebrante do moço com o vosso divino amor!
(Velha Donia se vai. Retorna o filho errante, Zinho.) Essa coisinha pequena, distraída, se arrastando aqui e ali embaixo do sol, se escondendo, deslizando
no tempo que é puro conforto, eu podia ter ficado estendido lá na roça num catre velho feito calango, ou no chão, com a carne curtida esperando meu pequeno bocado que a vida sempre dá. A Velha Donia tava certa? O que é mesmo que eu fui buscar? Mas alguma coisa eu encontrei por lá. Foi no terreiro da Velha Donia que esbarrei nela, na minha promessa. “Brisa” se chamava. A moça já carregava no nome o seu destino: Brisa! Com ela veio o desatino e o bafejo do amor